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O SER NEGRO COMO LÓCUS DE INTERPRETAÇÃO DO BRASIL:
GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DOS IMPULSOS CRIATIVOS DO
PENSAMENTO SOCIAL AFRO-BRASILEIRO NO SÉCULO XX
EL SER NEGRO COMO LOCUS DE INTERPRETACIÓN DE BRASIL:
GÉNESIS Y DESARROLLO DE LOS IMPULSOS CREATIVOS DEL
PENSAMIENTO SOCIAL AFROBRASILEÑO EN EL SIGLO XX
THE BLACK BEING AS A LOCUS BRAZIL’S INTERPRETATION:
GENESIS AND DEVELOPMENT OF THE CREATIVE IMPULSES OF
AFRO-BRAZILIAN SOCIAL THOUGHT IN THE 20TH CENTURY
DOI:
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.024016
Dossiê
Recebido: 19/08/2024
Aprovado: 07/10/2024
Publicado: 30/10/2024
_________________________________
Guilherme Pessoa Dutraª
https://orcid.org/0000-0002-0728-1373
ª Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: pessoag13@outlook.com
DOSSIÊ
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Resumo: Este trabalho visa analisar a formação de uma fortuna crítica tecida por intelectuais
afro-brasileiros e afro-brasileiras ao longo do século XX, tendo em vista a hipótese segundo a
qual os associativismos negros e, mais especificamente, as organizações coletivas de cariz
político-cultural comumente associadas ao conceito de movimentos negros, representam
lugares sociais de inspiração para a elaboração de interpretações do Brasil. Parte-se da crítica
às limitações concernentes a sub-representação de intelectuais negras e negros na tradicional
agenda de estudos do pensamento social brasileiro, a fim de refletirmos acerca da formação
colonial e racializada da tradição intelectual comumente classificada enquanto massa crítica de
intérpretes do Brasil. Em seguida, indicaremos o papel fulcral dos movimentos negros e de
seus agentes mobilizadores na produção de uma fortuna crítica e, consequentemente, de uma
tradição intelectual afro-brasileira ao longo do século XX. Finalmente, passaremos a apresentar
e refletir criticamente a respeito dos impulsos criativos do pensamento social afro-brasileiro
historicamente acumulado por diferentes gerações intelectuais negras. A fim de dar seguimento
à referida proposta de reflexão teórica, visamos tecer, como referencial metodológico, uma
análise crítico-descritiva da bibliografia mencionada nas páginas subsequentes mediante
metodologia bibliográfica descritiva e explicativa. Por fim, conclui-se que os impulsos
criativos do pensamento social afro-brasileiro, elaborados por diferentes gerações intelectuais-
ativistas negras, oferecem ao campo de estudos do pensamento social e político brasileiro e, de
forma geral, as ciências sociais em nosso país, caminhos para a promoção da diversificação
epistêmica e da descolonização de cânones.
Palavras-chave: Pensamento social afro-brasileiro, Antirracismo, Diversidade epistêmica.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar la formación de una fortuna crítica tejida
por intelectuales afrobrasileños a lo largo del siglo XX, teniendo en cuenta la hipótesis según
la cual las asociaciones negras y, más específicamente, las organizaciones colectivas de
carácter político-cultural comúnmente asociadas al concepto de movimientos negros,
representan lugares sociales de inspiración para la elaboración de interpretaciones de Brasil.
Se parte de la crítica de las limitaciones relativas a la subrepresentación de los intelectuales
negros en la agenda tradicional de estudios del pensamiento social brasileño, para reflexionar
sobre la formación colonial y racializada de la tradición intelectual comúnmente clasificada
como masa crítica de intérpretes de Brasil. A continuación, indicaremos el papel central de los
movimientos negros y sus agentes movilizadores en la producción de una fortuna crítica y, en
consecuencia, de una tradición intelectual afrobrasileña a lo largo del siglo XX. Finalmente,
comenzaremos a presentar y reflexionar críticamente sobre el impulsa elementos creativos del
pensamiento social afrobrasileño históricamente acumulados por diferentes generaciones
intelectuales negras. Para dar seguimiento a la propuesta de reflexión teórica antes mencionada,
pretendemos tejer, como referente metodológico, un análisis crítico-descriptivo de la
bibliografía mencionada en las páginas siguientes utilizando una metodología bibliográfica
descriptiva y explicativa. Finalmente, se concluye que los impulsos creativos del pensamiento
social afrobrasileño, elaborado por diferentes generaciones de intelectuales-activistas negros,
ofrecen el campo de estudios del pensamiento social y político brasileño y, en general, de las
ciencias sociales en nuestro país, caminos para promover la diversificación epistémica y la
descolonización de cánones.
Palabras clave: Pensamiento social afrobrasileño, Antirracismo, Diversidad epistémica.
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Abstract: This paper aims to analyze the formation of a critical fortune by Afro-Brazilian
intellectuals throughout the 20th century, based on the hypothesis that black associations and,
more specifically, collective organizations of a political-cultural nature commonly associated
with the concept of black movements, represent social sites of inspiration for the elaboration
of interpretations of Brazil. It begins with a critique of the limitations concerning the
underrepresentation of black intellectuals in the traditional agenda of studies of Brazilian social
thought, in order to reflect on the colonial and racialized formation of the intellectual tradition
commonly classified as a critical mass of interpreters of Brazil. Next, we will indicate the
pivotal role of black movements and their mobilizing agents in the production of a critical
fortune and, consequently, of an Afro-Brazilian intellectual tradition throughout the 20th
century. Finally, we will present and critically reflect on the creative impulses of Afro-Brazilian
social thought historically accumulated by different generations of black intellectuals. In order
to follow up on the aforementioned proposal for theoretical reflection, we aim to weave, as a
methodological framework, a critical-descriptive analysis of the bibliography mentioned in the
subsequent pages using a descriptive and explanatory bibliographic methodology. Finally, we
conclude that the creative impulses of Afro-Brazilian social thought, developed by different
generations of black intellectual-activists, offer the field of studies of Brazilian social and
political thought and, in general, the social sciences in our country, paths for promoting
epistemic diversification and the decolonization of canons.
Keywords: Afro-Brazilian social thought, Anti-racism, Epistemic diversity.
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Introdução
Ao remeter aos debates em torno do Pensamento Social e Político Brasileiro (PSPB),
desejamos falar sobre um conceito, cujo significado é duplo: representa, por um lado, a tradição
intelectual brasileira que teceu interpretações do Brasil antes e durante o período de
consolidação das Ciências Sociais no país, sendo a delimitação de seu início ora datada da
Independência do país (Ianni, 2004), ora da Proclamação da República (Ricupero, 2004) até
meados da segunda metade do século passado.
Doravante, podemos categorizar, em um primeiro momento, a tradição-tema do PSPB
como um conjunto de interpretações do Brasil que dinamizaram a produção intelectual
brasileira e brasilianista entre o século XIX e meados do século XX. Tais obras destacam-se
pela elaboração de diagnósticos a respeito da realidade brasileira, seguidos de prognósticos
orientados por perspectivas políticas específicas defendidas, implícita ou explicitamente pelos
chamados intérpretes do Brasil.
Em suma, as contribuições do PSPB visam trazer à tona reflexões acerca da realidade
nacional que possam estabelecer concatenações entre o ontem — a formação histórica e social
do país —, o hoje e o futuro o conjunto de prognósticos dados ou não a partir de pautas
ideopolíticas. Se o Brasil pode ser tido como um “Estado-Nação, em busca de conceito” (Ianni,
2004, p. 67), a fortuna crítica do pensamento social e político brasileiro representa um relevante
celeiro da produção intelectual brasileira e brasilianista.
O termo “pensamento social e político brasileiro” representa, também, um campo de
estudos estabelecido ao longo da década de 1970, especialmente na Ciência Política e na
Sociologia, a partir da formação dos primeiros programas de pesquisa destinados a tal campo
de estudos no processo de expansão e profissionalização das ciências sociais brasileiras. Daí o
sentido dúplice do conceito de pensamento social e político brasileiro apresentado previamente.
Os estudos do campo supracitado caracterizam-se, especificamente, pela análise do
“ensaísmo nacional, tomando como marco as releituras dessa tradição intelectual feitas em
âmbito universitário, no contexto de institucionalização acadêmica” (Maia, 2009, p. 156).
Orientada pela necessidade da realização de uma revisão sistemática da imaginação
sociopolítica brasileira, a literatura clássica do campo de PSPB é marcada por exercícios
classificatórios de tal tradição-tema.
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É possível dizer que as classificações do PSPB, por sua vez, gestam, junto aos
exercícios de delineamento de cânones, um modus operandi e uma agenda tradicional do
campo de estudos supracitado. Antonio Brasil Jr., Luiz Carlos Jackson e Marcelo Paiva (2020)
apontam para a configuração dessa especificidade do campo do PSPB, nos últimos 30 anos,
em que as pesquisas se orientam para o estudo especializado das contribuições de um ou mais
autores tidos como intérpretes do Brasil, bem como por um “interesse mais geral de discutir o
cânone e escrutinar seus nomes mais representativos” (Brasil Jr; Jackson; Paiva, 2020, p. 8).
