Ver com (outros olhos) no Instituto Benjamin Constant Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 71-84, Jul.-Dez., 2022 71
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2022.v9n2.p71-84
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Ver com (outros olhos) no InstItuto BenjamIn constant: modos
como Vamos nos formando professoras
See with (other eyeS) at the Benjamin ConStant inStitute: wayS we are
training teaCherS
Daiana Pilar Andrade de Freitas SILVA
1
Leidiane dos Santos Aguiar MACAMBIRA
2
Resumo: este artigo tem como objetivo apresentar um relato de experiência, no qual narramos encontros formativos no Instituto
Benjamin Constant (IBC), instituição referência no atendimento de pessoas com cegueira e baixa visão, localizada no bairro da
Urca, no Rio de Janeiro. Somos professoras e pesquisadoras das nossas trajetórias formativas e consideramos que a formação não
está apenas circunscrita aos cursos de formação de professores, ela vai além, transbordando tais fronteiras. Nesse sentido, conviver
no IBC nos proporcionou problematizar algumas certezas que alimentamos por algum tempo, fruto de uma formação sócio-his-
tórica moderna e ocidental. Dentre elas, a desnaturalização dos modos como percebemos o mundo e decretamos juízo sobre ele.
Assim, buscamos reetir, a partir de nossas experiências, sobre os elementos que têm nutrido nossa formação, nos permitindo ver
com outros olhos, propondo uma reexão sobre os efeitos das condições formativas a que somos submetidas em nossas ações edu-
cativas e contribuindo para pensarmos os processos formativos no que diz respeito à educação de pessoas nomeadas com deciência
visual, a partir do encontro com outros.
Palavras-Chave: Formação de professores. Educação Especial. Deciência Visual.
Abstract: this article aims to present an experience report, in which we narrate formative meetings at Benjamin Constant Institute
(IBC), a reference institution in the care of people with blindness and low vision, located in Urca, Rio de Janeiro. We are teachers
and researchers of our formative trajectories and we consider that formation is not only limited to teacher education courses, but
it goes beyond, overowing such boundaries. In this sense, living together at IBC allowed us to question some certainties that we
have nurtured for some time, the fruit of a modern and western socio-historical education. Among them, the denaturalization of
the ways we perceive the world and pass judgment on it. us, we seek to reect, from our experiences, about the elements that
have nourished our training, allowing us to see with other eyes, proposing a reection on the eects of the formative conditions to
which we are submitted in our educational actions and contributing to think the formative processes regarding the education of
named people with visual impairment, from the encounter with others.
Keywords: Teacher training. Special Education. Blindness.
Doutoranda e Mestra em Educação. Professora de EBTT na Educação Infantil do Instituto Benjamin Constant - IBC. E-mail:
daianapilar@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7750-0324
Doutora em Educação. Professora no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho (IEPIC-SEEDUC-RJ). E-mail:
leidianesamacambira@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9073-2448
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SILVA, D. P. A. F.; MACAMBIRA, L. S. A.
InIcIando a conVersa
Se é possível acreditarmos que ensinar e aprender são processos que se envolvem com narrativas,
com contar e ouvir histórias, então, talvez possamos pensar na educação como uma arte de
entramar histórias. Uma arte que se materializa na criação autoral das nossas vidas como
narrativas; dos personagens que somos, nas histórias que contamos, que ouvimos. (FILÉ, 2000,
p. 123).
Na tentativa de pensarmos na educação enquanto uma arte de entramar histórias,
decidimos trazer neste artigo, o relato de duas professoras que em seus encontros com as pessoas
que habitam o Instituto Benjamin Constant tem produzido suas tramas formativas. Cuidamos
de discutir a formação de professores, mais especicamente, as trajetórias que forjamos ao longo
de nossas vidas e que vão nos constituindo educadoras através do relato de experiência de duas
professoras-pesquisadoras no encontro com os sujeitos que compõem o Instituto Benjamin Constant
(IBC), uma instituição referência no atendimento a pessoas cegas e com baixa visão localizada no
bairro da Urca - Rio de Janeiro. Inspiradas por Sandra Nicastro e María Beatriz Greco (2012), “Al
hablar de trayectoria nos referimos a un recorrido, un camino en construcción permanente, que tal
como lo señala Ardoino (2005) va mucho más allá de la idea de algo que se modeliza, que se puede
anticipar en su totalidad” (p. 23).
Ao alargarmos o conceito de formação de professores, agregando a ele as nossas
trajetórias, nos deparamos com algumas questões com as quais temos lidado há algum tempo: quais
os dispositivos que estão em jogo em nossa formação? Que elementos são necessários para sermos
professoras no campo da Educação Especial? Movimentadas por estas indagações, puxamos alguns
os que consideramos importante para tecer esta trama. Nosso intento é trazer à tona, algumas
experiências (LARROSA, 2014) produzidas no encontro com pessoas nomeadas com deciência
visual de modo a desnaturalizar o ver como condição única de quem tem o pleno funcionamento
dos olhos. O próprio termo pessoas nomeadas com deciência visual, utilizado nesta escrita já se
implica com o modo como problematizamos o ver, para além do sentido biologicista de quem
enxerga. Dizemos nomeadas em reconhecimento e enfrentamento à produção histórica da própria
palavra deciência, associada a uma investida de “construção de um homem padrão, que se enquadra
em um molde pré-estabelecido, alicerçado em supostos universais de racionalidade e normalidade
ocidental” (CLÍMACO, 2010, p. 215), ligada a uma ausência de eciência, que nos remete a falta.
