Síndrome de down e entendimento de funcionalidade nos dias atuais Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 1, p. 133-148, Jan.-Jun., 2022 133
Síndrome de down e entendimento de funcionalidade noS diaS atuaiS
Down synDrome anD unDerstanDing of functionality nowaDays
Daiane Rodrigues de ALMEIDA
1
Lisiane Machado de Oliveira MENEGOTTO
2
Rosemari Lorenz MARTINS
3
Resumo: este artigo tem como objetivo, apresentar as características da SD, relacionando-as com as possibilidades de construção
de autonomia e funcionalidade na contemporaneidade. A pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso, com análise e discussão
de dados sob o paradigma qualitativo. Participaram do estudo uma jovem com SD, sua mãe, sua avó e seu avô, selecionados por
conveniência. Como instrumentos de pesquisa utilizaram-se uma entrevista semiestruturada e questionário para os responsáveis
e cinco sessões de sondagem com a jovem com SD, para, posteriormente, elaborar um plano de intervenção composto de 30
encontros. Os resultados obtidos por meio desses instrumentos foram agrupados em três categorias: letramento e família; autono-
mia como produto do letramento e letramento e entendimento dos instrumentos sociais. Após a categorização prévia dos dados
coletados, foi realizado um renamento visando a este artigo, cujo foco foi a categoria “autonomia como produto do letramento”,
que consiste na discussão das características da SD, relacionadas à promoção e ao entendimento da autonomia e da funcionalidade
na contemporaneidade. Ficou evidente que a autonomia, baseada em aposta e mediação adequadas, confere a possibilidade de
construção diária de autonomia.
Palavras-Chave: Autonomia. Funcionalidade. Síndrome de Down.
Abstract: the article aims to present the characteristics of DS, relating them to the possibilities of building autonomy and functio-
nality in contemporary times. e research is characterized as a case study, with data analysis and discussion under the qualitative
paradigm. A young woman with DS, her mother, grandmother and grandfather, selected for convenience, participated in the
study. As research instruments, a semi-structured interview and a questionnaire were used for those responsible and ve probing
sessions with the young woman with DS, to later elaborate an intervention plan composed of 30 meetings. e results obtained
through these instruments were grouped into three categories: literacy and family; autonomy as a product of literacy and literacy
and understanding of social instruments. After the previous categorization of the collected data, a renement was carried out
aiming at this article, whose focus was the category “autonomy as a product of literacy”, which consists of the discussion of the
characteristics of DS, related to the promotion and understanding of autonomy and functionality in contemporaneity. It was
evident that autonomy, based on adequate bet and mediation, provides the possibility of daily construction of autonomy.
Keywords: Autonomy. Functionality. Down syndrome.
Doutora em Diversidade Cultural e Inclusão Social. Professora convidada do Programa em Diversidade Cultural e Inclusão Social
da Universidade FEEVALE. E-mail: daianedo@gmail.com. Orcid:https://orcid.org/: 0000-0003-3993-1657
Doutora em Psicologia do Desenvolvimento. Professora permanente do Programa em Diversidade Cultural e Inclusão Social da
Universidade FEEVALE. E-mail: lisianeoliveira@feevale.br . Orcid: https://orcid.org/ 0000-0001-5670-9332
Doutora em Letras. Coordenadora e professora permanente do Programa em Diversidade Cultural e Inclusão Social e professora
do curso de Letras da Universidade FEEVALE. E-mail: rosel@feevale.br . Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0658-5508
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2022.v9n1.p133-148
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
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ALMEIDA, D. R.; MENEGOTTO, L. M. O.; MARTINS, R. L.
introduÇÃo
O entendimento sobre a SD, juntamente com considerações sobre o desenvolvimento
das pessoas com essa síndrome, ajuda a entender melhor a necessidade de trabalhar questões
relacionadas ao uso dos instrumentos sociais com esse público. Além disso, a autonomia é
uma das demandas mais importantes quando se refere, inclusive, às necessidades laborais da
pessoa com SD. Referente a isso, é importante perceber suas possibilidades frente à relação
com a sociedade. Estudos, como o de Gameran-Oosterom et al. (2013), sugerem que diversas
pesquisas que abordam o desenvolvimento da pessoa com SD têm avançado consideravelmente
quando se fala na inserção social da criança com SD. Entretanto, faltam informações sobre o
nível de funcionamento diário desse público ao entrar na vida adulta.
A SD, causada pela trissomia do cromossomo 21, é o distúrbio cromossômico
mais comum associado a décits cognitivos no desenvolvimento (JIANG et al., 2015). De
acordo com Schwartz (1999), a designação SD passou a fazer parte da Organização Mundial
da Saúde a partir de 1965. Essa síndrome genética foi reconhecida há mais de um século
por John Langdon Down, entretanto, seu descritor inadequadamente estabeleceu associações
com características étnicas (DOWN, 1886). Ele identicou um grupo especíco de pessoas e
chamou a condição de idiotia mongoloide.
Embora Down tenha descrito a síndrome pela primeira vez de forma clínica em
1886, apenas em 1932 foi proposto que a SD fosse decorrente de um erro genético. Sendo
assim, somente em 1958, por meio de estudos coordenados por Jerome Lejeune, que se
descobriu a existência de um cromossomo extra (VALENTE, 2009). Além do atraso no
desenvolvimento, outros problemas podem ocorrer com a pessoa com SD, como, por exemplo,
problemas de audição, que acometem de 50 a 70% das pessoas com a síndrome, problemas
de visão, identicados em 15 a 50% das pessoas, além de obesidade e envelhecimento precoce
(COOLEY; JR GRAHAM, 1991). O fenótipo da SD caracteriza-se principalmente por: palato
ogival (alto), cabelo no, hipotonia e frouxidão ligamentar entre outras características (BRASIL,
2013). Apesar de essa síndrome ser objeto de diversas pesquisas, as questões relacionadas aos
mecanismos genéticos e cognitivos do desenvolvimento permanecem sem serem totalmente
compreendidas até o momento.
