PERROTTI, Edmir. Biblioeducação, Rompendo Paradigmas: transversalidade e verticalidade na Era da Informação.
Brazilian Journal of Information Science: research trends. vol. 17, Dossiê: Transversalidade e Verticalidade
na Ciência da Informação, publicação contínua, 2023, e023055. DOI: 10.36311/1981-1640.2023.v17.e023055
BIBLIOEDUCAÇÃO, ROMPENDO PARADIGMAS:
transversalidade e verticalidade na Era da Informação
Biblioeducation, breaking paradigms: transversality and verticality in the information age
Edmir Perrotti (1)
(1) Escola de Comunicação e Artes (ECA); Universidade de São Paulo (USP),
Resumo
Trabalho apresentado em evento comemorativo dos 25 anos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Informação, da UNESP/Marília. Trata das relações entre transversalidade e verticalidade no âmbito da
Biblioteconomia, considerada em seus vínculos com a Educação. Sob perspectivas político culturais, são
contextualizadas questões históricas que implicam na redefinição do estatuto social e científico da
Biblioteconomia, seus processos e articulações e, especialmente, a problemática da memória cultural,
categoria central que a legitima e lhe confere consistência enquanto campo autônomo de conhecimento e
de práticas socioeducativas e culturais. O método utilizado é a apresentação das origens e do percurso
desenvolvido, desde finais dos anos 1980, por equipes inter e transdisciplinares, na ECA/USP, sob
coordenação de Perrotti, e que conduziram, em 2015, à proposta da Biblioeducação. Tendo como
pressuposto a existência de um hiato histórico e recorrente entre Biblioteca e Educação, no Brasil,
sucessivas pesquisas colaborativas, envolvendo parcerias da Universidade com múltiplos territórios e
instituições socioeducativas e culturais, foram realizadas, oferecendo resultados que, articulados, levaram
à percepção da necessidade de desenvolvimento de linha de estudos englobante e permanente, denominada
de Biblioeducação. O neologismo aponta para a importância da superação da atomização e do isolamento
dos saberes, como condição de sua verticalização, tomando o diálogo entre transversalidade e verticalidade
como elemento de construção de conhecimentos necessários ao enfrentamento de graves fraturas culturais
que marcam a vida brasileira. Fenômeno recorrente, inscrito e articulado a paradigmas vivos na cultura, a
superação do hiato Biblioteca e Educação significa, assim, processo permanente de lutas que, além de
políticas, sociais e culturais, são científico-acadêmicas, exigindo práticas e construções epistemológicas
dinâmicas e orgânicas, assentadas em relações entre transversalidade e verticalidade que não são somente
pontuais ou residuais, mas estruturais, estruturantes e criadoras de possibilidades de avanços científicos e
sociais significativos, como a Biblioeducação.
Palavras-chave: Biblioteca e Educação; Biblioeducação; Biblioteconomia; Memória Cultural
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hoje poucos investigadores que se possam proclamar matemáticos ou físicos
ou biólogos sem restrição. Um homem pode ser um topologista ou um
acusticionista ou um coleopterista. Estará então totalmente mergulhado no Jargão
do seu campo, conhecerá toda a literatura e todas as ramificações desse campo,
mas, frequentemente, olhará para o campo vizinho como qualquer coisa que
pertence ao seu colega três portas abaixo no corredor e considerará mesmo que
qualquer manifestação de interesse da sua parte corresponderia a uma
indesculpável quebra de privacidade.
(Wiener, 1948, p. 2 apud Pombo, 2005)
Lugar de Fala
Dou sequência a este diálogo, referindo-me a meu lugar de fala. Muitas das pessoas que
estão aqui certamente não me conhecem e, além disso, tal referência é dado instrínseco às questões
que pretendo colocar sobre o tema deste evento comemorativo, ou seja, a transversalidade e a
verticalidade na Ciência da Informação.
Sou docente e pesquisador de Biblioteconomia. Desde 1983, ano em que ingressei na
ECA/USP, no então Departamento de Biblioteconomia e Documentação atual Departamento de
Informação e Cultura-, onde permaneço até hoje na condição de colaborador sênior, venho
desenvolvendo trabalhos de formação e pesquisa em torno da problemática Biblioteca e Educação,
tomada esta última em sua dimensão ampla de formação cultural, categoria que tangencia, mas
ultrapassa a noção de escolarização (Bolle, 1997).
Vindo de uma Licenciatura em Letras (português/francês), fui impelido à Biblioteconomia
não só por circunstâncias. A questão da produção e circulação dos saberes na sociedade brasileira
me interessou desde muito jovem, quando percebera, por experiências pessoais, os limites e a
pobreza que a concentração do capital cultural ocasionava não a mim, como também ao meio
de onde provinha e à própria cultura.
Desse modo, como a descoberta casual da literatura foi uma chave importante para a
conscientização do significado das ausências promovidas pelo modelo cultural concentratório
vigente no país, acabei optando por uma formação em Letras, acreditando que a docência na área
permitisse compartilhar e fazer circular escritos livremente.
