Narrativas autobiográcas de um professor em (constante) formação, negro, albino e com baixa visão Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 11-24, Jul.-Dez., 2022 11
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2022.v9n2.p11-24
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Narrativas autobiográficas de um professor em (coNstaNte) formação,
Negro, albiNo e com baixa visão: trajetórias, experiêNcias e reflexões
AutobiogrAphicAl nArrAtives of A teAcher in (continuing) formAtion,
blAck, Albino And with low vision: trAjectories, experiences And reflections
João Marcos Isaías de SOUZA
1
Michele Pereira de Souza da FONSECA
2
RESUMO: o presente artigo tem como objetivo apresentar as reexões de um professor de Educação Física negro, albino e com
baixa visão acerca de suas experiências e trajetórias formativas a partir de uma narrativa autobiográca. O referencial teórico parte
de um conceito de inclusão amplo, processual, inndável e dialético (SAWAIA, 2017; BOOTH E AINSCOW, 2012; SANTOS
FONSECA E MELO, 2009), permeado pelas elaborações sobre formação docente na e para perspectiva inclusiva (FONSECA,
2021). Optamos por uma parceria na escrita entre orientadora-orientando, mas enfatizando o protagonismo da narrativa (auto)
biográca em primeira pessoa, entremeado com referenciais teóricos que apoiam as reexões sobre os desaos e as potências duran-
te o percurso na educação básica, no curso de Licenciatura em Educação Física e na prática prossional, ao reconhecer-se negro,
albino e com deciência visual.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Física. Inclusão. Deciência Visual. Narrativa Autobiográca.
ABSTRACT: this article aims to present the reections of a Physical Education teacher black, albino and with low vision about
his experiences and formative trajectories from a autobiographical narrative. e theoretical framework is based on a broad, pro-
cedural, endless and dialectical concept of inclusion (SAWAIA, 2017; BOOTH & AINSCOW, 2012; SANTOS FONSECA &
MELO, 2009), permeated by elaborations on teacher education in and for the inclusive perspective (FONSECA, 2021). We opted
for a partnership in writing between supervisor and student, but emphasizing the protagonism of the (auto)biographical narrative
in rst person, interspersed with theoretical references that support the reections on the challenges and potentials during the path
in basic education, in the Degree Course in Physical Education and in professional practice, recognizing himself as a black, albino
and visually impaired person.
KEYWORDS: Physical Education. Inclusion. Visual Impairment.Autobiographical Narrative.
iNtrodução
Ser uma pessoa com deciência é conviver com percalços no cotidiano muitas vezes
limitantes, majoritariamente impostos ou construídos pelas estruturas excludentes da sociedade,
Professor da Prefeitura de São Gonçalo (RJ). Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2022).
E-mail: joaomarcos.isaias@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7525-5209.
Professora associada 1 da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEFD-UFRJ).
Doutora e Mestre em Educação (PPGE/UFRJ), Licenciada em Educação Física (EEFD/UFRJ). E-mail: michelefonseca@eefd.ufrj.
br . ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0355-2524 .
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e que são imperceptíveis para aqueles e aquelas que não se percebem como aliados da luta
anticapacitista.
Segundo a Lei Brasileira de inclusão (BRASIL, 2015), a denição de pessoa com
deciência é a “que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art.2). Ou seja, em acordo
com o modelo social da deciência, em contraponto ao modelo médico, Diniz (2007) dene a
deciência como um conceito amplo e relacional, uma condição, uma característica da pessoa, e as
barreiras não estão circunscritas a ela e sim ao ambiente, ao contexto, a estrutura que ainda é pouco
acessível e inclusiva.
Mantoan (2003), Sassaki (2012) e Santos (2000) em seus estudos abordaram momentos
históricos pelos quais passaram pessoas com deciência e como foram percebidos pela sociedade ao
longo dos tempos. Entendemos que os paradigmas exclusão, segregação, integração e inclusão não
foram sendo substituídos linearmente uns pelos outros e coexistem na sociedade contemporânea, de
alguma maneira. Apesar dos notórios avanços no campo social, político e educacional, especialmente
quando lembramos que pessoas com deciência eram assassinadas ou encarceradas (SANTOS,
2000), há ainda muito o que desconstruir sobre preconceitos e exclusões enraizadas no convívio
social.
Considerando essas reexões, nos embasamos em um conceito de inclusão amplo,
processual, inndável e dialético (SAWAIA, 2017; BOOTH; AINSCOW, 2012; SANTOS
FONSECA; MELO, 2009), considerando diversos marcadores sociais da diferença e problematizando
as exclusões geradas a partir de questões envolvendo a deciência, mas também de gênero,
sexualidade, racialidade, etnia, classe social, aspectos geracionais e outras interseccionalidades.
A partir disso, entendemos as diferenças como vantagem pedagógica e não como sinônimo de
desigualdades (CANDAU, 2020), de modo a potencializar as singularidades e reconhecer as
necessidades especícas de cada pessoa.