Em relação ao prognóstico, terapias, principalmente a estimulação precoce com
sioterapia e fonoaudiologia, mostram-se uma contribuição assertiva para a melhora no
desenvolvimento e no desempenho social da pessoa com SD (BRASIL, 2013). É importante
ressaltar que as habilidades intelectuais da pessoa com SD têm sido tradicionalmente
subestimadas. Diversos estudos mostram que a maioria das pessoas com Down tem um
desempenho cognitivo na faixa do atraso leve e moderado. A melhor capacidade cognitiva tem
sido atribuída ao mosaicismo
4
cromossômico, além de outros fatores como o conjunto genético
do indivíduo e a inuência de fatores ambientais (MOREIRA; EL-HANI; GUSMÃO, 2000).
Na Classicação Internacional de Doenças (CID-10), a SD recebe o código Q90
e está categorizada no capítulo Q00-Q99 das malformações e anomalias cromossômicas. Na
categoria Q90, existem os seguintes subgrupos:
Q90.0 - Síndrome de Down, trissomia do 21, por não disjunção meiótica.
Ocorre em 95% dos casos de SD;
A SD é caracterizada pela presença de um cromossomo 21 extra, que pode ser apresentado citogeneticamente de três formas,
sendo uma delas o Mosaico que é detectado entre 1 a 2 % dos casos (BRASIL, 2013).
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Q90.1- Síndrome de Down, trissomia do 21, mosaicismo por não disjunção
meiótica. Detectada entre 1 a 2 % dos casos de SD;
Q90.2 - Síndrome de Down, trissomia 21, translocação;
Q90.9 - Síndrome de Down, não especíca (BRASIL, 2013).
Enquanto o CID representa exclusivamente a patologia principal e as associações que
constituem o diagnóstico clínico de uma pessoa, a Classicação Internacional de Funcionalidade
(CIF) apresenta uma descrição da saúde e dos estados relacionados à saúde (BRASIL, 2013).
Com a CIF, evoluiu-se de uma especicação centrada na doença para outra, que tem foco nos
componentes da saúde e nas consequências do adoecimento. A CIF utiliza como critério de
avaliação dois grandes domínios:
a) função e estrutura do corpo;
b) atividade e participação (a CIF trabalha com o conceito de funcionalidade e
incapacidades).
Além disso, a CIF (BRASIL, 2013) relaciona esses dois aspectos da pessoa com
fatores ambientais e contextuais com os quais ela interage (OMS, 2001). No caso da SD, que
tem por objetivo uma avaliação contínua de supervisão clínica, é recomendado pelas diretrizes
de atenção à pessoa com SD, que se utilize, além da CID, a CIF, fazendo um deslocamento do
eixo da doença para o eixo da saúde, permitindo o entendimento da condição da pessoa dentro
de um contexto mais amplo (BRASIL, 2013).
Tendo em vista a relevância do trabalho como meio de inclusão social e de sentido
para a existência humana e considerando o panorama de participação das pessoas com SD na
sociedade, este estudo está focado em apresentar as características da SD, relacionando-as com
as possibilidades de construção de autonomia e funcionalidade na contemporaneidade.
ProcedimentoS metodológicoS
Este trabalho caracteriza-se como um estudo de caso, com análise e discussão de
dados sob o paradigma qualitativo. A pesquisa por meio de estudo de caso é uma investigação
cientíca que busca entender um fenômeno contemporâneo em profundidade e em contexto
de vida real (YIN, 2010). Na perspectiva de que conhecer sobre as pessoas só é possível a partir
da descrição da experiência humana, optou-se por um estudo qualitativo (MINAYO, 2001;
2005).
Participaram do estudo uma jovem com SD, aqui chamada de Mirela
5
, sua mãe,
seu avô e sua avó. Os participantes residem no estado do Rio Grande do Sul/Brasil e foram
selecionados por conveniência. A mãe da jovem é funcionária pública e trabalha meio turno,
a vó e o avô são aposentados. Segundo Gil (2002), na seleção por conveniência, o pesquisador
seleciona os elementos a que tem acesso, admitindo que eles possam, de alguma forma,
representar o universo. Os critérios de inclusão dos participantes foram: pessoa com SD, sem
O nome verdadeiro foi suprimido para garantir a integridade da identidade da participante.
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comorbidades, já tendo cursado o 5º ano do Ensino Fundamental ou já tendo completado 11
anos de idade.
Como instrumentos de pesquisa foram utilizadas entrevistas semiestruturadas
com a mãe e a avó da participante, um questionário com o avô e sessões de sondagem com a
jovem com SD. As entrevistas e o questionário tiveram como objetivo coletar dados sobre os
aspectos gestacionais, o desenvolvimento motor da jovem com SD, a rotina familiar, o histórico
terapêutico e escolar da jovem, seu letramento e a renda familiar. Segundo Minayo et al. (2005,
p. 91), esse tipo de entrevista combina perguntas abertas e fechadas para que o entrevistado
tenha “a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação
formulada”. Em seguida, procedeu-se a cinco sessões de sondagem com a participante.
Cabe ressaltar que a coleta de dados se deu entre janeiro de 2020 e fevereiro de
2021, totalizando 13 meses de trabalho. Durante esse período, a composição dos materiais do
estudo foi desenvolvida em 4 fases, cada uma delas correspondendo a um grupo de elementos
construídos no campo teórico e que atendem a cada um dos objetivos especícos do estudo. A
primeira fase foi exploratória e teve como objetivo conhecer os responsáveis pela participante.