Os “precursores” e “clássicos” (Ianni, 2004) compõem a base de tal massa crítica
intelectual, de tal modo que nomes centrais da tradição ensaística brasileira como Silvio
Romero, Oliveira Vianna e, em especial, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda figuram nos cânones já mencionados.
Os exercícios de canonização trazem consigo, por outro lado, lacunas no que concerne
aos próprios atos de seleção e, portanto, de exclusão como outra face da mesma moeda. O que
está em jogo quando questionamos a agenda tradicional do PSPB, em especial do papel central
do cânone no que concerne à delimitação de seus tradicionais objetos de pesquisa? Se
orientarmos nossa análise com base nos marcadores sociais da diferença de raça e gênero,
podemos perceber uma nítida discrepância concernente ao delineamento do perfil intelectual
brasileiro.
Se a tradição-tema é tida como a massa crítica intelectual que construiu interpretações
do Brasil durante o século XIX e, no mínimo, até a metade do século XX, e com isso se
configurou uma cultura intelectual brasileira, onde está a intelectualidade afro-brasileira que
atuou ao longo de tal período na realidade política e intelectual do Brasil? Nomes como Alberto
Guerreiro Ramos, André Rebouças, Edison Carneiro e Lima Barreto representam exceções a
uma regra: a subvalorização das epistemologias afro-brasileiras no estudo das interpretações
do Brasil. Isto pode ser atestado quando observamos, por outro lado, a total ausência de
intelectuais afro-brasileiras nos exercícios classificatórios da tradição-tema do PSPB e,
portanto, dos cânones da imaginação sociopolítica brasileira.
Frente a isso, podemos perceber que a sub-representação de intelectuais negros(as)
entre os cânones delineados pelo campo de estudos suscita algo a mais do que uma
peculiaridade metodológica do PSPB; trata-se da própria configuração da comunidade
intelectual brasileira, bem como de seus cânones, em termos de raça, gênero e classe. Os
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exercícios classificatórios do PSPB e seus consequentes cânones são orientados ainda que
implicitamente pelas dinâmicas interseccionais das relações raciais, de gênero e de classe
que organizam o âmago da sociedade brasileira.
O que fundamenta tal quadro de apagamento e subvalorização da intelectualidade afro-
brasileira, em especial de mulheres negras, reproduzido no referido campo de estudos das
ciências sociais brasileiras? É na busca de uma resposta para tal questionamento que
trataremos, na primeira parte deste escrito, da formação das elites intelectuais desde a gênese
colonial e escravista de nosso país, nos atendo também ao papel central da produção canônica
quanto a elaboração de discursos de verdade acerca da população afro-brasileira.
Em um segundo momento, passamos a investir em um estudo das interpretações do
Brasil tecidas por intelectuais negras e negros, cujas produções foram umbilicalmente ligadas
ou influenciadas pelos associativismos negros do século XX. Aspiramos demonstrar como a
fortuna crítica afro-brasileira nos oferece aportes teóricos centrais para a compreensão do
Brasil, tanto a partir do protagonismo político e intelectual afro-brasileiro, como para a
democratização das interpretações do Brasil: dos menos conhecidos intelectuais orgânicos da
Imprensa Negra e da Frente Negra Brasileira (FNB), passando pela contribuição de nomes
como Edison Carneiro, Virginia Leone Bicudo e Alberto Guerreiro Ramos ao final da primeira
metade do século XX e, finalmente, até a intelectualidade orgânica ou próxima aos movimentos
negros contemporâneos, tais como Abdias Nascimento, Clóvis Moura e Lélia Gonzalez.
A fim de dar seguimento à referida proposta de reflexão teórica, visamos tecer, como
referencial metodológico, uma análise crítico-descritiva da bibliografia mencionada nas
páginas subsequentes mediante metodologia bibliográfica descritiva e explicativa. Por fim,
conclui-se que os impulsos criativos do pensamento social afro-brasileiro elaborados ao longo
do século XX por diferentes gerações intelectuais-ativistas negras oferecem ao campo de
estudos do pensamento social e político brasileiro e, de forma geral, as ciências sociais em
nosso país, caminhos para a promoção da diversificação e descolonização epistêmica, sendo a
fortuna crítica afro-brasileira representativa de uma das mais inovadoras tradições políticas
brasileiras.
As elites intelectuais e o pretenso “problema do negro” no Brasil
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A intelectualidade hegemônica brasileira é formada no seio do conflito social inerente
ao escravismo colonial brasileiro, cujas dinâmicas sociais e relações de poder marcam,
historicamente, a configuração de nossa sociedade. A exemplo da comunidade política, a
intelectualidade hegemônica brasileira será, ao longo do escravismo colonial e em parte
expressiva da história do Brasil republicano, enxuta e excludente ao ser dinamizada pelas elites
políticas e por camadas sociais ligadas aos setores burocráticos e intelectualizados da sociedade
brasileira.
Desses setores sociais, foi historicamente alijada a esmagadora maioria da população
afro-brasileira, especialmente na história republicana e pretensamente democrática de nosso
país. Isto, pois, um dos elementos centrais do processo histórico de modernização da sociedade
brasileira, isto é, do ocaso do escravismo colonial e a transição para um capitalismo periférico
entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte, processo esse
marcado pela Abolição da escravatura e a fundação da República brasileira, consistiu na
marginalização e no silenciamento da população negra (Moura, 1994).
Para alcançar a modernidade econômica e política aspirada pelas elites brasileiras, na
temporalidade supracitada, o Brasil devia ser branco e capitalista, de tal modo que a população
afro-brasileira seria integrada aos setores mais baixos da estratificação social e do mercado de
trabalho capitalistas (Gonzalez, 2020). Tal processo de marginalização econômica e política
gestou uma barragem sistemática da mobilidade social e política de parte expressiva da
população afro-brasileira que, junto a violenta e mortífera política pública de controle de corpos
negros, tidos como perigosos em especial nas periferias brasileiras, figuram como duas das
principais engrenagens da dinâmica sistêmica do racismo à brasileira (Moura, 2019).
Se a comunidade política e intelectual brasileira constitui-se, no escravismo colonial,
no seio das camadas dominantes de tal ordenamento social e dos órgãos burocráticos e
intelectualizados em formação no século XIX, dela estavam alijadas a população escravizada,
insurgente e aquilombada, bem como seus descendentes no ínterim tardio de quase
quatrocentos anos de escravização racializada. Sendo o racismo à brasileira um fator
determinante da sistemática marginalização, barragem e do genocídio da população afro-
brasileira, torna-se compreensível o argumento em torno da manutenção deste padrão étnico-
racial e de classe das elites intelectuais brasileiras na história do Brasil republicano.
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Isso quer dizer que à população afro-brasileira foi historicamente vedado o acesso
pleno aos setores e espaços de eminente capital cultural, poder político e simbólico inerentes à
produção de conhecimento socialmente validado. Dito de outra forma, até muito recentemente,
a população negra não acessava, significativamente, os lugares sociais validados socialmente
enquanto propulsores de produção teórica e, mais especificamente, de interpretações sobre o
Brasil, isto é o Estado-nação, o Mercado e as Universidades (Perruso, 2017).
Os grandes nomes da cultura intelectual hegemônica seriam aqueles que compunham a
História Oficial do desenvolvimento de tais instituições, daí a relevância dada pelos intelectuais
do campo de estudos do PSPB aos notáveis estadistas, escritores e precursores das ciências
sociais no Brasil. Daí também a subvalorização da intelectualidade afro-brasileira em sua
agenda de pesquisa.
É a construção histórica da intelectualidade hegemônica brasileira, no seio da gênese
colonial e escravista do Brasil, junto a sistêmica barragem e marginalização de pessoas negras
nas relações de poder características de nossa sociedade que incidem decisivamente na
cristalização de um tipo ideal de intelectual brasileiro, qual seja: homens de ciência e cultura
que marcaram presença e relevância nas instâncias do Mercado, da Academia e do Estado
nacional, sejam tais intelectuais mais ou menos críticos ao status quo das relações de poder que
balizam a sociedade brasileira. O tipo ideal de intelectual brasileiro é o de um homem branco
sendo a brancura mais um lugar social de privilégios garantidos pela branquitude do que um
dado epidérmico — desde a gênese colonial da cultura intelectual brasileira.
Doravante, se o pensamento social e político brasileiro é produzido na esfera do Estado,
do Mercado e das Universidades, ambientes essenciais para a concepção que enseja a ideia de
um monopólio do saber estabelecido, o pensamento social brasileiro é racializado. Isto quer
dizer que as pessoas racializadas como negras, em especial as mulheres negras, figuram na
fortuna crítica hegemônica brasileira menos como agentes da produção de conhecimento e da
atividade política do que enquanto figuras narrativas e objetos de estudo. Vejamos tal quadro
de forma mais detalhada.