Assim, compreendemos como parte signicativa do processo inclusivo visibilizar histórias
que compartilham trajetórias pessoais-acadêmicas-prossionais a m de desconstruir determinações
xas que engessam possibilidades e obstam oportunidades. Por isso, o presente artigo tem como
objetivo apresentar as reexões de um professor de Educação Física em (constante) formação negro,
albino e com baixa visão acerca de suas experiências e trajetórias formativas a partir de uma narrativa
(auto)biográca.
Reconhecer-se negro, se identicar albino, ser pessoa com deciência visual (baixa visão),
ser professor em constante formação é parte do processo inclusivo/excludente que aqui será narrado.
Nesse sentido, a problematização de uma formação docente na e para a perspectiva inclusiva
(FONSECA, 2021) se faz necessária para ressignicar as trajetórias formativas.
A expressão ‘formação na e para perspectiva inclusiva’ justica-se para armar que a
preocupação não é só perceber se os estudantes estão sendo formados para lidar com
as diferenças em suas ações prossionais futuras, mas também se eles, enquanto seres
singulares, são considerados na formação. Nesse sentido, o ‘na perspectiva inclusiva
signica reetir sobre como se dá a formação dos estudantes com relação aos processos
inclusivos e/ou excludentes que permeiam tal curso, considerando necessariamente
suas próprias demandas e questões. O ‘para perspectiva inclusiva’ signica perceber o
reexo dessa formação inicial nas futuras ações docentes desse estudante em formação
(FONSECA, 2021, p. 47-48, grifo da autora)
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Como nos arma Bondia (2002, p.21), “[a] experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Considerando isso,
este artigo é um convite à reexão a partir das narrativas de experiências pessoais e prossionais que
nos atravessaram nesse diálogo colaborativo ao contar uma história de vida marcada por processos
inclusivos/excludentes que precisam ser socializados.
Tais narrativas são marcadas pelo histórico excludente da Educação e da Educação Física
que reete e é reetida pelas contradições e exclusões presentes na sociedade. O conceito de inclusão
que entremeia tais narrativas e robustece a análise é polissêmico, mas não a tratamos de forma
irresponsável, acrítica ou despolitizada. Distancia-se, portanto, de uma inserção ingênua a todo
custo em ambientes em que minorias subalternizadas foram/são excluídas sistematicamente sem a
devida estrutura acessível que garanta a plena participação.
Uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica radical libertadora é trabalhar a legitimidade
do sonho ético-político da superação da realidade injusta. É trabalhar a genuinidade desta luta e
a possibilidade de mudar, vale dizer, é trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante,
que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodação à realidade injusta, necessária ao
movimento dos dominadores. (FREIRE, 2000, p.22).
Por isso o caráter amplo, dialético, processual e inndável está presente nesse conceito,
que visa problematizar a raiz dos problemas inerentes à participação social, ao compreender que “a
exclusão é processo complexo e multifacetado, uma conguração de dimensões materiais, políticas,
relacionais e subjetivas” (SAWAIA, 2017, p.9).
CAMINHOS METODOLÓGICOS
Metodologicamente, esta pesquisa de cunho qualitativo é baseada na narrativa
autobiográca, apontando experiências inclusivas/excludentes no processo de formação e
ressignicação da prossão professor de Educação Física. Dessa forma, neste estudo, optamos por
fazer uma parceria na escrita entre orientadora-orientando, mas enfatizando o protagonismo da
narrativa (auto)biográca em primeira pessoa contando o percurso de um professor (em constante)
formação e suas experiências, entremeado com referenciais teóricos que apoiam as reexões.
Passeggi, Souza e Vicentini (2011) assinalam que a partir da escrita de si a pessoa tem
condições de reetir sobre seu próprio percurso de formação formal, não-formal e informal. Estes se
apropriam dos pressupostos de uma grande referência desse campo, Marie-Christine Josso (2004),
sobre os conceitos de experiências formadoras e de recordações referências.
As recordações referências são aquelas que constituem um marco na trajetória e servem de
parâmetro para o que segue na vida. As experiências formadoras são denidas pela autora
como aquelas que implicam “uma articulação conscientemente elaborada entre atividade,
sensibilidade, afetividade e ideação” (2004, p. 48). Essa articulação objetiva-se tanto numa
representação quanto numa competência e é justamente o que dá o status de experiência às
nossas vivências. (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p.373-374).
As recordações referências e as experiências formadoras perpassam a narrativa (auto)
biográca que reete sobre os desaos e as potências durante o percurso na educação básica, no
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curso de Licenciatura em Educação Física e na prática prossional, ao reconhecer-se negro, albino
e com deciência visual.
PERCURSO DE UM PROFESSOR A PARTIR DA NARRATIVA
AUTOBIOGRÁFICA
Este é um relato individual com reexões coletivas para pensar as narrativas a partir
das experiências vivenciadas na educação básica e ensino superior. Esse sou eu! um homem negro,
albino e com baixa visão. Sou mais do que isso, mas comecemos por aqui.
