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SANTOS, Edison Luís dos; NASCIMENTO NETO, Antônio Carlos. Lacuna Cognitiva da Apropriação Social da
Informação no Brasil. Brazilian Journal of Information Science: research trends, vol. 17, publicação continua,
2023, e023052. DOI: 10.36311/1981-1640.2023.v17.e023052.
LACUNA COGNITIVA DA APROPRIAÇÃO
SOCIAL DA INFORMAÇÃO NO BRASIL
Cognitive gap of the social appropriation of information in Brazil
Edison Luís dos Santos (1), Antônio Carlos Nascimento Neto (2)
(1) Instituto de Estudos Avançados IEA/USP, Brasil, edisonlz@alumni.usp.br.
(2) UNESP Marília; PUC-Campinas, Brasil, antoniocarlosnascimento.neto@gmail.com
Resumo
O artigo identifica e discute problemas do país relacionados à expropriação cultural por meio de imposição
de arranjos e sistemas simbólicos que remetem à nossa condição colonial. Da “catequese nas tabas” até os
dias atuais, prevalece uma operação subterrânea de privação do saber e espoliação da memória que se
expressa em novas relações de poder, tendo o domínio do saber, do conhecimento e da informação, como
um novo e poderoso instrumento político. A apropriação e/ou privação desses códigos denuncia sua
dimensão antagônica: o poder de grandes empresas de tecnologia que exploram dados pessoais; os
dispositivos e funcionalidades que sequestram o tempo de atenção dos usuários e o crescimento massivo de
dados e notícias falsas (fake news). Buscamos desmistificar a falsa autonomia da técnica e reconhecer a
trama transversal de relações (culturais, sociais, econômicas e políticas) que envolve a produção, difusão e
uso social da informação no Brasil.
Palavras-chave: Informação; Sociedade; Tecnocracia; Apropriação social; Brecha digital.
Abstract
The article identifies and discusses the country's problems related to cultural expropriation through the
imposition of symbolic arrangements and systems that hark back to our colonial condition. From
"catechesis in the tabas" to the present day, a subterranean operation of deprivation of knowledge and
plundering of memory prevails, which is expressed in new power relations, with the domain of knowledge
and information as a new and powerful political instrument. The appropriation and/or deprivation of these
codes denounces their antagonistic dimension: the power of large technology companies that exploit
personal data; the devices and functionalities that hijack users' attention spans and the massive growth of
data and fake news. We seek to demystify the false autonomy of technology and recognize the transversal
web of relationships (cultural, social, economic and political) that involves the production, dissemination
and social use of information in Brazil.
Keywords: Information; Society; Technocracy; Social appropriation; Digital divide.
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Informação no Brasil. Brazilian Journal of Information Science: research trends, vol. 17, publicação continua,
2023, e023052. DOI: 10.36311/1981-1640.2023.v17.e023052.
1 Introdução
A expropriação do saber causa preocupação e representa um grave problema:
analfabetismo funcional e analfabetismo informacional são obstáculos à formação de sujeitos
autônomos e cidadãos críticos. lacunas cognitivas que interditam a efetiva apropriação e
circulação social da informação por parte dos brasileiros. Tal mutilação remete-nos à questão
central de como superá-las, a fim de que possam superar o veto cognitivo, apropriar-se do
conhecimento, exercer cidadania plena e construir novos saberes.
Na medida do possível, tentaremos, aqui, desmistificar a falta autonomia técnica e
reconhecer as relações associadas à produção, difusão e uso da informação no Brasil. O artigo
discutirá sobre a trava da ignorância, forma de colonização da inteligência e da sensibilidade que
embota a emoção e a vontade. Desde o mito da fundação do Brasil, quando a catequese nas tabas
serviu para domesticar os afetos desordenados e fazer vistas grossas ao genocídio sumário da carne
(sífilis) e extermínio físico das línguas nativas e de seus falantes, somos um povo marcado pela
“condição colonial”. Sem acesso à educação e ao saber, nossa leitura de mundo se viu aprisionada
a preceitos morais, norteada unicamente pela visão de mundo autoritária do colonizador, servindo
de montaria fácil para as retóricas vicárias e ideologias de ocasião.
Não se passa impunemente por quinhentos e vinte anos de analfabetismo. O Brasil chegou
à independência sem projeto educacional capaz de superar as fissuras da deculturação jesuítica
que, via catequese nas tabas, prefixara o “caminho da salvação” pela propagação da fé, a negação
do corpo e expiação dos pecados. De instrumento (dispositivo) para civilizar os bárbaros, a
“escola” passou a ser espaço de “inclusão” das populações residuais da nossa história, sob a tutela
do Estado, em um espaço domesticado, reduzido à mera transmissão de conteúdos consolidados,
exames e outras exigências inibidoras da aventura de ler e conhecer o mundo.
Esse processo de expropriação sociocultural ainda produz reflexos negativos, os quais
evidentemente afetam o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do país. Um número
significativo de brasileiros não sabe e/ou não aprendeu a se informar, outros tantos apresentam
pouca proficiência em leitura, não compreendem o que leem, têm dificuldade em interpretar textos.