As demandas para o ingresso nas Letras faziam exigências, todavia, que os saberes cnico-
profissionais, oferecidos pelo curso médio de Contabilidade que eu havia concluído, não
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preenchiam. Com muitos estudos complementares e sobretudo paciência! consegui, contudo,
me preparar e ingressar na FFLCH da USP, no conturbado ano de 1968.
Os interesses que me levaram às Letras envolviam seguramente questões de textualidade,
afins com os estudos literários. Porém, extrapolavam-nas em muito, incluindo modos de produção,
circulação e de recepção sociais dos textos. Escritos de diferentes estilos e naturezas, tomados
como imanência pura, não se coadunavam com minhas perspectivas que viam as Letras não
isoladamente, reduzidas a fenômenos linguísticos e disciplinares, mas situadas na problemática
abrangente da Cultura Escrita, vale dizer, tomadas em suas dimensões verticais e transversais.
Ocorreu, porém, que, já no segundo ano da Faculdade, em 1969, comecei a lecionar, como
professor de ensino fundamental II, da rede pública estadual de São Paulo. Vi aí oportunidade para
alargar minha experiência disciplinar de estudante de Letras, e realizar meu desejo em compartilhar
escritos.
Fiquei por 5 anos nesse posto, período em que, dentro dos limites de estudante em
formação, realizei tentativas de superação de modelos ortodoxos de ensino da língua. Todavia,
avaliações dos processos feitas por mim, levaram-se ao entendimento de que meus interesses de
livre compartilhamento de leituras, como possibilidade de formação e participação cidadã,
colidiam com as formalidades impostas às salas de aula escolares por pautas disciplinares e
programáticas extremamente fechadas, além de alheias aos interesses dos alunos.
Não bastasse isso, a escola onde atuava não ajudava muito, apesar da qualidade e dos
esforços de sua direção e coordenação. As instalações eram improvisadas, com galpões
construídos a toque de caixa, replicando precariedades e omissões históricas dos poderes públicos
sobretudo nas regiões distantes das zonas centrais das cidades. Por outro lado, juntando-se a isso,
havia o impacto do AI-5 sobre a vida brasileira em geral. O pouco que sobrara de nossa
institucionalidade democrática, após o golpe de 1964, mergulhou de vez, no final de 1968, no mais
atroz e violento momento da ditadura que, sob tal clima, impôs ao país, em 1971, uma reforma
educacional que ficou conhecida como "reforma Passarinho".
A reforma do Sr. Passarinho, como era conhecido o ministro da Educação de então, dizia
que a escola devia "abandonar o ensino verbalístico e academizante para partir, vigorosamente,
para um sistema educativo de 1º e 2º graus voltado às necessidades do desenvolvimento" (Beltrão,
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2017). Do ponto de vista da educação pública, isso não significava dizer que o Estado militarizado
assumia uma visão crítica da escolarização do passado e propusesse em seu lugar algo que a
superasse. Não. Tratava-se, isso sim, de substituir o que não era bom por uma restrita
escolarização técnico profissionalizante cujos limites eu conhecia por experiência. Dessa forma,
clara e oficialmente a Escola se instrumentalizava, suas concepções, dinâmicas e procedimentos
deveriam servir aos estreitos objetivos de implantação de um modelo social de consumo nos
trópicos, ajustado às novas formas de colonização do século XX, pós II Guerra Mundial.
Em nome desse projeto acanhado e autoritário de modernização a que o país devia se
submeter sem oposição, prendia-se, torturava-se, censurava-se a imprensa, as artes, vigiava-se as
universidades, as escolas, as fábricas e os movimentos sociais, buscava-se por todos os meios
barrar o livre desabrochar das sensibilidades e do pensamento. Em decorrência, as penas magistrais
e emancipadoras que tinha tido a imensa sorte de descobrir por conta própria e, depois, com a
ajuda de poucos, mas fundamentais interlocutores na pré-adolescência e posteriormente, não
condiziam com o cenário ameaçador que se desenrolava então e que vinha traduzido em um slogan
repetido à exaustão: "Brasil, ame-o ou deixe-o!".
Tendo em vista minha avaliação da experiência escolar que vinha sendo oferecida
especialmente nos rincões periféricos da cidade e de que participara durante 5 anos; considerando
o clima educacional gerado pela 5692; o controle político institucional das várias instâncias da
vida nacional, resolvi atentar para a palavra de ordem cantada Brasil afora, com o cuidado, todavia,
de tomar o slogan a contrapelo.
Deixei, assim, o país, não, todavia, por falta de amor. Ao contrário, partir foi modo
encontrado para continuar a amá-lo e para preservar o que me parecia, pessoal e socialmente, valor
inquestionável: a importância do livre compartilhamento de ideias, de escritos, de leituras, de
aprendizagens, vindas dos mais diferentes territórios, letrados ou não. Na bagagem, levei um
compromisso que não poderia ficar para trás: a tentativa de entendimento das razões pelas quais a
sociedade brasileira continuava incapaz de romper com grilhões produzidos pelo desencontro de
Porto Seguro, no século XVI, e que, desde então, se refaziam ciclicamente, sob novas roupagens,
obrigando-nos, tal Sísifos contemporâneos, a um eterno retorno.
