Trajetórias formativas na escolarização de dois estudantes com deciência visual Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 25-38, Jul.-Dez., 2022 25
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2022.v9n2.p25-38
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
TrajeTórias formaTivas na escolarização de dois esTudanTes com
deficiência visual
TrajecTories in The schooling of Two sTudenTs wiTh visual impairmenT
José Ricardo da Silva RAMOS
1
Cleonice Almeida da SILVA
2
Resumo: Este estudo teve como objetivo investigar o processo de escolarização de dois estudantes com Deciência Visual (DV):
um com cegueira e outro com baixa visão, ambos egressos do Curso Técnico em Agropecuária do Instituto Federal do Ceará -
Campus Crato do Estado do Ceará. Para tanto, elegemos uma abordagem qualitativa de pesquisa, tomando como suporte falas
signicativas dos sujeitos pesquisados, em que os seus depoimentos nos auxiliaram a conhecer experiências (particulares/colabora-
tivas) educacionais, desde o período da escola regular primária e da escola especializada até a escola técnica Concluímos que essa
perspectiva integradora reete a escola regular ancorada numa concepção de deciência como algo intrínseco do estudante com
DV, em que ele está sujeito às suas características e, por essa razão, tem suas desvantagens em relação ao processo de aprendizagem
que a escola coloca sob sua responsabilidade se abstém da responsabilidade do sucesso ou do fracasso escolar do estudante, como
se o processo de inclusão escolar dependesse unicamente dele.
Palavras-chave: Pessoa com Deciência Visual. Inclusão Escolar. Trajetórias escolares.
Abstract: is study aimed to investigate the schooling process of two students with Visual Impairment (VI): one with blindness
and the other with low vision, both graduates of the Technical Course in Agriculture at the Federal Institute of Ceará - Campus
Crato do Estado do Ceará . To this end, we chose a qualitative research approach, taking as support the signicant speeches of
the researched subjects, in which their testimonies helped us to know (private/collaborative) educational experiences, from the
period of the regular primary school and the specialized school to the high school. technique We conclude that this integrative
perspective reects the regular school anchored in a conception of disability as something intrinsic to the student with VI, in which
he is subject to his characteristics and, for this reason, has its disadvantages in relation to the learning process that the school puts
under their responsibility abstains from responsibility for the students academic success or failure, as if the school inclusion process
depended solely on him.
Keywords: Visually Impaired Person. School inclusion. School trajectories.
inTrodução
O modo de ver a escola a partir de sujeitos/estudantes com deciência visual (DV) se
constitui essencial para a escola que se diz inclusiva
3
. Se, é relevante olhar a escola como instância de
Doutor em Estudos da Linguagem. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail:josericardo63@
gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6124-5605.
Mestre em Educação. Assitente em Administração no Instituto Federal do Ceará – IFCE. E-mail: cleoalmeida.adv@gmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3925-2972
O modelo de Educação Inclusiva não representou para os estudantes com deciência visual (DV) a sua aplicação de fato, pois
para eles o entendimento que as escolas têm das suas condições atípicas da deciência não estiveram pautadas na heterogeneidade
e não procuraram responder pedagogicamente às suas necessidades especícas de DV.
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RAMOS, J. R. S.; SILVA, C. A.
sistematização do conhecimento porque também não enxergar a escola que propõe compreender as
singularidades e os potenciais de pessoas com deciências. Essa é a questão central desse trabalho: é
possível fazer qualquer incursão pedagógica sem antes ver a trajetória escolar daqueles que também
necessitam ser vistos dentro da escola? Não deixa de ser um ponto de vista ou a vista de um ponto
com um viés crítico do movimento educacional de alunos com deciência na escola. Essa reexão
nos leva à constatação que a escola está sempre atravessada de ações educacionais dos que enxergam,
ou os que não enxergam, ou ainda não querem enxergar a realidade concreta. Isso poderia se
comparar ao que Saramago (1995, p. 5) disse em Ensaio Sobre a Cegueira: “Queres que te diga
o que penso, diz, penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que,
vendo, não vêem
Considerando que a proposta deste trabalho envolve a história de vida, a memória, e
as narrativas de dois estudantes egressos com DV e suas múltiplas experiências na escola, fomos
buscando “enxergar” suas ações educacionais, seus valores e ponto de vista. Dois sujeitos/estudantes
que passaram pelo Curso Técnico em Agropecuária, integrado com o Ensino Médio no Instituto
Federal do Ceará, Campus Crato - Estado do Ceará, que assumiram o risco de compreender seu
processo de escolarização e em que medida esse processo foi ou não viabilizado na escola regular,
escola para decientes e de ensino técnico prossional.
Para efeito de organização deste estudo, adotamos a denição de deciência visual
respaldada nas ideias de Amiralian (1997), que engloba tanto a cegueira (ausência total de visão),
como a baixa visão (presença parcial de visão), que são condições biológicas limitadoras em si
mesmas e não impeditivas do convívio escolar, apreensão da cultura escolarizada e desenvolvimento
social.
Para alcançar tal escopo histórico de escolarização, procuramos sustentar esta investigação
da trajetória dos estudantes com DV nos estudos de Glat e Pletsch (2009), Mantoan (2006) e
Caiado (2014). Esses autores tratam da educação inclusiva, do cotidiano escolar e das estratégias
educacionais no ensino e na aprendizagem de estudantes com deciência. Para falar da educação de
modo mais abrangente, recorremos a Paulo Freire (1989), que aborda a educação em seu sentido
crítico emancipador, possibilitando sua menção como essencial para compreendermos as relações
educacionais dos sujeitos, aqui abordados. A leitura histórica que nos interessa está assentada na
história oral, na pluralidade de interpretações possíveis, na produção de sentido exatamente no
campo da história escolar de dois sujeitos com DV.