Embora não seja esta a ênfase deste artigo, é necessário explicitar as nossas escolhas a respeito do uso
de determinados termos no campo da Educação Especial. Isso que foi nomeado como deciência,
como mais uma dentre as tantas condições de vida existentes as quais também se relacionam e são
afetadas pelo ambiente em que estão inseridas (GAMA; PARAVIDINI; GUIMARÃES; AMARAL,
2021), trazendo à tona que a perspectiva médico-clínica não é a única visão no campo, mas também
não intentamos armar que a sua contribuição não seja necessária, mas talvez não nos caiba nesta
escrita vinculada à educação, como encontro, como arte materializada na criação, como experiência,
que propõe uma reexão sobre os efeitos dessa condição de vida em nossa formação, enquanto
professoras, educadoras nas diferenças.
Ao colocarmos as trajetórias enquanto dispositivos que atravessam a nossa formação,
recorremos também ao conceito de saber de experiência desenvolvido por Jorge Larrosa (2014) a
partir dos estudos de Walter Benjamin. Experiência aqui, nada tem a ver com o tempo de atuação
prossional, ou seja, aquele velho clichê de que somente se adquire experiência trabalhando,
pois nos livros ou nos cursos encontra-se “apenas” a teoria. Não consideramos este sentido, mas
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compreendemos o saber da experiência como tudo aquilo “o que se adquire no modo como alguém
vai respondendo ao que lhe vai acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido
ao acontecer do que nos acontece” (LARROSA, 2014, p.32). A experiência como acontecimento
que diz respeito ao que nos passa nos forma e transforma na relação com o outro.Esse outro pode
ser uma pessoa, um texto, uma recordação, uma situação vivida. Qualquer coisa que, com sua
existência nos interpela, deslocando-nos do nosso lugar de conforto. Um acontecimento singular
que traz em si uma pluralidade, pois apesar da experiência ser singular ela se desdobra no plural, já
que diante de um mesmo fato, um mesmo texto, ou uma situação haverá sempre uma pluralidade de
experiências. Acreditamos que essa forma singular e plural da experiência torna possível pensarmos
as relações nos cotidianos e os encontros como possibilidade de formação contínua no tornar-se
professoras.
Nesse contexto, partimos do relato de nossas experiências enquanto professoras atuantes
no ensino público, na tentativa de explicitar os efeitos dos encontros junto às pessoas nomeadas
com deciência visual. Experiências que, embora singulares, foram agenciadas no espaço comum
do Instituto Benjamin Constant — uma instituição pública especializada no campo da deciência
visual. Ao narrar não só expressamos a potência das relações cotidianas em seu poder de afetar e
sermos afetados pela experiência, mas também damos a ver o modo singular como nos transformamos
e nos formamos a partir dos acontecimentos.
Entendendo a experiência em sua potência de transformação que pensamos no relato,
como uma escrita da experiência como possibilidade formativa. Acreditamos que nós educadoras/
es somos experimentadoras/es, na relação, nos encontros. Ao escrevermos o que nos passa, nos
acontece, nos transformamos, nos formamos. E, ao compartilhar podemos possibilitar outras
experiências. Escrevemos, lemos para nos transformarmos. Assim compartilhamos neste artigo
experiências produzidas em tempos diferentes, na relação com o outro em que o sentir e os
sentidos se misturam, nos tirando do lugar de conforto, nos tocando, permitindo transitar por
um espaço experiencial, espaço daquilo que nos passa, nos acontece, espaço da vida. A partir da
experiência que nos permitimos ao encontro com outros modos de vida e percepção do mundo,
fomos desconstruindo a ideia de realidade, ou melhor, a ideia de que existe um mundo xo, o qual
teria apenas um modo de ser percebido, nesse caso, percebido unicamente pela visão, executada
especicamente pelos olhos.
A EXPERIÊNCIA COMO POSSIBILIDADE DE FORMAÇÃO
Uma experiência é qualquer coisa de que se sai transformado. Se eu tivesse de escrever um
livro para comunicar o que já penso, antes de começar a escrevê-lo, não teria jamais a coragem
de empreendê-lo. Só escrevo porque não sei, ainda, exatamente o que pensar sobre essa coisa
em que tanto gostaria de pensar. De modo que o livro me transforma e transforma o que
penso. Cada livro transforma o que eu pensava quando terminava o livro precedente. Sou um
experimentador e não um teórico. Chamo de teórico aquele que constrói um sistema global,
seja de dedução, seja de análise, e se aplica de maneira uniforme a campos diferentes. Não é meu
caso. Sou um experimentador no sentido em que escrevo para mudar a mim mesmo e não mais
pensar a mesma coisa de antes. (FOUCAULT, 2010, p. 289).