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Compreender o que acontecia era fundamental, condição para tentar caminhos alternativos
que pudessem levar à participação e à repartição social da cultura, valores que estavam sendo
levados de roldão pelo regime autoritário.
Assim, se o projeto cultural e de nação democrática sucumbia mais uma vez naquele
momento sob a força das armas, era preciso dar um tempo, recuar e tentar encontrar possibilidades
para a imaginação, o pensamento, a livre comunicação, categorias diretamente implicadas nas
diferentes esferas da produção e da circulação dos saberes. Se à época, falava-se em "Brasil que
vai pra frente", em "milagre", o que ocorria de fato era uma tentativa de modernização autoritária
e reduzida aos exíguos limites tecnocráticos, uma "modernização sem modernidade" (Canclini,
1997), que, no lugar de expandir, tentava calar criadores dos mais variados campos e calibres,
que atos genuínos de criação opõem-se intrinsecamente a ditaduras de variadas ordens. Nesses
termos, o golpe e suas repercussões apenas atualizavam formas e motivos da Casa Grande e
Senzala. Era preciso achar saídas, não apenas as oferecidas pelos aeroportos.
O interregno
O interregno de trabalho e estudo em terras distantes trouxe elementos importantes às
questões que me mobilizavam. Criou, por exemplo, possibilidades de conhecer a sociologia da
leitura do "grupo de Bordeaux", comandado por Robert Escarpit, além de permitir a participação
em suas aulas pioneiras sobre "Teoria da Informação", de bases humanistas e inseparável da ordem
comunicacional e cultural. A partir dessas aulas foi possível, também, descobrir Hoggard (1973),
interlocutor privilegiado de Escarpit e fundador de inovadores estudos culturais que, de algum
modo, dialogavam com ideias expostas na "pedagogia do oprimido", de Freire (1970), e que trazia
a palavramundo para o centro dos debates sobre relações linguagem e sociedade. Foi possível,
assim, ir tomando consciência de que aprender a ler e escrever, escolarizar-se, participar da cultura
letrada era, desde 1500, permanente risco identitário, de desenraizamento, de entrega aos preceitos
das várias formas de colonização, assumidas pelo país (Perrotti, 2021).
Essas aprendizagens propiciadas pelo auto-exílio, seriam de grande valia ao voltar ao Brasil
e me levaram a ver nas Bibliotecas alternativas institucionais viáveis a propósitos de formação
cultural, mediante participação em processos de produção e socialização dos saberes por ventura
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desenvolvidos. Dadas suas configurações, bibliotecas públicas, escolares, comunitárias apareciam
para mim como objetos complexos, ao mesmo tempo verticais e transversais e, nesse sentido,
caminho possível à indispensável releitura e reescritura da "Carta de Caminha" que nos inventou
com um gesto escrito que até hoje nos escapa.
Foi assim que cheguei, portanto, à Biblioteconomia, compreendendo-a como lugar
epistêmico e institucional singular e plural, que avança em verticalidade e se autonomiza, na
medida em que assume a transversalidade inerente de seus objetos empírico e teórico: a biblioteca
e a memória cultural.
Biblioteca e Educação: o hiato
Se foi e continua sendo possível vislumbrar inúmeras potencialidades e possibilidades
formativas da Biblioteconomia, a partir de abordagens epistemológicas dinâmicas e integradoras
dos seus eixos vertical e transversal, por outro lado, não havia como deixar de reconhecer, no
transcurso de nossos trabalhos, a existência de um hiato histórico entre Biblioteca e Educação no
país, tanto em dimensões práticas, como teóricas. Assim, apesar das carências exibidas pelas
estatísticas sobre bibliotecas públicas, escolares e outras diretamente ligadas a processos
formativos, seus números, somados a inúmeros relatos acadêmicos e profissionais, deixam clara a
insuficiência não quantitativa quanto qualitativa de tais equipamentos na vida sociocultural
brasileira. Insuficientes e, em boa parte, descoladas historicamente da vida social, educacional e
cultural, nossas bibliotecas chegaram ao século XXI existindo apenas como episódios pontuais em
nossos processos formativos e , quase sempre, circunscritas a bolsões limitados, quando não,
privilegiados, sem diálogo efetivo com demandas prementes e extensas de formação cultural
existentes em nossa sociedade.
Consequência dessa situação é que Biblioteca e Educação não se desconhecem. A
importância de suas relações não é reconhecida, nem efetivamente assumida pelo país ou mesmo
por segmentos especiais que supostamente são ou seriam responsáveis pela superação de tal
situação. Estes, quando se ocupam da problemática, tratam-na, em geral, sob perspectivas
circunstanciais, reduzidas a dimensões instrumentais, funcionais, não como instituições essenciais
do ponto de vista dos processos de formação cultural, situados, portanto, além da
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instrumentalidade. Se, como diz Richter (1987), ao tratar das bibliotecas e da leitura pública na
Europa e nos Estados Unidos, o século XIX foi momento chave de incrementação de vínculos
entre Biblioteca e Educação, marcado, por exemplo, pelo surgimento do modelo de public library
na industrializada e urbanizada Inglaterra, no Brasil, tais vínculos são até hoje pontuais, residuais,
sem presença efetiva e substancial nas dinâmicas socioculturais.