E não sabem posicionar-se criticamente frente ao que leem.
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2023, e023052. DOI: 10.36311/1981-1640.2023.v17.e023052.
Quando o processo educativo se resume no princípio oco “quem não reproduz é
reprovado”, perde o sentido e a escola se torna um espaço desinteressante”! Esse modelo
convencional de ensino tem sido a mais pródiga fábrica de medíocres em informação. Dados à
estampa, são notórios em nosso país os baixos índices de rendimento
(1)
e as deficiências de
aprendizado, ordinariamente traduzidos em apatia social e “perda de interesse” pelo saber
científico.
(2)
Acesso à informação e apropriação da informação são dois conceitos relacionados, mas
não idênticos. O acesso à informação se refere à possibilidade de obter dados, documentos ou
informações de interesse público ou particular, que estejam sob a guarda do Estado ou de entidades
privadas que recebam recursos públicos. A apropriação da informação, por sua vez, se refere ao
processo pelo qual o indivíduo incorpora uma informação, como coisa, e a organiza em suas
capacidades mentais, atribuindo-lhe interpretações individuais, que finalmente se transformará
uma unidade de conhecimento. (MIGLIONI, 2014, p. 32-43).
A apropriação da informação depende sobretudo das relações sociais, econômicas e
culturais do sujeito, que influenciam na forma como ele (re)significa a informação (RIBEIRO;
ALMEIDA JR, 2022, p. 1-17), bem como está estreitamente relacionada à inclusão digital, que
visa formar cidadãos capazes de tomar decisões e de compartilhá-las com outras pessoas, em uma
dinâmica de exercício da autoria, mas a lacuna cognitiva é um obstáculo à realização plena do
exercício de se apropriar da informação: aprender a se informar e conhecer o que é aprender a se
informar. Assim, a diferença conceitual entre acesso à informação e apropriação da informação é
que o primeiro se refere à disponibilidade e à transparência das informações, enquanto o segundo
se refere à capacidade e à criatividade dos indivíduos de utilizar as informações para produzir e
transmitir conhecimento.
Nesse sentido, a apropriação da informação é um processo no qual o sujeito “torna seu”
um objeto do mundo, ajustando-o, moldando-o a si, atuando afirmativamente nos processos de
negociação com os signos, com a cultura. Nesse processo, o objeto, material ou não, sofre um
deslocamento espaço-temporal promovido pelo sujeito, que pode alterar ou confirmar o sentido
dado pelo seu ambiente de origem, ou seja, pode ressignificar o mundo que lhe chega, a partir de
suas percepções, suas expectativas e seus interesses das e pelas atividades.
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A lacuna cognitiva no processo de apropriação social da informação é um conceito que se
refere à diferença entre o estado atual de conhecimento de um indivíduo ou grupo e o estado
desejado ou necessário para resolver um problema ou atingir um objetivo. (BATISTA, 2018, p.
210-34) Essa lacuna pode motivar a busca, o uso e a incorporação de informações relevantes para
reduzi-la ou eliminá-la. A apropriação social da informação, por sua vez, é o processo pelo qual
os indivíduos ou grupos se apropriam das informações disponíveis em seu contexto social,
atribuindo-lhes significados e usos de acordo com suas necessidades, interesses e valores.
(MARTÍNEZ-SILVEIRA; ODDONE, 2007). É um estímulo ou uma oportunidade, que visa
ampliar o conhecimento e a capacidade de ação dos sujeitos envolvidos.
Vale sublinhar que a qualidade da educação o depende apenas da oferta de meios,
instrumentos, equipamentos, livros ou suporte à mancheias. Carecemos de algo que estimule o
exercício da reflexão, a liberdade de pensar, imaginar e criar. Uma pedagogia cultural, científica e
tecnológica, em permanente diálogo com atores e produtores de saber, talvez pudesse ampliar
horizontes da cidadania: a enfrentar os preconceitos, preparar para novas formas de sociabilidade,
diversidade cultural e qualidade de vida total, incorporando-a igualmente no cotidiano de cada um.
2 A famigerada fábrica de desigualdades sociais
Com a tecnologia, inventamos modos de manipulação novos e muito sutis,
pelos quais a manipulação exercida sobre as coisas implica a subjugação dos
homens pelas técnicas de manipulação. (MORIN, 1999, p. 109)
Na contemporaneidade, são inegáveis as transformações operadas pelas ciências e
tecnologias, mesmo antes de ingressarmos de corpo e alma no processo de algoritmização da vida
cotidiana. Nota-se que esta presença crescente afeta as mais diversas esferas do conhecimento e
da vida e tem propiciado novas formas de cognição, de interação, de ação social, de ativismo
político, de geração e difusão do conhecimento.