Citando Moreira e colaboradores (2016, p.23), “o albinismo é uma condição genética
globalmente rara, e de acordo com Montoliu et al. (2014), leva à baixa visão associada a fenótipo
hipopigmentado”. Tenho um parente distante albino, porém mesmo sabendo disso me sentia único,
durante a infância e pré-adolescência. Achava que só eu tinha esse “problema”, entre aspas hoje, mas
era assim que eu me percebia naquela época, pois me sentia como se realmente tivesse um problema
por não enxergar bem ou por não poder jogar bola com meus amigos em um dia de sol. A minha
condição de ser albino e pessoa com deciência visual não era ponto de diálogo com minha família,
não se falava sobre isso.
Aragão (2021, p. 9) aponta que “Falar sobre as pessoas albinas é um desao, necessário e
urgente. Esse grupo vive uma ‘(in)visibilidade’ social e isso tem impacto nos processos de construção
identitária aos quais estão submetidas”, e reforça ainda “a necessidade de pensar sobre a identidade
albina e corroborar na desconstrução das ideias preconceituosas, discriminatórias, exóticas e
estigmatizadas para com elas” (p.9).
Eu comecei a pensar sobre minha cor há pouco tempo: o tom da minha pele é branco por
conta do albinismo, mas não sou branco. Minha família toda é negra; como eu não sou? Não tem
Albino no censo, até porque não é uma raça/cor, é uma condição genética.
"Teoricamente a pessoa albina é reconhecida como “branca” com base no fenótipo, mas a maioria
dos casos do transtorno de pigmentação ocorre na população negra, podendo o indivíduo se
autodeclarar negro, daí temos um duelo entre o fenótipo e genótipo" (ARAGÃO, 2021, p.18)
O estudo de Moreira e colaboradores (2016, p.26) “corrobora dados da literatura que
associam o albinismo com a afrodescendência”. Mesmo reetindo sobre isso, eu não sabia me
reconhecer. Tinha receio de me autodeclarar como negro porque eu nunca senti que sofri o racismo
que uma pessoa de pele preta sofre, embora obviamente tenha sofrido preconceito por ser “mais
branco” que o branco padrão.
Temos então uma questão racial/cor/identitária delicada e que precisamos pensar com
cautela[...]. Embora a questão da “ausência da cor” seja peculiar entre a população
albina, no imaginário social, o que prevalece é a cor, mas não se trata de um branco
qualquer; é um “branco enigmático” associado a algum tipo de doença. É uma cor que
vai para além dos “padrões” em uma sociedade racista, pois não é só a pele que tem a
tonalidade característica, são os cabelos, pelos, cílios e olhos. Ao falarmos da população
branca (não albina) colonizadora, e que deixou marcas profundas por onde passou,
estamos falando do pensamento eugênico/racista como uma realidade viva — sobretudo
com o atual governo brasileiro —, algo que ainda permanece no topo das representações
sociais, econômicas, políticas, sociais e culturais (ARAGÃO, 2021, p .18)
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Autodeclarar-se negro não se resume ao racismo que se passa ou não. Autodeclarar-se
negro não pode ser originado tão somente na dor, nos aspectos negativos, nas discriminações que
se passa, é sobre sua história, ancestralidade, culturas e raízes. Munanga (2005) aponta sobre a
ambiguidade do racismo no Brasil e que o conceito de raça é o arcabouço sócio-histórico que a
genética não pode explicar. Essa reexão fez sentido há bem pouco tempo pra mim e foi um divisor
de águas para eu me identicar e me reconhecer como um homem negro, albino e com baixa visão,
hoje aos 23 anos.
POR QUE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA?
Possuir uma deciência visual, causada pelo albinismo, durante toda a vida foi um desao
constante, com limitações por conta do sol e dos cuidados com a pele, e por conta da visão pela
baixa acuidade visual.
Durante a trajetória na educação básica, aponto três momentos em contextos distintos:
uma parte do ensino fundamental II em uma escola regular, outra parte em uma escola especializada
e o ensino médio numa escola regular. Não me atentarei ao ensino fundamental I, por possuir
poucas lembranças claras, apesar de manter algumas signicativas como levantar a todo momento
para ler o quadro, e/ou ter a carteira colocada muito próxima ao quadro pela professora para que
eu pudesse enxergar, cando assim em total evidência perante o restante da turma. E mesmo com a
carteira bastante perto do quadro, não conseguia enxergar.
O primeiro momento que gostaria de narrar é sobre o ensino fundamental II numa
escola estadual regular. Nessa época, por volta dos meus 12 anos, não se falava muito em pessoas
com deciência, e muito menos sobre inclusão, ou ao menos esses discursos não chegavam até mim.
Até essa altura da vida, eu não sabia que possuía deciência visual; entendia que não enxergava
bem, porém não sabia que era considerado uma deciência e nenhum professor identicou alguma
questão nesse sentido. Ao longo de 2 anos nessa escola, com o aumento na exigência das disciplinas
e aumentando as diculdades, foi se intensicando o problema em relação ao meu aprendizado e
se tornando cada vez mais difícil estudar, copiar do quadro. Minhas notas foram caindo até que
chegou ao ponto que eu não queria mais ir para a escola, pois percebia que minhas necessidades
não eram consideradas por alguns professores, o que causava constrangimento, dor e sofrimento.
