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O QUEROSENE DO DISCURSO DE ÓDIO NA FOGUEIRA DA
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
EL QUEROSENO DEL DISCURSO DE ODIO EN LA HOGAR
VIOLENCIA DE GÉNERO
THE KEROSENE OF HATE SPEECH AT THE BONFIRE OF
GENDER VIOLENCE
DOI:
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024009
Artigo
Recebido: 07/03/2024
Aprovado: 06/05/2024
Publicado: 03/06/2024
_________________________________
Cristiane Maria Marinhoª
https://orcid.org/0000-0003-4958-0299
ª Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail:
cristiane.marinho@uece.br
Artigo
Original
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Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão em torno da violência de gênero suscitada
pelo discurso de ódio, a partir do pensamento de Judith Butler, bem como dos conceitos
de gênero e de performatividade. Depois de, inicialmente, apresentar esses conceitos, o
texto se detém em explicitar algumas das diversas formas de violência de gênero, tais
como: assédio sexual, moral, violência doméstica, política, homofobia, transfobia e
feminicídio. Em seguida, e em decorrência da problemática levantada, o texto segue
refletindo sobre as possibilidades de resistência e combate a tais violências.
Palavras-chave: Discurso de ódio, Gênero, Performatividade, Violência de gênero,
Resistência.
Resumen: Este artículo presenta una reflexión sobre la violencia de género provocado
por el discurso de odio, a partir del pensamiento de Judith Butler, así como de los
conceptos de género y performatividad. Luego de presentar inicialmente estos conceptos,
el texto se enfoca en explicar algunas de las diferentes formas de violencia de género,
tales como: acoso sexual; doméstico; política; acoso moral; homofobia; transfobia y
feminicidio. A continuación, y a raíz de las cuestiones planteadas, el texto continúa
reflexionando sobre las posibilidades de resistencia y combate a dicha violencia.
Palabras clave: Discurso de odio, Género, Performatividad, Violencia de género,
Resistencia.
Abstract: This article presents a reflection on the gender violence raised by hate speech,
based on the thoughts of Judith Butler, as well as the concepts of gender and
performativity. After initially presenting these concepts, the text focuses on explaining
some of the different forms of gender violence, such as: sexual harassment; domestic;
policy; moral harassment; homophobia; transphobia and femicide. Next, and as a result
of the issues raised, the text continues reflecting on the possibilities of resistance and
combating such violence.
Keywords: Hate speech, Gender, Performativity, Gender violence, Resistance.
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Introdução
As expressões linguísticas racismo, misoginia, homofobia, sexismo e xenofobia
denotam um tipo de violência provocada pela não-aceitação das diferenças, pela
intolerância religiosa, de gênero, de identidade etc., exacerbadas pelo discurso de ódio,
demasiadamente difundido, principalmente nas redes sociais e em outras esferas públicas,
reforçando a discriminação de determinados sujeitos sociais definidos por posições
assumidas ou condições físicas.
O direito a expressar ideias, convicções, crenças é assegurado a todos os
cidadãos brasileiros pela Constituição Federal de 1988. Porém, quando alguém usa de
seus direitos à liberdade de expressão para discriminar outrem, considerando sexo,
etnia, religião e outras características ou preferências de modo de viver, ocorre a
manifestação do preconceito por meio do discurso de ódio. Assim, é sutil a distância
existente entre a liberdade legítima de expressar uma forma de pensar que respeite os
direitos de todos os cidadãos e o discurso que traz a intenção de inferiorizar alguém,
que defende a superioridade de certo grupo em detrimento de outro, que expressa
ofensas, que incita a violência contra uma pessoa, um grupo ou uma comunidade.
Atualmente, vemos e ouvimos, nos mais variados meios de comunicação social,
em todos os tipos de aparatos digitais ou analógicos, em textos, imagens e áudios, a
expressão “Sem liberdade de expressão, não democracia”. Porém, os termos
democracia e liberdade de expressão são utilizados como desculpa para a formação de
discursos que manifestam intolerância e discriminação contra minorias, como: negros,
indígenas, homossexuais, mulheres e tantas outras. Portanto, pode-se afirmar que o
discurso de ódio é o grau máximo do abuso do direito à liberdade de expressão e é
considerado crime.