A geração digital é a primeira em experimentar uma série de mudanças drásticas
no tratamento e o acesso à informação como a sua conexão síncrona e global, o
acesso descontínuo à informação, o aprendizado graças ao hipertexto e software
multifuncional, e a sintonização à distância sob múltiplos canais e meios de
comunicação. Isso criou a necessidade de um aprendizado mais interativo,
sequencial mas não linear, possível graças às ajudas para a compreensão e
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aprendizagem autônoma na forma de tutoriais, chats e fóruns de discussão, acesso
aos cabeçalhos, bibliografias e outros. (BERRÍO-ZAPATA, 2015, p. 93)
Este novo tempo, entendido como a “era do globalismo”, extrapola os limites territoriais e
ganha dimensões transnacionais e continentais. O mundo que se apresenta é um mundo sulcado,
percorrido por divisões contínuas, “estrias cada vez mais móveis e dinâmicas, ligadas a hierarquias
de poder”. (NEGRI, 2003, p. 13) Tal fenômeno da sociedade global é uma realidade problemática,
“atravessada por movimentos de integração e fragmentação”, na qual “simultaneamente à
interdependência e à acomodação, desenvolvem-se tensões e antagonismos”. (IANNI, 2004, p. 7)
Como consequência da globalização do mundo, emergem mais conflitos e tensões,
sobretudo quando a revolução tecnológica produz mudança de hábitos culturais. Este novo
fenômeno sociocultural funda-se sobre um sistema geral e ubíquo de informações que desafia a
compreensão e instaura novos dilemas: “no contexto da sociedade global, desenvolvem-se
estruturas do poder propriamente globais [...]. São estruturas globais de poder, às vezes
contraditórias em suas diretrizes ou práticas, mas sempre pairando além de soberanias e cidadanias
nacionais e regionais. Parecem desterritorializadas, que se deslocam ao acaso das suas dinâmicas
próprias, descoladas de bases nacionais [...] E reterritorializam-se em outros lugares, em cidades
globais, transcendendo nações e nacionalidades, fronteiras e geografias”. (IANNI, 2004, p. 18-19)
Neste tipo de sociedade prevalece a tirania do mercado e a lógica do consumo deliberado;
o controle dos desejos se volta primordialmente para o consumo virtual e potencial de novos
produtos, que satisfaçam plenamente os desejos dos consumidores na aldeia global do consumo.
Essa racionalidade dominante, entretanto, não pára de produzir desigualdades econômicas,
desagregação social e deterioração ambiental: “A mesma fábrica das diversidades fabrica
desigualdades. A dinâmica da sociedade global produz e reproduz diversidades e desigualdades,
simultaneamente às convergências e integrações.” (IANNI, 2004, p. 28) Nessa dinâmica, a internet
também reproduz relações desiguais de poder. O ciberespaço configura-se como lócus carregado
de contradições típicas da nova formação sociocultural, um desdobramento virtual do capitalismo
e de suas contradições:
Longe de estar emergindo como um reino de algum modo inocente, o ciberespaço
e suas experiências virtuais m sendo produzidos pelo capitalismo
contemporâneo e estão necessariamente impregnados das formas culturais e
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paradigmas que são próprios do capitalismo global. O ciberespaço, por isso
mesmo, está longe de inaugurar uma nova era emancipatória. Embora a internet
esteja revolucionando o modo com levamos nossas vidas, trata-se de uma
revolução que em nada modifica a identidade e a natureza do montante cada vez
mais exclusivo e minoritário daqueles que detêm as riquezas e continuam no
poder. (SANTAELLA, 2003, p. 75)
Não menos preocupante é o fator ligado ao tempo e à velocidade. O uso crescente de
diferentes tecnologias, aliado às inovações constantes dos meios-tecnocientíficos e
informacionais, produz e reproduz outro tipo perverso de exclusão, a sociodigital, caracterizada
pela marginalização em relação ao savoir-faire, inaptidão para a busca significativa de informação:
tal lacuna cognitiva inibe a apropriação do saber, impossibilita aceder ao conhecimento, de fato.
Assim, inevitavelmente, tal população estaria sumariamente excluída do uso de
tecnologias, conforme havia advertido no final século passado o secretário-geral da União
Internacional das Telecomunicações (UIT): “se a comunidade mundial não intervém, existe o
perigo real de que a sociedade mundial da informação só seja mundial por sua dominação; de que
o mundo se divida em duas categorias: os “ricos em informação” e os “pobres em informação” [...]