De modo geral, em todo meu percurso escolar, me deparei com diculdades como fontes
pequenas e não ampliadas em provas, testes e materiais didáticos das disciplinas, utilização quase
que exclusiva da lousa sem auxílio necessário para que pessoas que possuem baixa visão pudessem
enxergar ou terem condições de estudar, aulas de Educação Física em locais abertos ou em locais
muito claros incluindo piscinas onde eu era excluído das aulas por não poder fazer.
A invisibilidade é evidenciada nessa narrativa, tanto pela deciência visual quanto pelo
albinismo. Uma invisibilidade que ignora, inclusive, o que é absolutamente perceptível, mas que
é escamoteada pelo preconceito. Com relação à deciência, Ross (2016, p. 41) denuncia que “O
modo como a sociedade “resolve” a deciência evidencia a concepção de incapacidade, o lugar
de subserviência e de invisibilidade a que são submetidas as pessoas com essa história de vida”.
Com relação ao albinismo, Bíscaro, um professor com albinismo corrobora: “Sou uma pessoa com
albinismo. Sou também uma pessoa invisível. Não consto do Censo, quase nunca apareço na mídia.
Entretanto – vai entender o paradoxo! – chamo a atenção onde quer que eu vá” (BÍSCARO, 2012,
p. 17).
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Não falar abertamente e com naturalidade sobre deciência e outras necessidades especícas
na escola é alimentar o capacitismo, pois não abre possibilidades para o debate que facilitaria a
própria pessoa com deciência se reconhecer, se compreender e ser acolhida no espaço escolar,
ao mesmo tempo em que pessoas sem deciência também lidariam desde cedo com naturalidade
sobre as múltiplas maneiras de ser e estar no mundo. Nesse sentido, cabe também problematizar a
importância da formação docente e a famigerada expressão “Não estou preparada para lidar com
estudantes com deciência”. Daí a potência de entender as diferenças como vantagem pedagógica
(CANDAU, 2020) e aprender com cada ser singular que passe pela vida de cada docente.
Por volta dos 14 anos, conheci outras pessoas com albinismo e baixa visão que me
apresentaram o Instituto Benjamin Constant (IBC), uma escola referência e especializada para
deciência visual. Ali descobri que a minha “diculdade” para enxergar era uma deciência, então,
fui estudar lá. Após isso, minha vida foi se modicando bastante, consegui voltar a me desenvolver
na escola, conheci o judô, tornei-me atleta e conheci como era uma Educação Física com conteúdos
diversos, o que me aproximou bastante da área. Além disso, o tempo que passei estudando no IBC
fez com que pudesse me reconhecer e me aceitar como uma pessoa com deciência, e compreender
as minhas limitações para que elas não fossem barreiras que me impedissem de fazer qualquer coisa.
Comparado à minha experiência anterior na escola regular, em que eu não era
considerado e que a estrutura pedagógica e metodológica não era preparada para me contemplar, a
experiência no IBC foi muito acolhedora e impulsionadora de várias oportunidades na minha vida.
Entretanto, atualmente, após processos profundos de reexão e rememorando a minha trajetória,
percebo a importância de se conviver em um espaço escolar e institucional com pessoas diversas,
porque no instituto especializado acabamos por ter referências somente no que tange à deciência
visual e adiamos a chance de convivermos mais em sociedade, compartilhar experiências e aprender
mutuamente. Reforço, portanto, a partir das minhas reexões e experiências, a importância de
que pessoas com deciência estejam no ensino regular, de maneira responsável e com mudanças
estruturais que permitam autonomia e participação ativa.
Logo após o término do ensino fundamental fui para o Colégio Pedro II, uma escola
federal regular onde experienciei novos desaos e mudanças na forma de estudar. Nesse colégio,
conheci muitos professores/as que me inspiraram a seguir para área da docência. Foi então que me
aproximei da área da Educação Física, busquei saber mais e decidi tentar cursar Licenciatura em
Educação Física.
Por algum tempo os/as estudantes com deciência eram liberados das aulas se não
quisessem participar, o que sempre achei muito errado. Eu sempre quis participar, mas nem todos
queriam, talvez fruto das experiências anteriores, concordando com Fonseca e Ramos (2017, p.202)
quando apontam que “não é o aluno que se exclui da participação em determinadas atividades,
mas ele é muitas vezes excluído, ainda que indiretamente, a medida que não encontra nas aulas um
ambiente que respeite sua singularidade”.
Importante problematizar a escola, seja comum ou especial, e levantar o debate sobre as
questões estruturais que dicultam os processos de ensino-aprendizagem no que tange a aspectos
objetivos e subjetivos. Sobre isso, Moreira e Candau (2003, p. 161) raticam que “A escola sempre
teve diculdade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-
se mais confortável com a homogeneização e a padronização”, porém, é exatamente esse nosso
desao coletivo, (re)construir espaços dialógicos e críticos para valorizar as diferenças.