O percurso a ser realizado nesse artigo envolve quatro partes. A primeira delas,
A performatividade no discurso de ódio, busca esclarecer as bases teóricas presentes na
constituição do discurso de ódio, tendo por base a Filosofia da Linguagem de John Austin
(1990), pela leitura de Judith Butler (2015). A segunda parte, A performatividade do
gênero, apresenta a redefinição de gênero, realizada por Butler pela chave de leitura da
performatividade. No terceiro item, O querosene do discurso de ódio na fogueira da
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violência de gênero, é explicitado como o discurso de ódio, de diversas formas, põe lenha
no fogo da violência, bem como mostra a diversidade de pessoas que ficam à mercê dessa
fogueira. Por fim, se mostramos o poder do discurso de ódio, que se apresentar,
também, as possibilidades das lutas de resistência; é o que comporá a última seção do
artigo, Resistência e combate à violência de gênero.
A performatividade no discurso de ódio
O discurso de ódio (hate speech) é o discurso que busca ofender, injuriar,
demonstrar preconceito e discriminar, mas é defendido pelas pessoas que acreditam que
qualquer discurso, incluindo o de ódio, é e deve ser tido como a livre expressão do
pensamento, haja vista que, para os detratores, é um produto cultural que é tomado como
verdadeiro e tende a ser naturalizado.
Aqui, a chave de análise, o discurso de ódio, será apresentada e utilizada a partir
da leitura de Judith Butler (2015; 2021a) e de sua interpretação da teoria dos Atos de Fala,
os performativos, de Jonh L. Austin (1990), que pertence à vertente da filosofia
pragmática da linguagem de Wittgenstein, a qual discorda da ideia tradicional que afirma
haver diferença entre ideia e ação, pois é o uso das palavras que determina o seu próprio
sentido. Para Austin (1990), diversamente, a linguagem não é mera transmissão neutra de
ideias, mas interfere na conduta física e detém um poder de violência que ela própria pode
ressignificar. Ou seja, a linguagem passa a ser uma atividade performática que age sobre
a realidade e a modifica, dependendo da vontade de seu agente.
O linguista e filósofo inglês Austin (1990), da teoria dos Atos de Fala, era ligado
à filosofia analítica da linguagem que, no início do Século XX, realizou a chamada
“virada linguística” que questionou o sentido metafísico representacional e descritivo da
linguagem. Assim, a linguagem passou a ser vista e estudada como uma prática social
concreta e uma construção da realidade. A tipologia das diferentes locuções performativas
propostas por Austin consiste no seguinte:
O ato ilocucionário é aquele em que, quando alguém diz alguma coisa, está
fazendo alguma coisa; o juiz que diz “Eu te condeno” não exprime a intenção
de fazer algo nem descreve o que está fazendo: o próprio dizer é um tipo de
ação. Os atos de fala ilocucionários produzem efeitos. Eles se apoiam, segundo
Austin, em convenções linguísticas e sociais. Os atos perlocucionários, por
outro lado, são aqueles enunciados que produzem uma série de consequências:
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em um ato de fala perlocucionário, “dizer alguma coisa produzirá certas
consequências”, mas o que foi dito e suas consequências são temporalmente
distintos; essas consequências não equivalem ao ato de fala, mas são, ao
contrário, “o que nós produzimos ou obtemos ao dizer algo”. Enquanto os atos
ilocucionários agem por meio de convenções, os atos perlocucionários o fazem
por meio de consequências. Implícita nessa distinção está a noção de que os
atos de fala ilocucionários produzem efeitos imediatos, sem nenhum lapso de
tempo; que o próprio dizer é o fazer e que eles são um e outro simultaneamente
(Butler, 2021a, p. 36-37).
Austin (1990) morreu em 1960, mas a publicação póstuma de seu livro How to do
things with words, traduzida para o português em 1990, com o título: Quando dizer é
fazer: palavras e ação, fomentou a continuidade das pesquisas em torno dos atos de fala
por diversos pensadores e em diferentes áreas do conhecimento. Na Filosofia da
linguagem temos John Searle e na área jurídica destacam-se as norte-americanas Mari
Matsuda e Catharine Mackinnon, por exemplo. Essas duas pensadoras estão presentes no
livro de Judith Butler, intitulado Discurso de ódio: Uma política do performativo (2021),
como interlocutoras da filósofa estadunidense.