um abismo insupevel”. (PEKKA TARJORE, 1996). Com efeito, passadas mais de duas décadas,
instalou-se uma epidemia (sem trocadilhos) de vícios entre os usuários, sem mencionar a gravidade
da avalanche de “Fake News”, responsável pela perda da confiança em meio ao dilúvio de
(des)informação:
Pesquisa recente sobre vícios ligados a smartphones mostra, confirmando a
predição de Skinner em sua experiência com os pombos, que o usuário médio de
smartphone nos Estados Unidos checa seu dispositivo 63 vezes por dia e essa
quantidade vem aumentando ano a ano. Oitenta e cinco por cento (85%) das
pessoas checam seus telefones enquanto estão conversando com amigos e
familiares. Sessenta e nove por cento (69%) dos usuários checam seus celulares
em até cinco minutos depois que acordam (antes mesmo de espreguiçar e escovar
os dentes!), e 87% fazem-no logo antes de dormir. Cinquenta e oito por cento
(58%) dos usuários tentaram mudar seus hábitos, mas apenas 41% dessas
tentativas foram bem-sucedidas. (ZANATTA; ABRAMOVAY, 2019, p. 426)
As conclusões recentemente apresentadas pela OCDE (Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico), com base no Relatório “Leitores do Século 21 - Desenvolvendo
Habilidades de Alfabetização em um Mundo Digital” demonstram que a familiaridade dos
adolescentes atuais com a tecnologia, que faz deles “nativos digitais”, não os torna
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automaticamente habilitados para compreender, distinguir e usar de modo eficiente o
conhecimento disponível na internet.
(3)
Pelo contrário, os dados sugerem que eles são, em grande
parte, incapazes de compreender nuances ou ambiguidades em textos online, localizar materiais
confiáveis em buscas de internet ou em conteúdo de e-mails e redes sociais, avaliar a credibilidade
de fontes de informação ou mesmo distinguir fatos de opiniões:
Alfabetização no século 21 significa parar e olhar para os lados antes de seguir
adiante online. Significa checar os fatos antes de basear suas opiniões nele.
Significa fazer perguntas sobre as fontes de informação: quem escreveu isto?
Quem fez este vídeo? É de uma fonte confiável? Ele faz sentido? Quais são os
meus vieses? Tudo isso cabe ao currículo escolar e ao treinamento de professores.
E tudo isso tem implicações que vão muito além de detectar notícias falsas e
desinformação: assegurar o ato de tomada de decisões bem informadas e
assegurar a base de democracias funcionais. (OCDE, 2021)
3 Tecnocientismo paralisante & excesso de consumo
A difusão dos avanços tecnológicos, por seu turno, como tem sido realizado, é um discurso
unilateral que visa ao treinamento de maior número de pessoas no uso de novos produtos e, dessa
forma, atinge uma seleta camada da população que pode aspirar a usufruir as novas facilidades.
(LINS DE BARROS, 2002, p. 76-79) Por outro lado, o conhecimento tecnocientífico ou
cientismo, segundo Postman gerado exclusivamente por especialistas, ainda permanece
apartado da sociedade, pois deriva de um ambiente excludente e impregnado por valores morais e
interesses econômicos que promovem a permanência de relações sociais assimétricas; e visões de
mundo que as reproduzem e naturalizam.
Neste cenário tradicional em que a ciência sobrevive como única fonte de progresso e
eficácia, não espaços para inovações. A ausência de visão estratégica cede espaço para a coação
de uma visão linear e paralisante que asfixia a ação voluntária dos atores (CALLON, 2004, p. 65-
69). É inegável que um esgotamento desse modelo tradicional de ciência. Sua lógica linear e
determinista costuma desdenhar os atores sociais, em detrimento do emprego de técnicas de
quantificação, que alguns especialistas do cientismo defendem com pretensão de objetivismo:
Cientismo é a desesperada esperança, desejo e, em última análise, a crença
ilusória de que um conjunto padronizado de procedimentos chamado ‘ciência’
pode proporcionar-nos uma fonte incontestável de autoridade moral, uma base
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sobre-humana para responder a perguntas como: ‘O que é a vida, e quando e por
quê?’ ‘Por que há a morte e o sofrimento?’ ‘O que é certo e errado?’ ‘O que são
fins bons e maus?’ ‘Como devemos pensar, sentir e nos comportar?’ [...] Pedir à
ciência, ou esperar da ciência, ou aceitar passivamente da ciência as respostas
para essas questões é cientismo. (POSTMAN, 1994, p. 168)
De um ponto de vista político, o papel dos cientistas e pesquisadores por sua produção
e por sua escrita pública sobre ciência e tecnologia o aproxima da tarefa do intelectual, a qual
consiste no exercício do “poder ideológico”, isto é, aquele poder:
[...] que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do
poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para
viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção
e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos
práticos, mediante o uso da palavra [...]. (BOBBIO, 1997, p. 11)
Daí se faz necessário o diálogo, inovação social estratégica negociada, pois ciência,
tecnologia e sociedade interpenetram-se, e mantêm relações complexas e heterogêneas. Isso
possibilitaria questionar os determinismos que, muitas vezes, subjazem nos estudos dos
especialistas. A falta de acesso ao conhecimento e aos benefícios que ele traz, aliada ao não-
reconhecimento do direito de todos de serem produtores de conhecimento, tende a ser um dos
principais fatores de exclusão.
Decorre disso uma responsabilidade compartilhada entre os diferentes atores envolvidos
no processo de desenvolvimento de C&T o Estado, as empresas, as universidades, a sociedade
civil , no sentido de avaliar os seus impactos e riscos e escolher as melhores opções. Decorre
também a necessidade de que os chamados “cidadãos comuns”, e não apenas os técnicos,
participem dos processos de tomada de decisão sobre C&T, uma vez que as consequências lhes
dizem respeito diretamente.