Para Caiado (2014), ao tratar da inclusão educacional deve-se levar em consideração
o que os alunos com deciência têm a dizer sobre suas vidas, experiências escolares, lembranças
de outras escolas frequentadas, relacionamento com professores, colegas, práticas pedagógicas e,
dessa forma, conhecer o que essas pessoas pensam da escola. Assim, por meio dos registros de
unidades de signicação escolar desses estudantes, vericamos estratégias de ensino-aprendizagem
que os acolheram e, as que não os acolheram para se inserirem na escola prossionalizante do Curso
Técnico em Agropecuária no Instituto Federal do Ceará.
Coadunando com Caiado (2014), Glat e colaboradores (1998) armam que a visão
de mundo das pessoas com deciência e como elas se auto percebem nem sempre é levada em
consideração quando são elaborados estudos e teorias sobre a deciência, tampouco quando se trata
de planejamento de políticas públicas e programas de atendimento a esse grupo de pessoas. No
entanto, apesar de gestores, professores e famílias serem convidados para debaterem e falarem sobre
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a inclusão dessas pessoas na escola, na área educacional ainda é escasso o número de pesquisas com
foco na história de vida do próprio aluno com deciência, expressando suas vozes.
Há variadas formas de conhecer a realidade acerca da inclusão. Todavia, a proposta, tanto
de Caiado (2014) quanto a de Glat e Pletsch (2009), é priorizar a versão dos acontecimentos do
cotidiano escolar, dada pelas pessoas historicamente estigmatizadas e marginalizadas em virtude
da deciência. Essas pessoas muito têm a falar sobre suas experiências, e no caso deste estudo, os
relatos dos estudantes com DV mostraram à comunidade acadêmica e ao Instituto Federal do Ceará
(IFCE) – Campus Crato direcionamentos de como foram suas construções educacionais quando
estudantes no ensino prossionalizante em Agropecuária.
Conforme Glat e Pletsch (2009):
O objetivo deste tipo de estudo é ouvir o que esses sujeitos têm a dizer sobre si mesmos, seus
relacionamentos e sua vida cotidiana. Pretende-se, assim, a partir de suas narrativas, averiguar
de que forma a condição de estigmatizado afeta suas experiências, visão do mundo e identidade
pessoal, bem como, conhecer as estratégias de sobrevivência social desenvolvidas, por alguns,
para superação ou minimização do estigma. (GLAT; PLETSCH, 2009, p. 141).
O estudante com deciência de um modo geral, como agente da construção de seu
conhecimento, tem muito a dizer sobre o seu processo de escolarização, de modo que suas histórias
de vida evidenciam com maior nitidez as propostas conteudistas da escola que se ocultam por detrás
dos discursos que fundamentam os currículos escolares ociais e, até mesmo, as práticas realizadas
no cotidiano escolar, visto que o ingresso sem garantia de permanência e conclusão escolar pode
resultar em mais uma experiência excludente no que se refere a uma escola que se diz inclusiva.
Dessa maneira, o fato do estudante com DV estar matriculado não garante sua real
inclusão, pois a matrícula assegura apenas sua inserção enquanto aluno. Para ocorrer efetivamente
à inclusão, no sentido de ser parte da instituição regular de ensino, é necessário todo um processo
pedagógico que vise à eliminação de barreiras, sejam elas arquitetônicas e/ou atitudinais, as
limitações e as potencialidades do sujeito/estudante com deciência. Segundo Mantoan e Prieto:
[...] a inclusão ultrapassa a legitimidade de direito, ao exigir não apenas a matrícula escolar, mas
o prosseguimento dos estudos até níveis elevados da criação artística, da produção cientíca,
da tecnologia. Há de se reconhecer as peculiaridades dos alunos, isto é, suas diferenças. Nesse
sentido, é preciso mostrá-las, porém sem discriminá-las nem inferiorizá-las (MANTOAN;
PRIETO, 2006, p. 80).
Alinhado a esse entendimento, e tendo em vista a diversidade de pessoas com e/ou sem
deciência, é possível dizer que a realidade do contexto educacional não é isolada, mas um todo
dialético e estruturado, produzido por um conjunto de os contextuais que se inter-relacionam e que
podem ser compreendidos, mas não necessariamente predeterminados (CIAVATTA; FRIGOTTO;
RAMOS, 2005). Assim, o educando depois de matriculado, na escola é norteado para que possa
interferir nesse mundo já estruturado que o cerca, sendo principalmente, o agente da sua própria
história. O estudante com DV também faz parte desse contexto social, e busca ser agente/alguém/
sujeito que constrói a sua própria história.
Portanto, uma das tarefas da escola crítico emancipadora é pensar a história desses sujeitos
e reconhecer a educação como possibilidade e, dessa maneira, buscar o que pedagogicamente foi
e poderá ser feito no “sentido de contribuir para a transformação do mundo, de que resulte um
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mundo mais sensível à causa do outro, mais humano, e que se materialize a: unidade na diversidade
(FREIRE, 1993, p. 35-36).