Para tanto, foi feita uma reunião inicial com a mãe, no dia 27/01/2020, para explicar os
objetivos do estudo e, após, solicitou-se a assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), o estudo, faz parte de uma pesquisa maior e encontra-se autorizado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da universidade FEEVALE, sob registro nº 3.564.172.
A segunda fase do estudo deu-se com o início das sessões de sondagem com a participante no
mês de março de 2020. Na terceira fase, realizou-se uma entrevista com mãe e com a avó em
conjunto, também no mês de março de 2020. A quarta fase teve por objetivo construir um
plano de intervenção baseado na coleta de dados por meio dos instrumentos.
O plano de intervenção foi composto por 30 sessões de intervenção clínica, uma
por semana, com duração de 50 minutos cada. Para as sessões, foi feito plano geral dividindo
as intervenções em 3 eixos norteadores: smartphone, instrumentos de compra (R$) e sinais/
objetos/itens sociais, com 10 encontros para cada eixo. As atividades que compuseram cada
objetivo de intervenção contaram com atividades práticas, como é o caso do Smartphone,
seguidas de propostas que incluíam desenho, recorte, colagem e pesquisa na internet como
forma de expressão do entendimento da participante. Para alcançar cada objetivo, foram
utilizadas estratégias formais (aprendizagem formal), vivenciais (saídas de campo) e tarefas/
propostas para família. As sessões foram conduzidas conforme o interesse e o desempenho da
participante, sendo planejadas em sua plenitude após cada atendimento, uma a uma, buscando
fazer uma linha de construção de ideias e interesses. O registro das sessões foi feito por meio de
diário de campo preenchido durante e imediatamente após os encontros.
Os dados coletados nas entrevistas foram analisados tomando como base o método
de análise de conteúdo, realizando-se a categorização e a triangulação de dados (MINAYO;
DESLANDRES; GOMES, 2008). A análise de conteúdo, segundo Minayo et al. (2008),
consiste em etapas de categorização, interferência, descrição e interpretação dos dados coletados.
Para a realização dos procedimentos da análise de conteúdo, seguiram-se as seguintes etapas:
“(a) decompor o material a ser analisado em partes [...]; (b) distribuir as partes em categorias;
(c) fazer uma descrição do resultado da categorização [...]; (d) fazer inferências dos resultados
[...]; (e) interpretar os resultados obtidos com o auxílio da fundamentação teórica adotada
(MINAYO et al., 2008, p. 88). Para auxiliar no processo de categorização das narrativas dos
participantes, elegeram-se as seguintes categorias: letramento e família; autonomia como produto
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do letramento e letramento e entendimento dos instrumentos sociais. Após a categorização prévia,
foi realizado um renamento visando a este artigo, cujo foco é a categoria autonomia como
produto do letramento, que consiste na discussão das características inerentes da pessoa com SD
na contemporaneidade.
reSultadoS e diScuSSÃo
Os resultados referentes à relação entre o letramento e as Atividades Instrumentais de
Vida Diária (AIVDs) contribuíram para a compreensão do sentido do trabalho para as pessoas
com SD. Para mostrar como essa relação se deu no contexto desta pesquisa, inicialmente,
são expostas algumas características de perl dos participantes. Em seguida, são apresentados
e discutidos os dados que conferem sentido ao trabalho. Esses aspectos são apresentados de
acordo com duas dimensões: individual e social.
A pesquisadora cou encantada com a maneira de ser da jovem participante da
pesquisa. Ela é, de fato, uma jovem com aparência de adulta, com cabelos mechados, unhas
feitas e por usar sapato de salto alto, perl que não era habitual para a pesquisadora que a recebeu
em seu consultório. A jovem mostrou ser, na ocasião da entrevista inicial, muito eloquente
do ponto de vista que consegue articular bem as palavras e entender o que é dialogado, mas
apresentou insegurança quanto às suas possibilidades de aprendizagem. Seu discurso vinha sempre
acompanhado de questões relacionadas à falta de ocupação. No primeiro encontro de sondagem,
quando perguntada sobre se gostaria de trabalhar, respondeu rapidamente: -”Ah, eu queria!”.
Foi possível observar, desde o princípio, algumas limitações da família em ver a
jovem com SD como alguém que pode ocupar um lugar também na sociedade e não apenas
na dinâmica familiar, ou ainda, que seu lugar na dinâmica doméstica seja mais do que o de
uma simples espectadora. Para Stoneman e Berman (1993), o risco de isolamento social de
pessoas com SD pelas famílias permanece, mesmo que se tenha avançado muito com relação
ao entendimento a respeito da síndrome, visto que mesmo as sociedades contemporâneas não
conseguiram descartar atitudes negativas muito difundidas, no passado, em relação a familiares
de pessoas com Diculdade Intelectual (DI).
A mãe da participante contou que seus familiares e os médicos esconderam dela o
diagnóstico de sua lha na ocasião do parto e que, ao sair do hospital, olhou para a lha e disse
à sua mãe (avó de Mirela), que a lha parecia com um “mongoloide”. Contou também que sua
mãe teria tentado tirar tal ideia de sua cabeça. Segundo mencionou, soube do diagnóstico ao
retirar os pontos da cesariana e passou muito mal, tendo chorado muito. Contou ainda que
teve depressão pós-parto, cando três meses sem pegar a lha no colo.