Butler afirma que Matsuda interpreta o discurso de ódio não somente como uma
“atuação sobre o ouvinte (uma cena perlocucionária), mas também como uma
contribuição para a constituição social do destinatário (e, por consequência, como parte
de um processo de interpelação social)” (2021a, p. 38). Aqui o discurso de ódio se
apresenta invocando uma relação de dominação hierarquizada e, simultaneamente, dando
continuidade e fortalecimento. Ou seja, o ouvinte ocupa ou se identifica com uma posição
social que é interpretada
[...] como estando em uma relação estática e hierárquica entre si. Em virtude
da posição social que ocupa, o/a ouvinte é ferido/a como consequência desse
enunciado. O enunciado também obriga o sujeito a ocupar novamente uma
posição social subordinada. De acordo com esse ponto de vista, tal discurso
reinvoca e reinscreve uma relação estrutural de dominação e constitui a ocasião
linguística para a reconstituição dessa dominação estrutural (Butler, 2021a, p.
38).
Por sua vez, a ativista feminista Mackinnon, segundo Butler (2021), analisa e
critica o papel da mulher na pornografia e busca “demonstrar que as representações
pornográficas são performativas, isto é, que elas não afirmam um ponto de vista nem
descrevem uma realidade, mas constituem certo tipo de conduta” (2021a, p. 37). Portanto,
a pornografia é “interpretada como uma forma de discurso de ódio e que sua força
performativa é descrita como ilocucionária” (Butler, 2021a, p. 38). Butler defende a
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proibição da pornografia por entender ser uma espécie de hate speech ilocucionário que
faz existir o que é dito, coisificando e inferiorizando a mulher no momento em que é
pronunciado.
Butler desenvolve diversas críticas às interpretações de discurso de ódio das duas
teóricas, principalmente a partir de uma ótica performativa específica que tem por base
que o hate speech é, como ato de fala, principalmente, uma espécie de injúria verbal. A
filósofa busca compreender a existência do discurso de ódio e a força da violência de sua
linguagem nas relações intersubjetivas. Daí vem sua compreensão do discurso de ódio
como injúria verbal, o que possibilita, também, a sua criminalização, posto que é um
crime à dignidade do injuriado. Por isso, também desenvolve reflexões em torno de
formas de combate aos ditos injuriosos e salienta o controverso fato de que a injúria
também é responsável pelo reconhecimento do sujeito.
O problema do discurso injurioso levanta a questão sobre quais o as palavras
que ferem, quais as representações que ofendem, sugerindo que nos
concentremos nessas partes da linguagem que são enunciadas, enunciáveis e
explícitas. Ainda assim, a injúria linguística parece resultar não apenas das
palavras utilizadas para se dirigir a alguém, mas também do próprio modo de
endereçamento, um modo uma disposição ou um posicionamento
convencional que interpreta e constitui o sujeito (Butler, 2021a, p. 12).
Contudo, a autora não quer simplesmente saber quais palavras ferem, mas sim
analisar qual a capacidade de ferir que a linguagem possui. Da mesma forma, sua análise
não se restringe somente às relações intersubjetivas, pois está em jogo no pronunciamento
do hate speech o que Austin (1990) chamou de situação total de fala, ou seja, a tradição
em que a injúria foi gestada historicamente. Sendo a injúria a repetição de um passado
remoto que citamos (citacionalidade) e o reconstituímos e o fortalecemos a partir do
discurso de ódio direcionado a alguém.
Na compreensão de Butler, a partir de Austin (1990), a força ilocucionária de uma
injúria advém do espaço e do tempo históricos do ódio que recuperamos por intermédio
dos rituais em que ofendemos com injúrias. E é a partir da repetição desse ritual
1
, que
fortalecemos a sobrevivência de determinada injúria e a reconstituímos. Contudo,
diferentemente de Austin, para a filósofa, a situação total do ato de fala “não é totalmente
1
“Enquanto Pierre Bourdieu enfatiza a dimensão ritual das convenções que sustentam o ato de fala em
Austin, Derrida substitui o termo ‘iterabilidade’ por ritual, estabelecendo desse modo uma explicação
estrutural da repetição no lugar de uma concepção mais semântica do ritual social” (Butler, 2021a, p. 14).
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apreensível ou identificável (o passado e o futuro do enunciado não podem ser narrados
com certeza)” (Butler, 2021, p. 15), restando somente a impossibilidade de termos uma
visão totalizada de ambos. Contudo, é importante lembrar que, para Butler, a situação de
fala também não é um simples contexto para o injuriado, o aspecto psíquico do
destinatário da injúria fica abalado e a injúria dita também dói fisicamente:
Ser ferido pelo discurso é sofrer uma perda de contexto, ou seja, é não saber
onde se está. [...]. Ser chamado de forma injuriosa não é apenas abrir-se a um
futuro desconhecido, mas desconhecer o tempo e o lugar da injúria,
desorientar-se em relação à própria situação como efeito do discurso (Butler,
2021a, p. 15).
