Revista Aurora, v. 17, 2024. Fluxo Contínuo
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024009
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apreensível ou identificável (o passado e o futuro do enunciado não podem ser narrados
com certeza)” (Butler, 2021, p. 15), restando somente a impossibilidade de termos uma
visão totalizada de ambos. Contudo, é importante lembrar que, para Butler, a situação de
fala também não é um simples contexto para o injuriado, o aspecto psíquico do
destinatário da injúria fica abalado e a injúria dita também dói fisicamente:
Ser ferido pelo discurso é sofrer uma perda de contexto, ou seja, é não saber
onde se está. [...]. Ser chamado de forma injuriosa não é apenas abrir-se a um
futuro desconhecido, mas desconhecer o tempo e o lugar da injúria,
desorientar-se em relação à própria situação como efeito do discurso (Butler,
2021a, p. 15).
Todavia, é ainda fundamental compreender que, para Butler, apesar de acreditar
na existência de uma força ilocucionária violenta da linguagem, presente e expressa no
uso agressivo da interpelação, o discurso de ódio não tem eficácia absoluta, ou seja, ele
pode falhar. Trata-se de afirmar a vulnerabilidade linguística que, em grande medida, é
determinada pelo corpo e pela ameaça trazida pelo discurso de ódio.
A vulnerabilidade linguística pode resultar da ausência de controle do corpo, mas
também da sua presença, pois o hate speech é um ato corporal. Assim, um enunciado
injurioso não é, necessariamente, uma ameaça linguística a ser executada, mas possibilita
a sua realização quando se apresenta junto ao corpo. É esse corpo sem controle, “ponto
cego” do discurso, que possibilita o erro de não reproduzir a força ilocucionária do
enunciado da tradição em forma ritualística, possibilitando, assim, a falha no discurso.
É exatamente esta vulnerabilidade do discurso odioso, este espaço (gap) que
se forma entre o proferimento e seus efeitos, que deve ser explorado, de forma
a que tais termos sejam reapropriados e ressignificados, rompendo-se a antiga
cadeia ritual de repetições e iniciando-se uma nova, na qual a linguagem, antes
usada de forma violenta, limitadora e destrutiva, perde seu caráter injurioso e
adquire uma função positiva, cujos horizontes estejam sempre abertos para o
mundo (Cintra, 2012, p.38-39).
Outro elemento que Butler traz para explicar a vulnerabilidade linguística diz
respeito ao emissor dos ditos injuriosos, o sujeito. Este falante não é um sujeito soberano,
autônomo, de fala própria e autoral. Inversamente, tudo o que ele pronuncia faz parte de
uma cadeia ritualística de conteúdo histórico, repetida pelos falantes e que só reforça o
poder discriminatório e injurioso do poder dos preconceitos da tradição. Contudo, essa
historicidade do discurso de ódio não tira a responsabilidade do falante, pois ele não está
obrigado a proferir os enunciados injuriosos.