Foucault (2010) fala da experiência como alguma coisa que nos permite sair transformado,
na medida em que escreve para mudar a si mesmo, e não mais pensar a mesma coisa que antes. Para
o autor, a experiência tem esse sentido transformador como algo que desbanca o sujeito o tira de si,
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portanto, uma transformação de si. Nesse mesmo caminho Larrosa (2014) nos ajuda a pensar na
experiência como aquilo
[...] que nos acontece, não o que acontece, mas sim o que nos acontece. Mesmo que tenha a
ver com a ação, mesmo que às vezes aconteça na ação, não se faz a experiência, mas se sofre,
não é intencional, não está do lado da ação e sim do lado da paixão. Por isso a experiência é
atenção, escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, exposição. Se a linguagem da crítica
elabora a reexão de cada um sobre si mesmo a partir do ponto de vista da ação, a linguagem
da experiência elabora a reexão de cada um sobre si mesmo a partir do ponto de vistada
paixão. O que necessitamos então é uma linguagem na qual seja possível elaborar (com outros)
o sentido ou a ausência de sentido do que nos acontece e o sentido ou a ausência de sentido das
respostas que isso que nos acontece exige de nós. (p. 28).
Nesse movimento que buscamos ao escrever: dar sentido ao que nos acontece, dar
sentido à experiência e ao seu efeito transformador. Narrar o que nos passa, como experiência,
possibilita-nos armar o encontro educacional como possibilidade de transformação, isto implica
pensar a escola como espaço singular e plural, em que as relações podem ser potencializadas pela
abertura, escuta, disponibilidade entre outros citados por Larrosa (2014), portanto, experiência.
Consideramos que escola é efeito co-emergente do encontro entre sujeitos que convivem em um
mesmo espaçotempo
3
, o acontecimento é fator fundamental para a constituição de seu cotidiano.
Nesse sentido, na formação para esta empreitada, “o ponto de apoio é a experiência, entendida
como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge no fazer” (KASTRUP; PASSOS;
ESCÓSSIA, 2014, p. 18).
Logo, se entendemos a experiência como aquilo que nos acontece em sua potência de
transformação, é nela que vamos fazendo, aprendendo, nos tornando professoras em formação.
Mergulhadas nas inquietudes e incertezas, problematizamos, pensamos, escrevemos, nos formamos
e somos transformadas. No encontro com o outro experimentamos.
Em meio a um mergulho nas experimentações, temos a chance de acompanhar os pequenos
acontecimentos que se colocam no entre, em uma zona avizinhada entre afecção e sentido
transpassado. Um personagem deseja alcançar voo de suas antigas inquietações. Não há como
representar o dito. A m de criar mundos, conhecer implica tangenciar o limite que liga
sensibilidade e problematização. (MOEHLECKE, 2015, p. 168).
Nesse contexto que pensamos, como nós, professoras, somos educadas a ver de um
modo, que por vezes são até majoritários e enrijecidos. O que nos leva a inquirir sobre quais
experiências nos movimentam a acolher em nossas práticas educativas outros modos de vida que
percebem o mundo de maneiras diferentes da nossa? Nesse sentido, que pensamos nos encontros
como possibilidade de produção de experiência, é no encontro com o outro que somos convidadas
a pensar, agir, aprender: ver com outros olhos.
É no encontro, nesse meio de proliferação, que os corpos expressam sua potência de afetar
e ser afetado. É nele que o desejar ui e cria mundos, agenciando modos de expressão e a
conectividade da vida em suas múltiplas experimentações. (NEVES, 2015, p.69).
Em alguns momentos deste artigo, escrevemos unindo algumas palavras, com a intenção de produzir outros sentidos para elas.
Fomos inspiradas pela Professora Drª Nilda Alves (UERJ), que em seus escritos aglutina determinados termos na tentativa de
desconstruir as dicotomias produzidas nos discursos hegemônicos da modernidade.
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Tornamo-nos professoras em formação a partir das experiências que se forjam junto
a outros, no cotidiano, no convívio, nas leituras, nas admirações, nas estranhezas dos encontros.
Educar é se encontrar. Isso implica uma ideia de coletivo, que acreditamos ser necessária quando
pensamos em educação.
A educação é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para educar – e para ser educado
– é necessário que haja ao menos duas singularidades em contato. Educação é encontro de
singularidades. Se quisermos falar espinosanamente, há os bons encontros, que aumentam
minha potência de pensar e agir – o que o lósofo chama de alegria – e há os maus encontros,
que diminuem minha potência de pensar e agir – o que ele chama de tristeza. A educação pode
promover encontros alegres e encontros tristes, mas sempre encontros. (GALLO, 2008, p.1).