Nesse sentido, para falar do processo de escolarização das pessoas com DV, na perspectiva
da educação crítico emancipatória, além do fato da apropriação técnica sobre a futura prossão, o
recorte histórico sobre o processo educacional dessas pessoas se revela indispensável para compreensão
do objeto deste trabalho, haja vista que para compreender todo o processo é importante conhecer
ainda que, de maneira genérica, a face excludente que impulsiona a sociedade capitalista e a lógica
da supressão de populações mais vulneráveis.
concePção meTodolóGica: comPreendendo a TrajeTória
dos esTudanTes com dv a ParTir da HisTória oral
A relação de reciprocidade entre os sujeitos deste estudo e os pesquisadores permitiu
regressar no passado deles para acessar, por meio das lembranças, e entender como esses estudantes
foram sendo incluídos no contexto da educação agrícola durante os seus processos de escolarização
no curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio. Desse modo, na medida em
que perseguimos a nossa investigação, novos questionamentos foram apresentados referentes à
escolarização desses alunos, tendo como base as suas percepções, comportamentos, e interações
apreendidas através das narrativas verbais dos participantes no contexto escolar.
A partir disso, é importante armar que o nosso maior interesse é reetir a respeito
da escolaridade do estudante com DV e, conforme nos ensina Caiado (2014, p. 49), que isso
é possível quando reetimos sobre as diferentes trajetórias que os alunos percorreram dentro da
escola, segundo as condições sociais que lhes são impostas.
A autora defende o não deslocamento do aluno com deciência de sua história de vida
e que a escolarização não pode ser estudada com base no aluno sem história, pois nela se marca o
tempo vivido, a memória, o lugar social ocupado, e pode-se com isso buscar, por meio de narrativas,
elementos que possibilitem a análise referente às interações com o outro. Interações que forjaram a
inclusão/exclusão escolar do aluno com DV (CAIADO, 2014).
Para Caiado (2014), trabalhar com a história de vida de um indivíduo real é uma opção
metodológica que rejeita trabalhar sobre a idealização de homem e de escola. Segundo a autora,
a escolha metodológica tem como escopo “conhecer as determinações sociais que engendraram
a narrativa daquela vida e, então, reetir sobre as determinações sociais que no tempo presente
tecem vidas” (CAIADO 2014, p. 48). A referida autora ainda salienta que essa opção metodológica
possibilita:
[...] pensar um homem concreto, que se relaciona numa determinada sociedade, que sofre as
limitações do seu tempo e lugar social; um homem criativo e construtor desse mesmo tempo
que o limita e que ele, dialeticamente, transforma. Toma-se, assim, a história de vida como
uma unidade de análise reveladora da relação entre o social e o indivíduo. História de vida
que expressa as possibilidades históricas concretas de aquela vida se constituir (CAIADO,
2014, p. 49).
Na busca de solução para o problema já devidamente exposto, escolhe-se esse
procedimento metodológico de narrar histórias de vida, com objetivo de auxiliar na compreensão
individual e coletiva de um grupo social, das memórias que formam o sujeito em um determinado
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contexto, em conjunto com as clássicas ferramentas de pesquisas como a coleta de dados, cuja
ênfase é o ser humano em processo de formação educacional, adotando a forma de estudo de caso
(CAIADO, 2014).
No entendimento de Caiado (2014), a história valoriza a própria pessoa que narra.
Ocorre que, na medida em que relata, dá sentido e ressignica o conteúdo exposto, partindo da
recordação de suas próprias experiências no ambiente no qual foram vivenciadas e como foram
lembradas, e assim tece a teia de reconstrução signicativa do passado.
Para Bosi (1994), no momento em que o indivíduo recorda suas memórias, ele também
resgata a memória coletiva, em uma dimensão temporal e histórica. Assim, é possível destacar que
a memória individual e a memória coletiva estão interligadas, uma vez que a primeira incorpora e
assimila progressivamente todas as contribuições que o coletivo proporciona e, com isso, utilizam-
no como elemento subsidiário de eventuais lacunas o particular, tornando assim as lembranças
individuais mais exatas.
Dessa maneira, a memória individual é retroalimentada pelo coletivo, pois o
funcionamento da memória só é possível com palavras, ideias, discursos, tradições do próprio
passado e o aporte de lembranças e referências que lhes são externas, pertencentes ao próprio
ambiente social no qual o indivíduo está inserido (HALBWACHS, 2006, p. 72).
A retomada do passado sempre demanda a utilização da memória. Assim, é indiscutível
a importância da memória para o conhecimento do passado escolar. Le Go (1994), por sua vez,
considera a história dependente da memória. Para o autor, a história “procura salvar o passado para
transportá-lo no presente e no futuro” (LE GOFF, 1994, p. 477). A opção pelos relatos orais como
meio de acessar a realidade especíca de estudantes com DV dentro da escola foi, nesse trabalho, a
reexão sobre essa realidade especíca e, foi dentro desse espaço social, que os sujeitos da pesquisa
puderam se expressar entre outros sujeitos que precisam ter voz, as vozes das pessoas historicamente
excluídas e, consequentemente, silenciadas dentro da escola.
Apresentando-se como algo indispensável para rescindir o movimento de suas falas
signicativas, muitas vezes carregadas de lembranças discriminatórias e excludentes, que permearam
o ambiente escolar. Por isso, embora considerando importantes todas as falas e expressões dos sujeitos,
foi preciso interferir nas mesmas para marcar os aspectos mais importantes, que estão relacionados
ao tema deste trabalho sobre trajetórias da inclusão e caminhos de formação: percurso escolar de
estudantes com DV no curso técnico em agropecuária do IFCE, esse foi o o condutor desta
pesquisa. Além disso, considera-se também que “a história como toda atividade de pensamento,
opera por descontinuidades: selecionam-se os acontecimentos, conjunturas e modos de viver, para
conhecer e explicar o que se passou” (ALBERTI, 2007, p.14).