Gurski, Ferrari e Silva (2013), ao abordar fatos desse tipo, relatam que houve um
tempo em que, portar uma diferença era uma marca indigna, não reconhecível pelo grupo ou pela
comunidade. Alguns autores salientam que o “contraste entre o bebê imaginário, depositário de
ideais parentais, e o bebê real, que nasceu com Síndrome de Down, desencadeia um processo
de luto pela perda do bebê sonhado” (LIPP; MARTINI; OLIVEIRA-MENEGOTTO, 2010,
p. 372). Sendo assim, é possível que a presença da SD tenha operado efeitos na construção
de expectativas com relação ao futuro da lha, trazendo, possivelmente, junto ao diagnóstico,
perspectivas quanto a um estigma social, fazendo com que a família acreditasse que a jovem
seguiria os passos do desenvolvimento da maioria das pessoas com a síndrome.
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Sabemos que o bebê, por ainda se encontrar em fase de crescimento e desenvolvimento,
depende de um cuidador, pois necessita de estímulos, atenção, carinho, compreensão e proteção
(BARBOSA, 2012). Por essa razão, a família é tão importante nesse período e o trabalho com
as famílias de pessoas com SD objetiva, na maioria das vezes, promover a compreensão sobre
as possibilidades e as reais necessidades da pessoa com a síndrome e, sobretudo, auxiliá-las no
entendimento de que é viável que a pessoa com SD tenha um lugar na sociedade. Os diálogos
com a mãe de Mirela, durante a pesquisa, serviram para, de alguma maneira, auxiliá-la com as
diculdades de construir expectativas frente a um desconhecimento sobre as possibilidades de
desenvolvimento de sua lha, buscando promover atitudes de aposta e investimento, atitudes
estas que mostraram ser uma barreira para que Mirela, mesmo que amplie seu conhecimento
a respeito das AIVDs, efetive esse entendimento em situações que denotem maior autonomia.
dimenSÃo familiar e funcionalidade na Síndrome de down
A dimensão familiar diz respeito ao sentido que a SD assume para o grupo de pessoas
que moram e convivem com a participante. Portanto, as narrativas que dizem respeito à SD
como fator de limitação para maior letramento, entendimento dos instrumentos sociais e
inclusão social, foram agrupadas. No que diz respeito à categoria autonomia como produto do
letramento, observa-se que o tipo de mediação familiar é um dos principais entraves para uma
maior inserção social da participante. Eva Kittay (2008) e Kittay, Jennings e Wasunna (200;
2008) arma que as relações de dependência são incontornáveis e que a teoria de absoluta
autonomia é perversa na medida em que acarreta o desamparo como uma de nossas deciências,
seu estudo auxilia a entender que o sujeito autônomo é aquele que desempenha uma escolha
autônoma e não necessariamente aquele que é apto a agir de forma independente.
Com base nos resultados desta investigação, surgiram diversas percepções que
puderam ser associadas e agrupadas em todas as três categorias. Aos instrumentos envolvidos no
desenvolvimento, aos não materiais, Vigotski (2001) dá o nome de signos. O uso intencional
dos instrumentos sociais e dos signos depende diretamente da qualidade da mediação que a
pessoa recebe para que possa fazer associações entre seu letramento, as AIVDs e os signos,
ou seja, dependendo dessa relação a efetivação de ações que levem a construções autônomas,
que, somadas entre si, podem conferir ao sujeito maior participação nas relações e nos espaços
sociais, conforme ilustrado na Figura 1.
Figura 1 – Fluxo do letramento histórico-social
Fonte: A autora.
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Os efeitos do diagnóstico sobre a estrutura familiar estão relacionados a uma série de
fatores. De acordo com Malero (1999), as primeiras experiências emocionais e de aprendizagem
podem car comprometidas pelo impacto da notícia de ter um membro da família com SD.
Tal impacto pode impedir que as primeiras experiências ocorram satisfatoriamente. Além da
condição genética, a criança com SD tem, algumas vezes, uma consequência secundária, pois
a diculdade inicial em estabelecer relações afetivas pode prejudicar seu desenvolvimento
(CASARIN, 2007).
A mãe da jovem, por sua vez, justica o fato de a lha não ter mais espaços de
socialização ou maiores atividades em função do medo, tanto por parte da família quanto por
parte de Mirela, gerado pelo abuso sexual que sofreu em uma clínica aos 14 anos de idade.
Entretanto, parece que, mesmo antes da ocorrência desse fato, as atividades de Mirela não eram
mais intensas, além de não ter-se observado, no período das intervenções, medo ou resistência
da participante para frequentar lugares desconhecidos ou interagir com pessoas diferentes,
não parecendo ser possível justicar a carência de funcionalidade da jovem em função de
consequências emocionais, decorrentes do abuso sexual.
O termo funcionalidade diz respeito às funções e estruturas do corpo, assim como
à atividade e participação social (FARIAS; BUCHALLA, 2005), ou seja, não se trata de algo
inerente a Mirela, mas diz respeito também às condições sociais vigentes, que deveriam prover
um ambiente com reestruturação que permita a inclusão da jovem em diversos âmbitos da
vida social. Para a OMS, a promoção de mudanças sociais é uma questão ideológica e política
e, assim sendo, cabe à sociedade providenciar meios adequados para que haja condições de
participação social plena (OMS, 2004).
Dessa maneira, não podemos pensar nas diculdades de Mirela apenas baseados na
gura da família, sendo importante pensar a sociedade, porque a sociedade tem como dever
fornecer condições para que o sujeito tenha lugar em sua dinâmica. Essa distinção é necessária
e aciona o conceito de capacitismo, que, segundo Mello (2016), materializa, através de atitudes
preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos, a um ideal
de capacidade funcional. Com base no capacitismo, há uma certa discriminação com relação
ao potencial de Mirela, fazendo com que tenha, em certos momentos, dúvidas em relação às
suas habilidades.