A potência de pensar e agir citada por Gallo (2008) ao referenciar Espinosa (2015) nos
permite pensar a educação, os cotidianos das escolas como espaços de relações, encontros entre
singularidades. Encontros que podem ser pensados em sua potência. Anal o cotidiano escolar
pensado como experiência tende a aumentar ou diminuir nossa potência de pensar e agir? Núria
Perez de Lara e José Contreras (2010) nos provocam a reetir sobre a experiência educativa desde
as suas implicações com o vivido, que o faz se tornar experiência para alguém. O que o faz pensar,
o que o faz remoer e transformar os sentidos das coisas que o cercam. “Tiene que ver con las
dimensiones del vivir en donde tu ser íntimo está implicado, y en cuanto tal, están implicadas
las múltiples dimensiones del existir” (Idem, 2010, p. 23). Neste sentido, temos nos perguntado
como podemos aumentar nossa possibilidade de fazer pensar e agir, formar e se transformar. Talvez
pensando na educação como experiência.
ENCONTROS FORMATIVOS
Nada acontece que não seja nesse embate: agonia de nós percebermos tão pequenos diante
do que é a vida e o medo de viver a potência de agir. Uma força desconhecida a partir da qual
teremos que aprender algo no presente sem salva-vidas, nem garantias. Afetar denuncia que algo
está acontecendo e que nosso saber é mínimo nesse acontecer. Sinaliza a força de expansão da
vida e da atividade que podemos viver. A tensão se instala. O que se passa? (LAZZAROTTO;
CARVALHO, 2015, p.26).
Narrar o cotidiano no qual estamos inseridas tem sido uma forma que encontramos para
expressar nossos desejos de dar a ver, ouvir e falar os afetos que nos pedem passagem, pensarmos
o que nos passa na experiência. E acreditamos que isso que nos passa traz em si a potência do
encontro. Potência não do ponto de vista de algo bom ou ruim, mas sim em seu poder de afetação,
de transformação, de armação da experiência como possibilidade de formação. E nesse sentido que
narramos aqui a experiência no encontro, tendo em vista que os relatos apresentados a seguir são
desdobramentos que movimentaram duas pesquisas de mestrado, desenvolvidas junto ao Coletivo
Diferenças e Alteridade na Educação
4
, no Programa de Pós-Graduação em Educação Processos
Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (PPGEDU-FFP-UERJ), que resultaram nas dissertações intituladas por
“Encontrar(se), (não)ver(se), diferir(se): platôs para pensar a educação de pessoas que não veem
4 https://www.facebook.com/coletivodiferencas/
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SILVA, D. P. A. F.; MACAMBIRA, L. S. A.
(apenas) com os olhos
5
, na qual buscou conhecer as experiências e os percursos de vida de pessoas
que não veem (apenas) com os olhos: seus processos de deslocamentos possíveis neste mundo
saturado por imagens visuais, que ao vivê-lo resistem e fazem (re)existir mundos outros possíveis
(MACAMBIRA, 2017). A segunda pesquisa foi intitulada por “Entre cartas e conversações: uma
experiência literária nos encontros com crianças com cegueira
6
, e que foi movimentada pelo desejo
de narrar a experiência entre uma professora em formação e crianças com cegueira no IBC, onde
se encontravam para ouvir, contar, sentir e produzir histórias (SILVA, 2018). As duas pesquisas
atravessaram esse texto por meio de relatos citados, mencionados respectivamente como: registro
pessoal de pesquisa 1 e registro pessoal de pesquisa 2. Portanto, poderá ocorrer em algumas partes
desse artigo, o aparecimento de nomes ctícios dos/as participantes das pesquisas mencionadas.
Para mais informações sobre cada uma delas, os/as leitores poderão acessar as dissertações na
íntegra, disponibilizadas por meio de hiperlinks expostos na nota de rodapé acima. Ambas foram
realizadas no Instituto Benjamin Constant, em tempos distintos, que ressoam até o momento, nos
possibilitando pensar seus efeitos em nossa formação:
Hoje combinei de acompanhar uma das participantes de uma pesquisa que realizo no Instituto
Benjamin Constant, no seu trajeto de volta para a casa — do IBC para a Rocinha — a m de
poder gravar o som deste percurso e produzir uma paisagem sonora. Como eu não conhecia
o trajeto, tentei me preparar no dia anterior com buscas ao Google Maps. Íamos de ônibus,
mas me senti na obrigação de saber o caminho, estava subentendido para mim, que o fato de
enxergar me colocava no lugar de guia daquela viagem.
Chegado o dia seguinte, encontrei-me com ela e seguimos viagem. Chegou um momento em
que ela adormeceu. Quando acordou, virou-se para mim e perguntou: onde estamos? Olhei
pela janela na busca de elementos visuais como placas de endereços para poder me localizar,
mas não encontrei. Agoniada e sem saber o que fazer, comecei a me desculpar dizendo que não
sabia onde estávamos.
Ela me interrompeu: Espera. Ficou em silêncio por alguns segundos.Logo após disse-me: acho
que estamos próximas da rua “tal”!Quando o ônibus andou um pouco mais adiante, vi uma
placa e era realmente a rua que ela havia falado.