Nesses termos, além de força viva que bloqueia o avanço de realizações e experiências
educacionais e culturais que foram essenciais à constituição da modernidade, o hiato mencionado
apresenta-se, também, como força silenciosa e passiva, entre nós, que corrói pela inércia, tanto
processos educacionais, como biblioteconômicos, diluindo e desconstruindo eventuais conquistas
significativas que, sob variadas alegações, não conseguem ganhar escala, ou seja, universalizar-
se.
Assim, da mesma forma que o hiato nos dificulta avanços educacionais e culturais
significativos, do ponto de vista concreto, ele paralisa-nos conceitualmente, fazendo com que
biblioteca, cada vez mais, se defina como "organização" e não como "instituição" (Freitag, 1997),
vale dizer, valor, categoria situada em patamares simbólicos que ultrapassam a mera materialidade
e funcionalidade. Tal compreensão organizacional não permite que as bibliotecas se expandam,
ganhem universalidade, e passem a significar um conceito que, sob diferentes configurações e
formatos, existam em variadas culturas, nos diferentes tempos, passado, presente e futuro. Em
outras palavras, ficamos impossibilitados de pensar além de Alexandria e de tempos que virão, de
verticalizar reflexões que, dados seus pressupostos, nos conduzem sempre ao mesmo lugar, numa
espécie de versão epistemológica do eterno retorno.
Da transversalidade e da verticalidade: um Programa de Pesquisas
O reconhecimento da importância e extensão educacional e cultural dessa problemática,
deu início, assim, a um programa de pesquisas, visando à construção de referências teóricas e
metodológicas necessárias à sua compreensão e enfrentamento. Iniciado no final dos anos 1980,
no mencionado Departamento de Biblioteconomia e Documentação, da ECA/USP, e continuando
a existir nos dias atuais, a constituição do programa resultou na realização de projetos sucessivos
que implicam tanto questões de verticalidade específicas da Biblioteconomia, como problemáticas
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transversais e que diziam respeito a outros campos de conhecimento, como a Educação, as Letras,
a Arquitetura, a História, as Comunicações, as Artes, a Administração, a Informação.
Dada suas premissas e objetivos, os projetos também demandaram diálogos permanentes
entre territórios institucionais diferenciados, ou seja, relações Universidade-Sociedade que foram
sendo buscadas e realizadas com diferentes parceiros, como escolas de ensino fundamental, médio
e superior, creches, bibliotecas, canteiros de obras da construção civil, fábricas, entre outros.
Verticais e transversais, tais ações permitiram a criação de mais de cento e cinquenta
bibliotecas, destinadas a públicos de diferentes idades e condições socioculturais, todas orientadas
a partir de uma base comum: princípios educativos, culturais e científicos dialógicos (Pieruccini,
2004). O acúmulo dos sucessivos trabalhos, ao longo do tempo, foi possibilitando a definição e
reunião de um corpus teórico e metodológico que, posto em questão a cada projeto, foi-se
alargando e consolidando, além de servir como base necessária de desenvolvimento dos trabalhos
que se sucediam.
Realizados sob tais perspectivas, os projetos contrapunham-se à atomização disciplinar que
marcou a ciência moderna e que continua a sustentar a vida acadêmica em nossas universidades,
muitas vezes alheias ao esgotamento do logos cartesiano e à necessidade de superação das razões
instrumental e procedimental demandadas pela consciência científica e pela complexidade
histórica contemporânea (Pombo, 2005).
O entrecruzamento entre transversalidade e verticalidade, tomado como condição de
construção do conhecimento, levou-nos, assim, a critérios de formação e de estruturação de
equipes, que consideram, por exemplo, tanto o eixo dos saberes específicos, como o dos gerais,
em relações dinâmicas, condição que apresenta como exigência de recrutamento a disponibilidade
para o diálogo com comuns e diferentes. Nesses termos, além das procedências, que, dependendo
de cada situação, tanto podem ser similares ou distintas, importam convergências no plano das
hipóteses e dos objetivos do trabalho, pois é do jogo entre verticalidade e transversalidade, nesse
movimento de ganha-ganha que nascem conhecimentos originais, além de experiências
afirmativas, vinculantes e renovadoras dos e com os saberes.
Essa linhagem dinâmica e aberta à aproximação Universidade-Sociedade, possibilitou
redefinições dos atos de pesquisar e de atuar socioprofissionalmente, bem como das posições e
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lugares ocupados pelos atores implicados nas ações. Nesses termos, as parcerias, na medida em
que se desenvolviam, produziam permanentes deslocamentos semânticos dos saberes e fazeres dos
participantes, mostravam-se pedra angular não para a construção de conhecimentos
contextualizados, mas também para a descristalização dos lugares hierarquizados e
hierarquizantes, próprios dos processos de conhecimento fraturados e duais.