Todavia, é ainda fundamental compreender que, para Butler, apesar de acreditar
na existência de uma força ilocucionária violenta da linguagem, presente e expressa no
uso agressivo da interpelação, o discurso de ódio não tem eficácia absoluta, ou seja, ele
pode falhar. Trata-se de afirmar a vulnerabilidade linguística que, em grande medida, é
determinada pelo corpo e pela ameaça trazida pelo discurso de ódio.
A vulnerabilidade linguística pode resultar da ausência de controle do corpo, mas
também da sua presença, pois o hate speech é um ato corporal. Assim, um enunciado
injurioso não é, necessariamente, uma ameaça linguística a ser executada, mas possibilita
a sua realização quando se apresenta junto ao corpo. É esse corpo sem controle, “ponto
cego” do discurso, que possibilita o erro de não reproduzir a força ilocucionária do
enunciado da tradição em forma ritualística, possibilitando, assim, a falha no discurso.
É exatamente esta vulnerabilidade do discurso odioso, este espaço (gap) que
se forma entre o proferimento e seus efeitos, que deve ser explorado, de forma
a que tais termos sejam reapropriados e ressignificados, rompendo-se a antiga
cadeia ritual de repetições e iniciando-se uma nova, na qual a linguagem, antes
usada de forma violenta, limitadora e destrutiva, perde seu caráter injurioso e
adquire uma função positiva, cujos horizontes estejam sempre abertos para o
mundo (Cintra, 2012, p.38-39).
Outro elemento que Butler traz para explicar a vulnerabilidade linguística diz
respeito ao emissor dos ditos injuriosos, o sujeito. Este falante não é um sujeito soberano,
autônomo, de fala própria e autoral. Inversamente, tudo o que ele pronuncia faz parte de
uma cadeia ritualística de conteúdo histórico, repetida pelos falantes e que reforça o
poder discriminatório e injurioso do poder dos preconceitos da tradição. Contudo, essa
historicidade do discurso de ódio não tira a responsabilidade do falante, pois ele não está
obrigado a proferir os enunciados injuriosos.
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É, precisamente, a vulnerabilidade linguística formada por esses acontecimentos
que possibilita: ressignificar as palavras de ódio; fazer uma reapropriação do poder
injurioso; renovar a acolhida da herança da tradição. Em termos práticos e políticos, a
vulnerabilidade linguística também abre espaço para: o desenvolvimento da criação de
movimentos de resistência, como é o caso das políticas performativas em Butler; os
movimentos sociais; as Políticas Públicas; o Direito e as questões jurídicas; as resistências
estatais ou civis; a reapropriação de termos cooptados pelos discursos de ódio. Contudo,
não há ida ao paraíso, a agonística será testemunha e norteadora dessa batalha sem fim.
A performatividade do gênero
Butler (2015) inicia seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade questionando a categoria mulher e sua centralidade como sujeito do
feminismo. Para tanto, realiza uma genealogia da produção feminista da categoria mulher
nas chamadas primeira e segunda ondas feministas e mostra como essa categoria foi
transformada pelo movimento feminista em uma identidade ontológica essencializada.
Para a filósofa, apesar da importância das discussões desse movimento, a categoria gênero
foi se tornando metafísica, pois, inversamente, ela o compreendia como sendo marcado
pela performatividade e para além da categoria mulher e do binário sexo/gênero.
Ampliando a abrangência das questões ligadas ao movimento feminista, Butler critica a
distinção entre sexo/gênero que compreendia o sexo a partir da anatomia biológica e o
gênero como uma construção social, distinção que correspondia à clássica interpretação
estruturalista de natureza/cultura. Assim:
Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido
definir o Gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser
meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo
previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são
estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo
para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural [...] (Butler, 2015, p.
27).
Para Butler (2015), é possível constatar que os que ficaram de fora da
conceituação metafísica de gênero (mulheres negras, mulheres lésbicas, pessoas
transexuais, homossexuais, bissexuais, transgêneros etc.) nas duas ondas feministas são
tidos como pessoas abjetas e que, por isso, precisam lutar para serem reconhecidas como
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pessoas de direito e com lugar no espaço público e político. As vidas precárias dessas
pessoas abjetas, na linguagem político-filosófica butleriana, precisam ocupar a esfera
pública a que têm direito e exercerem suas identidades flexíveis, para além de uma
identidade fixa, tal como a categoria mulher foi desenhada nas duas primeiras ondas do
feminismo. Portanto, Butler (2015) mostra a fragilidade do raciocínio fundacionista da
política da identidade, pois requer a existência de uma identidade prévia e fixa para que
se possa fazer política e exercer a ação política. Diversamente, para a pensadora, não
a necessidade dessa fixidez identitária com existência prévia para a consecução da ação
política, pois o agente político é construído no e através do ato, performativamente. Dessa
forma, Butler (2015) afirma que gênero é uma produção discursiva.