Assim, procuramos mediante as narrativas de dois estudantes com deciência visual no
curso técnico em agropecuária do IFCE, extrair bem mais que nomes de pessoas ou datas registradas
nas lembranças, mas fatos signicativos de acontecimentos relevantes dos quais os sujeitos ali presentes
participaram, o que fez da pesquisa um trabalho permeado de surpresas, principalmente quando os
estudantes explicitaram informações inesperadas, sendo necessárias algumas reconstruções.
No desenvolvimento desta pesquisa os dois egressos com DV entrevistados foram
identicados com nomes ctícios: Bárbara e Valentim, conforme caracterização no quadro - 1
abaixo, para preservar suas identidades e livrá-los de eventuais desconfortos:
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Quadro 1 – Perl dos participantes
Sujeitos da
pesquisa
Sexo Idade
Tipo da
Deciência
Causa da
Deciência
Origem Escolar
Bárbara Feminino 38 anos Baixa-Visão
Retinose
Pigmitar
Escola Pública
APAE
Valentim Masculino 35 anos Cegueira
Glaucoma
Cegueira
Escola Pública
APAE
Fonte: Elaborado pelos autores.
Depreende-se dessa armação que as pessoas, por não possuírem a mesma história de
vida, não percebem seu processo de escolarização da mesma maneira, cada uma tem um modo
particular de observar, uma maneira diferente de realizar a leitura do contexto escolar, ainda que
caminhem juntos e compartilhem do mesmo espaço para adquirir conhecimento.
AS TRAJETÓRIAS COMPARTILHADAS: A ESCOLARIZAÇÃO DOS
ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA VISUAL
Não se pode negar que a sociedade em que vivemos padroniza o ser humano em padrões
estereotipados, ditando qual a maneira “adequada” de ser, viver e se escolarizar. Aqueles que estão
fora desse modelo social devem, obrigatoriamente, se amoldar-se às suas normas, sob pena de
continuarem vivendo no isolamento e à margem da sociedade.
A diminuição da acuidade visual, bem como a ausência de visão, é considerada um
fenômeno abstruso para a instância escolar que, além do olhar excludente das condições dadas
do sujeito com DV, forja uma forma de se organizar pedagogicamente dentro de um padrão
homogeneizador de escola. Isso se dá a partir de normas “ocultas”, em que o sujeito atípico é
considerado padrão que deve ser seguido pelo todo em detrimento do aluno com deciência. Desse
modo, a escola considera a baixa acuidade visual, bem como a ausência de visão do aluno, como
empecilhos para o bom andamento do cotidiano escolar e acaba comprometendo o direito à escola
daqueles que mais necessitam dela. E, assim, ainda culpabiliza o estudante com DV pelo seu próprio
abandono escolar, não reconhecendo a diversidade do alunado ali inserido. Isso ocorre por meio
dessas “normas ocultas”, que acabam fazendo com que o estudante com DV opte por abandonar a
escola.
Minha mãe foi chamada na escola. A professora falou que não tinha como eu continuar na
sala de aula porque eu não estava conseguindo enxergar o quadro e desse modo atrapalhando
a aula. Eu pegava o meu caderno e cava bem pertinho do quadro para tentar escrever. Isso
incomodava a professora [...] Aí eu me afastei da escola. Eu tinha uns 10 anos. (BÁRBARA,
trecho da entrevista concedida em 19 de maio de 2018).
Essas “normas ocultas” não contemplam o direito à educação para o estudante com DV.
A fala da Bárbara vem mostrar a insensibilidade da escola com o conceito de diversidade. A escola
regular não se sentiu (e ainda não se sente) preparada para atender alunos com deciências, ou
construir outras propostas pedagógicas que possam responder às necessidades especícas do aluno
com deciência. Nesse sentido, a escola da Bárbara não apresentou uma pedagogia para as demandas
de um aluno com DV, regulada na heterogeneidade, levando em consideração suas as características.
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Conforme nos orienta Amiralian (2004, p. 20), essas “normas ocultas” não são raras na
sua abrangência escolar pelas quais o estudante com DV se submete, pois:
Um fenômeno observado é como isto é pouco assimilado pela comunidade de um modo geral.
Tanto os professores, alunos e comunidade escolar, como os pais e todas as pessoas com quem
esses alunos convivem, parecem só conhecer duas possibilidades : ser cego ou ser daqueles que
enxergam. Por essa razão, suas diculdades de aprendizagem ou afetivo-emocionais raramente
são relacionadas à condição de diculdades de percepção visual, mas tratadas como outros
problemas. (AMIRALIAN, 2004, p. 20).
Nesse contexto, a escola é compreendida como um lugar segregador para o sujeito com
DV, tendo em vista a abordagem pedagógica padronizada que contribui na construção de uma
educação para ele centrada na “responsabilidade” do aluno pela sua adaptação às atividades rotineiras
da escola, e, assim, culpabilizando-o por seu fracasso escolar. Diante desta conjuntura, a escola
busca seguir a sua rotina já programada, sem procurar qualquer adaptação para a escolarização do
estudante considerado diferente pela limitação visual, desde sua inserção na escola.