As relações entre parte e todo é também aspecto central da perspectiva epistemológica
adotada que merece referência. Ao serem tomadas dinamicamente, elas permitem romper com a
fragmentação e a oposição observável em modelos científicos estanques e que, na área,
estabelecem, por exemplo, uma linha divisória nítida e rígida entre atividades "técnicas" e
"culturais". Assim, ao ultrapassarem o dualismo epistêmico, as bibliotecas ganhavam
organicidade, integravam-se, sem reduções das partes ao todo ou vice-versa. Ambientação,
mobiliários, constituição dos acervos e seu tratamento, escolha dos equipamentos técnicos e
tecnológicos, linguagens documentárias, sistemas de sinalização, de gestão, de relações com as
comunidades internas e externas, programações culturais, tudo, enfim, tendia a se afirmar em sua
singularidade e pluralidade, em sua especificidade, mas, ao mesmo tempo, na busca de pontes,
articulações, conexões com o todo. A organicidade na diferença, a singularidade na pluralidade
foi, pois, orientação, princípio buscado e afinado com a compreensão de que o todo não é a soma
das partes, o que permitiu a constituição de bibliotecas integradas e integradoras com seus
públicos.
A Biblioteca Forum
Dos diálogos entre verticalidade e transversalidade, emergiram condições que nos
permitiram distinções fundamentais ao desenvolvimento dos trabalhos, assim como do próprio
campo biblioteconômico em que estavam situados. O conceito operatório de "biblioteca forum"
(Perrotti; Pieruccini, 2016) daí resultante, deu corpo, assim, a um conjunto de premissas que
reconfiguram e distinguem as bibliotecas educativas como instâncias distintas daquelas inspiradas
pelos modelos de templum e de emporium, forjados ao longo do tempo pelo patrimonialismo e
pelo difusionismo cultural, prevalentes historicamente na Biblioteconomia.
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Mais que a guarda de acervos (templum) ou a transferência de informações (emporium),
mais que a conservação ou a difusão, o paradigma que rege a biblioteca forum é o da mediação
cultural, categoria intrinsecamente articulada aos processos formativos e suas relações com o
patrimônio simbólico, constituído socialmente. Nesse sentido, é próprio a esta modalidade
(Perrotti, 2017), preparar cenários e condições indispensáveis às negociações simbólicas
implicadas nas dinâmicas de elaboração e reelaboração da memória cultural, de estabelecimento
de vínculos que são imateriais, mas sem os quais não nem sobrevivência nem pessoal, nem social.
No forum, portanto, memória e informação, objetos distintos que se articulam, mas não se
confundem, dialogam, em processos de tensão criativa entre permanência (memória) e fluxo
(informação) que, ao se realizarem, atualizam cada termo, refazendo-os numa movimentação
dialética, complexa e complementar que rompe a oposição e a fragmentação que os modelos de
conservação e de difusão trazem e promovem implicitamente.
Além disso, ao se apresentar como território aberto a interrogações, como ágora, onde
sujeitos tomados não como simples usuários de serviços, mas cidadãos portadores de direitos,
compartilham e participam de processos afirmativos de constituição e renovação da memória
coletiva (Halbwachs, 1990) e de si mesmos, a biblioteca forum mostra-se modalidade dinâmica e
autônoma, capaz de potencializar e qualificar processos educativos que contribuem para a criação
de relações substanciais e vinculantes com o conhecimento. Tomada nessa perspectiva de instância
mediadora, mais que potência informativa, a biblioteca ganha em qualidade formativa, em
diferentes meios e condições socioculturais, tal como pudemos constatar nos variados meios em
que atuamos e nos quais a modalidade mostrou-se capaz de gerar movimentos conceitual e prático
estimulantes, criadores de elos e representações que apontam para o reconhecimento e o
pertencimento cultural.
Tal percurso indica-nos, pois, que o investimento nessa compreensão dinâmica entre o
transversal e o vertical, o singular e o plural, o distinto e o comum abrem portas não para
relações fundamentais entre Biblioteca e Educação, como também, e ao mesmo tempo, para a
verticalização e adensamento teórico e prático dos termos aí implicados. A Biblioteca forum não
apenas distingue, mas amplia, material e conceitualmente, a própria definição de Biblioteca,
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apresentando-a não apenas como locus, materialidade e funcionalidade, mas como território
simbólico, lieux de mémoire, essencial em múltiplas culturas, valor social essencial.
Num tempo marcado pelo "fim das certezas" (Prigogine, 2011), assim como pela
"infocracia" (Han, 2022), quando tanto a Biblioteca, quanto a Educação e a Cultura são postas à
prova, apresentando-se como realidades cada vez mais questionadas em seus fundamentos e
métodos, tais redefinições são de grande relevância social, política e científica. Entre outras razões,
por não apontar para o eterno retorno, mas para possibilidades concretas em direção a outras ordens
histórico culturais e epistêmicas, exigidas pelo esgotamento da chamada modernidade.