A diculdade em ver possibilidades de autonomia na participante apareceu em
evidência nas narrativas dos familiares, como mostram os relatos referentes ao que esperam dos
resultados da pesquisa:
Ah... que ela lavasse uma louça, que ela tentasse aprender a cozinhar” (mãe); “[...] Antes eu
não deixava, mas como agora o [nome do irmão], o irmão dela vai fazer 11 anos e é esperto, eu
cono que ele, né... é [...]” (avó); “se for recomendada, se comporta muito bem” (avô) .
Tanto para a mãe quanto para a avó, o bom desenvolvimento da jovem nos primeiros
anos de vida deu-se por estar na Escola Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE)
de sua cidade natal, instituição a qual, para a mãe, assim como para a avó, “era maravilhosa!”.
E, segundo contam, os problemas começaram a surgir quando vieram para a cidade onde
moram hoje, pois a APAE da cidade, segundo elas, não tem a mesma estrutura que tinha a que
Mirela frequentava. A mãe relatou também que a jovem recebeu alta da fonoaudióloga, por, nas
palavras da mãe, “ter um desempenho muito bom na infância”. A referência a um desempenho
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satisfatório aparece muitas vezes na fala da mãe quando aborda os primeiros anos de vida da
lha. Questões essas corroboradas pela avó na entrevista.
Esses relatos demonstram que as frustrações atuais da família com relação às
aquisições de Mirela estão intrinsecamente ligadas a armações ou crenças entendidas pelos
familiares sobre o bom desempenho da jovem nos primeiros anos, o que, para eles, mesmo que
veladamente, não corresponde ao funcionamento de Mirela nos dias atuais. A defasagem teve
início, na visão da família, a partir do processo inicial de escolarização. Para Vigotski (2001),
a noção de desenvolvimento pressupõe uma relação intrínseca de mútua constituição entre
aspectos orgânicos e aqueles de ordem cultural.
Como mencionado, a primeira questão sobre o nascimento de Mirela mostra uma
família que recebe uma criança sindrômica e refere-se à elaboração do luto pela criança vinda
no lugar da originalidade esperada. Os relatos sobre a primeira infância de Mirela dão conta
de que a mãe se sentia frágil diante de determinadas situações, como quando relatou que
Mirela foi discriminada pelos avós paternos após a separação de seus pais. Segundo ela, em uma
determinada situação, os avós atravessaram a rua para não passarem pela menina. Esse teria sido
o motivo para terem escolhido sair da cidade onde moravam.
Tais relatos, que dão conta de uma criança com SD, que nasceu há 24 anos, estão
alinhadas a armações referentes a diferentes tipos de concepções de mundo vigentes em
cada época, atravessando as dinâmicas culturais e promovendo implicações políticas, sociais
e cientícas, que marcam as trajetórias de desenvolvimento e norteiam práticas sociais dos
indivíduos até hoje (DIAS; OLIVEIRA, 2013). Uma das questões já citadas anteriormente
refere-se aos efeitos gerados pela patologia orgânica na família. A mãe de Mirela relatou que o
pai não é presente, que a participante apenas visita o pai quando viaja para a cidade onde ele
mora e que este a pega após o almoço, entregando-a antes de dormir. Consta que a participante
tem uma irmã de 16 anos, fruto do novo relacionamento do pai. Segundo a mãe contou, a
lha pede pelo pai e diz sentir saudades dele. A jovem comunica-se com pai, de acordo com a
mãe, por WhatsApp, usando emojis. Esse seria o tipo de contato que mantém com o genitor
nos dias atuais.
Algumas vezes, os problemas apresentados por Mirela pareciam ser inerentes a questões
orgânicas da SD, como menor velocidade de processamento, baixa capacidade atencional e
rigidez de pensamento. Entretanto, em diversas situações, foi possível observar comportamento
semelhante em determinado integrante da família. Com relação a essa adversidade, Vigotski
(1997) destaca que o impasse para trabalhar com o sujeito que apresenta deciência deve-se
ao fato de que o problema de DI é, geralmente, entendido como um fato em si e não como
um processo, o que, no caso de Mirela, parece conversar com um ciclo de funcionamento e
investimento familiar.
No processo de desenvolvimento de Mirela, podemos observar a dinâmica das
relações onde, na família da jovem, além da irmã (por parte do pai), a participante tem mais
um irmão mais novo, de 12 anos, que mora na mesma casa, fruto de outro relacionamento
da mãe. Ao questionar se os dois brincam juntos, a mãe relatou que não. De fato, as falas
sobre a interação de Mirela com o irmão são raras e da mesma forma como ocorreu com o
pai da jovem, que mora distante, não é possível compreender que tipo de relacionamento foi
estabelecido entre Mirela e seu irmão que mora na mesma casa. Contudo, na sessão 29, Mirela
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relatou, conforme anotações no diário de campo: “[...] a mãe não tem muito tempo de ler para
ela, pois precisa descansar e o maninho não pode, pois ‘tem as aulas dele’”.
Na dinâmica familiar, também atua o avô, que mora junto com os demais e que
não demonstrou estar disponível para uma entrevista. Ao conhecer a pesquisadora, disse ser “o
motorista da família”, parecendo não considerar que Mirela possa trazer alguma informação
relevante, como na sessão de intervenção de número 7 (a primeira em que levou a neta),
quando questionou a pesquisadora sobre o caminho a seguir na hora de ir embora:
“avô- Doutora, como eu faço para ir pela Benjamin Constant daqui?”
Pesquisadora (P)- O senhor desce a rua e, na segunda sinaleira, dobra à direita.
(Mirela) - Eu sei vô, eu te digo.
O avô olhou para ela com ar de deboche e disse:
Avô - Sabe nada, vai saber? Ri.” (Diário de Campo).