Tal percepção encontra ressonância, por exemplo, em autores como Bruno Latour que,
valendo-se de metáfora, afirma: “a noção de uma ciência isolada de resto da sociedade se tornará
tão absurda quanto a ideia de um sistema arterial desconectado do sistema venoso”. (LATOUR,
2001, p. 97) Um conceito não se torna científico por estar distanciado do restante daquilo que ele
envolve, mas porque se liga cada vez mais estreitamente a um repertório bem maior de recursos,
tecendo e atravessando a trama social. De forma análoga, seria impossível conceber qualquer
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sociedade sem atenção ao trabalho de mediação posto em cena pelos objetos técnicos, ideia
defendida por Michel Callon, ao sustentar que:
Nossas sociedades devem sua robustez e sua durabilidade tanto às coisas e aos
objetos, tanto às técnicas e às máquinas, quanto às normas e aos valores. O que
nos sustenta o nossos automóveis, nossas redes de telefone. E se nos sustentam
é porque nós estamos apegados a eles. E se estamos apegados a eles é porque, de
uma maneira ou de outra, fomos implicados em sua fabricação. (CALLON, 2004,
p. 72)
É nesse sentido que pensar a ciência e a tecnologia não requer o total abandono do mundo,
para ingressar em um universo especializado, numa espécie de salto mortale para fora do discurso
e da sociedade”. (LATOUR, 2001, p. 115) Tratar-se-ia, pois, de perscrutar o enredamento que
articula ciência tecnologia sociedade, desde o modo como esta articulação permeia a
psicoesfera da vida cotidiana, passando pelas ressonâncias em termos das novas sociabilidades e
competências aos quais favorece, invariavelmente, e ainda problematizando a dissolução de
fronteiras que este enredamento produz em nós mesmos. (PEDRO, 2008, p. 1-2)
Ademais, uma “sociedade de saberes” não se faz sem questionamentos sobre a lógica
estrutural que perpassa os modos de implantação (manipulação) dos dispositivos do conhecimento.
Segundo Mattelart, isto implica numa interrogação plural sobre as novas missões dos centros de
pesquisas e de ensino superior:
Barrar a expansão dos monopólios cognitivos e as lógicas de rentabilidade
financeira, a curto prazo, que limita a capacidade coletiva para desenvolver as
inovações de interesse geral, é também questionar as relações de saber. Em um
momento em que a sociedade tende a se converter em “empresa” e em que a
relação ciência-sociedade tende a variar de acordo com o prisma empresarial,
surge a necessidade de novas alianças em torno da pesquisa com todos os
produtores de conhecimentos abertos a fim de produzir conhecimentos sobre
nosso mundo, bens públicos e inovações em resposta às demandas não comerciais
da sociedade. (MATTELART, 2005, p. 21)
Para responder às novas demandas da sociedade, a inovação estratégica da pesquisa
científica considerada como artesanato deveria fundamentar-se no savoir-faire, nos saberes
práticos e experimentais, capazes de estimular o gosto pela ação voluntária e o engajamento
coletivo no processo de produção e uso do conhecimento. Conforme ressalta Michel Callon, a
inovação estratégica “não destrói a tradição, pelo contrário, ela se nutre dela e se enriquece com
ela”: existem margens de manobra na competição econômica, na produção dos conhecimentos
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científicos e na produção de inovações que podem preservar e até enriquecer a identidade das
tradições. (CALLON, 2004, p. 64), especialmente as culturas afroameríndias que atualmente
carecem, mais do que nunca, de respeito, proteção e a promoção da diversidade de suas expressões
culturais.
(4)
No entanto, nos últimos anos houve cortes de recursos para a pesquisa científica, o que
torna tal perspectiva ainda mais utópica em médio prazo. Os números mais recentes representam
forte queda na pasta do ministério quando comparados a 2014, período em que esses recursos
discricionários do MCTI correspondiam a R$ 8,7 bilhões nos anos seguintes o país reduziu cada
vez mais o investimento em ciência, tecnologia e inovação.