Frente aos olhares da elite brasileira, com o fim do escravismo colonial, a população
afro-brasileira era tida como um empecilho ao processo civilizador do Brasil. Neste sentido,
como atesta Kabengele Munanga (2019), a identidade nacional brasileira almejada pelos
setores hegemônicos era ameaçada pela suposta herança incivilizada do negro brasileiro, pois
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A pluralidade racial nascida do processo colonial representava, na cabeça
dessa elite, uma ameaça e um grande obstáculo no caminho da construção de
uma nação que se pensava branca; daí por que a raça se tornou o eixo do
grande debate nacional que se travava a partir do fim do século XIX e que
repercutiu até meados do século XX (Munanga, 2019, p. 49).
A população afro-brasileira tornar-se-ia um problema para as elites intelectuais à época:
que fazer com o “negro” frente aos rumos da formação da nação e ao seu desenvolvimento? É
nesse sentido que a questão da raça e não do racismo tornar-seum tema central das
interpretações do Brasil. A população afro-brasileira será tematizada, classificada e
constantemente reinventada pelas penas e canetas dos intérpretes clássicos do pensamento
social brasileiro.
O conjunto das produções teóricas acumuladas, entre os séculos XIX e XX, a respeito
da tematização da população negra, pode ser tido, nos termos de Alberto Guerreiro Ramos, por
“socioantropologia do negro brasileiro” (Ramos, 1995, p. 197), isto é, o conjunto dos estudos
concernentes a questão da raça no Brasil, orientado pelas perspectivas europeias e
estadunidenses acerca do tema. A dogmática transplantação de conceitos, tais como o de raça
e aculturação, sem a necessária postura crítico-assimilativa por parte de intelectuais brasileiros
como Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Arthur Ramos e Gilberto Freyre,
gestou, ainda que por caminhos e ênfases distintas entre os autores, formas de compreensão da
questão da raça no Brasil com base no exotismo e na desumanização da população afro-
brasileira.
Quanto a questão racial, tema caro a antropologia e sociologia brasileiras desde o
engatinhar de tais disciplinas em solo nacional, pode-se dizer que o “problema” do negro foi
historicamente tematizado, nos cânones das ciências sociais brasileiras, a partir de três
concepções gerais sem desconsiderar, contudo, suas variadas ramificações: I) a
transplantação das teses do racismo científico para a realidade brasileira, tendo em vista a
explícita defesa, ora do separatismo racial, ora da miscigenação e da aculturação como
mecanismos de embranquecimento populacional; II) a contribuição teórica e discursiva para
um consenso político em torno de uma visão branda das relações raciais brasileiras e do caráter
mestiço da identidade brasileira, suplantando, apenas superficialmente, as teses racialistas; III)
a tese da inadequação da população afro-brasileira a sociedade de mercado, explicada ora pela
herança negativa da incivilidade negra, ora pela sobrevivência de práticas discriminatórias
representantes do atraso social no processo de desenvolvimento brasileiro.
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De forma esquemática, para fins didáticos, é possível dizer que a primeira concepção
tornou-se ideia-força do pensamento social e político brasileiro entre o final do século XIX e a
década de 1930; a segunda, por sua vez, ganha protagonismo entre os anos 1930 e passa a ser
contestada por especialistas em estudos raciais e intelectuais-militantes dos associativismos
negros em meados da década de 1950 e, mais especificamente, a partir da década de 1970; a
terceira atua concomitantemente as duas primeiras, sendo sua primeira acepção relacionável
ao racismo científico, enquanto tanto essa quanto a segunda acepção são relacionadas ao
consenso em torno da democracia racial.
O pensamento racialista e as teses do racismo científico serão elementos centrais nos
estudos canônicos em torno da questão da raça no Brasil e do pretenso problema do negro
brasileiro. Lilia Schwarcz (2005) nos indica que o darwinismo social e o evolucionismo, peças-
chave do racismo pseudocientífico catapultado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos
durante os séculos XIX e XX, foram importados por parte significativa das elites intelectuais
brasileiras de modo a promover um eugenismo à brasileira. Ora, qual seria a base deste projeto
eugenista de interpretação do Brasil? A mestiçagem, entendida aqui em seu sentido sociológico
a construção ideológica e imagética a respeito do cruzamento de “raças”, no sentido
biológico, e a ideia de cultura sincrética, inculcadas no imaginário coletivo brasileiro.
Tal projeto se deu, por um lado, pela política estatal de incentivo a imigração no qual
um “fluxo migratório [europeu], ao entrar no mercado de trabalho, deslocava o ex-escravizado
do centro do sistema de produção para a sua periferia, criando as premissas econômicas da sua
marginalização” (Moura, 2021, p. 46). Por outro lado, pelas perspectivas negativas ou positivas
acerca da mestiçagem, defendidas pela intelectualidade hegemônica no Brasil, como veremos
abaixo. À marginalização socioeconômica aliou-se, também, a mestiçagem como mecanismo
de controle de corpos negros.
Os debates em torno da mestiçagem suscitaram, por um lado, o fulcro das hipóteses a
respeito da pureza racial, isto é, de uma visão negativa, consoante os ideais de branqueamento,
a respeito da mestiçagem biológica e sociocultural como um imperativo para a construção do
país (Nina Rodrigues) e, por outra chave de análise, o meio por onde se alcançaria o paulatino
embranquecimento da população brasileira visão positiva, conforme a proposta de
branqueamento sociocultural e epidérmico (João Batista de Lacerda, Euclides da Cunha e
Oliveira Vianna).
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no século XX, ocorre uma alteração significativa nas perspectivas teóricas e
metodológicas da socioantropologia do negro brasileiro: as teses passam a ser apresentadas
menos em termos do racismo científico e mais de uma espécie de característica sociocultural
brasileira, marcada por um universalismo capaz de suplantar as linhas do racismo científico e
dos distintos determinismos clássicos da antropologia do século XIX.
A principal contribuição canônica em torno de tal perspectiva pode ser observada na
obra de Gilberto Freyre. O intelectual pernambucano institui um conceito de importante incisão
para a história das relações raciais no Brasil, quando aponta para um “equilíbrio de
antagonismos” (Freyre, 2003, p.128) como um fator marcante das relações raciais, étnicas e de
classes no Brasil desde sua formação colonial.
O patriarcalismo colonial organizou essa unidade de contrários, de acordo com Freyre,
de tal sorte que as relações de exploração e opressão escravistas fossem postas em xeque, e a
rigidez aristocrática da plantation fosse contestada na prática. No lugar disso, pôs-se uma visão
dócil acerca dos seus polos opositores senhores e escravizados que foi constituída e
cristalizada no imaginário coletivo brasileiro. Seria tal dócil concepção do bom senhor e do
bom escravo a base mitológica da ideologia da democracia racial brasileira.
Tratando-se especificamente da tese da sobrevivência de práticas de “preconceito
racial” como marca do atraso no capitalismo brasileiro, pode-se dizer que ela marcou um dos
pontos chaves da crítica a inexistência das tensões raciais em territórios brasileiros, sendo fruto
das análises sociológicas concernentes a temática, formuladas, por sua vez, entre as décadas de
1940 e 1950, notavelmente a partir da iniciativa conhecida como Projeto Unesco de estudos
étnico-raciais no país. Oracy Nogueira demonstra como a virada sociológica dos estudos sobre
brancos e negros no Brasil instituiu alterações significativas nos projetos, hipóteses,
perspectivas teóricas e objetivos das pesquisas voltadas para a temática quando comparadas
aos diagnósticos e prognósticos historicamente acumulados pelos esforços de tematização da
população afro-brasileira.
A influência dos estudos de Donald Pierson, Roger Bastide, Florestan Fernandes e
Virgínia Leone Bicudo, bem como da fortuna crítica quanti e qualitativa acerca das relações
raciais nos Estados Unidos foram decisivas tanto para o advento dessa nova fase dos estudos
raciais brasileiros, quanto para a sua maturação, sob perspectiva sociológica, a partir da década
de 1950. Destacam-se aqui, também, a influência e participação decisiva de intelectuais
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orgânicos dos associativismos negros brasileiros, notavelmente em São Paulo como no caso de
José Correia Leite, enquanto interlocutores dos estudos étnico-raciais em perspectiva
sociológica.
Outro ponto a se destacar consiste na maturação de reflexões teóricas concernentes a
temática supracitada, por parte de intelectuais negros(as), que passaram a tensionar, tácita ou
diretamente, os ideais da democracia racial brasileira a partir da década de 1950, algo que
veremos, de forma mais detida, nas próximas páginas.