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NA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Ingressei no curso de Licenciatura em Educação Física na Universidade Federal do Rio de
Janeiro no segundo semestre de 2018, por meio das cotas para pessoas com deciência possibilitadas
pela efetivação da lei 13.409 (BRASIL, 2016) com 19 anos. Já me percebia como uma pessoa com
deciência e pensei que seria mais fácil o desenvolvimento acadêmico, também por estar em uma
universidade federal de grande porte e referência. Contudo, logo no primeiro período me deparei
com uma disciplina em que o professor usava slides em todas as aulas e não o disponibilizava, pois
alegava que os professores em formação poderiam utilizar indevidamente o material criado por ele.
Essa atitude do professor me prejudicou muito, pois não tinha como acompanhar os slides, apenas
o que era dito em sala de aula. Eu tinha a opção de tirar fotos usando o celular, porém, ou eu tirava
fotos, ou fazia anotações e/ou ouvia o que o professor falava. Àquela altura já me perguntava:
O que um estudante iniciante na universidade, apenas no 1º período, iria fazer com o material
projetado pelos professores em slides, senão estudar para uma famigerada prova que não prova seus
aprendizados?
Uma outra diculdade que me atrapalhou bastante foi o fato da piscina da faculdade não
ser coberta. Por esse motivo, tive que cursar unicamente as disciplinas aquáticas no período noturno
o que afetou minha vida por completo, pois ou eu tinha que car cerca de 7 horas na faculdade
aguardando o turno da noite, ou eu teria que ir duas vezes para a faculdade no mesmo dia. Esse
deslocamento cava inviável tendo em vista que eu morava a uma distância de 3 horas de casa até
a faculdade e tinha que pegar 3 transportes públicos. Não houve possibilidade de diálogo com a
professora para uma alternativa, que não cursar a noite. Esses transtornos me desanimaram muito
no início da faculdade. A euforia de estar cursando algo que gosto muito foi cando de lado por
esses percalços encontrados logo no primeiro período.
Documentos referenciais como a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deciência
(BRASIL, 2007) e a Lei Brasileira de inclusão (BRASIL, 2016) reforçam o entendimento sobre
as barreiras estruturais que dicultam a plena participação social das pessoas com deciência em
igualdade de condições com as demais pessoas. Nas narrativas acima, há diculdade em criar um
ambiente acolhedor, a compreender as singularidades e necessidades especícas apontadas.
[...] a deciência é produção do encontro entre uma pessoa e as barreiras que ela encontra no
contexto social em que está inserida. A partir dessa denição, no âmbito da inclusão escolar,
deslocamos o foco individualizado que hoje recai sobre o aluno para focarmos nas relações que
se estabelecem dentro da escola e as barreiras que elas produzem (KAUFMAN, 2017, p.113).
Ao chegar no segundo período, um pouco mais maduro pelas experiências anteriores,
me apresentei para todos os professores/as e expliquei a minha deciência esperando ter um pouco
mais de suporte. Nesse tempo, tive apenas três problemas, dois, porém que me afetaram bastante.
Durante as aulas de anatomia, era muito difícil acompanhar as aulas práticas. As peças anatômicas,
por carem imersas em formol, tinham um cheiro bem forte, por conta da baixa visão tinha que
chegar bem perto para poder enxergar origem e inserção dos músculos e outros detalhes das peças,
o que se tornou bastante desconfortável pelo cheiro intenso e ardor dos olhos.
Nessa mesma disciplina, avisei ao professor e o lembrei de minha baixa visão antes da
prova, mas mesmo com todos os avisos, tive que fazer a prova em um outro dia por falta de prova
ampliada. O mesmo ocorreu em outra disciplina no mesmo período, porém o professor me conduziu
até sua mesa e z a prova ampliando no computador, o que na época foi bastante desgastante pelo
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constrangimento que tive em car exposto para turma toda. Mesmo sendo um curso de formação
de professores/as, passamos por essas situações regularmente, em que o contexto vivido se congura
como a barreira e não a deciência.
O modelo médico de compreensão da deciência assim pode catalogar um corpo cego: alguém
que não enxerga ou alguém a quem falta a visão - esse é um fato biológico. No entanto, o modelo
social da deciência vai além: a experiência da desigualdade pela cegueira só se manifesta em
uma sociedade pouco sensível à diversidade de estilos de vida. (DINIZ, 2007 p.4).
A citação de Diniz nos faz reetir sobre as diculdades estruturais e contextuais que obstam
a participação de pessoas com deciência em espaços acadêmicos no que tange às metodologias e
avaliações tradicionais e excludentes, que reforçam que o problema está circunscrito às pessoas com
deciência e não no entorno, e não na falta de pensar em outras possibilidades pedagógicas em que
caibam todos os corpos e suas singularidades.