(5)
4 Tecnopólio e utopia neoiluminista
O tecnopólio consiste na deificação da tecnologia que, invariavelmente, busca tornar
invisíveis, e irrelevantes, a maior parte das ideias que temos a respeito de religião, arte, família,
política, história, verdade, privacidade, Inteligência, redefinindo-as segundo as suas novas
exigências. É uma tecnocracia totalitária, em que a submissão de todas as formas de vida
cultural à soberania da técnica e da tecnologia. (POSTMAN, 1994, p. 61)
Por detrás dos aparatos tecnológicos que se impõem à vida coletiva, processos de
ocultamento, diferenciações sociais, hierarquias, relações e seleções arbitrárias. (ALMEIDA,
2009, p. 11) Sem nos darmos conta, as novas tecnologias infocomunicacionais alteram as
estruturas de nossos interesses; florestas de símbolos e processos relacionais reconfiguram nossa
visão de mundo. Neste movimento de rendição da cultura à supremacia da tecnologia, são drenados
simultaneamente nossos valores e nossos sistemas simbólicos tradicionais:
A história do tecnopólio entra nesse vazio, com sua ênfase no progresso sem
limites, direitos sem responsabilidades e tecnologia sem custo. A história do
tecnopólio não tem centro moral. Ela põe em seu lugar a eficiência, o interesse e
o avanço econômico. Promete o paraíso na Terra por meio das conveniências do
progresso tecnológico. Põe de lado todas as narrativas e símbolos tradicionais,
que sugerem estabilidade e ordem, e em vez disso fala de uma vida de habilidades,
destreza técnica e êxtase do consumo. (POSTMAN, 1994, p. 185)
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O positivismo característico dessa visão salvítica do “paraíso na Terra” costuma ocultar
interesses para subordinar os espíritos desregrados, movimento este que propaga certa ideologia
da “universalização do ciberespaço”, de “tornar acessível esse conhecimento superespecializado”
em uma “sociedade democrática do conhecimento”. A mágica consistiria em criar um “canal que
possibilita ao público leigo a integração do conhecimento científico à sua cultura”. (MORA, 2003,
p. 7)
Mas como realizar tal projeto, sem que haja aprofundamento sobre o papel da ação e da
mediação cultural? Como superar a lacuna cognitiva da maioria da população? Não basta dispor
de recursos materiais que permitam participar do modelo. demanda por aptidão cognitiva às
novas tecnologias, o que é mais preocupante. A falta de aptidão cognitiva é obstáculo para que as
pessoas possam apropriar-se de novos conhecimentos. Desse modo, se impõe deliberadamente
outro processo civilizatório, chamado de dromocracia cibercultural:
Para além das exigências convencionais de qualificação cognitiva e especializada
para a vivência no contexto de qualquer espaço urbano, faz sobrepender, nos
ombros de todos, via pressão autóctone de fatos e discursos de época, a exigência
de acesso individualizado à condição de domínio privado pleno das senhas de
acesso (incluso o acompanhamento da roda-viva da mais-potência); e que, ao
mesmo tempo, subtrai, a olhos vistos, a possibilidade de usufruto desse ditame ao
não condicionar, socialmente, pelo imaginário político vigente e, sobretudo, pelos
seus instrumentos executivos e normativos (as instituições herdadas da
modernidade política), a distribuição equitativa dos acessos previstos esse
processo civilizatório não vigora senão como fascismo cibertecnológico
hipostasiado e obliterado nas relações sociais. (TRIVINHO, 2006, p. 97, grifo do
autor)
A brecha digital é um conceito forçado pela “doxa” técnica globalizada do pós-Fordismo
que em termos narrativos atua como antagonista do crescimento econômico, do bem estar social e
da democracia. Não obstante, se aplicar a visão desconstrutiva é possível perceber uma colisão
plena de confusão, extravio e alienação entre as sociedades da ‘periferia’ do mundo globalizado e
as metrópoles, entre as sociedades informacionalmente densas (quentes) e leves (frias); entre uma
ordem “grafocêntrica” e outra verbal (SERRES, 2003), entre o industrial e pré-industrial, entre o
Apolíneo e o Dionisíaco. (BERRÍO-ZAPATA, 2015, p. 89)
É neste sentido que os desafios aumentam para a sociedade civil. Não basta o simples
acesso à informação, ao computador e aos livros. O propósito maiúsculo deveria se pautar em
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desenvolver o potencial criativo e intelectual dos indivíduos: educar, entreter, dar sentido às ações
de homens e mulheres no cotidiano, tornando públicas as proposições políticas e decisões que,
tomadas na esfera do Estado, costumam ter reflexos diretos sobre a qualidade de vida das
populações. (FERREIRA, 2003, p. 37)
No Brasil é comum a adoção, quase sempre sem discussão, das práticas de política cultural
vicariante, que além de serem inertes e estáticas, existem principalmente para “suprir a
insuficiência funcional”. (COELHO, 2004, p. 35) Tais práticas operam como próteses aplicadas
em doses de mandato, regidas de modo demagógico, como uma espécie de reforço ao condolente
e carcomido sistema educacional; longe de “educar com cultura, educar para a cultura”, funcionam
como paliativo para vidas desperdiçadas e perpetua, grosso modo, a transmissão de conteúdos
pouco significativos, a ocupar o “tempo livre” dos desocupados.
Equipamentos a mancheias não bastam! Arcas de livros distribuídas por todo o território
não resolvem o problema do analfabetismo funcional e digital. São políticas vicárias e resultam
inócuas que desdenham a importância das bibliotecas, ora desconhecendo ora anulando
intencionalmente, tratando-as como apêndice de uma educação forjada na e pela ignorância.
Biblioteca é para ser vivida enquanto espaço de aprendizagem. Se não for vivida, embora dadivosa
na oferta de saber coletivo, perde a sua função.