Não obstante a distinção entre as chaves analíticas supracitadas, há, entre elas,
excetuando-se o caso da produção intelectual particularmente negra, a permanência de um
padrão no pensamento social brasileiro: afro-brasileiros e afro-brasileiras como objetos frente
aos produtores de conhecimento socialmente validado. A intelectualidade hegemônica
brasileira e sua tradicional prática de tematização-objetificação do “negro” deixou de lado o
caráter decisivo de toda a problemática da marginalização e da opressão racial acometida a
população afro-brasileira para a estruturação das relações sociais e de poder em nosso país na
República Brasileira. Como observado em nossa discussão prévia, o cânone do pensamento
social e político brasileiro tematizou o “problema” do negro tendo em vista a: I) Inferiorização
inata da população afro-brasileira; II) O exotismo sociocultural e subjetivo de pessoas
racializadas como negras; III) A inadequação da população afro-brasileira à sociedade de
mercado sendo explicada pela herança negativa da incivilidade negra; IV) Em posições mais
progressistas, a causa da não inserção da população afro-brasileira na sociedade de classes
consistiria na manutenção de comportamentos preconceituosos em relação a características
epidérmicas e culturais afro-brasileiras, tidos, no entanto, como marca do atraso no processo
de desenvolvimento socioeconômico do país.
Desse modo, o cânone do pensamento social e político brasileiro constituiu discursos
de verdades acerca da população afro-brasileira e sobre o modus operandi da questão da raça
no Brasil, centrados no “problema” do negro. Reiteramos novamente: a figura do “negro”
brasileiro, cuja marca é uma identidade imposta pelo outro, sendo essa caracterizada por uma
inferioridade inerente à sua casca epidérmica, foi constantemente criada e recriada pela massa
crítica canônica. Nem mesmo o projeto sociológico dos estudos étnico-raciais da década de
1950, não obstante o fato de reconhecer a existência do “preconceito racial de marca” no Brasil,
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deixou de observar a população afro-brasileira sob o prisma da objetificação. Doravante, o
lugar social do “negro” no cânone do pensamento social e político brasileiro é o de não-ser.
No que tange ao racismo antinegro, é com a atuação política dos movimentos negros
brasileiros, umbilicalmente ligada a gênese de uma imaginação sociopolítica afro-brasileira ao
longo do século XX, que o silenciamento e a subalternidade serão contestados por setores
significativos da população afro-brasileira. Malgrado a miríade de táticas implementadas pelas
práxis negras em movimento, elas são marcadas por um ponto em comum: a crítica a um pacto
social racializado e excludente, junto à denúncia das desigualdades existentes entre brancos e
negros no Brasil.
Movimentos negros enquanto lugares sociais de produção de pensamento social afro-
brasileiro
É preciso, dessa forma, deslocar as análises a respeito da elaboração de interpretações
do Brasil do seio da intelectualidade hegemônica para lugares sociais outros além dos espaços
de poder supracitados. Dito de outra forma, torna-se importantíssima a análise do papel dos
movimentos sociais, em especial dos movimentos negros do século XX, enquanto lugares
sociais de propulsão do pensamento social brasileiro.
No longo processo de existência do protesto negro no Brasil, temos que a ideia de
Movimento Negro baliza as análises em torno das práticas socioculturais e políticas de atuação
disruptiva implementadas, ao menos desde o século XX, pela população afro-brasileira. Por
movimentos negros compreendemos as práticas de associativismo implementadas por pessoas
negras em face dos mecanismos de barragem e discriminação racistas que estruturam a
estratificação social e as relações de poder brasileiras, desde a formação escravista e colonial
do país.
As categorizações a respeito do associativismo negro brasileiro apontam para
concepções que defendem um nível maior ou menor de abrangência de tais lutas coletivas, ao
longo da história da práxis negra no Brasil. Segundo Joel Rufino dos Santos, os movimentos
negros brasileiros podem ser descritos com base em uma perspectiva estrita enquanto
“exclusivamente o conjunto de entidades e ações dos últimos cinquenta anos, consagrados
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explicitamente à luta contra o racismo” (Santos, 1985, p. 287). Por outro lado, o intelectual
afro-brasileiro apostava em uma definição ampla dos movimentos negros, a fim de indicar por
movimento negro “todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer
tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visam à auto-defesa física e cultural do negro),
fundadas e promovidas por pretos e negros” (Santos, 1985, p. 303).
Petrônio Domingues, por outro lado, contesta a segunda definição proposta por Joel
Rufino dos Santos, ressaltando a caracterização dos movimentos negros enquanto “movimento
político de mobilização racial (negra)” (Domingues, 2007a, p. 101). Os movimentos negros
representariam, portanto, a luta coletiva implementada por pessoas negras visando o combate
ao racismo e a marginalização política, educacional e socioprofissional que marca a experiência
vivida de afro-brasileiros e afro-brasileiras, especialmente no período republicano e capitalista
brasileiro.
Em nossa concepção, os movimentos negros representam, na história da práxis negra
brasileira, entidades de mobilização política e cultural de contestação à organização racista e
desigual da sociedade brasileira. Os movimentos negros podem ser tidos enquanto “grupos
específicos negros” (Moura, 2019, p. 269) de luta política, mesmo em suas facetas
proporcionalmente mais vinculadas às mobilizações de cunho cultural. Eles deram seguimento
à resistência afro-brasileira, representada pela tradição radical negra aquilombada no período
do escravismo colonial. Representam, portanto, a oxigenação da histórica e democrática
resistência afro-brasileira às amarras opressoras.
Os órgãos representativos da imprensa negra brasileira, a Frente Negra Brasileira
(FNB), o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Teatro Popular Brasileiro (TPB) e o
Movimento Negro Unificado (MNU) são mencionados por Amauri Mendes Pereira (2008)
como grandes representantes do associativismo negro brasileiro entre ao menos sete décadas
do século XX (1920–1980). Tais distintas fases dos movimentos negros representariam um
alicerce necessário à consolidação, a partir das duas últimas décadas do século passado, da luta
antirracista na política institucional e na esfera pública brasileira.
Petrônio Domingues (2007a), por outro lado, nos apresenta uma concepção próxima à
supracitada, em que, contudo, destaca a presença do associativismo negro na história política
brasileira, desde as décadas finais do século XIX. Aponta também para a existência de outros
órgãos do associativismo negro, tais como a União dos Homens de Cor (UHC) e a União
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Cultural dos Homens de Cor (UCHC) como protagonistas de três distintas fases do Movimento
Negro no Brasil Republicano: a primeira fase, da Primeira República ao Estado Novo (1889–
1937); a segunda fase, da Segunda República a Ditadura Militar (1945–1964); e, finalmente, a
terceira fase, da redemocratização à República Nova.
A principal distinção entre tais fases, mais especificamente entre os movimentos
negros da primeira e da segunda metade do século passado, gira em torno dos horizontes
políticos possíveis e almejados pelas práxis negras em diferentes conjunturas. No primeiro
caso, teríamos a perspectiva integracionista, orientada pelo endosso ou pela disputa crítica da
ideia de democracia racial brasileira; e no segundo, por sua vez, teríamos o rompimento com
tal ideal, denunciado como ideologia de dominação no contexto de resistência à ditadura
militar.
Os movimentos negros brasileiros, no plural, representam uma histórica tradição
política negra na história republicana brasileira. As diferentes facetas e as distintas fases do
associativismo negro permitem indicar que os movimentos negros percorreram caminhos
heterodoxos no que concerne à luta contra o racismo e as formas de opressão e subjugação do
segmento negro brasileiro.
Como agentes coletivos da luta política afro-brasileira, os movimentos negros
brasileiros configuraram-se, historicamente, enquanto lugares sociais de impulsionamento do
pensamento social brasileiro. Isto é, como matrizes da produção de interpretações sobre o
Brasil, de tal modo que a tradição política do ou próxima ao associativismo negro seja central
para o delineamento de uma imaginação sociopolítica negra em nosso país, especialmente no
século XX.
Isto, pois a massa crítica de tal tradição de pensamento social negro no Brasil é
constituída desde o âmago dos movimentos negros brasileiros ou com base em um diálogo
direto com as práxis negras em movimento. Destarte, podemos indicar que por intelectuais
negras e negros estamos tratando de intérpretes do Brasil oriundas/os dos movimentos negros
ou por eles influenciados, cujas atividades teóricas, acadêmicas e/ou políticas foram
diretamente atravessadas pelo associativismo negro. Tais intelectuais atuaram, em maioria, nas
frestas da comunidade intelectual hegemônica brasileira ao longo do século XX.
Tal imaginação sociopolítica ou, em outros termos, tal pensamento social negro
brasileiro pode ser tido como uma massa crítica de interpretações do Brasil tecidas por pessoas
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negras que tem como âncora interpretativa a análise das formas específicas do racismo à
brasileira e o protagonismo político-intelectual negro no Brasil. Malgrado a existência de tais
componentes basilares do ofício intelectual afro-brasileiro, tais interpretações do Brasil não se
limitam a estudos a respeito da questão racial, pois, ao fim e ao cabo, é a formação sócio-
histórica e a organização das relações de poder no Brasil que estão sendo interpeladas por meios
múltiplos. Vejamos agora algumas das mais relevantes contribuições da imaginação
sociopolítica afro-brasileira ao longo do século XX.