Desse modo, foi a partir das narrativas e da observação sobre o modo como os sujeitos se
referiam a sua trajetória escolar, que foi possível reetir sobre muitos acontecimentos lembrados de
suas experiências no passado que se relacionam entre si, desde a entrada no sistema escolar, o início
da escolarização no ensino fundamental até as inserções no contexto da inclusão na escola de ensino
prossionalizante.
Como nos ensina Caiado (2014), para reetir a respeito da escolarização da pessoa com DV
é necessário considerar as diferentes trajetórias que eles percorreram, a partir das condições materiais
e sociais que são ofertadas a sua condição. A garantia de matrícula de alunos com deciência no
sistema regular de ensino, não basta para tornar a escola inclusiva. Para além desse aspecto, é preciso
possibilitar o seu aproveitamento acadêmico; caso contrário, esta política educacional resultará no
aumento nos índices do fracasso escolar (GLAT, 2012, p. 36).
Para Caiado (2014), a análise das práticas sociais de inclusão de um estudante com DV
no contexto da escola regular, deve antes buscar compreender a inclusão social como um todo,
vericar como a família tem ansiedade quando percebe um membro fora da “norma” social/escolar,
que não consegue acompanhar o padrão “normalizante” e a instância escolar, no lugar de centralizar
a análise desse modelo social na diversidade social, na diferença e na criticidade que emancipa o
sujeito, estima uma concepção estática de educação calcada na homogeneidade. Na fala do aluno
com DV:
Porque a criança tem que ter um incentivo, pois não é só colocar o lho na escola. E aí você
só vai saber o rendimento do seu lho se olhar o boletim com as notas vermelhas. Não é culpa
dele. Ele que não está tendo acompanhamento. A escola fecha-se no diagnóstico de deciente.
(VALENTIM, trecho da entrevista concedida em 22 de maio de 2018).
Dessa forma, por mais sólida e estruturada que seja a família, a partir do momento que
se tem um diagnóstico de DV, possivelmente podem passar por uma crise de aceitação no âmbito
familiar, que inuencia o aprendizado escolar. Isso cou muito evidente na fala do Valentim ao
lembrar-se do seu diagnóstico de DV e de sua entrada na escola. A partir da realidade enquanto
estudante com DV, a família necessitou assumir outra postura diante dessa nova peculiaridade,
ressignicando valores e, principalmente, outros padrões que estão fora das normas do sistema
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padronizado pela sociedade majoritariamente visual.. Sobre essa complexa dinâmica na esfera
familiar, Valentim e sua família conheciam pouco sobre os modos de interação da pessoa com
DV. A descoberta da DV de um membro da família, que não necessariamente coincide com o
nascimento, leva a alterações na dinâmica familiar, pois a família real ocupa o lugar até então
tomado psiquicamente pela família idealizada (CHACON, 2011, p. 443).
Sem dúvida, o diagnóstico de um lho com deciência gera uma situação complexa,
muitas vezes despertando variados sentimentos como: medo, culpa e vergonha. Nas falas signicativas
dos nossos sujeitos na pesquisa, esses sentimentos foram sinalizados, principalmente diante da
instauração de uma situação de alijamento da escola regular, o que se exigiu, para eles uma resposta
que pudesse minimizar a convivência com o novo; e, no caso dessa instância de aprendizagem da
cultura escolarizada foi, para eles: a descoberta de um sistema regulatório que privilegia o aluno
que enxerga em detrimento do aluno com DV. A partir do depoimento de Valentim, observa-se
a importância dos pais no enfrentamento e acompanhamento dessa nova realidade educacional e
social.
No entanto, esta realidade acabou por gerar na vida escolar desses sujeitos outro tipo de
educação, distinta e, para eles, de confrontação com a escola regular tendo em vista a inexistência de
uma rede de apoio que os auxiliasse em suas necessidades educacionais. Eles relataram que a escola
especializada buscou compreender as suas diculdades na aprendizagem dos conteúdos escolares,
procurou desenvolver estratégias para construção de pedagogias mais próximas das suas condições
de estudantes com DV e ainda promoveu modos de ensinar/aprender, conforme suas necessidades.
[...] Foi na APAE [Associação de pais e amigos dos excepcionais] que aconteceu a recepção e
o acolhimento da minha situação escolar. Lá eu tive contato com outras pessoas com outras
diculdades, com outras limitações e isso transformou minha cabeça, transformou minha vida
e eu passei a ver que era capaz, e eu vi outras pessoas com as mesmas limitações, com limitações
mais restritas e pensei que seria capaz de superar essas limitações, e isso mudou totalmente a
minha cabeça e lá sim eu consegui aprender! (BÁRBARA, trecho da entrevista concedida em
19 de maio de 2018).
Entre outros aspectos, uma das principais características da APAE para Bárbara foi a
presença de outros estudantes com DV na mesma classe e, ao mesmo tempo, foi conjecturada a
leitura e a escrita no Sistema Braille como parte dos conteúdos do Ensino Fundamental. A ação de
professores com formação para o ensino de pessoas com DV era uma demanda também atendida na
escola especial e se trabalhava simultaneamente o processo de aceitação própria na convivência com
pessoas que tinham características semelhantes em função da DV; assim, para a estudante Bárbara,
a experiência na escola especial signicou um momento adequado para os requisitos mais próximos
da educação inclusiva, ao perceber que os outros estudantes, assim como ela, eram atendidos
conforme as suas necessidades.