Perguntei-lhe: como ela sabia onde estávamos? Respondeu-me que foi pelo engasgo do ônibus.
Nesta parte da cidade, o trânsito é mais movimentado e tem muitos sinais de trânsito, o que faz
o motorista ter que frear muitas vezes. Toda vez que o motorista frea, o nosso corpo é jogado
para frente e para trás, como um engasgo. (Registro pessoal da pesquisa 1, em 8 de maio de
2016).
O relato destacado acima nos dá pistas da nossa formação que ainda se estrutura em uma
racionalidade ocidental moderna que elege determinados sujeitos como normais em detrimento
daqueles considerados, nesta mesma lógica, como os anormais, os incompletos, os que têm alguma
falta e que precisam ser moldados, de modo a se adequar, ou ao menos tentar se encaixar nos moldes
da normalidade. Nessa relação, o sujeito outro é aquele ou aquela considerado incompleto, o corpo
que falta, que é incapaz, que é “deciente”. Nesse corpo, falta, porque o padrão de comparação é
o corpo determinado pelo discurso médico e endossado pela arte, pelas ciências biológicas como o
corpo perfeito. A imagem e semelhança do “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci.
 https://ppgedu.org/uploads/dissertacoes/2017/leidiane_dos_santos_aguiar_macambira.pdf
 https://ppgedu.org/uploads/dissertacoes/2019/daina_pilar_andrade_de_freitas_silva.pdf
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Assim que cheguei ao Instituto quei impressionada com sua dimensão, me rero aos espaços
físicos que o constituem. Tantos corredores, entradas, saídas, andares etc. Fui orientada, após
passar pelo Departamento Pessoal (DP), a me dirigir ao DED. Logo, perguntei o que signicava
a sigla e onde se localizava. Assim me informaram:
É o Departamento de Educação (DED) e ca localizado no prédio aqui à frente, você
entrará em uma porta estreita, subirá uma escada de madeira passará pelo corredor de madeira
e, logo assim que sentir o corredor de pedra, entrará na porta a sua direita.
Tentei gravar tudo, mas só cou mesmo o prédio à frente, a porta estreita e a escada de madeira.
Não achei a escada de madeira e quando vi estava perdida por entre os corredores do IBC.
Resolvi pedir informação a um senhor que vinha no corredor em direção contrária à minha.
Falei bom dia e perguntei:
— O senhor pode me informar em qual setor estou?
Ele começou a rir e disse:
— É difícil alguém pedir ajuda a um cego. Você é cega?
Eu imediatamente:
— Não.
Ele rindo:
É que isso é um costume nosso. Mas você está no departamento médico no corredor onde
ca a sioterapia. Quer ir para onde?
— Quero ir ao DED.
É lá em cima. Você continua seguindo na mesma direção e chegará ao vão central da portaria,
tem duas escadas de pedra. Pode subir por qualquer uma. A sua frente vai ter o teatro, siga a
direita e chegará ao DED.
O senhor me explicou outro caminho, mas que também me levaria ao DED. Consegui ir por
esse caminho. Depois quei pensando quem era o cego naquele momento? Pensei também
que podem existir vários caminhos para se chegar a um determinado lugar. É... são muitos os
caminhos... tenho pensado nos meus… (Registro pessoal da pesquisa 2, em 17 de outubro de
2016).
Podemos dizer que o fato de estar perdida movimentou a professora a pedir ajuda a um
sujeito com cegueira, pois “perderse signica recuperar esa frágil experiencia de la primera visita a
una ciudad — la limpieza de la mirada inédita que es también la mirada del niño” (MOREY, 1990,
p.8). Essa “mirada del niño” pode ser explicitada como um gesto de quem se abre para o novo.
Ao se sentir perdida, a professora não se deu conta que pedia ajuda a uma pessoa com cegueira.
Pensamos que naquele momento, sua condição de perdida não a permitiu ser movida pela ordem
social padrão, de pedir ajuda a quem enxerga.
Desse modo, perguntamo-nos: Por que não temos o costume de pedir ajuda a um sujeito
com cegueira? Visto que a própria pessoa que a ajudou estranhou o fato. Clímaco (2010) pode
nos ajudar a pensar nesse sentido quando fala da construção do olhar relacionado ao sujeito dito
com deciência tendo por base o conceito de normalidade. Para ela “a normalidade faz visível a
deciência como condição supostamente biológica, constituída de sujeitos incompletos, imperfeitos,
a-normais” (p. 8). Assim, o olhar que se tem sobre o sujeito dito “deciente” é construído a partir do
que conceituamos ser normal tendo geralmente um parâmetro de normalidade legitimado.
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SILVA, D. P. A. F.; MACAMBIRA, L. S. A.