Uma imaginação sociopolítica afro-brasileira no século XX
No período que se segue a abolição da escravização, ao edifício da República e a
transição do escravismo colonial para o capitalismo dependente brasileiro, parte expressiva da
população negra, para adequar-se à sociedade capitalista, devia seguir a cartilha da aculturação
e da assimilação, isto é, de duas das principais balizas da identidade nacional construída a partir
do racismo. Nesse sentido, o processo de afirmação da população negra como sujeito produtor
de conhecimento nos movimentos negros do século XX, processo capitaneado por uma “elite
negra” (Pereira, 2011, p. 72) masculina, terá em seus diagnósticos, prognósticos e tematizações
uma concatenação entre a denúncia do preconceito de cor apresentando uma gradualidade
no tocante à crítica, no entanto e um projeto de integração da população negra à sociedade
competitiva.
Os intelectuais propagandistas dos órgãos da imprensa negra e militantes da Frente
Negra procuravam tecer diagnósticos que pudessem promover um caminho para a integração
da população afro-brasileira, especialmente das pessoas tidas à época como menos afortunadas,
na sociedade competitiva. Não obstante a existência de pautas em comum, suscitadas pela
denúncia das desigualdades socioeconômicas e políticas que talhavam a vida no meio negro,
os órgãos da imprensa negra e a militância da Frente Negra Brasileira eram dinamizados por
disputas políticas e teóricas a respeito dos rumos do antirracismo nas primeiras décadas do
século passado.
Um marco presente nas publicações da imprensa negra à época consiste na invocação
da tese da distinção entre a questão racial nos Estados Unidos e no Brasil, por parte de
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intelectuais negros, em jornais como “O Clarim D’Alvorada”. Tal reflexão encaminha o debate
para prognósticos comuns aos defendidos pelas elites brasileiras à época que perduram ainda
hoje em nossa realidade: a negação da existência do racismo em nosso país, pois
se aqui existisse o preconceito teria a certeza que, a nossa questão racial
muito estaria resolvida. Portanto, não temos preconceito a nenhum a
combater, o que precisamos é trabalhar para a união do elemento negro
brasileiro; não somente para o nosso bem, como também, para o bem da nossa
querida pátria (O Clarim D’Alvorada, 4 de março de 1928).
Por outro lado, em “Para nossos leitores”, texto assinado por Oliveira na edição de 22
de setembro de 1918 do jornal “O Alfinete”, o racismo é assim denunciado:
A igualdade e a fraternização (sic) dos povos preconizadas (sic) pelos
princípios de 89 França e que a república implantou como symbolo (sic) de
nossa democracia, com relação aos negros é uma ficção é uma mentira que
até hoje não foram postas em prática(...) A raça branca opulenta, como é,
exercendo o seu poderio revoltante, campelle as pretas a viver em eterna
inferioridade, e esta consciente de sua pequenez permanece, sem ideal (O
Alfinete, 22 de setembro de 1918).
Malgrado o imperativo do paradigma integracionista, é patente que posições mais
progressistas podem ser observadas dentre as perspectivas defendidas por tal intelectualidade
orgânica do associativismo negro das três primeiras décadas do século passado. José Correia
Leite, escrevendo acerca d’O “porvir da raça negra” no Clarim, em 1935, indica que a
superação da condição de “espectador” na qual vivia a população negra no pós-abolição, se dá
a partir da organização da “raça do futuro”, posto que “Enquanto aguardamos a solução
decantada do nosso desaparecimento, vamos e marchando lentamente e penosamente, vamos
construindo as bases para a nossa emancipação integral” (O Clarim D’Alvorada, maio de 1935,
apud Silva, 2017, p. 118).
As mulheres negras também atuaram nos espaços de elaboração de pensamento
social, ainda que a organização política interna dos órgãos da imprensa negra e da Frente Negra
conservasse uma divisão sexista das tarefas, onde os cargos de direção eram, na esmagadora
maioria dos casos, ocupados por homens negros (Domingues, 2007b). É o caso de Eunice
Cunha, uma das fundadoras da FNB, em “Apelo às Mulheres Negras.”, escrito no Clarim, em
abril de 1935, onde a autora denuncia a manutenção da discriminação racial na modernização
da sociedade brasileira e, frente a isso, ressalta a importância da atuação das mulheres negras
no que compete a denúncia da realidade vivida por negras e negros à época, adiantando insights
fundamentais para o feminismo negro brasileiro:
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E nós, patrícias, precisamos nos mover, sacudir a indolência que ainda nos
domina e nos faz tardias. O cativeiro moral para nós negros ainda perdura.
Muito a propósito do triste conceito que fazem sobre nós, olhemos o que nos
preparam. Notemos a fundação desta Escola Luiz Gama com o fim de
preparar meninas de cor para serviços domésticos. Por esta iniciativa se
que para os brancos não possuímos outra capacidade, outra utilidade ou outro
direito a não ser eternamente o de escravo (O Clarim D’Alvorada, 1935,
apud Pereira, 2011, p. 15).
As décadas de 1940 e 1950, em diante, marcam um período de maior interesse a respeito
do estudo em torno das epistemologias afrodiaspóricas e dos grupos específicos negros por
parte de intelectuais negros. É o caso de Edison Carneiro, por exemplo, que realizou um resgate
histórico da República de Palmares em O Quilombo dos Palmares (1947) e uma radiografia
dos Candomblés da Bahia (1948). Virgínia Leone Bicudo, em Atitudes raciais de pretos e
mulatos (1945), buscou, pioneiramente, analisar os efeitos do processo de racialização — e de
impressão de uma identidade negativa na experiência vivida por pessoas negras em
substratos e classes sociais distintas no Brasil. Tal estudo, precursor dos estudos psicanalíticos
no Brasil, trouxe à luz, na sociologia, o relevante papel das experiências de vida da população
negra para a produção intelectual.
É também neste período que, nas interpretações do Brasil tecidas por intelectuais
negros(as), ocorre o prosseguimento deste resgate da história afro-brasileira, tendo como
arrimo epistemológico a categoria “negro” enquanto um lugar de construção de identidade
positiva. A negrura foi um aspecto ideopolítico debatido diretamente nos esforços do Teatro
Experimental do Negro (TEN), de seus intelectuais e militantes, destacando-se figuras como
Ironides Rodrigues, Abdias Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos. É do TEN que surgem os
primeiros esforços aproximativos dos movimentos negros brasileiros com o movimento
estético e teórico da négritude francófona, de tal modo a propor uma terapêutica da negritude
brasileira no tablado e nas disputas epistemológicas.
Em textos como O Negro no Brasil e um exame de consciência (1949), Um herói da
Negritude (1952) e O Negro desde dentro (1954), Guerreiro Ramos teceu uma análise crítica
do racismo à brasileira e uma reconstrução de sua concepção acerca da negrura enquanto
constitutiva da personalidade negra. Nestes exercícios epistemológicos, diretamente ligados a
uma perspectiva política crítica do status quo da cultura intelectual brasileira, o intelectual
baiano aproximou-se, cada vez mais, da afirmação de sua negrura enquanto um meio de
denunciar a alienação instituída na realidade brasileira, a partir das relações sociais e
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intersubjetivas, que instituía a negação da característica objetiva da população nacional a
sua negrura.
A negritude, em Ramos, constituiria um ato de afirmação da humanidade das pessoas
negras, um niger sum (Ramos, 1966), constituído cultural e historicamente pelas
idiossincrasias africanas. Destarte, a negritude, enquanto um humanismo concreto
oferece este humanismo a todo negro, a todo mestiço uma verdadeira
terapêutica espiritual, a liberação do medo e da vergonha de proclamar sua
condição racial, a possibilidade de desmoralizar os equívocos em torno do
homem de côr, suscitados por uma longa etapa da história do Ocidente
(Ramos, 1966, p. 104).
Essa afirmação seria fulcral para uma hermenêutica afro-brasileira, central para o
exercício fenomenológico de compreensão da alienação estética da população afro-brasileira,
cuja crítica à fuga da negrura teria fundamento em sua afirmação positiva. Destarte, de
acordo com Ramos, “revelar a negrura em sua validade intrínseca, dissipar com o seu foco de
luz a escuridão que resultou a nossa total possessão pela brancura é uma das tarefas heróicas
da nossa época” (Ramos, 1995, p. 243). O niger sum é, portanto, um exercício de
descolonização psicossocial e de afirmação positiva da negritude. Uma terapêutica da negritude
que, não obstante a passagem por processos de reformulação teórica e política, se fez presente
nos impulsos criativos do pensamento social afro-brasileiro nas décadas posteriores.