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no
interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no
tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de
ser. A genealogia política das ontologias do gênero, em sendo bem sucedida,
desconstruiria a aparência substantiva do gênero, desmembrando-a em seus
atos constitutivos, e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas
compulsórias criadas pelas várias forças que policiam a aparência social do
gênero (Butler, 2015, p. 69).
uma questão política muito importante quanto à categoria performativa de
gênero em relação ao conceito metafísico mulher, ou mesmo mulheres, pois, como foi
visto, é “normativa e excludente”, não abrangendo as diversidades existentes em suas
multiplicidades, enquanto a categoria gênero é inclusiva, pois abarca a “multiplicidade
das interseções culturais, sociais e políticas em que é construído o espectro concreto de
“mulheres’” (Butler, 2015, p. 39), o que, também, possibilita mais fortemente as políticas
de coalizão. Da mesma forma, o gênero nunca se totaliza ou esgota as possibilidades de
inclusão, pois consiste em:
uma coalizão aberta, portanto, afirmaria identidades alternativamente
instituídas e abandonadas, segundo as propostas em curso; tratar-se-á de uma
assembleia que permita múltiplas convergências e divergências, sem
obediência a um telos normativo e definidor (Butler, 2015, p. 42).
Contudo, é necessário explicitar, mais claramente, o sentido de performatividade
nesse âmbito butleriano, tanto para compreender a construção de gênero como para
clarear a relação entre discurso de ódio e violência de gênero. Nesse sentido, a
performatividade é um termo criado por J. L. Austin (1990) em sua teoria dos Atos de
Fala e se caracteriza pelos
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enunciados linguísticos que, no momento da enunciação, faz alguma coisa
acontecer ou traz algum fenômeno à existência. [...]. Um enunciado
existência àquilo que declara (ilocucionário) ou faz com que uma série de
eventos aconteça como consequência do enunciado (perlocucionário) (Butler,
2018, p. 35).
Ou seja, Butler (2018) define a performatividade como “um modo de nomear
um poder que a linguagem tem de produzir uma nova situação ou de acionar um conjunto
de efeitos” (2018, p. 35). Os exemplos clássicos de atos performativos são, por exemplo,
a declaração de guerra, o enunciado do juiz de casamento entre duas pessoas e a voz de
Deus pronunciando “faça-se a luz”. Trata-se, portanto, não apenas da atuação da
linguagem, mas sim porque ela “atua de maneira poderosa” (2018, p.35).
Butler (2018), então, aproxima a teoria performativa dos Atos de Fala de uma
teoria performativa de gênero, em atos corporais performativos, pois a performatividade
linguística está, para Butler, na formação do gênero, por intermédio da lenta inculcação
das normas que vão marcando os sujeitos e estigmatizando, bem como nos tornando
passivos diante da máquina cultural. São também normas que nos produzem, pois
“informam os modos vividos de corporificação que adquirimos com o tempo, e esses
modos de corporificação podem se provar formas de contestar essas normas, até mesmo
para rompê-las” (Butler, 2018, p. 37).
Ou seja, de acordo com a filósofa, recebemos o gênero, mas não o inscrevemos
passivamente em nosso corpo, mesmo que sejamos obrigados a representá-lo por ter que
corresponder às interpelações diversas. E mesmo que se repita a representação do gênero,
algo fundamental na ação performativa, nunca reproduzimos fielmente as suas normas
balizadoras, nem mesmo aquelas estabelecidas pelos “discursos autoritários sobre gênero
– a lei, a medicina e a psiquiatria” (Butler, 2018, p.38). Assim,
[...] no curso da reprodução, parte da fraqueza da norma é revelada, ou outro
conjunto de convenções culturais intervém para produzir confusão ou conflito
dentro de um campo de normas, ou, no meio da nossa representação, outro
desejo começa a governar, e formas de resistência se desenvolvem, alguma
coisa nova acontece, não precisamente o que foi planejado (Butler, 2018, p.
38).