Para Skliar:
A presunção de que a deciência é, simplesmente, um fato biológico e com características
universais, deveria ser problematizada epistemologicamente. Nesse sentido é necessário inverter
aquilo que foi construído como norma, como regime de verdade e como problema habitual:
compreender o discurso da deciência para logo revelar que o objeto desse discurso não é a
pessoa que está em uma cadeira de roda ou o que usa um aparelho auditivo, ou o que não
aprende segundo o ritmo e a forma como a norma espera, senão os processos sociais, históricos,
econômicos e culturais que regulam e controlam a forma acerca de como são pensados e
inventados os corpos e as mentes dos outros. Para explicá-lo mais detalhadamente: a deciência
não é um problema biológico e sim uma retórica social, histórica e cultural. A deciência
não é um problema dos decientes ou de suas famílias ou dos especialistas. A deciência está
relacionada a própria ideia de normalidade e com sua historicidade. (SKLIAR, 1999, p. 18).
As palavras norma e normalidade só começaram a ganhar o sentido de ordem que serve
de regra, padrão, por volta do século XIX, tendo muito a ver com a instauração da racionalidade
moderna, uma sociedade industrializada onde se prioriza a produtividade, a necessidade de um
sujeito adaptado, produtivo, eciente. Nesse sentido, os parâmetros de normalidade nada têm a
ver com algo natural, embora sejam naturalizados. Trata-se de uma produção histórica, pautada nos
discursos da medicina. Nesse sentido podemos dizer que os discursos historicamente construídos
para denir a cegueira — e também todas as outras condições do sujeito, nomeadas como deciência
— foram pautados de acordo com a ideia de um corpo normal, produtivo, completo, associado ao
modelo biomédico do corpo. Como arma Manso (2015),
Por esta via a cegueira estabeleceu-se no quadro das nossas representações culturais como uma
condição patológica a que se chamou deciência visual, nascendo em meio a modernidade, sob
o signo da falta e do desvio em relação ao modelo biomédico do corpo (p. 23).
A autora problematiza a inuência da biomedicina, colocada pelos referidos autores
como um saber moderno, no processo de produção da normalidade, estabelecendo critérios a partir
da anatomia e da biologia para legitimação de um corpo padrão, que se estabelece em sua dimensão
física e produtiva. Nesse modelo biomédico de corpo saudável a pessoa com cegueira é colocada
sob uma perspectiva de rendimento funcional, pela sua capacidade de realizar, ou não, as atividades
exigidas pela demanda social. Surgindo a necessidade de reabilitação, que sugere recapacitação,
medicalização, tratar para o sujeito ser capaz, voltar a ser capaz. E a normalização.
Problematizar esse discurso da cegueira enquanto uma falta se torna importante se
pretendemos uma educação que arma as práticas cotidianas como experiência, à medida que
percebemos que somos preenchidos pelos discursos normatizados e através destes produzimos
visões limitadas a respeito do mundo, dos sujeitos e das coisas. Talvez como educadoras, precisamos
repensar tais discursos, não no sentido de negá-los, mas sim de cuidarmos para não deixarmos que
tais discursos passem a frente da relação, diminuindo nossa potência de agir e pensar. A professora ao
ser orientada por uma pessoa com cegueira conheceu um outro caminho. Entendemos o encontro
relatado como um movimento formativo que nos permite problematizar: quais os caminhos temos
escolhidos para chegar aos nossos alunos? Quem nos orienta por esses caminhos? São caminhos já
denidos que antecedem ao encontro?
Cheguei ao IBC para mais um encontro. Havia pedido que trouxessem uma imagem que
dissesse algo sobre si. Minha intenção era já introduzir a discussão sobre fotograas para que
pudéssemos avançar para a próxima etapa da pesquisa.
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Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 71-84, Jul.-Dez., 2022 79
—Lembraram de trazer a fotograa e o texto que pedi? O silêncio reinou.
— Me desculpe! Acabei esquecendo!!! — foi a lacônica resposta de Sr. João.
As fotograas não chegaram... Fiquei preocupada com o andar lento da pesquisa. Mais um dia
e não consigo avançar! Mantive-me em silêncio para ver se mais alguém se pronunciava.
— Olha, eu z uma paródia! Serve?
A resposta de Elias veio a mim como uma injeção de ânimo. Após a paródia, que Elias cantara,
Samantha me disse que trouxe uma fotograa, da época em que ela participava de outra ocina
de fotograa lá mesmo no IBC. Com meus olhos seguia todos os movimentos de suas mãos
indo à bolsa, procurando pelo fundo... Tamanha era minha expectativa! Enm, uma que
salvasse a ocina! No entanto, a fotograa que ela apresenta era muito diferente daquela que ela
narrara. (Registro pessoal da pesquisa 1, em 4 de abril de 2016)
Figura 1 – Fotograa apresentada por uma das participantes da pesquisa 1
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Esta foi a fotograa da fotograa apresentada por Samantha! — Está vendo? — perguntou. —
Essa aí é minha amiga, ela está na praia de Botafogo. A fotograa que ela me apresentava era
(in)visível naquela foto, que para mim era apenas um cartão de aniversário! (Registro pessoal da
pesquisa 1, em 4 de abril de 2016)
Samantha nos deu a ver muito mais do que esperávamos. “Dar a [ver], então, é dar
as [imagens] sem dar ao mesmo tempo o que dizem as [imagens]. Ou, melhor, interrompendo
todas as convenções que nos fazem dar a [ver] o que já temos como próprio, o que já sabemos
[ver]” (LARROSA, 2004, p. 20). Essa experiência nos ajuda a desconstruir preconceitos que temos
arraigados em nossas concepções do que seria o ato de ver, associando-o apenas ao funcionamento
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do olho. A imagem de Samantha interrompe em nós as nossas próprias convenções sobre as imagens
que percebemos no mundo em que estamos inseridas, fazendo-nos questionar o que acreditamos já
saber ver em nossas relações educativas.