Em Clóvis Moura, temos, ao menos a partir da década de 1950, um processo de
construção de uma interpretação marxista particularmente negra, tendo em vista a influência
decisiva da arquitetura teórica marxiana e o diálogo, constituído por críticas, de sua obra com
as expressões marxistas brasileiras existentes em época. Ao longo do paulatino processo de
construção de sua arquitetura teórico-metodológica, cujo marco inicial pode ser observado em
Rebeliões da senzala (2020), livro publicado em 1959, a população negra e as práxis negras
em movimento operaram como protagonistas de sua interpretação do Brasil. Tal agenda de
pesquisa e, consequentemente, a arquitetura teórica marxista negra foi amadurecida pelo
sociólogo piauiense entre as décadas de 1970 e 1990, período de produção e publicação de suas
obras de maior fôlego epistemológico como O negro: de bom escravo a mau cidadão? (2021),
Sociologia do negro brasileiro (2019) e Dialética radical do Brasil negro (1994), publicados
em 1977, 1988 e 1994, respectivamente. De forma geral, o autor tratou do processo histórico
de estruturação racializada da sociedade brasileira, desde o escravismo colonial e,
notavelmente, a partir da transição deste modo de produção para o capitalismo de tipo
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dependente particularmente brasileiro um capitalismo racial de tipo dependente entre o
final do século XIX e o início do século XX.
Ao traçar uma sociologia da práxis negra como a base de uma interpretação do Brasil
de cunho marxista e ao apontar que a superação do racismo só poderia ser pensada a partir da
decomposição do modo de produção capitalista brasileiro, Moura opera um enegrecimento do
marxismo no Brasil, este que era por muito orientado pelos grandes manuais soviéticos e não
interessado em temas como a questão racial em sua especificidade brasileira. Ao contrário da
interpretação acerca do racismo à brasileira estabelecida, entre as décadas de 1940 e 1960, por
Alberto Guerreiro Ramos, cuja ênfase é comportamentalista, seus insights formulados desde a
década de 1950 são verdadeiros precursores da perspectiva crítico-estrutural do racismo
brasileiro e dos contemporâneos debates acerca do conceito de racismo estrutural.
A década de 1970 marca, também, o período de ressurgimento dos movimentos negros
brasileiros no processo de redemocratização da sociedade brasileira em meio ao regime
ditatorial militar instaurado em 1964. Tal quadro incidiu sobre a produção de intelectuais
negras(os) inseridos nas fileiras dos movimentos negros e, em menor quadro, nas instituições
universitárias. Kabengele Munanga (2019, p.135), aponta para uma alteração significativa no
modus operandi dos movimentos negros brasileiros ao longo da década de 1970: a substituição
de uma concepção “universalista” para uma “diferencialista” de antirracismo pautada pela
classificação “birracial negro/branco”, visando aparar as arestas das múltiplas categorizações
étnico-raciais de pessoas racializadas como negras na luta política (Munanga, 2019, p.149).
As produções epistemológicas tecidas por intelectuais negros brasileiros orgânicos e/ou
inspirados pelas práxis afro-brasileiras, na temporalidade supracitada, demarcam a cisão com
as táticas em torno do ideal da democracia racial que eram implementadas nas reivindicações
políticas e nos diagnósticos teóricos do pensamento social negro brasileiro tecido ao longo da
primeira metade do século XX, seja a partir do endosso ou da disputa crítica do sentido do
conceito.
Tal perspectiva crítica, não somente acerca das elites intelectuais brasileiras e sua
tradicional tematização-objetificação da população negra, mas também das gerações
intelectuais-ativistas que lhes antecederam quanto a mobilização política e a produção teórica
particularmente negra configurando-se, em certos casos, como uma autocrítica –, foi marcada
pela inegociável afirmação do lócus enunciador negro e feminista negro. Foi a partir de tais
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lugares sociais e políticos que a intelectualidade afro-brasileira ligada aos ou influenciada pelos
novos movimentos negros, notavelmente o Movimento Negro Unificado (MNU), interpretou
o Brasil, ainda que por caminhos epistemológicos distintos. Vejamos agora algumas das
principais contribuições do pensamento social afro-brasileiro e feminista negro, elaborados a
partir do final da década de 1970, especialmente a partir das obras de Abdias Nascimento e
Lélia Gonzalez.
Já na década de 1970, Abdias Nascimento atuou centralmente, enquanto representante
da luta pan-africanista no Brasil e no exterior, ao desmascarar a ideologia da democracia racial
constituída ao longo da história do Brasil. Nascimento, assim como outros intelectuais negros,
escreve ao final da década de 1970, período final da Ditadura Militar, onde a supracitada
harmonia entre as “raças” tornou-se doutrina do Estado nacional.
O autor investe contra os discursos de verdade concernentes à questão da raça e ao
pretenso problema do negro no Brasil, elaborados pela intelligentsia brasileira entre o século
XIX e o século XX. Demonstrando as artimanhas da pretensa aversão ao preconceito de cor
calcadas no imaginário coletivo brasileiro, Nascimento desmantela a visão idealizada das elites
brasileiras em torno do caráter idílico das relações sociais que fundam a sociedade brasileira,
isto é, as relações entre escravizados e senhores.
Tal concepção tica seria essencial para a naturalização das desigualdades e da
discriminação racial no Brasil republicano, ao mesmo tempo que fundamentava a ideia do país
enquanto um paraíso das raças. Apresentando o caráter desumanizador e violento do cotidiano
entre a casa grande e a senzala, bem como da gênese da miscigenação brasileira a partir do
estupro de mulheres negras escravizadas, Nascimento contribui significativamente para a
fortuna crítica acumulada do pensamento social afro-brasileiro ao trazer elementos para a
mobilização política antirracista na temporalidade supracitada.
Doravante, em face da negação da validade da harmonia racial brasileira, o autor aponta
para os modos nos quais estratégias de marginalização, controle de corpos negros e a
subvalorização das cosmogonias e epistemologias afro-brasileiras ancoram um sistemático
processo de genocídio da população negra brasileira. Neste sentido, Nascimento aponta para a
finalidade última do racismo antinegro no Brasil, que consiste na “obliteração dos negros como
entidade física e cultural” (Nascimento, 2016, p. 135). Um dos fatores decisivos da opressão
racista brasileira consiste no desmantelamento dos laços identitários afro-brasileiros,
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promovido, por sua vez, pelo embranquecimento sociocultural, isto é, pela repulsa à negrura
enquanto marca característica da formação do pacto social brasileiro.
Esse quadro incide diretamente no processo de assujeitamento dos seres sociais
racializados como negros e brancos no Brasil, gestando em parte expressiva da população afro-
brasileira a fuga da negrura e o rebaixamento das cosmogonias e epistemologias afro-
brasileiras como um passaporte para a integração a setores mais valorizados da sociedade.
Percebe-se aqui uma distinção significativa na compreensão de Nascimento quanto aos
desdobramentos do processo de fuga da negrura, frente à perspectiva de Guerreiro Ramos: mais
do que uma neurose cultural, ela configura um desdobramento do genocídio sociocultural afro-
brasileiro.
A partir disso, Nascimento coloca o dedo em uma ferida sublimada na formação sócio-
histórica do Brasil republicano, na qual nos remetemos anteriormente: o papel do racismo à
brasileira na gênese do Estado-nação, da ideia de cultura nacional e de uma identidade
brasileira. Por outro lado, aponta que é somente a partir da práxis negra em movimento que
poderia ser construída a libertação do povo negro das amarras da opressão racial, sendo esta
ação revolucionária orientada pela tradição civilizacional africana (Nascimento, 2016, p. 136).
O projeto político e cultural defendido por Nascimento seria apresentado de forma mais
efetiva em O quilombismo, livro publicado em 1980. Tal proposta política e existencial orienta-
se pela ação política organizada e coletiva da população afro-brasileira sob o signo do
protagonismo político negro ao longo da sangrenta história do Brasil, cujo maior marco é a
resistência quilombola.
O intelectual paulista conceitua tais práticas de afirmação da humanidade de pessoas e
grupos sociais escravizados e, portanto, de resistência ao escravismo como parte fundamental
da práxis política negra em nosso país, sendo aliadas a elas as formas de organização coletiva
da população afro-brasileira em torno da conformação de grupos culturais, religiosos,
recreativos e políticos existentes ao longo da história do Brasil. Doravante, toda essa fortuna
histórica de práticas políticas e culturais afro-brasileiras seria observada a partir de uma linha
temporal única, sob uma perspectiva histórica de longa duração. A essa unidade secular da
resistência afro-brasileira, Nascimento (2019, p. 290) denomina como “quilombismo”.
Trazendo o peso do protagonismo político afro-brasileiro ao longo de toda a formação
sócio-histórica do país, Nascimento apresenta o quilombismo como a base de um projeto
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político de reconstrução democrática da sociedade brasileira, capitaneado pela maioria da
população nacional, isto é, por afro-brasileiros na conjuntura política de redemocratização do
país ao longo do período final da Ditadura Militar. “O quilombismo é um movimento político
dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista,
inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que
existiram e existem no país” (Nascimento, 2019, p. 315).
O quilombo e o ser quilombola surgem como a unidade da luta política e o elemento
fulcral da mobilização transformadora frente as amarras da discriminação sistemática do
racismo à brasileira umbilicalmente ligadas a conformação das desigualdades entre as classes
sociais e, no caso das mulheres negras, ao sexismo enraizado na sociedade brasileira. O
quilombismo orienta-se, portanto, por uma prática política anticapitalista, antirracista, contrária
ao patriarcado colonial e racista e anti-imperialista.