Resistências
Independentemente do reconhecimento de avanços reais obtidos ao longo do tempo com
inúmeros e diferentes projetos e parcerias, um aspecto aponta para dificuldades às quais devemos
estar permanentemente atentos, não exclusivamente, mas especialmente em nosso país. Explícita
ou veladamente, sob os mais diferentes formatos, o hiato anteriormente mencionado sempre
insistiu em retornar, ao longo dos trabalhos referidos. Era uma definição administrativa unilateral,
aqui; uma opção técnico-especializada, de grande ou pequena monta, ali; uma retomada, à primeira
vista casual, de práticas culturais não condizentes em suas concepções e dinâmicas com
pressupostos dialógicos que nos orientavam; uma palavra solta, aparentemente despretensiosa,
mas indicativa de desconforto com questionamentos e inovações; uma disputa velada, quando não
explícita, nos ambientes escolares, entre, por exemplo, sala de aula e biblioteca...
Ao longo do tempo, tais recorrências foram deixando claro que o hiato não era um
fenômeno residual, circunstancial ou pessoal, mas força estrutural e estruturante, de múltiplas
facetas, sempre prontas a entrar em cena e retomar posições centrais do palco. Nesse quadro, ficava
evidente que a renovação de bibliotecas e suas relações, além de novos conceitos e práticas,
implicava também novos paradigmas que, sem dúvida, são epistêmicos. Todavia, estes acham-se
inscritos, são parte de ordens político culturais englobantes, que se disputam permanentemente.
Sob tais perspectivas, pode-se concluir que as tradições patrimonialistas e difusionistas não se
afirmaram por acaso no universo das bibliotecas, da educação e da cultura, nem se restringiram a
dimensões estritamente procedimentais. Tecnicismo e utilitarismo, por exemplo, significam
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opções, projetos históricos, definidos por e definidores de normas, posições, modos de pensar, agir
e sentir que demarcam tempos, espaços e relações. São, dessa forma, estratégias de lutas
epistêmicas que, ao mesmo tempo, são político culturais e cujas lógicas buscam impor-se como
imperativos que conformam sociedades, sujeitos e culturas. Em outras palavras, os embates
epistêmicos apresentam, eles próprios, uma dupla articulação vertical e transversal e são, ao
mesmo tempo, científicos, políticos e culturais.
Avanço acadêmico-institucional
Tais desafios nos levaram à busca de conexões que, em alguma medida, permitissem
contribuir para avanços dos princípios dialógicos que vínhamos colocando em prática e que
reconfiguravam, renovavam e conferiam centralidade às relações Biblioteca e Educação. Assim,
em 2015, propusemos à Faculdade de Educação da USP a formalização de possíveis ações que a
interconectassem à ECA, que nossos resultados indicavam que era preciso ir além de
convergências heurísticas e caminhar na busca de vínculos que superassem o hiato institucional
Biblioteconomia e Educação. Este, ocorre não no terreno das práticas sociais gerais, mas
também nas acadêmicas, dadas premissas disciplinares que deixam pouco espaço para diálogos
com a diversidade que constitui a Universidade.
Aceita a proposta, foi constituído um grupo de trabalho
(1)
, ocasião em que pela primeira
vez utilizamos o neologismo Biblioeducação. Com a formulação, não indicávamos,
evidentemente, apenas uma operação de linguagem ajustada ao momento. Tratava-se de uma
nomenclatura que foi tomando forma ao longo do tempo e que marcava semanticamente o teor da
proposta que, sem negar as especificidades disciplinares, rompia, todavia, com limites da
disciplinarização acadêmico-institucional. O avanço das negociações significou, assim, passo
importante em direção à quebra de barreiras que, paradoxalmente, reproduzem no campo da
pesquisa e da formação o persistente e recorrente hiato existente entre Biblioteca e Educação no
espaço brasileiro.
Essa articulação resultou na criação de disciplinas, abertas a alunos da ECA, da FEUSP e
de outras unidades da USP. Dentro da mesma gica colaborativa foi criado um Certificado em
Biblioeducação, destinado a alunos do Bacharelado em Biblioteconomia que optem por um
PERROTTI, Edmir. Biblioeducação, Rompendo Paradigmas: transversalidade e verticalidade na Era da Informação.