Tais acontecimentos podem justicar o discurso de Mirela, sempre acompanhado
de uma postura desconada, que remete a uma possível fragilidade emocional, do ponto de
vista de poder opinar, dando suas ideias, sendo, portanto, um estereótipo de menina que não
conquistou um lugar na sociedade. Esses comportamentos e as inseguranças são raticados
por comportamentos como o descrito anteriormente, em que o avô demonstra não levar em
consideração a opinião da neta e nem sequer cogitar que ela possa trazer alguma contribuição
para a resolução de seu problema. De fato, as diculdades de dedicar tempo ou entender de que
maneira se pode estimular a jovem parecem ser um ponto importante no que diz respeito às
limitações de Mirela frente à sociedade, evidenciando-se lacunas quanto ao seu desenvolvimento
e ao tipo de condução que teve.
trajetória de vida e autonomia
A autonomia é um aspecto diferenciado no desenvolvimento da pessoa com SD.
Assim, neste estudo, observou-se que a aquisição mais tardia das habilidades de aprendizagem
formal leva à mudança de expectativas, fazendo com que os marcos do desenvolvimento
aconteçam em idades variadas. Nesse escopo, vericou-se que o ritmo das atividades da pessoa
com SD é alterado pela morosidade ao realizar algumas tarefas (BRASIL, 2013).
Inicialmente, para abordar a relação entre o desenvolvimento e a autonomia, é
importante esclarecer que Wishart (2002) constatou que crianças com SD, embora continuem
adquirindo novas habilidades ao longo dos anos, fazem tudo em um ritmo cada vez mais
lento. Mas, mesmo que ocorra uma diminuição no ritmo de desenvolvimento com o aumento
da idade, autores como Hodapp, Evans e Gray (2003) observaram que não há perda das
habilidades adquiridas e pessoas com SD podem adquirir novas habilidades ao longo dos anos.
Para ilustrar tal armação, descrevemos, como exemplo, os fatos ocorridos após a
reunião de número 4 com a mãe de Mirela, na qual foram expostas lacunas entre o potencial
de desempenho da jovem e o manejo da família. Nesse quesito, Mirela parece ter autonomia
reduzida pelas questões inerentes à SD, mas também pela dependência construída com a mãe,
fato esse que foi abordado, nesta reunião de orientação, conforme relato diário de campo a
seguir:
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“Outra questão que coloco, é do celular dela que toca e ela não atende e leva para a mãe, ou
quando o Whats dela tem áudios e ela não responde as pessoas (que são coisas que ela sabe
fazer). Digo que tudo isso é autonomia e que é pouca coisa que vão tirar da mãe a tarefa de ter
que fazer leite para uma mulher de 23 anos mesmo atrasada para ir ao trabalho ou de ter que
limpar uma adulta que faz cocô”.
Após essa conversa, que teve como objetivo mostrar à responsável pela jovem que
algumas medidas deveriam ser tomadas para a promoção da autonomia, foi possível observar
a jovem atendendo ao telefone na presença da pesquisadora, ação que não era efetivada pela
participante anteriormente, mesmo que tenha se mostrado ofegante em fazê-lo (remetendo
a uma possível conversa de encorajamento em casa sobre esse fato). Assim, foi possível notar
uma diferença signicativa na maneira como a jovem interagiu com o instrumento telefone,
pedindo, inclusive, um papel para anotar o número para o qual a mãe dela deveria ligar para
retornar a ligação (Encontro 22). Anteriormente, ela parecia ter acesso a ferramentas de inserção
social, como o telefone, mas era impedida de interagir ou utilizá-la de forma intencional pela
maneira como a mãe delimita seu uso.
Pensando sobre tais questões, podemos pensar que a disseminação da ética inclusiva
tem impregnado a sociedade e colaborado para a melhoria da qualidade de vida e do acesso
à sociedade de pessoas com SD. Hoje, um número expressivo de pessoas com Diculdade
Intelectual (DI) atua com maior autonomia em diferentes contextos sociais e de trabalho,
conquistando posições de respeito e equidade (DIAS; OLIVEIRA, 2013). Para Dias e
Oliveira (2013), comparada a outras diculdades, a SD encontra-se em situação peculiar pelas
representações sociais dominantes que, muitas vezes, atribuem à pessoa com a síndrome um
funcionamento exclusivamente infantil, contribuindo, assim, para a exclusão do direito a uma
vida adulta mais autônoma.
Com relação à tendência de infantilizar, cabe destacar o fato de Mirela ganhar leite
morno na cama todos os dias de manhã, próximo ao meio-dia, horário em que, segundo relatos,
acorda. Esse fato foi relatado pela mãe como sendo um hábito criado pela avó:
“Daí quando eu tô em casa ela toma leite no copo, foi aquilo que eu te disse, ela é preguiçosa
pra levantar pra tomar até café. Então a vó dela acostuma ela a tomar leite num copo. Daí
quando eu tô em casa, eu que tenho que levar o leite num copo pra ela. Não pode ser a vó, tem
que ser a mãe”.
Essa questão, por ser de ordem de funcionamento familiar, não foi abordada
diretamente nas sessões de intervenção, entretanto, sempre que possível, foi alvo de orientações
para a jovem e seus familiares. Por inúmeras vezes foi verbalizado à participante o fato de ser
uma adulta e necessitar fazer sua refeição junto com a família, na mesa. O mesmo foi salientado
ao avô e à mãe, em diversas oportunidades. O fato foi abordado mais diretamente em reunião
com a mãe, conforme relatado no diário de campo:
“Expliquei que o irmão de 11 anos, poderia servir de espelho dela e com a questão do leite, ela
diz que o mano “é o bebezão da mãe!”. A mãe defende-se dizendo que na praia ou quando está
Santo Ângelo, não leva o copo da M* (sinalizando que há um copo especíco para o leite da
manhã) e que ela levanta e toma leite. Acrescenta dizendo que, agora não é mais a avó quem
faz o leite, que é ela própria e que se não dá antes de sair, quando chega a Mirela, a cobra de ter
se esquecido dela.”.