Chegando à metade da graduação, em 2020.1, fomos assolados por uma pandemia,
em que surgiram problemas comuns a muitos estudantes, como a falta de estrutura física para
estudar, a falta de equipamentos adequados e a qualidade ruim da internet. Além do medo inerente
ao agravamento dos quadros de infecção por covid-19, tive particularmente diculdade em
acompanhar as aulas, por ter que car muito tempo na frente do computador, onde sentia muita
dor de cabeça e nos olhos. Durante algumas disciplinas, tive algum contato com vídeos e lmes em
outros idiomas, apenas com a legenda em português, o que dicultava bastante, pois não consigo
enxergar para ler e assistir com qualidade. Materiais didáticos escaneados também eram bastante
inacessíveis, pois muitas vezes com a ampliação desfocava e dicultava a leitura.
Santos (2020) em seu livro ‘A cruel pedagogia do vírus’, arma que a quarentena e tudo
que envolve a pandemia do novo coronavírus “não só torna mais visíveis, como reforça a injustiça,
a discriminação, a exclusão social e o sofrimento imerecido que elas provocam” (p.21), além de
apontar as pessoas com deciência como um dos grupos sociais ainda mais afetados, que padecem
de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela” (p.15).
Tanto no ensino presencial quanto no ensino remoto, as diculdades narradas demonstram
falta de acessibilidade por vários prismas. Sassaki (2009) explica sobre as seis dimensões de acessibilidade
que precisam coexistir e estar presentes na educação, no lazer, no trabalho de todas as pessoas com ou sem
deciência, considerando os princípios do desenho universal.
As seis dimensões são: arquitetônica (sem barreiras físicas), comunicacional (sem barreiras
na comunicação entre pessoas), metodológica (sem barreiras nos métodos e técnicas de lazer,
trabalho, educação etc.), instrumental (sem barreiras instrumentos, ferramentas, utensílios
etc.), programática (sem barreiras embutidas em políticas públicas, legislações, normas etc.) e
atitudinal (sem preconceitos, estereótipos, estigmas e discriminações nos comportamentos da
sociedade para pessoas que têm deciência). (SASSAKI, 2009, p. 10-11)
Especialmente no que tange aos aspectos metodológicos, cabe uma preocupação maior
sobre os materiais utilizados e as organizações didáticas ao encontro de contemplar as necessidades
especícas e demandas dos/as estudantes, sobretudo repensar todas as escolhas pedagógicas que de
alguma maneira reforçam exclusões de toda ordem.
A Educação Física historicamente tem grande inuência militarista, esportivizante e
focada na aptidão física, embora referenciais teóricos robustos já apontem para a desconstrução
dessa ênfase excludente desde a década de 1990 (SOARES et al., 1992; BRACHT, 1999). Na
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formação docente, essa ênfase ainda se apresenta, porém eu não tive problemas com isso por ser
atleta de judô e também por ter cursado algumas disciplinas esportivas remotamente, mas percebi a
exclusão de muitos colegas por não terem habilidades exigidas, inclusive nas avaliações.
A diculdade mais evidente foi mesmo nas disciplinas aquáticas, que aliada a questão
da intensa exposição ao sol como narrado anteriormente, era exigido sobremaneira a performance
para nadar. Essa barreira foi potencializada por eu nunca ter tido muitas experiências na praia ou
piscina para evitar a extensa exposição à luz solar, o que ratica, mais uma vez, que a barreira está
no ambiente, nas circunstâncias e não na minha diculdade de aprender a nadar necessariamente.
Fonseca (2014, 2021) e Fonseca e Ramos (2017) assinalam a necessidade de repensar o
círculo vicioso excludente que se reete na formação e na ação docente e que, sobretudo, envolve a
desconstrução de práticas que impedem a participação dos/as estudantes.
Tal reexão se aproximando da perspectiva inclusiva, de ampla participação de todos e
reconhecimento de direitos, é necessária para se romper com esse círculo vicioso que exclui os
menos habilidosos, as pessoas com deciências ou quaisquer outras necessidades ou diculdades
que se desviam do padrão esperado de movimento perfeito. (FONSECA; RAMOS, 2017,
p.192).
As exclusões podem se perpetuar de muitas formas, por exemplo, em somente atentar ao
acesso à universidade ou à escola e não em condições dignas para a permanência com qualidade.
Apesar de ter passe livre de pessoa com deciência, ter acesso ao restaurante universitário ao custo
de R$2,00 a refeição, e ter sido bolsista de extensão (mesmo com o valor da bolsa absolutamente
defasado), não tive outra bolsa permanência que garantisse condições para que eu não precisasse
trabalhar ao longo desse tempo ou demais apoios necessários para conseguir focar nos estudos.
Ao continuar essa narrativa, apontando os desaos enfrentados, pretende-se encorajar
pessoas e transformar muitas outras histórias, além de sinalizar para a importância de uma educação
problematizadora, crítica, reexiva, que forme gente que se posicione frente às exclusões, com olhar
atento e sensível para as demandas diversas e para a quebra de barreiras, pois a intenção não é uma
inserção parcial e condicional, em que a pessoa tem que se adequar ao meio como o paradigma
da integração aponta, mas sim que o meio se modique, se amplie de possibilidades, para que as
pessoas sejam de fato acolhidas em suas singularidades, como assinala o paradigma da inclusão
(MANTOAN, 2003).