Portanto, na perspectiva butleriana, “[...] dizer que o gênero é performativo é,
dizer que ele é um certo tipo de representação [...] (Butler, 2018, p. 39) e não uma
verdade revelada, mas sim imposto para ser constituído a partir de normas binárias que o
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poder acaba por reproduzir. Porém, sempre havendo possibilidade de ruptura com essas
normas e a criação de outras diversas daquelas:
[...] o ‘aparecimento’ do gênero é frequentemente confundido com um sinal de
sua verdade interna ou inerente; o gênero é induzido por normas obrigatórias
que exigem que nos tornemos um gênero ou outro (geralmente dentro de um
enquadramento estritamente binário); a reprodução do gênero é, portanto,
sempre uma negociação com o poder; por fim, não existe gênero sem essa
reprodução das normas que no curso de suas repetidas representações corre o
risco de desfazer ou refazer as normas de maneiras inesperadas, abrindo a
possibilidade de reconstruir a realidade de gênero de acordo com novas
orientações (Butler, 2018, p. 39-40).
O querosene do discurso de ódio na fogueira da violência de gênero
Na perspectiva da chave de análise aqui adotada, compreendo como questão
central que a violência de gênero é resultado do discurso de ódio às pessoas que
transgrediram as normas de um mundo pautado, dentre outros, nos seguintes princípios:
patriarcalismo; heterossexualidade compulsória; binarismo sexo/gênero; coerência
sexo/gênero/desejo; biologia como destino.
O discurso de ódio e seus falantes não suportam a ideia de que o gênero não se
define pela genitália e sim pela forma de como a pessoa se sente ou quer ser reconhecido,
pois está relacionado à prática social. Gênero é uma questão de atuação no mundo, de
prática, de performatividade, de multiplicidade, de fluidez.
Nos enunciados do discurso de ódio cabe a ideia de que o gênero é uma
essência metafísica, uma natureza, uma verdade inventada historicamente que afirma
existir homem ou mulher. E quem acredita que gênero é uma construção social
performativa deve ir para a fogueira da violência de gênero, essa nova modalidade de
ação inquisitorial.
A explicação para esse ódio e castigo se deve, em parte, a uma certa
interpretação da tradição bíblica que afirma que a criação divina fez o homem e a mulher,
sendo a heterossexualidade a única forma de exercer a sexualidade, visto que o encontro
dos corpos está voltado, necessariamente, para a reprodução da espécie humana. Todas
essas questões estão na Bíblia; seguem alguns exemplos clássicos: Efésios 5:22-24;
Gênesis 1:27-28; Levítico 18:22; e Gênesis 3:16:
Efésios 5: 22 “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor;
23 - Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da
igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. 24 - De sorte que, assim como a
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igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas
a seus maridos”.
Gênesis 1:27 “Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o
criou; homem e mulher os criaram. 28 - Deus os abençoou, e lhes disse: "Sejam
férteis e multipliquem-se!’”
Levítico 18:22 Com homem não te deitarás, como se fosse mulher,
abominação é”.
Gênesis 3:16 – “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua
conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido,
e ele te dominará”. (Grifo meu)
(Bíblia Sagrada, 1997).
Da mesma forma, certa leitura filosófica moderna defende que Deus criou o
homem como um ser superior à mulher que, por sua vez, deve ser submissa àquele. Para
Rousseau (1992), por exemplo, em seu livro Emílio ou da educação, é possível observar
que para o genebrino há uma desigualdade natural entre os sexos, sendo a mulher inferior
ao homem. Para esse filósofo, a assertiva sobre a inferioridade feminina é dita com
palavras românticas e amenas, mas a decorrência disso é a cruel exclusão das mulheres
do espaço público, lhes restando somente a entrega ao confinamento do lar, o espaço
doméstico: “Feita para ser um dia mãe de família ela própria, governando a casa paterna
aprende a governar a dela; é capaz de atender às funções dos criados e sempre o faz de
bom grado” (1992, p. 473).
Para Rousseau (1992), não o que contestar sobre a desigualdade entre os sexos
e a inferioridade da mulher, pois é algo que se deve à natureza e à razão:
Quando a mulher se queixa da injusta desigualdade que o homem impõe, não
tem razão; essa desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos,
obra do preconceito, e sim da razão: cabe a quem a natureza encarregou do
cuidado dos filhos a responsabilidade disso perante o outro (Rousseau, 1992,
p. 428).
A argumentação sobre a inferioridade feminina fica bem clara na própria divisão
do seu livro sobre Emílio o título traz o nome do protagonista que é um homem; quatro
capítulos são dedicados à Emílio; somente um capítulo é dedicado à Sofia, futura esposa;
a educação dos dois é diferenciada, pois para o sexo masculino é voltada ao espaço
público, o desenvolvimento das capacidades cognitivas e sociais, enquanto para a mulher
a educação deve ser totalmente voltada para o lar em função de servir o marido.