Em se tratando de políticas públicas de interesse social, esta parece ser a visão pouco
estratégica, mas predominante em programas populistas de ocasião, cujo arcabouço teórico-prático
revela-se incapaz de lidar com a lacuna cognitiva que separa os incluído(a)s dos excluído(a)s.
Assim, conforme exclusivamente previsto no conceito de “ciberalfabetização em massa”, tais
programas que visam à inclusão” são limitados seja por via da facilitação do crédito pessoal
para a aquisição de “equipamentos populares”, seja via ampliação do acesso a um punhado de
livros ordenados num caixote: uma utopia neoiluminista:
Voltados para o condicionamento social extensivo da “aquisição” da
dromoaptidão interativa encontram-se fadados ao insucesso relativo recorrente
em médio prazo. Em batalha sob condições sistêmicas de desequilíbrio
dromológico a priori, as políticas e projetos implementados hoje, plenamente
válidos e necessários de partida, caem comprometidos na sequência, na medida
em que os seus resultados ficam prejudicados a cada par de rotações na escala da
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mais-potência, para renovação dos parques tecnológicos nacionais e dinamização
da economia global. (TRIVINHO, 2006, p. 97)
Mark Warschauer mostra que o mero fornecimento de computadores não é suficiente para
reduzir o gap da exclusão digital. É preciso que as pessoas sejam capazes não somente de acessar
as TICs, mas de, sabendo utilizá-las, criar novos conhecimentos a partir de sua experiência prévia.
O autor focaliza os desafios do desenvolvimento social e, por meio de exemplos tomados em países
ricos e pobres, ilustra possíveis maneiras de abordá-los mediante a integração eficaz das TICs em
comunidades, instituições e sociedades: “O que está em jogo não é o acesso à TIC no sentido
restrito de haver um computador no local, mas sim o acesso no sentido mais amplo da capacidade
de utilizar a TIC para finalidades pessoal ou socialmente significativas”. (WARSCHAUER, 2006,
p. 57)
Caberia, por fim, avaliar em que medida tais programas contribuem para atenuar o impacto
da “brecha sociodigital”, ou seja, de que modo são ordenados para a efetiva participação social e
o aprendizado ao longo da vida? Tais modelos de intervenção linear desenvolvem, de fato, a
capacidade pessoal dos usuários de “fazer uso” dos equipamentos e livros, envolvendo-os em
práticas sociais significativas? Entendemos que importa mais desmistificar a falsa autonomia da
técnica e reconhecer, sobretudo, a trama de relações (culturais, sociais, econômicas e políticas)
que envolve a produção, difusão e uso social do conhecimento.
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5 Conclusões
Quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira
impressão foi de uma felicidade extravagante. Todos os homens se sentiram
senhores de um tesouro intacto e secreto [...] À desmedida esperança,
sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva.
(BORGES, 2007, p.73-75)
Cidadãos que aprendem a fazer uso consciente da informação, e com autonomia, estão
definitivamente mais propensos a tomar decisões mais inteligentes e socialmente responsáveis que
aqueles privados de informação; a estes o veto cognitivo impede-os de integrar-se à cultura,
assimilar, processar e produzir novos saberes na algaravia (des)informacional da aldeia global.
De modo geral, o maior acesso a tecnologia entre os jovens nos últimos anos não se traduziu
em mais educação midiática: os índices de alfabetização digital dos jovens evoluíram pouco nas
avaliações do Pisa realizadas entre 2000 e 2018, apesar das enormes mudanças sociais e digitais
vividas pela comunidade global ao longe desse intervalo de tempo. Não basta o contato constante
com a tecnologia. Sem os preceitos éticos da aprendizagem tradicional e o engajamento efetivo
de professores bem remunerados não como oferecer aos estudantes o que realmente faz a
diferença: a capacidade cognitiva de entender diferentes perspectivas em um texto e serem capazes
de identificar nuances e opiniões.
A lacuna cognitiva da apropriação social da informação no Brasil é um obstáculo
considerável para que as pessoas possam apropriar-se de novos conhecimentos. Dizer que no
Brasil um ficit cognitivo no processo de apropriação social da informação significa que existe
uma lacuna entre o acesso à informação e a capacidade de transformá-la em conhecimento útil
para o desenvolvimento social, econômico e cultural do país. Tal lacuna pode ser causada por
diversos fatores, tais como: baixa qualidade da educação básica, que não forma cidadãos críticos,
criativos e capazes de lidar com a diversidade e a complexidade das informações disponíveis na
sociedade da informação (MIGLIONI, Op. cit.); ausência de políticas públicas efetivas de inclusão
digital, que garantam o acesso equitativo e democrático às tecnologias de informação e
comunicação, bem como o desenvolvimento de saberes informacionais e digitais dos indivíduos;
a fábrica de desigualdade social e regional, que gera exclusão e marginalização de grupos sociais
vulneráveis, que não têm acesso aos recursos informacionais necessários para a sua emancipação
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e participação social, incluindo a influência de interesses econômicos e políticos, que podem
manipular, censurar ou distorcer as informações, impedindo o exercício do direito à informação e
à liberdade de expressão. (SILVA & SILVA, 2017, p. 87-97)
Evidentemente, a combinação desses fatores pode comprometer o processo de apropriação
social da informação, que envolve não apenas a recepção, mas também a interpretação, a produção
e a disseminação de informações, de forma a gerar conhecimento coletivo e ação social
transformadora. Portanto, é necessário superar o déficit cognitivo no processo de apropriação
social da informação, por meio de estratégias que promovam a educação, a inclusão, a diversidade,
a democracia e a cidadania informacional no Brasil.