Sem saber o que dizer, respondi: — Sim! Estou vendo! Mas não conseguia enxergar a sua amiga!
O que via sempre e repetidamente era aquele cartão de aniversário. Toda vez que olhava para
a foto, via sempre o mesmo cartão. Fotograa (in)visível de Samantha. (Registro pessoal da
pesquisa 1, em 4 de abril de 2016).
Se pautarmo-nos em gerir apenas aquilo que já sabemos ver nas relações educativas, é
impossível ver a amiga de que Samantha fala! Talvez estejamos acorrentadas a nossa razão.
Se eu pudesse me fotografar naquele exato instante em que olhava para a foto, teria talvez
a mesma expressão do barbeiro de Nova Iorque, o mesmo fotografado por Chinolope, no
momento crucial em que o gângster Joe Anastasia fora assassinado. (Registro pessoal da pesquisa
1, em 04 de abril de 2016)
Chinolope vendia jornais e engraxava sapatos em Havana. Para deixar de ser pobre, foi-
se embora para Nova Iorque. Lá, alguém deu de presente a ele uma máquina de fotograa.
Chinolope nunca tinha segurado uma câmara nas mãos, mas disseram a ele que era fácil: —
Você olha por aqui e aperta ali. E ele começou a andar pelas ruas. Tinha andado pouco quando
escutou tiros e se meteu num barbeiro e levantou a câmara e olhou por aqui e apertou ali. Na
barbearia tinham baleado o gângster Joe Anastasia, que estava fazendo a barba, e aquela foi a
primeira foto da vida prossional de Chinolope. Pagaram uma fortuna por ela. A foto era uma
façanha. Chinolope tinha conseguido fotografar a morte. A morte estava ali: não no morto,
nem no matador. A morte estava na cara do barbeiro que a viu. (GALEANO, 2002, p. 12).
Por assim dizer, vale ressaltar que a foto foi a grande façanha de Chinolope, pois ele havia
conseguido fotografar a morte, que não estava nem no morto, nem no assassino, mas na cara do
babeiro que a viu (GALEANO, 2002, p. 16).
Estava na minha cara, a morte! Morreram as expectativas, os planos, as certezas, a ocina. Teria
que fazer viver alguma coisa naquele momento, já que há muito vinha sendo dito por diversas
formas que não era o que queriam. Necessitava negociar outros modos para seguirmos nos
encontrando, para continuarmos convivendo. (Registro pessoal da pesquisa 1, em 04 de abril
de 2016).
Talvez estejamos muito ligadas em apenas gerir o que já sabemos e sofremos por não
poder nos deslocar. Se não nos deixamos afetar pela presença do outro, não haverá convivência. Por
quanto tempo ainda permaneceremos insistindo em encontrar na imagem que nos oferecem aquilo
que possamos, com os nossos saberes, ver, saber e dominar?
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Ao desnaturalizar as condições de visão, nos foi possível, também, desconar das nossas
certezas pedagógicas, se é que podemos dizer assim. Desconamos dos nossos modos de ensinar,
dos nossos modos de chegarmos para o encontro com os nossos alunos. Desconamos porque,
percebemos que o que “vemos” das nossas relações não necessariamente é a realidade tal e qual,
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Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 71-84, Jul.-Dez., 2022 81
mas a produção de uma imagem que nos foi possível com base nos limites daquilo que podemos
perceber do mundo. Que está intimamente relacionado às nossas vivências, às nossas crenças.
Portanto, o que vemos das pessoas que convivem conosco na escola, não são elas em
si, mas sim, imagens que produzimos a partir daquilo que temos disponível em nós para poder
vê-las. Estas imagens, são, portanto, sempre uma produção inacabada, temporal, precária e
provisória possível diante das nossas condições de visão. As condições de visão estão ligadas às
nossas experiências na relação com o mundo que nos cerca, com as crenças que alimentamos, com
as certezas que nos acompanham. Se ver trata-se, então, de um complexo jogo agenciado pelas
nossas experiências com o mundo, do que temos nos nutrido para então percebermos o mundo
com o qual nos relacionamos? Que experiências, certezas e crenças têm nos acompanhado em
nossas relações educativas? Certamente tais perguntas poderiam ser armações, mas escolhemos
manter enquanto perguntas para que se preserve a essência da problematização. As perguntas
podem ser, não necessariamente respondidas, mas pensadas de modo singular, como experiência,
por isso entendemos que uma pergunta terá potência formativa de alcance bem maior que o de uma
armação.