Embora a escola especial possua muitos equipamentos, tecnologias, professores
especializados, e tenha outros objetivos além da escola regular, existe ainda o status de instituição
segregadora por só matricular estudantes com deciência. O que, nas nossas observações demonstrou
não promover a interação e o convívio entre estudantes com e sem deciência e, muitas vezes, atuando
de forma substitutiva da educação na classe regular. Como bem colocou Bárbara, a APAE se propõe
a proporcionar um ensino mais voltado para aqueles que apresentam necessidades educacionais
especiais com professores especializados para ensinar alunos cegos, surdos, com deciência física ,
com Transtorno do Espectro Autista (TEA), etc. Para ela, esses professores estão mais preparados
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para apoiar a aprendizagem escolarizada dos alunos com DV, com ensino complementar, sala de
recursos e outras estratégias pedagógicas na educação.
Para Mantoan (2006), os sistemas escolares estão estruturados a partir de um pensamento
dicotômico da realidade educacional, que permite dividir os alunos em normais e decientes, as
modalidades de ensino em regular e especial, os professores em especialistas com ações pedagógicas
mais pontuais, nos programas e serviços educacionais que atendam o público da educação especial e
professores genéricos. A lógica dessa organização é marcada por uma visão determinista, mecanicista,
formalista, reducionista, própria do pensamento cientíco moderno, que ignora o subjetivo, o
afetivo, o criador, a solidariedade com o outro sem os quais não conseguimos romper com o velho
modelo escolar conservador para produzir a reviravolta que a inclusão impõe (MANTOAN, 2006,
p. 6).
A escola regular pode até apresentar certas práticas inclusivas a partir de uma organização
escolar heterogênea para que todos possam dispor da escolarização, de certo modo, com ações
plausíveis para inserção escolar do estudante com deciência, mas carecem de condições materiais
para a concretização da sua função inclusiva como um todo. O próprio Estado, no sentido de dar
as condições e criar possibilidades para que os diferentes gradientes de inclusão sejam vivenciados
plenamente prescinde de ações materiais, de maneira que a inclusão é precária com falta de materiais
acessíveis, assim ainda não é capaz de realizar mudanças culturais dentro do contexto escolar.
Entretanto, essas falhas materiais de implementação de políticas educacionais inclusivas
vêm sendo minimizadas pelas iniciativas dos movimentos sociais e de políticas inclusivas. Assim, é
fundamental dizer que os sujeitos da pesquisa ao chegarem ao do IFCE Campus Crato já traziam
em suas bagagens escolares as experiências de “estar e não estar incluídos” nas relações e nos espaços
sociais, por conta da sua integração com escolarização da APAE. Eles sentiam que a presença deles
dentro do ambiente escolar regular causava certo incômodo mas, mesmo assim, não se curvaram
diante da tensão gerada pela cultura de intolerância e aversão ao sujeito com deciência.
O que ocorre certamente no contexto de algumas escolas de ensino regular é que tanto os
prossionais e a própria instituição de ensino não conseguem discernir com segurança qual caminho
devem trilhar com os estudantes com deciência. E o setor de Registros Acadêmicos, a Direção de
Ensino e alguns professores ao se depararem com pessoas com cegueira e baixa visão matriculadas
em turmas regulares, estudantes com DV perceberam uma tensão, a qual sinalizaram que já estão
acostumados. Desse ponto de vista, podemos perceber, por exemplo, o preconceito e a incapacidade
de aceitar o outro, que não basta apenas ter “vontade de inserir”, mas discutir o preconceito dentro
da instituição escolar. E esse processo solicita o envolvimento de todos os agentes escolares num
trabalho colaborativo do todo da escola para favorecer a inclusão:
Patrocinar a inclusão escolar é como reformar um avião em pleno voo! Isto é verdadeiro,
sobretudo na realidade das nossas escolas, com precariedade de condições de infraestrutura,
número excessivo de alunos nas classes e os baixos salários dos professores que lhes obrigam a
dobrar a jornada de trabalho deixando pouco tempo para planejar suas aulas e se aperfeiçoar
(GLAT, PLETSCH 2011, p. 41).
De acordo com Glat e Pletsch (2011), para que uma instituição de ensino com práticas
tradicionais se transforme em um ambiente inclusivo, é preciso discutir toda sua estrutura, pois
se trata de um processo político complexo, que envolve atores (professores, alunos e suas famílias)
e cenários reais (escolas diferentes inseridas em diferentes comunidades). Para a referida autora, a
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RAMOS, J. R. S.; SILVA, C. A.
vontade política”, com a liberação de recurso para aquisição de material didático não é determinante.
Porém, a proscrição desse entrave político só se torna possível a partir da mudança da concepção
cultural homogênea para a qual dene o sujeito como diferente, a do olhar inclusivo, e permite
compreender as necessidades das pessoas com deciência, incluindo o estudante com DV: plural,
sujeito de direito, único, dentro de um contexto social para todos.
Nesse sentido, no atual contexto das unidades educativas, torna-se importante o
desenvolvimento de exercício de “vontade política” entre os diferentes atores sociais dentro da
escola. Com essa experiência de olhar o outro com suas especicidades, como ser singular e também
plural, trocar experiências, e conhecer sua trajetória de vida, as barreiras atitudinais impeditivas
do exercício de direitos, consequentemente, serão suprimidas ou minimizadas, dando início ao
processo de inclusão.