Síndrome de down e entendimento de funcionalidade nos dias atuais Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 1, p. 133-148, Jan.-Jun., 2022 143
Segundo Baquero (1998), na construção do desenvolvimento das funções mentais,
têm prioridade o plano interpessoal e o social. Esse processo é culturalmente organizado.
Conforme explica o autor:
Essa especicidade deriva do fato de que o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores, no contexto da teoria, depende essencialmente das situações sociais especícas
em que o sujeito participa [...] pressupõe a existência de processos elementares, mas estes não
são condição suciente para sua aparição. O processo é na verdade muito mais complexo,
porque o desenvolvimento parece incluir mudanças na estrutura e função dos processos que se
transformam.(BAQUERO, 1998, p. 26).
Baquero (1998) chama a atenção para o fato de que o desenvolvimento de
funções mentais superiores não decorre de uma evolução intrínseca e linear das funções
mais elementares, ao contrário, aquelas são funções constituídas em situações especícas,
na vida social, valendo-se de processos de internalização, mediante uso de instrumento e
mediação. É possível perceber essa construção, quando, no encontro 26 (a quatro encontros
do encerramento), mãe contou que a lha tomou seu leite na mesa, conforme relato no
diário de campo: Nos encontramos novamente às 8h da manhã, a M*a veio com a mãe.
Contaram que tomaram café da manhã juntas na mesa da cozinha, que a M* teria tomado
leite e comido pão ‘massinha’ nas palavras dela.
Na concepção da mãe, as características positivas ou negativas no desenvolvimento de
Mirela são determinadas por fatores externos à jovem e à família, não implicando, em nenhum
momento, a dinâmica familiar nessa construção. Vigotski (1982) arma, contudo, que o meio
social é determinante para o desenvolvimento humano. A questão da falta de continuidade e de
perseverança, tanto em tarefas quanto na frequência a diversos espaços, foi um fator observado
também na conduta de Mirela, como, por exemplo, em sua falta de perseverança ou de interesse
por livros de histórias, que parece não ser compreendida pela família, sob a justicativa da
jovem não gostar. Tal questão mostrou-se possível de ser trabalhada e, inclusive, a partir da
sugestão de histórias dispostas em mídia digital, a jovem interessou-se por fazer busca sozinha
no Google, demonstrando, até mesmo, ser capaz de descobrir novos meios de acessá-lo de
maneira autônoma, como no relato do diário de campo a seguir:
Ao nalizarmos, falei para a M* que queria que ela conhecesse uma história que estava na
internet, falei que ia mandar o link pelo WhatsApp e que ela precisava colocar a senha do wi-
 no celular, ela mexeu no telefone e abriu as congurações de rede e me perguntou ‘é aqui?’
eu disse que sim, mostrei para ela qual era a rede e escrevi no caderno a senha e pedi para que
colocasse. Ela não conseguiu entrar pois digitou uma letra a menos (se aprender a não ocultar o
que digita no ícone senha, acredito que consiga sem auxílio).
Carvalho et al. (2018) entendem que pessoas com SD precisam estar socialmente
incluídas. No entanto, essa inclusão será limitada se não houver incentivo em seu espaço
de convivência. E, aqui, podemos observar outro fator, que poderia proporcionar uma
melhor condição social de desenvolvimento e autonomia sendo promovido pela sociedade,
possibilitando a Mirela objetivos sociais futuros a serem alcançados, contudo, percebe-se que
essa prática não foi estabelecida até o momento.
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Síndrome de down e aPoSta familiar
A questão relacionada à autonomia e ao diagnóstico merecem uma discussão à parte
dentro da dimensão da SD. Pelo fácil diagnóstico, devido às características peculiares da SD, a
suspeita é transmitida aos pais logo nos primeiros dias de vida da criança. O diagnóstico clínico
da SD baseia-se no reconhecimento das características físicas. Quanto mais características
especícas da SD forem identicadas, mais aumenta a segurança do diagnóstico clínico
(BRASIL, 2013).
Algumas questões que permeiam a vida de Mirela têm data anterior a sua concepção,
quando, segundo relatado pela mãe, os pais da participante eram noivos. Na ocasião da
gravidez, a mãe tinha 23 anos de idade e separou-se do pai de Mirela por causa de uma traição
do marido. Segundo a mãe, quando gestante, fez todos os exames pré-natais acompanhada pela
própria mãe, avó de Mirela, pois o pai da bebê, na época, trabalhava em um presídio em uma
cidade distante 243 km do local onde moravam. Para Rudolfo (1991, p. 23), “a pré-história do
sujeito partilha de elementos do fantasma parental: os ideais da criança gerada produzem mitos
familiares nos quais o bebê é imerso”. A pré-história incide sobre o lho, na medida em que há
uma transmissão dessa biograa na forma como as relações futuras irão se estabelecer.
Ao tentar entender tais questões, percebe-se que, talvez, a SD tenha resultado em
uma frágil aposta da família no potencial de Mirela e, consequentemente, em uma limitada
disponibilidade de mediar situações cotidianas. Nesse sentido, pode-se pensar que os atrasos
da jovem não são somente decorrentes das limitações orgânicas, mas também reexo do olhar
limitador da família.
O Art. 2 da convenção sobre os Direitos das Pessoas com deciência apresenta uma
denição para “discriminação por motivo de deciência”, ou como preferimos pensar, para o
capacitismo:
Qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deciência, com o propósito ou efeito
de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro (BRASIL, 2008).