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Os avanços políticos e sociais, a luta pelos direitos civis, os movimentos sociais,
dentre tantos outros, desestabilizaram e questionaram essa estrutura bíblica e científica.
Foram fundamentais e fundantes desses abalos os movimentos feministas e LGBTQIA+,
bem como todos os outros movimentos que se desdobraram a partir ou junto deles. Como,
por exemplo, os movimentos: negro; decolonial; anticapacitista; ecológico etc.
Contudo, desde meados do século XX, em função de sucessivos abalos do
sistema capitalista, dentre outros elementos, houve um avanço e ampliação do
conservadorismo, conhecido como neoconservadorismo, que tem retomado, fortemente,
as pautas bíblicas e as ideias ultrapassadas de uma ciência desmentida em seus
corolários, com o objetivo de retomar as taxas de lucro perdidas, preservar a autoridade e
suposta supremacia do homem branco e heterossexual. Nesse avanço do
neoconservadorismo, salientamos, também, a instrumentalização religiosa a favor de seus
próprios interesses por parte das igrejas neopentecostais.
Todo esse quadro social, político e econômico de retrocesso, fortalecido pelo
neoconservadorismo, fomenta o discurso de ódio contra aqueles que não cabem nas suas
pretensões de poder, nas suas normas decretadas como verdadeiras e divinas, e, muito
fortemente, fica na mira as questões de gênero, principalmente as relacionadas à violência
de gênero.
O discurso de ódio, além de injuriar, subalternizar e inferiorizar seu destinatário,
acaba por desencadear ações violentas que levam, inclusive, à morte, seja por assassinato
(feminicídio), seja por auto violência (suicídio). Os destinatários do discurso de ódio,
aqueles que transgridem as normas impostas pelo conservadorismo, são as mulheres
trans, lésbicas, bissexuais, transgêneros, ou as que “desacatam” o modus vivente que vige
na sociedade cisheteropatriarcal.
A violência desencadeada pelo discurso de ódio tem grande abrangência:
violência psíquica; violência sexual; misoginia; violência doméstica; abuso sexual
infantil; xenofobia; racismo; transfobia; homofobia; lesbofobia; violência física;
violência política; violência de classe, dentre tantas outras violências. Essa grande
abrangência da violência de gênero se explica pelo fato de que, como visto acima, a
própria compreensão do gênero pelo viés performativo possibilita enxergar a
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interseccionalidade em ter diversos marcadores sociais, tais como classe, raça, sexo,
sexualidade, etnia e outros.
As estatísticas em torno dos números que envolvem essas violências são
absurdas e inaceitáveis e podem ser conhecidas por diversas instituições de pesquisa
existentes no país, sejam particulares, acadêmicas, estatais ou alternativas. Não irei me
deter na amostragem desses dados de números estratosféricos e cruéis. Diversamente, irei
falar a seguir sobre as possibilidades de resistências à violências de gênero incendiadas
pelo discurso de ódio, a partir das alternativas jurídicas e éticas, com Margareth Rago.
Resistência e combate à violência de gênero
No artigo intitulado Foucault, os feminismos e o paradoxo dos direitos (2017),
Margareth Rago analisa duas interpretações divergentes em relação ao Direito e às
Políticas Públicas, problematizando qual deles seria o mais pertinente para “os desafios
enfrentados pelos feminismos em relação ao paradoxo dos direitos e às saídas oferecidas
para conter a violência sexual e de gênero cometida contra os corpos femininos” (Rago,
2017, p. 229). O texto é inspirado, dentre outros referenciais teóricos, em Michel
Foucault, tendo por categorias centrais o poder, o punitivismo e os direitos humanos.
A ideia central do texto, que nos interessa mais de perto, é a resposta dada pela
autora ao suposto paradoxo que existiria sobre a pertinência do combate à violência de
gênero: a solução estaria com os Direitos Humanos e as Políticas Públicas ou com o
Direito Punitivista?
Após apresentar argumentos de vários teóricos e ativistas que acreditavam em
uma opção ou outra, predominantemente por acreditarem que ambas as opções se
excluíam, Rago (2017) apresenta seus argumentos e foge do radicalismo. Parte da
esquerda teria se engajado a favor da narrativa humanitária, mas outra parte, inspirada no
livro Vigiar e punir de Foucault, criticava radicalmente
a demanda por direitos e por políticas públicas, entendendo-as como busca de
“mais Estado”, ou seja, de “mais controles” sobre os indivíduos. Para esses
grupos libertários, a criminalização de atos violentos, como o assédio sexual,
o estupro, a violência de gênero, a homofobia e as leis resultantes dizem
respeito a “estratégias punitivas”, que criam novos controles e reforçam o
poder do Estado sobre os corpos dos cidadãos (Rago, 2017, p. 230).