A base argumentativa do projeto político proposto por Nascimento gira em torno da
suplantação das relações produtivas, sociais e políticas características do capitalismo em favor
do estabelecimento de relações socioeconômicas comunitárias inspiradas na experiência
quilombola brasileira. No que tange a dimensão econômica, o Estado-Nação quilombista
destaca-se pela abolição da propriedade privada da terra, dos meios de produção e da visão
utilitarista da natureza em face do estabelecimento de um novo modo de viver e ser em
comunhão com o outro e com o mundo (Nascimento, 2019, p. 298).
A supracitada reorganização da vida tem como base fundamental o reordenamento das
relações de poder tipicamente brasileiras que, no que concerne aos imbricamentos entre raça,
classe e gênero, conformam uma estratificação social na qual a hierarquização se caracteriza
pela imposição da superioridade branca, por parte dos aparatos e instâncias de ordenamento da
sociedade, em face da inferiorização da população negra e indígena. A espoliação econômica,
a violência policial e o embranquecimento sociocultural figuram enquanto partes centrais da
discriminação sistemática orientada pela racialização, que configura a manutenção dos
privilégios da minoria branca em face da maioria da população brasileira, ou seja, de pessoas
negras.
Doravante, tornar-se-ia necessária a luta política em torno da democratização real da
sociedade brasileira, objetivando a quebra das amarras historicamente construídas a partir da
sistêmica marginalização e pauperização da população afro-brasileira. Dito de outra forma, o
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quilombismo tem como compromisso a garantia do acesso da população afro-brasileira, em
sua esmagadora maioria composta por trabalhadores negros, ao poder político e às instâncias
de decisão e direção da sociedade brasileira.
A proposta político-cultural quilombista de Abdias Nascimento sintetiza a radicalidade
do pensamento social de um dos mais importantes intelectuais afro-brasileiros. Em suma,
reflete a aposta teórica e política em uma tarefa sankófica orientada pela herança civilizatória
africana no Brasil e pelo protagonismo político afro-brasileiro em um projeto de reconstrução
do ordenamento social autóctone em vistas do estabelecimento de uma democracia concreta
que abolisse a reprodução sistemática dos privilégios da minoria embranquecida.
Dos movimentos sociais, intelectuais e políticos das três últimas décadas do século XX
surgem os movimentos sociais de mulheres negras, dentre as quais podemos mencionar Lélia
Gonzalez, Matilde Ribeiro, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Luiza Bairros e, mais
recentemente, Rosane Borges, Flávia Rios e Djamila Ribeiro. Hodiernamente, pode-se afirmar
que o Feminismo Negro representa um dos principais impulsos das práxis negras em
movimento, dado que “o protagonismo político das mulheres negras tem se constituído em
força motriz para determinar as mudanças nas concepções e o reposicionamento político
feminista no Brasil” (Carneiro, 2019, p. 256). O Feminismo Negro configura, nesse sentido,
uma matriz fundamental do pensamento produzido nas frestas da cultura intelectual
hegemônica, tendo em vista as múltiplas chaves de análise do Brasil, a partir de uma
perspectiva interseccional, promovidas pelo pensamento feminista negro brasileiro.
A interpretação do Brasil tecida por Lélia Gonzalez figura entre as mais influentes
dentre a massa crítica do feminismo negro brasileiro, de tal modo que seu pensamento social
seja incontornável não apenas para a luta antirracista e feminista, mas sobretudo para as
ciências sociais contemporâneas. Sua obra destaca-se pela centralização dada pela autora aos
imbricamentos entre distintas formas de opressão e exploração na sistemática reprodução das
relações econômicas, sociais e políticas do capitalismo brasileiro.
Em escritos como Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da
exploração da mulher, publicado em 1979, a filósofa afro-brasileira investe em uma análise
acerca dos fatores determinantes, ao nível econômico, cultural e político, da formação do
capitalismo brasileiro, partindo de uma interpretação materialista, mas que dispensa o
economicismo dos estudos marxistas ortodoxos.
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Gonzalez inova a análise a respeito do desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo brasileiro, em seus distintos regimes de acumulação e mercados de trabalho, ao
trazer à tona o papel fulcral do racismo e do sexismo na configuração da massa marginal
brasileira. Isto, pois, como indicamos neste escrito, à modernização da sociedade brasileira
foi fundamental a marginalização da população negra no período que se segue à abolição da
escravatura. Marginalização essa que gestou inúmeras desigualdades socioeconômicas e
educacionais entre brancos e negros ao longo da história do Brasil republicano, de tal modo
que, para Gonzalez, “a maioria da população, praticamente, não alcançou a situação de força
de trabalho relacionada ao capitalismo industrial competitivo” (Gonzalez, 2020a, p. 27).
Ao final do século passado, a população afro-brasileira ocupava, em sua porção
majoritária, postos subvalorizados de trabalho, isto é, o subemprego, quando não estava à
margem do mercado de trabalho pessoas negras desempregadas e desalentadas. Alocada nas
zonas menos desenvolvidas do capitalismo brasileiro e deslocada do mercado de trabalho
capitalista, a população afro-brasileira compunha, majoritariamente, as posições mais baixas
do mercado de trabalho e da estratificação social brasileira.
Doravante, o racismo atua como um fator central no ordenamento da estratificação
social brasileira, de tal sorte que Gonzalez o categoriza como um elemento de “eficácia
estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho” (Gonzalez, 2020a, p.
29). Essa divisão racial do trabalho é vista como o fulcro da estratificação social no Brasil, na
qual a alocação dos sujeitos sociais em determinadas posições de classes é determinada pela
racialização e os desdobramentos da opressão racial. Isto é, Gonzalez aponta para a manutenção
do padrão racial do mercado de trabalho brasileiro, onde a população negra ocupa os setores
menos valorizados enquanto a minoria branca ocupa setores de comando.
Tal característica distintiva da opressão da população afro-brasileira passa a ser
explicada inovadoramente por Gonzalez a partir do conceito de “superexploração” (Gonzalez,
2020a, p. 32), no qual à exploração do trabalho junta-se a opressão racial e, portanto, a
marginalização, a pauperização e o controle de corpos negros por parte dos aparatos de
violência estatal.
Outro ponto decisivo da interpretação de Brasil em Lélia Gonzalez consiste no papel
do sexismo no processo de superexploração da população afro-brasileira, em especial das
mulheres negras. A experiência vivida por mulheres negras no Brasil é marcada por uma “tripla
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discriminação” (Gonzalez, 2020b, p. 50), em que além da precarização, da pauperização e da
condição subcidadã, na prática, às mulheres negras recaem a dupla jornada do trabalho, o
trabalho reprodutivo e a hiperssexualização cristalizada no imaginário coletivo brasileiro.
O processo de peneiramento racial no mercado de trabalho é também apontado por
Lélia Gonzalez na condição específica das mulheres negras, de tal modo que o racismo
promove escassas possibilidades de acesso às funções no setor industrial, corporativo e
burocrático, não obstante o processo de alargamento da presença da força de trabalho feminina
(branca) em tais setores ao longo do século passado. É a idealização, no imaginário racista
brasileiro, de uma condição servil e promíscua da mucama, no contexto do escravismo colonial,
que fundamenta o racismo e o sexismo na dimensão cultural da sociedade de classes. As
funções às quais parte expressiva de mulheres negras escravizadas eram obrigadas a exercer
são transfiguradas, no capitalismo brasileiro, nas funções laborais da empregada doméstica e
da “mulata” (Gonzalez, 2020c, p. 73).
Como vimos, uma representação racista e sexista é reificada na práxis social quando da
reprodução estruturante dos imbricamentos entre racismo e sexismo na formação do lugar da
mulher negra na estratificação social do capitalismo brasileiro. Ora, esse lugar social e
simbólico é o da doméstica, onde
ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços,
ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas.
Daí ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano. E é nesse
cotidiano que podemos constatar que somos vistas como doméstica
(Gonzalez, 2020c, p. 73).
O peso desse lugar relegado à mulher negra na sociedade de classes demonstra-se
cotidianamente nos constrangimentos aos quais toda mulher negra passa: em especial, o de ser
vista, independentemente de sua posição socioeconômica e ocupação profissional, enquanto
serviçal das casas de madames. Junto a isso, a hiperssexualização do corpo da mulher negra,
por parte do imaginário racista e sexista, cristaliza a concepção na qual a doméstica e a mulher
negra, em geral, têm uma tendência natural à prestação de serviços sexuais, em especial para o
branco, filho das camadas altas da sociedade. É nesse diapasão que Gonzalez indica que a
superexploração da mulher negra é dinamizada por uma “superexploração sexual” (Gonzalez,
2020d, p. 135) na qual figuram a coerção exercida pelo patrão em face da exigência dos
serviços sexuais e até mesmo da violação de seus corpos, dada a naturalização da ideia de posse
do corpo negro por parte do homem branco.