O mundo à nossa volta, as mídias, os meios de comunicação nos ensinam, armam o
que ver e como ver. Entretanto, desaprendemos a perceber as coisas como necessitam ser percebidas.
Vemos de maneira distanciada. Antecipamo-nos porque vemos, e se já vemos não precisamos tocar
para saber o que é, aliás, de antemão fazemos uma série de preconceitos e denições para o que
olhamos, atribuindo-lhe juízo.
Não nos permitimos ao toque, ao afeto. O ‘contato’ — a contiguidade, a fricção, o
encontro e a colisão — é a modalidade fundamental do afeto (NANCY, 2007 apud SKLIAR,
2011). Se nos antecipamos criando sobre o outro uma série de preconceitos, não nos permitimos
nos afetar, e, por conseguinte, não os/nos vemos. Olhamos, mas não vemos. Por que, vendo — com
as condições de ver cheias de a priores acerca do outro — cegamos. O que tem nos impedido de
ver na educação?
Jorge Larrosa (2007) em uma entrevista sobre a literatura, experiência e formação nos
provoca a pensar as nossas condições formativas no que se refere à posição ética diante do encontro
com o outro. Ele nos alerta dizendo que o essencial para essa condição é que seja uma relação de
escuta e não de apropriação. Ou seja, “que o outro permaneça como outro e não como outro eu, ou
como outro a partir de mim mesmo (VEIGA-NETO, 2007, p. 133 grifo do autor). Aponta para
um aspecto da nossa formação ocidental moderna que considera mais agressiva e autoritária: “É o
homem que reduz tudo à sua imagem, à sua medida; aquele que não é capaz de ver outra coisa que
não seja ele mesmo” (Idem, 2007, p. 134). Aquele que vê a partir do que já sabe, do que já viu.
Talvez essa nossa formação tenha nos levado a um gesto de relação com aqueles que ainda
não sabemos ou que ainda não vimos, aquele que nos interpela que questiona as nossas certezas: o
gesto de desviar o olhar... De retirar sua existência do nosso campo visual. Gesto esse traduzido por
falas como “não estamos preparadas para lidar com determinados alunos” ou “a minha formação
não abordou determinados aspectos e por isso hoje eu não consigo trabalhar com [...]” ou “eu não
conheço determinados temas e por isso eu me sinto incapaz de tratá-los em minhas aulas”. Muitas
são as falas que nos vem diante das situações que nos chegam à educação e com as quais acreditamos
não sabermos lidar. E, talvez o gesto que temos realizado é o de desviar o olhar.
Skliar (2010) nos provoca a pensarmos em uma pedagogia do olhar na educação, mas não
uma pedagogia do olhar que esteja relacionada a ensinar um jeito correto de ver. Pelo contrário, já
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estamos imersos em uma pedagogia do olhar em nossa sociedade. Vivemos em uma cultura visual,
na qual há excesso de profusões de visuais, que nos provoca uma sensação de anorexia visual. Carlos
Skliar usa esse termo na entrevista no sentido de problematizar a profusão de imagens em nossa
sociedade. Ou seja, temos muito o que ver, temos muitas informações que nos chegam, que passam
por nós, mas ao mesmo tempo camos com a sensação de que nada é possível de ser visto, pois as
informações chegam e vão numa velocidade que não nos permitimos nos relacionarmos com elas.
O autor nos apresenta alguns olhares que tem percebido em sua jornada investigativa e
que gostaríamos de trazer aqui para pensarmos juntas e talvez elaborarmos alguma saída frente ao
problema que estamos tentando enfrentar neste estudo.
Sabemos que hay miradas que ven borrosamente, que manchan y miradas asesinas, que matan.
Por eso insisto tanto en trabajar sobre las miradas que posibilitan, que acompañan, que ayudan,
que donan un tiempo y un espacio al otro. Miradas, en síntesis, que por un lado no permiten
la existencia de otro y miradas que abren esa posibilidad. Demás está decir que hay miradas que
impiden, que estorban, que prohíben, que niegan, que hielan. (SKLIAR, 2010, n.p.)
Se há olhares que veem borrosamente e que quitam a possibilidade de existência do
outro frente ao que já sabemos ver. Há também, aqueles olhares que não se desviam, que se abrem
a possibilidade de estar com o outro desconhecido, por mais que esse gesto moleste nossa formação
ocidental moderna que nos leva a ver apenas o que já sabemos ver. “Interpreto ‘educar la mirada
no tanto como el efecto que provocan las imágenes (tanto jas como en movimiento) sino como el
efecto que provocan las miradas en el acto de educar” (SKLIAR, 2010, n.p.). Talvez, a pedagogia
do olhar a que Skliar nos conduz a perceber seja a desconstrução daquilo que acreditamos saber
ver. Seja a disposição ao gesto de abertura para se relacionar com o desconhecido para produzirmos
alguma possibilidade de estarmos juntos.
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