Brazilian Journal of Information Science: research trends. vol. 17, Dossiê: Transversalidade e Verticalidade
na Ciência da Informação, publicação contínua, 2023, e023055. DOI: 10.36311/1981-1640.2023.v17.e023055
conjunto de disciplinas que constituem a especialidade e que são oferecidas seja na ECA ou na
FEUSP. A disciplina "Biblioeducação: elementos conceituais e metodológicos" foi criada e
incorporada como parte da grade obrigatória do Bacharelado de Biblioteconomia e como optativa
a alunos da universidade em geral. Da mesma forma, o PPGCI da ECA passou a oferecer a
disciplina "Biblioteducação, entre memória e informação", para alunos da ECA e de fora da ECA
e da Universidade, Na FEUSP, foi introduzida a disciplina "Biblioteca Escolar: Memória e Práticas
Educativas", como as da ECA, destinada às duas unidades e a outras da USP, também. Da mesma
forma, foi implantado, com registro no CNPq, o GPEB Grupo de Pesquisa em Biblioeducação,
no Departamento de Informação e Cultura, sucedâneo do PROESI Programa Serviços de
Informação em Educação, criado em 1993, e do Colabori Colaboratório de Infoeducação , de
2006. Convênios Acadêmicos e cooperações nacionais e internacionais vêm sendo realizados,
além de Fóruns científicos, com participação de especialistas e interessados em geral na construção
de referências teóricas e metodológicas indispensáveis ao avanço de relações substanciais entre
Biblioteconomia e Educação.
Território de lutas
Em nosso país, vivemos em permanente estado de suspensão, fraturados entre tempos e
espaços culturais distintos que, ao invés de se alimentarem, se isolam, se opõem e se constrangem.
De um lado, somos comprimidos pelas forças inescapáveis das memórias coloniais e neocoloniais;
de outro, por convites incessantes de esquecimento que, na atualidade, nos chegam via avalanches
sígnicas que nos forçam a trocar a roda com o carro andando, quase sem condições de atentar para
realidades além das funcionalidades. Assim, se de um lado, não como e nem devemos!
deixar de admirar Salvador, Recife, São Luiz, Ouro Preto e suas marcas coloniais, de outro, é
difícil resistir ao fascínio e negar possibilidades e facilidades abertas pelos fluxos informacionais
globais, mesmo se suas avalanches e turbilhões semânticos beiram à vertigem.
Dada nossa historicidade, sem direito a instâncias de mediação sólidas e essenciais ao
enfrentamento de conflitos inarredáveis entre condições socioculturais múltiplas e diversas que se
apresentam e se enfrentam cotidianamente no campo social, acabamos presas fáceis de fórmulas
gastas e repetidas, sem enfrentar e superar efetivamente problemas que a falta de tais instâncias
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agrava. Nesse cenário, premidos pelas demandas onipresentes da "modernidade líquida" (Bauman,
2001), mesmo sem convicção, cedemos com facilidade às atualidades e urgências dos fluxos
globais, deixando em plano secundário, quando não abandonadas, sua contrapartida indispensável:
a memória e suas exigentes sinuosidades e lentidões. Em tais condições, o dinâmico não se
opõe, mas impõe-se à duração, vilaniza-a em sua tentativa de torna-se ethos cultural cujo nome
estaria expresso, talvez, na formulação "era da informação", categoria redutora da diversidade e
da complexidade do mundo.
É, portanto, de perspectiva contrária a tal reducionismo que a Biblioeducaçao nasceu e se
nutre, colocando sob suspeita o informacionismo e seus slogans, ou seja, como forma de resgatar
a essencialidade da informação, superando, assim, anúncios que a tomam como um novo mito
fundador, positividade pura, oráculo resplandecente que nada oculta, revelação destituída de
opacidade. O informacionismo reduz a complexidade do mundo e nega o próprio objeto que
pretende celebrar: a informação. A Biblioeducação, ao invés de negá-la, tenta reaver a importância
do esquecimento, dado que todo processo de formação se alimenta de um lado do que está dado,
de outro, do novo, do porvir. Sem tal diálogo, como diria, W. Benjamin (1993), não produzimos
cultura, mas ruina civilizacional, barbárie.
É, pois, sob essa perspectiva crítica dos dualismos que a Biblioeducação se constituiu, se
inscreve e vislumbra a problemática geral das relações transversalidade e verticalidade. A
polarização, promovida pelo informacionismo, vem repercutindo no campo social e científico,
afetando-nos diretamente, que a Biblioteconomia se constituiu e continua a se constituir
ontologicamente sobre a alavanca da memória, do que fica e do que deve ou não ficar; a Ciência
da Informação, por sua vez, nasce vinculada aos fluxos, ao dinamismo, ao movimento. E,
consideradas tais diferenças, importa reconhecer que as relações estabelecidas entre fenômenos
estáveis e dinâmicos, certezas e incertezas, o são simplesmente teóricas, mas vividas e
experimentadas na concretude histórica e social, onde elas são construídas e reconstruídas.
Logo, definições e opções epistemológicas não são neutras, amorfas, sem consequências.
Levadas ao limite, seria possível afirmar com Nora (1984) que, em nosso tempo, a memória-
experiência tenderia ao desaparecimento, transformando-se em simples narratividade. A
informação, seguindo tal raciocínio, ao ser tomada como positividade, esconderia ardilosamente
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seus filtros, abrindo trilhas fáceis em direção ao mundo da pós verdade, tão ameaçador e próximo
de nós. Tratadas em oposição ou como bens de consumo, como vem ocorrendo no movimento de
globalização sob a perspectiva neoliberal, que nada tem com o universalismo, as relações entre
permanências e fluxos encarnariam, portanto, mais que lutas ancestrais e profundamente humanas
pela produção e compartilhamento de sentidos. Elas seriam, antes, estratégias de hegemonia e
poder de que se serve a infocracia (Han, 2022) e seus interesses narcísicos, alheios aos direitos e
aos processos colaborativos de produção da memória cultural.