Descobrimos sem surpresas que a “felicidade extravagante” não passa de uma utopia
delirante. Que a esperança mitigada e a “depressão excessiva” são os novos obstáculos à incansável
busca do homem pelo tesouro do saber. A perplexidade causada pela epígrafe de Borges parece
plenamente compatível com os paradoxos da sociedade moderna, paralisada pelo excesso de
informação, sem sentido. Se considerarmos que a biblioteca é metáfora de uma entidade
globalizada como aparenta ser, “no seu bojo transporta a miséria, a marginalização e a exclusão
da grande maioria da população mundial” (SANTOS, 2002, p. 53), outros processos de
ocultamento que se traduzem pelo esfumaçamento dos parâmetros de tempo e espaço: a negação
aos direitos de existência, de permanência e preservação da memória, invasão e grilagem de
territórios caiçaras e quilombolas, ataque ideológico às particularidades socioculturais e
simbólicas dos povos originários, além do inadmissível assassinato de lideranças populares.
Para arrematar, o que julgávamos ser um sonho de “felicidade”, um “éden democrático”,
não passaria de uma deselegante promessa neoiluminista, a despeito da crescente fábrica de
desigualdade social e o esforço alucinado e mais recente, no âmbito da esfera global, no sentido
de destruir o projeto de emancipação cidadã, atacar o estado democrático e instaurar a
necropolítica, sistemática e deliberadamente: um retrocesso infeliz à nossa permanente condição
colonial.
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Notas
(1) Em 2010, dados do IBGE revelavam resultados preocupantes relativos ao acesso à cultura: apenas 13% dos
brasileiros frequentavam o cinema ao menos uma vez por ano; 92% dos brasileiros nunca haviam visitado um
museu; 93,4% jamais frequentaram alguma exposição de arte; mais de 90% dos municípios não possuem salas de
cinema, teatro ou museu; 73% dos livros vendidos no Brasil estão concentrados nas mãos de 16% da população e
apenas 20% dos brasileiros têm acesso a alguma dimensão da cultura. De pra nada mudou. A propósito,
piorou bastante com o abrupto corte de recursos à Pesquisa e Educação Superior. Encontra-se em marcha um
violento processo de desmantelamento da Cultura, Ciência e Educação no país, com as medidas arbitrárias tomadas
pelo chefe da nação, desde a sua posse até os dias atuais.
(2) Dos 4.279 projetos de pesquisa inscritos na chamada de 2020 para o Brasil, 3.080 foram aprovados com mérito
por pareceristas. Destes, somente 396 foram selecionados para receber bolsas. Para o exterior foram aprovadas 73
propostas com bolsas, entre as pouco mais de 2 mil inscritas não foram divulgadas quantas tiveram boas
avaliações de pareceristas. Ao todo, segundo o CNPq, foram investidos R$ 35 milhões no edital, que concedeu
469 bolsas. Enquanto em anos anteriores havia a tradição de diferentes cronogramas para distribuição de bolsas,
em 2020 houve somente um. Na chamada de 2019, por exemplo, foram dois cronogramas: o primeiro com 324
bolsas de doutorado e pós-doutorado, totalizando R$ 24,8 milhões, e o segundo com 470 bolsas, com mais R$ 35
milhões. BBC Brasil, 30-05-2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57289688.
(3) OCDE, Relatório, 2021. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/education/21st-century-
readers_a83d84cb-en;jsessionid=73wTanft-x7_V3Ih2msID2hq.ip-10-240-5-96.
(4) Saberes (modos de fazer, cotidiano e uso sustentável de recursos naturais); celebrações (manifestações culturais,
rituais, festas, danças, vivência coletiva do trabalho, entretenimento e outras práticas da vida social); formas de
expressão (manifestações literárias e artísticas, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas); lugares (espaços de práticas
culturais coletivas, roçado, mercados, feiras, praças) e conflitos (legislação ambiental, turismo, especulação
imobiliária, favelização, garimpo ilegal e desmatamento de reservas indígenas).
(5) O orçamento do CNPq para este ano de 2021 é de R$ 1,2 bilhão 55% dependentes de créditos suplementares.
Para bolsas de pesquisas serão destinados R$ 944 milhões, valor 12% menor que o do ano passado. Conforme
levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o recurso total destinado ao órgão em 2021 é
cerca de 8% menor que o do ano passado, que já era inferior aos períodos anteriores.
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Received: 05/10/2023 Accepted: 23/11/2023