Dialogando com o conceito dialético, amplo, processual e inndável de inclusão, durante
a graduação não passei apenas por situações excludentes. Apesar de muitas delas terem sido bastante
marcantes, experienciei muitas situações inclusivas proporcionadas por docentes e colegas de turma.
Logo, no primeiro período, z amizades com colegas que me auxiliaram muito, como ler o quadro
pra mim, tirar uma foto do quadro, e/ou emprestar o caderno para que eu pudesse copiar ou
fotografar para ter o conteúdo das disciplinas em dia.
Por ser atleta paralímpico e conhecer bastante o esporte, tive em muitas disciplinas um
espaço maior para falar sobre, e sempre levava o assunto da deciência para as discussões.
Houve algumas disciplinas como Educação Física adaptada que me senti bem representado
e incluído por poder falar bastante da minha experiência de vida. Essa disciplina historicamente
abarca questões relativas às pessoas com deciência, porém a partir dela que conheci e reconheci
uma abordagem mais ampla do conceito de inclusão que considera pessoas com deciência
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SOUZA, J. M. I.; FONSECA, M. P. S.
compreendendo-a num contexto social e político, mas também se preocupa em problematizar
outras questões que geram exclusões e opressões na sociedade.
A partir dessa disciplina compreendi na práxis Freireana, nas aulas em roda, com formato
horizontal e dialógico, o que signica formação docente na e para perspectiva inclusiva (FONSECA,
2021), pois, por exemplo, além de termos problematizado situações que nos formam para lidar com
futuros estudantes com baixa visão nas aulas de Educação Física escolar, me senti contemplado na
formação, tendo a minha singularidade considerada durante as aulas, num exercício constante de
manter a coerência entre o que se diz e o que se faz, como nos ensina Freire (2000).
Outra coisa simples, mas que fazia me sentir bastante incluído, era quando no início dos
períodos eu tinha espaço para me identicar como uma pessoa com deciência e os professores/
as buscavam entender o que me faria participar de forma mais plena, e perguntavam durante o
período se eu me sentia contemplado nas aulas, mas infelizmente, não eram todos.
Um momento muito signicativo durante o curso de Licenciatura e que não pode faltar
em minha narrativa, foi minha participação no projeto de extensão Educação Física escolar na
perspectiva inclusiva (PEFEPI), que ocorre em uma Escola Municipal na zona norte do Rio de
Janeiro, cujo objetivo é proporcionar colaborativamente ações mais inclusivas nas aulas de Educação
Física por meio do ensino colaborativo e da diversicação de conteúdos, buscando promover a
participação efetiva de todas e todos, considerando as diferenças das/dos estudantes participantes e
minimizando as exclusões de toda ordem.
A partir da experiência no projeto, tive certeza de que queria ser professor na Educação
Física escolar, onde eu realmente pude atuar como um professor e estar pela primeira vez no ‘chão
da escola’ perante a turma. Atuei como extensionista bolsista de 2019 a 2020, o que foi fundamental
para permanência na universidade nesse período. Assim, a extensão universitária oportunizou estar
vivendo o cotidiano escolar e todos os processos pedagógicos envolvendo a construção coletiva e
dialogada dos planejamentos, a execução das aulas e as avaliações, tendo como base a perspectiva
inclusiva e um olhar singular para todos/as os/as estudantes das turmas de 6.° ao 9.º ano do ensino
fundamental, Programa de Jovens e Adultos (PEJA) e projeto carioca.
A participação no PEFEPI foi um grande desao e uma enorme oportunidade que tive
durante a graduação, pois me compreendi como professor. Tinha receio de como os meus futuros
estudantes me veriam como professor, tentava de uma certa forma prever como estes entenderiam
ter um professor albino e com deciência visual. Em um dos dias de atuação na escola, uma aluna
me indagou o motivo de eu ser muito branco e se referiu como algo bastante estranho, não que
isso me incomodasse pois para essa estudante era algo inusitado ver uma pessoa com albinismo.
Isso me fez reetir como seria no futuro e como meus alunos e eu iríamos lidar com questões como
essas relacionadas à minha pele e à baixa visão. Abordei o assunto com naturalidade explicando o
albinismo e a deciência visual, o que de alguma maneira me remeteu aos meus tempos da escola
básica, em que esse assunto nunca foi conversado.
As experiências no projeto de extensão me possibilitaram escrever um artigo como
trabalho de conclusão de curso (TCC), em dupla com um grande amigo, que também compartilhou
comigo a trajetória formativa no PEFEPI. Nosso TCC objetivou analisar como o processo de
ensino-aprendizagem ocorreu para dois estudantes com deciência visual (baixa visão) nas aulas
de educação física em uma escola Municipal do Rio de Janeiro através do conceito de inclusão em
que nos embasamos e de diferentes perspectivas: os próprios estudantes, a professora de Educação
Física e a coordenadora pedagógica, que também tinha baixa visão. Este foi elaborado durante a
Narrativas autobiográcas de um professor em (constante) formação, negro, albino e com baixa visão Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 11-24, Jul.-Dez., 2022 21
pandemia, utilizando os recursos possíveis no ensino remoto, porém foi um momento enriquecedor
de estreitar os laços acadêmicos e afetivos com meu colega parceiro e minha orientadora, também
coordenadora do projeto e que compartilhou conosco todo esse processo.