Dois estudantes com DV marcaram essa “vontade política” na Escola Agrotécnica
Instituto Federal do Ceará no Campus Crato na área prossionalizante como os primeiros alunos
com comprometimento da visão matriculados no Curso Técnico em Agropecuária Integrado,
fazendo com que a instituição se adaptasse a uma nova realidade, já há muito tempo atribuída por
lei. Esse momento histórico aconteceu no ano de 2018, no aniversário de 50 anos de existência do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará.
Esses estudantes começaram a criar novas experiências que, aos poucos, passaram a
incorporar outros hábitos ao cotidiano da comunidade escolar. A forma como se organizavam para
se locomover dentro do Campus, as maneiras de vivenciar cada disciplina curricular, os diferentes
modos de interação com os professores, os esforços diários para aprender os conteúdos, causaram
uma série de transformações na vida dos educandos, assim como da própria instituição, pois antes
da chegada desses dois estudantes com DV, o Campus não tinha conhecimento nem experiência na
área para atender suas necessidades.
Diante desse novo panorama com esses dois alunos com DV, outros contextos pedagógicos
se evidenciaram, como outras estratégias de ensino/aprendizagem no Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará, em que cada agente escolar envolvido no processo de escolarização
assumiu uma determinada posição no que se refere à inclusão/exclusão de pessoas com deciência.
Nesse sentido, ampliaram-se as expectativas pedagógicas inexistentes, voltadas para o público com
DV. De um lado, estudantes lutando por acesso ao conhecimento, de outro, professores e gestores
tendo a oportunidade de aprender a conviver com as demandas de ensino e aprendizagem de um
curso de Ensino Médio prossionalizante em Agropecuário calcado na heterogeneidade:
Passei por momentos de angústia e ansiedade, já com os problemas referentes ao material
didático, que foram chegando aos poucos. Depois de mais ou menos resolvido, e já tendo
uma pessoa para preparar esse material e fazer a ponte entre os professores das disciplinas da
base comum e da área técnica, eu comecei a me concentrar mais nos estudos, e descansar com
relação às constantes lutas por materiais e professor brailista. Eu vi que eu ia conseguir o meu
objetivo e assim as conquistas foram vindo, mas na luta. Só em você conseguir estudar já era
uma conquista. Contei com ajuda de alguns professores solidários com a nossa causa. Isso me
entusiasmou (BÁRBARA, trecho da entrevista concedida em 16 jun. 2018).
Para Bárbara, o olhar colaborativo de alguns professores criou a promoção do
desenvolvimento escolar deles. Os professores de algumas disciplinas técnicas se sentiram motivados
para encarar esse desao de educar o estudante com DV. Desse modo, esses professores dedicaram
parte de sua atenção a eles, proporcionando apoio sem segregar, excluir, isolar e sem criar guetos
Trajetórias formativas na escolarização de dois estudantes com deciência visual Artigos
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nem classe especial dentro da escola. Vale ressaltar que, embora os esses professores lutassem
pelos mesmos direitos a educação prossionalizante dos estudantes com DV, Bárbara e Valentim
relataram que os professores possuíam diculdades de ensino, obstáculos na avaliação e modos
conservadores de ensinar.
Por meio do toque corpóreo junto aos estudantes, do auxílio mais próximo ao aluno,
os professores foram adquirindo e construindo pedagogias mais inclusivas, críticas e colaborativas
ao longo do processo de escolarização prossional, que durou cerca de três anos.Esse percurso de
um trabalho mais inclusivo da escola com os dois estudantes com DV foi para eles um processo
colaborativo até a formação em técnico em Agropecuária.
Para os estudantes com DV era um sonho se formar numa escola federal e concluir o
Ensino Médio e Técnico simultaneamente e, as narrativas evidenciaram que o processo educativo
desses dois estudantes foi contemplado; agora prossionais na área agrícola. Todo processo de certa
maneira deixou marcas de lutas pelo direito à escolarização, face às inúmeras diculdades, algumas
superadas outras não.
É importante também ressaltar o papel dos docentes da base comum, e as relações que
estabeleceram com os estudantes a partir das aulas no IFCE. Nas narrativas deles, os professores foram
lembrados com destaque. A professora de Língua Portuguesa, que acompanhou colaborativamente,
a evolução dos estudantes durante todo o curso, foi, para eles, muito carinhosa, e devido a esse
período de vivência, na biograa dos alunos com DV foi o docente que melhor se adapta às suas
realidades, ao trabalhar literatura e interpretação de textos por meio do ensino oralizado.
O segundo professor que fez a diferença para eles, foi o da área de exatas, que apesar da
diculdade que os educandos possuíam na disciplina de Física conversava muito com os alunos.
Eles relataram que o professor foi bastante acessível, se interessou em aprender o sistema Braille,
adquirindo a reglete
4
em alguns momentos para tentar escrever, para a partir disso, entender o
universo dos estudantes e a forma como aprendiam.
Ainda de acordo com as narrativas, esse professor em todas as aulas após a exposição
do conteúdo pedia para os alunos explicarem o que tinham entendido e, na medida em que os
alunos falavam, também eram avaliados. Para eles, um professor dialógico que abordava questões
complexas na conversação e colaboração na aprendizagem do conteúdo de Física.