O capacitismo aplica-se às questões de Mirela justamente por se tratar da capacidade
de ser e fazer de forma autônoma que, muitas vezes, é negada à jovem, na rasa medição recebida
na esfera familiar, reetindo em sua vida social. Assim, evidencia-se a importância da intervenção
clínica para pessoas com a síndrome, pois, nesse espaço, como foi o caso desta pesquisa, aposta-
se na potencialidade do sujeito e, ao perceber as apostas e incentivá-las, aoram competências
antes não observadas, como se pode evidenciar no relato diário de campo a seguir:
No encontro, retirou o desenho da mochila e eu perguntei o que era o desenho (eu não havia
entendido que parte ela estava representando), a resposta, diferente das anteriores, me causou
surpresa: -‘Eu imaginei minha festa de aniversário’. O aniversário da M* seria na semana
seguinte, porém o me causou surpresa foi o fato dela não ter desenhado ou copiado uma das
páginas do livro e sim, a ideia contida nele: neste livro as imagens representam um menino
pegando um pedaço de jornal e, usando a imaginação, nadando, no oriente, sendo um cavaleiro,
em um tapete voador... ele usa a imaginação e vai para vários lugares estando na sala da sua casa.
Síndrome de down e entendimento de funcionalidade nos dias atuais Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 1, p. 133-148, Jan.-Jun., 2022 145
Com base nesse relato, no qual se pode observar uma diferença na capacidade de
abstração de Mirela, evidencia-se uma capacidade de entendimento e de conexão de ideias
pouco exploradas ou percebidas pela família. Dessa maneira, pode-se dizer que a jovem
demonstrou poder evoluir com relação às suas conexões, a seus entendimentos e às tomadas
de decisão a partir de atividades que envolveram o estímulo de sua capacidade de letramento.
Entre os estudos sobre autonomia e, especialmente, sobre a autonomia da pessoa com
algum tipo de comprometimento orgânico (GAMERAN-OOSTERNOM, 2013), não há um
consenso sobre de que maneira um indivíduo pode conquistar maior independência. Todavia,
se pensarmos na construção da autonomia como produções individuais de determinadas
atividades, como, por exemplo, enviar uma mensagem de voz para alguém ou buscar na internet
algo que desperte interesse, então, poderemos auxiliar a pessoa com DI a caminhar no caminho
oposto da dependência absoluta, alcançado, dentro de seu contexto social, o lugar de alguém
que efetiva distintas ações autonomamente.
Tais características, que, neste estudo, são identicadas como avanços da autonomia,
quando observadas em conjunto com a trajetória de vida de Mirela ajudam a compreender
o que ocorreu para que chegasse a esse nível de dependência e ao convívio social limitado.
Sua história de vida traz consequências para sua forma de ser e agir na sociedade. Por outro
lado, a participante demonstrou, no período da intervenção, ter um conhecimento, além do
observado no seio familiar, acerca do funcionamento social. Parece que esses entendimentos
não haviam chegado à superfície até o momento, pelo fato de a jovem car muito tempo ociosa
e não estar inserida em nenhum espaço de aprendizagem formal ou social.
conSideraÇõeS finaiS
A partir deste estudo, foi possível abordar as características da SD, articulando-as com
as concepções relacionadas às suas possibilidades de participação da pessoa com essa síndrome
na sociedade. Observou-se que essas categorias correspondem a duas dimensões: a individual –
o quanto a SD denota possibilidades; e a familiar – o sentimento que as apostas familiares têm.
Vericou-se que o diagnóstico da SD, no entendimento da família participante da
pesquisa, tende a estar associado a marcadas diculdades, que, por sua vez, contribuem para
a diminuição da autonomia e da independência. No entanto, há que se dar destaque que,
mediante a aposta nas capacidades da jovem, quer seja por meio do programa de intervenção
ou pelo letramento familiar, percebeu-se evolução com relação ao entendimento dela com
relação à aposta em seu potencial, o que conferiu sentido aos acontecimentos e pode levar ao
entendimento sobre como interagir com o meio em que vive. Propomos, assim, pensar na
efetivação de determinadas ações que levem a construções de autonomia, que, somadas entre
si, denotam à pessoa com SD maior participação nas relações e espaços sociais.
Considerando a importância do entendimento das possibilidades da pessoa com SD,
como meio para oportunizar o convívio em sociedade, tendo em vista que muitas pessoas
com SD acabam excluídas desse contexto pela lógica do capacitismo, a inclusão social recebe
signicativa importância entre os fatores que conferem sentido ao uso dos instrumentos sociais.
Nesse viés, destaca-se a necessidade de ações de sensibilização para que a sociedade compreenda
que SD e, em especíco a juventude com SD, não é sinônimo de inaptidão para a interação
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social. Elas são pessoas com características e com funcionamento individuais que podem ocupar
um lugar que lhes conra identidade na sociedade.
Como contribuição social este estudo visa a eliminação de barreiras sociais mediante
a promoção do entendimento de funcionalidade e pela sensibilização da comunidade, feitos
que são de extrema valia para que os jovens com SD tenham acesso às diversas esferas da
sociedade e para que, assim, a dependência deixe de ser um marco na vida das pessoas que têm
a síndrome. Da mesma forma, mediante mediação adequada e entendimento da necessidade de
valorização de seu potencial, as pessoas com SD podem ter conquistas para uma vida permeada
por diversos eventos de autonomia.
Entendemos que um estudo de caso único não é suciente para fazermos generalizações
a esse respeito, entretanto, este estudo apresenta-se como uma importante contribuição para o
processo de inserção do jovem/adulto com SD na sociedade e para o entendimento sobre o que
de fato é ser autônomo.
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