Escolhemos coletivamente esse tema, mas certamente muito movidos pela minha trajetória
pessoal, pois foi muito graticante ver que estávamos contribuindo para o desenvolvimento de
estudantes que têm experiências similares às minhas e que convivi como professor compreendendo
de perto quais os desaos e potenciais da pessoa com deciência visual, de modo a socializar as
reexões e percepções dessas experiências.
O PEFEPI é uma das ações desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre
Inclusão e Diferenças na Educação Física Escolar (LEPIDEFE), do qual faço parte desde 2019 e
pude ter experiências como pesquisador e no aprofundamento de leituras que me ajudaram também
nas disciplinas e indissociou a minha participação no ensino, na pesquisa e na extensão, além de
ter possibilitado a escrita de artigos cientícos e a apresentação em diversos eventos acadêmicos em
parcerias com a orientadora e colegas.
Essas experiências narradas ampliam o
[...]olhar sobre e com a deciência, não somente como um ser encerrado em si sem
considerar aspectos estruturais que obstam sua participação ativa, mas também
atravessado por diversos marcadores sociais da diferença, valorizando sua singularidade
e não reforçando desigualdades (FONSECA, 2022, p.119)
No projeto me percebi professor. Éramos reconhecidos como professores, em respeito e
consideração a parceria que estreitávamos a cada dia com as professoras regentes e a coordenação
do projeto. Por conta da pandemia, z todo o estágio obrigatório remotamente. Se não fosse a
extensa experiência no PEFEPI, não me sentiria conante para o maior desao de todos, até agora:
assumir como professor concursado na Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo em abril
de 2022, assim que me formei no curso de Licenciatura em Educação Física na UFRJ. Essa história
prossegue...
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que não é porém possível é sequer pensar em trans-formar o mundo sem sonho, sem utopia
ou sem projeto (FREIRE, 2000, p.26)
Este artigo objetivou apresentar as reexões de um professor em (constante) formação
negro, albino e com baixa visão acerca de suas experiências e trajetórias formativas, a partir de uma
narrativa (auto)biográca. Não intencionamos romantizar essa trajetória, tampouco desestimular
algum leitor desavisado.
Longe do discurso falacioso e meritocrata de “se eu conseguir, vocês conseguem”, esta
narrativa intenciona sobretudo ser um convite à reexão de docentes, gestores, núcleos familiares e
estudantes que porventura leiam esse relato, encorajando pessoas com deciência a seguirem seus
objetivos e vocações, a ocuparem os espaços demonstrando compromisso e responsabilidade; mas
principalmente, é um grito de alerta para que esses espaços que são/serão ocupados sejam permeados
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SOUZA, J. M. I.; FONSECA, M. P. S.
por estrutura acessível e inclusiva, no que tange aos aspectos arquitetônicos, metodológicos e
atitudinais.
As barreiras aqui apontadas poderiam ser minimizadas se a ação pedagógica se aproximasse
dos pressupostos de Paulo Freire (2013) na construção de uma educação problematizadora, dialógica
e horizontalizada, que exatamente por considerar o caráter histórico das pessoas no mundo, “é
que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos em e com uma
realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada” (p.73-74).
A presença de pessoas com deciências na EEFD/UFRJ hoje é uma realidade,
potencializada ainda mais por ações armativas que buscam reparar historicamente a invisibilidade
de muitos corpos subalternizados ao longo dos tempos. É tempo de rever comportamentos
preconceituosos, experiências ignoradas, direitos negados e histórias apagadas.
Que a desculpa da ‘falta de preparação’ para atuar na e para a perspectiva inclusiva seja
vencida pelo compromisso de compreender que inclusão não é caridade ou bondade, não se trata
de superar a deciência e sim as barreiras impostas, justamente porque é direito ocupar plenamente
os espaços sociais, inclusive a universidade pública.
A tal ‘preparação’ se dá na construção coletiva, no caminhar colaborativo, no sentido
do inacabamento, não como uma fórmula pronta, uma receita de bolo que resolverá magicamente
todas as questões históricas envolvidas na participação social de pessoas com deciências, negras,
albinas, indígenas, LGBT+ e tantos outros rostos humanos minorizados.
Essa história continua sendo contada, e cada vez com mais capítulos de luta por mais
diálogo sobre e com as diferenças que nos constituem, para que sigamos abordando com naturalidade
sobre negritude, albinismo e deciência visual, comprometidos/as em transformar a universidade e
a escola em espaços acolhedores e inclusivos, em que as histórias de todos e todas sejam valorizadas,
suas demandas respeitadas e seus lugares ocupados por direito.
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