Dessa forma, observa-se que o professor da disciplina de Física, era sensível à causa da
educação inclusiva, procurando em diversos momentos conhecer as necessidades dos dois educandos
com cegueira e baixa visão. Nesse sentido, é importante observar que o método avaliativo desse
professor foi processual, contínuo, e, sobretudo, inclusivo, zelando pela predominância dos aspectos
qualitativos sobre os quantitativos, coadunando com o estudante com DV. Percebe-se, assim, que o
referido professor agiu de modo colaborativo, e segundo Bárbara, ele não teve nenhuma preparação
pedagógica para trabalhar a Física com pessoas com deciência na sua época da faculdade.
Os professores que fazem parte do rol das lembranças, como exemplo de professores
História e Geograa, que para eles foram também inclusivos, com muita disposição para encarar
4 É um instrumento criado para que pessoas com deciência visual possam escrever em braille.
Sendo um dos primeiros instrumentos criados para a escrita Braille. Cf.: https://equipemove.
wordpress.com/2017/03/18/o-que-e- reglete/.
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RAMOS, J. R. S.; SILVA, C. A.
a realidade de ensinar o conteúdo escolar para estudantes com DV, fez a diferença na vida desses
alunos, através de ações colaborativas, tentando contribuir com meios acessíveis para o estudante
com DV, numa instituição de educação prossionalizante que necessita de uma política educacional
acessibilidade.
A fala de Valentim enaltece esses professores, que se mostraram acessíveis, ajudando-os na
aprendizagem da cultura escolarizada durante toda a caminhada no IFCE - Campus Crato:
Foram alguns professores mais colaborativos com a gente, não todos! Alguns professores da
área técnicas e outros do currículo comum. Eles realmente nos acompanharam do começo até
o m com seus métodos e uma exibilidade para tentar nos ensinar o conteúdo da sua matéria.
Eles eram acessíveis e também chegaram à nossa causa. Foram ótimos professores, preocupados
em ensinar e fazer a gente aprender. (VALENTIM, trecho da entrevista concedida em 02 jun.
2018).
consideraçÕes finais: alGumas comPreensÕes
Os esforços empreendidos neste trabalho se revelaram numa oportunidade de dar voz a
dois estudantes com DV, egressos do Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao Ensino Médio, e
tornar conhecido seu processo de escolarização através das suas histórias de vida, marcadas por uma
vasta e rica experiência e, ao mesmo tempo, compreender o fenômeno da inclusão desses alunos
desde a primeira escola regular, a APAE até a formação em técnico Agrícola no IFCE – Campus
Crato no IFCE, registrados nas lembranças acadêmicas dos dois estudantes com DV, com suas
percepções a respeito da escolarização na perspectiva da educação para o estudante com DV.
Eles assimilaram o discurso da homogeneização rígida da escola regular, fazendo-os de
depósitos” de alunos que apresentavam a DV e, por conta da deciência, não conseguiram se adaptar
às normas rigorosas da escola conservadora. Desse modo, esses alunos se sentiram “culpabilizados” -
devido a DV - pelo seu abandono escolar, sem que essa primeira escola (regular) buscasse estratégias
pedagógicas para a sua continuidade na escola e o ensino/aprendizagem para alunos com DV.
O fato é que foi na escola especializada APAE, que eles tiveram maior atenção educacional,
como na maioria dos casos de alunos com DV, em que a responsabilidade pelo ensino escolar ca
dividida entre alunos com deciência e o professor especializado na DV. Isso ocorreu porque, para
eles, a escola regular não buscou conhecer a diversidade e a diferença de um aluno com deciência e,
com isso, exigiu deles uma escola especializada para a DV. Em resumo, para os sujeitos pesquisados,
este é o modelo mais integrativo que a maioria das escolas brasileiras acatam, na integração escolar
do aluno com necessidades especiais.
Desse modo, a APAE deu mais condições educacionais para esses sujeitos se apropriarem
do conteúdo escolarizado com materiais e instalações mais adequadas, o que facilitou a transição
deles para uma escola regular de Ensino Médio. Assim, diante do estudo realizado compreendemos
que os participantes desta pesquisa se formaram em múltiplos espaços e tempos. Foi possível
constatar através das narrativas que a inclusão de uma pessoa com deciência na escola regular não
acontece de maneira breve e rápida, ou com base em grandes acontecimentos, mas ela surge de
forma processual colaborativa entre docentes e alunos, por meio das experiências de luta que forjam
cada história escolar.
Essas trajetórias educacionais, por sua vez, têm início na instância social chamada de
família, considerada como uma entidade que oferece o suporte para as experiências educacionais
Trajetórias formativas na escolarização de dois estudantes com deciência visual Artigos
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que são desenvolvidas no contexto da escola regular, especial, da escola do prossionalizante e
dependem da concepção educacional (integrativa e inclusiva) que lhes são disponibilizadas. Nesse
processo de formação, os estudantes com DV sofreram transformações pedagógicas, passando por
mudanças físicas, na percepção crítica do espaço escolar, na mudança de postura e, consequente
da movimentação noutro contexto político da escola. No entanto, durante a trajetória escolar, a
instituição de ensino também passou por alterações, sobretudo quando se deparam com alunos com
deciência, mas críticos e conscientes do seu papel de cidadão.
Ocorre, porém, que diante das diversidades humanas a preparação das escolas brasileiras
para atendê-los depende de uma mudança radical na escola, na maneira que trata as pessoas
estigmatizadas e fora do padrão a partir da “normalidade já padronizada”. Além disso, também é
necessária a aplicabilidade da lei e a efetivação de políticas públicas voltadas para educação inclusiva,
que é comum ser negligenciada, seja por governantes, ou pela própria comunidade escolar.
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