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Doravante, a filósofa afro-brasileira nos apresenta uma das mais importantes
contribuições à compreensão crítica do capitalismo brasileiro, o categorizando como um
“capitalismo patriarcal-racista dependente” (Gonzalez, 2020d, p. 132). Tal conceito sintetiza o
papel estruturante do racismo e do sexismo na sociedade de classes e, ao mesmo tempo,
apresenta uma crítica a desvalorização dos imbricamentos entre tais fatores na formação sócio-
histórica do país e, especialmente, na luta antirracista e feminista brasileira e latino-americana.
Em outras palavras, a desconsideração da organização racista e patriarcal do capitalismo
brasileiro e latino-americano suscita o silenciamento em torno da tripla opressão das mulheres
negras e ameríndias e de suas condições específicas no seio do proletariado.
Trata-se, portanto, do prosseguimento do processo de exclusão da esmagadora maioria
da população negra, em especial das mulheres negras, do pacto social constitutivo da cidadania
plena brasileira e da constante fabricação do sujeito racializado como negro enquanto um não-
ser superexplorado e desumanizado. Qual seria o fundamento do arrefecimento e, quiçá,
esquecimento coletivo do caráter estrutural do racismo em nosso país? Seu caráter dissimulado.
Enquanto fator estrutural da estratificação social, do mercado de trabalho, da
exploração de classes, da opressão sexista, em suma, de todo o ordenamento social brasileiro,
o racismo apresenta-se, dissimuladamente, enquanto uma “neurose cultural brasileira
(Gonzalez, 2020c, p. 68). Dito de outra forma, a realidade racista brasileira é constantemente
negada ou arrefecida tanto na esfera pública quanto na esfera privada da vida social. Como
explicar isso?
É neste diapasão que Lélia Gonzalez atualiza o debate em torno do “preconceito de
não ter preconceito” pautado por Florestan Fernandes (2021, p.851) enquanto um dos
principais desdobramentos do caráter escamoteado do racismo no Brasil, lançando mão de
categorias caras à teoria psicanalítica, tais como a de denegação, entendida como “processo
pelo qual o indivíduo, embora formulando um de seus desejos, pensamentos ou sentimentos,
até aí recalcado, continua a defender-se dele, negando que lhe pertença” (Laplanche; Pontalis,
1970, apud Gonzalez, 2020e, p. 115). A denegação marca as relações raciais brasileiras
justamente por caracterizar o arrefecimento e a fuga da realidade racista em nosso país.
Mais do que isso, Lélia Gonzalez aponta que a denegação também fundamenta a recusa
do caráter objetivo da formação sociocultural latino-americana e brasileira: o papel central das
cosmogonias, estéticas, conhecimentos filosóficos e técnicas socioprofissionais africanas na
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conformação da especificidade cultural do território latino-americano (Gonzalez, 2020e,
p.115).
Daí a constituição psicossocial da neurose cultural em nosso país, cujo fundamento e o
principal desdobramento consistem no seguinte quadro: negar a sua autenticidade amefricana
e a importância da identidade afro-brasileira para a formação sociocultural do país. A categoria
político-cultural da Amefricanidade é o arrimo epistemológico central da proposta política
radical de Lélia Gonzalez e é a partir dela que temos uma das maiores contribuições para a
descolonização das interpretações do Brasil e, portanto, para estabelecer uma diversidade
epistêmica no pensamento social e político brasileiro.
A práxis feminista negra de Lélia Gonzalez oxigena a teoria crítica brasileira ao
oferecer aportes teóricos centrais para a compreensão da formação sócio-histórica do escravista
e colonialista brasileira e da posterior consolidação do modo de produção capitalista de tipo
dependente tendo os imbricamentos entre racismo, sexismo e a exploração de classes como
elementos determinantes de nossa formação social.
Considerações finais
O presente trabalho nos oferece a possibilidade de trazermos à luz, para o microcosmo
do pensamento social e político brasileiro, as interpretações do Brasil tecidas pela
intelectualidade afro-brasileira orgânica aos associativismos negros ou por eles influenciada ao
longo do século XX. Tal fortuna crítica do pensamento social afro-brasileiro constitui parte
expressiva de uma imaginação sociopolítica negra e feminista negra construída nas frestas de
uma sociedade historicamente racista e sexista.
Um dos principais desdobramentos da presente análise, de caráter introdutório, dessa
imaginação sociopolítica pode ser visto no destaque de sua pluralidade epistemológica
umbilicalmente ligada aos rumos da luta antirracista no Brasil e na diáspora africana, bem como
da luta anticolonial no continente africano ao longo do século XX. Em nossa compreensão, a
fortuna crítica do pensamento social afro-brasileiro constituiu distintos “estilos de apreensão
da realidade” (Santos, 1978, p. 42) conectados, por sua vez, às mais variadas conjunturas
políticas da relativamente recente história brasileira.
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As interpretações do Brasil tecidas por intelectuais afro-brasileiros apresentam uma
certa gradualidade no tocante a análise da sociedade brasileira e, mais especificamente, do
racismo à brasileira por uma perspectiva sistêmica. Isto é, conectando a gênese e a reprodução
do racismo tanto ao sentido da formação sócio-histórica do país quanto a organização das
relações de poder que estruturam a realidade social brasileira. Observamos a formulação de
diagnósticos e prognósticos desde uma perspectiva integracionista estruturada pelo endosso a
ideologia da democracia racial, passando pela elaboração de uma terapêutica da negritude
brasileira como um elemento relevante do desenvolvimento democrático autóctone até a
elaboração de teses centrais a perspectiva crítico-sistêmica do racismo à brasileira, na
conjuntura histórica de redemocratização de nossa sociedade ao final do século passado.
Pode-se dizer, nesse sentido, que a produção teórica historicamente acumulada pela
intelectualidade negra ao longo do século XX marca um processo de paulatina maturação da
perspectiva crítica acerca do racismo à brasileira marcada, por sua vez, pela coadunação entre
diferentes marcadores sociais da diferença, como os de raça, classe e/ou gênero, de tal sorte
que, mediante as mais variadas intersecções entre as referidas categorias, distintas
compreensões acerca da realidade brasileira foram elaboradas por diferentes intelectuais afro-
brasileiros(as) ao longo do período.
A atuação teórica e política de intelectuais como José Correia Leite, Eunice Cunha,
Alberto Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento, Clóvis Moura e Lélia Gonzalez representam
atos de desobediência epistêmica em face da negação ao papel de mosca de laboratório das
ciências sociais, bem como de cidadania de segunda classe à qual foi relegada a população
afro-brasileira. Nesse sentido, o pensamento social afro-brasileiro ocupa lugar central na
elaboração de diagnósticos e prognósticos acerca da democratização real da sociedade
brasileira, tendo como lugar-comum a afirmação do protagonismo político e intelectual afro-
brasileiro.
Trazer à tona a importância e algumas das mais relevantes contribuições da fortuna
crítica afro-brasileira foi o objetivo principal desse escrito. Um dos pontos fulcrais de tal
proposta é a edificação da “diversidade epistêmica” em relação ao cânone do pensamento
eurocêntrico, visando alcançar aquilo que Ramón Grosfoguel compreende por “pluri-versidade
decolonial, cuja produção de conhecimento deve estar a serviço de um mundo para além do
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‘sistema-mundo capitalista, patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista”
(Grosfoguel, 2016, p. 46).
As gramáticas do pensamento social afro-brasileiro adiantam alguns insights
contemporâneos e, em parte significativa dos casos, são mais radicais do que os debates
hodiernos acerca dos temas supracitados. Doravante, se queremos um processo crescente de
crítica à colonialidade e uma postura antirracista no trato do pensamento social e político
brasileiro, é evidente que o pensamento negro brasileiro se apresenta como um celeiro
fundamental para a análise crítica do Brasil. Esse é um caminho importantíssimo para a
descolonização dos cânones intelectuais brasileiros.
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NOTAS
Contribuição de Autoria: Não se aplica.
Agradecimentos: Não se aplica.
Financiamento: Não se aplica.
Comitê de ética em Pesquisa: Não se aplica.
Disponibilidade de Dados e Material: Os dados e materiais utilizados no trabalho estão
disponíveis por meio das referências bibliográficas.
Conflitos de Interesse: Não há conflitos de interesse pertinente a declarar.
Uso de Inteligência Artificial (IA): Não houve uso de Inteligência Artificial no processo de
escrita deste artigo.
Publisher: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de
Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências Sociais. Publicação no
Portal de Periódicos da Faculdade de Filosofia e Ciências. As ideias expressadas neste artigo
são de responsabilidade de seus/suas autores/as, não representando, necessariamente, a opinião
dos/as editores/as ou da universidade
Como citar este artigo: PESSOA, Guilherme Dutra. O ser negro como lócus de interpretação
do Brasil: gênese e desenvolvimento dos impulsos criativos do pensamento social afro-
brasileiro no século XX. Revista Aurora, Marília, SP, v. 17, p. 024016, 2024. DOI:
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