Talvez nunca tenha sido tão necessário pensar o posicionamento epistemológico dos
estudos envolvendo as áreas da memória, da informação e da cultura, entre nós. Apesar de não se
mostrar exclusividade brasileira, a problemática do hiato Biblioteca e Educação ganha contornos
próprios aqui, devidos, tanto à nossa "condição colonial" particular (Bosi, 1987), como à
colonialidade a que se refere Quijano (1997) e que continua viva nos tempos atuais. Chegamos, às
chamadas "sociedades da informação" sem que tenhamos vencido questões trazidas pela
modernidade, como, por exemplo, a democratização da cultura escrita e não apenas da
alfabetização, que também não vencemos, apesar de avanços parciais observados no século XX e
XXI. Se as relações Biblioteca e Educação tomaram forma socialmente relevantes, a partir do
século XIX, nos chamados países centrais, irradiando seus ecos para diferentes territórios, como
os brasileiros, as sobreposições da colonialidade à modernidade e à contemporaneidade observadas
em nosso país, conferem características singulares às problemáticas político culturais e exigem
bases teóricas e práticas insurgentes para serem enfrentadas na perspectiva de superação, dadas
sobretudo as enormes desigualdades que recobrem a vida do país em todas as suas esferas,
materiais e simbólicas.
Nesses termos, o neologismo Biblioeducação constitui-se como desafio teórico-prático em
permanente construção e que tem origem e remete a articulações dinâmicas e complexas entre
transversalidade e verticalidade, tendo em vista a superação de tradições científicas produzidas e
produtoras de colonialidades educacionais, culturais e científicas que se repetem incessantemente.
Ele não aproxima termos, mas ressitua-os, confere-lhes centralidade na vida social, abrindo
possibilidades de reconhecimento da importância fundante do campo biblioteconômico, ao ser
tomado dinamicamente em suas dimensões verticais e transversais, sem exclusões ou
hierarquizações com seus congêneres. É nesses termos que bibliotecas e demais contextos
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educativos podem deixar de ser reduzidos a meras organizações, ou seja, reduzidas a mecanismos
substituíveis de transferência de informações, tão logo apareçam outros mais performáticos e
eficazes. A essa visão organizacional, a Biblioeducação contrapõe outra, formativa, que define e
recupera a Biblioteca como valor simbólico, como instituição que se ocupa da memória cultural
em seus processos permanentes de construção, desconstrução e reconstrução de sentidos, mediante
diálogos profícuos com a informação, considerada em sua positividade e negatividade, ao mesmo
tempo. A informação revela e esconde, assim, como a memória. Ambas, no entanto, são matérias
essenciais que nos constituem.
Nesses termos, a superação dos hiatos teórico e prático mencionados demanda
compreensões e ações dinâmicas e complexas envolvendo as relações verticalidade e
transversalidade, obriga-nos a superar os dualismos e assumir as tensões como condição
constitutiva dos processos de conhecimento e de formação cultural. Estes implicam,
necessariamente, tomadas de posição, lutas por permanências e mudanças, por memória e
informação que seguem em múltiplas e abertas direções que se entrecruzam, definem e afirmam
segundo razões políticas, sociais, epistemológicas. E, por que não, identitárias.
Notas
(1) Formamos, em 2015, uma equipe com três professores/pesquisadores de cada unidade, interessados nas relações
Biblioteca e Educação. Pela ECA/USP participaram Prof. Dr. Edmir Perrotti (coordenador do grupo), Profa. Dra.
Ivete Pieruccini e Prof. Dr. José Fernando Modesto da Silva. Pela FEUSP, Profa. Dra. Diana Gonçalves Vidal,
Profa. Dra. Maria Ângela Borges Salvadori e Profa. Dra. Neide Luzia de Rezende.
Agradecimento
Em primeiro lugar, quero agradecer o convite dos organizadores deste evento para estar
nesta celebração de 25 anos do PPGCI, da UNESP/Marília. É uma grande satisfação participar
dessa ocasião, pois não vi nascer o referido Programa, como também, desde os tempos de
estudante, sou um entusiasta da instituição. Naquela época, pelos finais dos anos 1960, ouvia
professores da FFLCH/USP contarem de suas viagens não sei bem se semanais ou mensais, de
trem ou de ônibus , a vários campi do interior, com o objetivo de participar dessa construção
magnífica que representou a interiorização do ensino público universitário no Estado. Diante de
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mestres da magnitude de Antonio Candido e de tantos esforços que tornaram viável e vitoriosa
essa realização de que somos herdeiros, estar aqui é privilégio e responsabilidade, júbilo e
reverência. Muito obrigado pela deferência especial, caros colegas e amigos da UNESP.
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Received: 27/09/2023 Accepted: 30/11/2023