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Contrariamente, os movimentos feministas, em sua maioria, acolheram de bom
grado, como uma conquista e um avanço das lutas e para as mulheres, as leis como a Lei
Maria da Penha, de 2006 e a tipificação do feminicídio, de 2015. Ou seja, o punitivismo
e a criminalização dos atos relativos à violência de gênero foram ditos como uma
iniciativa do Estado, que teria proporcionado mais direitos às mulheres.
Contudo, parte dos movimentos feministas, além de chamarem a atenção para sua
cooptação pelo Estado, quando aplica o punitivismo e cria as políticas públicas, também
acreditam que o movimento é capturado pelo Estado neoliberal, por meio de aberturas de
políticas públicas que só beneficiam os interesses do Capital: Certamente os feminismos
também são afetados pelas injunções do neoliberalismo e pelos investimentos que têm
em vista melhorar o “capital humano” das mulheres, ao mesmo tempo em que visam a
produção de sujeitos neoliberais femininos(Rago, 2017, p. 233). Para a autora, não
como negar essa realidade, mas também compreende que essa não é toda explicação do
problema no combate da violência de gênero.
Rago (2017) resgata a concepção foucaultiana do “direito novo”, distinto da
posição antipunitivista do livro Vigiar e punir, que se refere às práticas inscritas “em um
domínio não normalizador, em um campo que se constitui livre do princípio da soberania.
Trata-se, antes, de “atitudes críticas”, da recusa a ser governado, da ‘arte da indocilidade
voluntária’” (2017, p. 231). Implica em uma ação de um agir ético contra as
normalizações do poder, sendo práticas de resistências.
A partir daí fica claro para a historiadora, filósofa e feminista Margareth Rago
que não se trata, simplesmente, de tomar partido unilateralmente entre os paradoxos
indicados e que separam as posições de feministas e de teóricos nas análises e atos feitos
no âmbito do combate à violência de gênero. que se levar em conta as condições
sociais e econômicas do Brasil e, principalmente, as condições de sobrevivência e
vulnerabilidade das mulheres:
Não se pode concluir, portanto, que as lutas por direitos de cidadania e por
políticas públicas devam ser taxadas simplesmente como capitalistas e
neoliberais, nem que seus únicos efeitos sejam a sujeição do indivíduo ao
Estado na constituição do “sujeito de direito”. Certamente colocam o
feminismo e as mulheres num novo contexto político, mas se não como
negar a dimensão de captura dos corpos e das subjetividades contidos, não
é suficiente enxergar o Estado como puro agente do mal e as mulheres como
suas vítimas. Seria limitado perceber [os] programas realizados pelo Estado
com um forte apoio dos movimentos feministas de massa apenas como formas
estratégicas da biopolítica e da governamentalidade, pois emergem de
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reivindicações de base e são monitorados diretamente pelas feministas, críticas
da atuação do Estado e das políticas públicas. Como, então, pensar as políticas
feministas nesses novos contextos? (Rago, 2017, p. 234-235).
Rago defende que Políticas Públicas que não são somente impostas pelo
Estado, mas também, muitas vezes, são conquistas feministas e fortalecem
economicamente as mulheres que nunca tiveram condições de ter certa autonomia
financeira, propiciando o fortalecimento “[...] no plano subjetivo e emocional,
possibilitando a resistência aos processos normalizadores tanto quanto à violência sexual
e doméstica, especialmente o abuso contra garotas [...]” (Rago, 2017, p. 236). Além do
mais, muitos desses programas têm, na implementação, a participação do trabalho de base
da comunidade, envolvendo as mulheres, “[...] muitas das quais sindicalistas e líderes
comunitárias, em que discussões e reflexões sobre a violência sexual, a família, o corpo
e a opressão patriarcal abrem espaço para que reflitam sobre sua própria situação e
instaurem novos olhares sobre si mesmas [...]” (Rago, 2017, p. 236).
Rago (2017) conclui que não se trata de subestimar a relevância da análise desse
fenômeno de captura das lutas feministas, “[...] seria simplista generalizar a análise e
reduzir os feminismos no Brasil ao ‘feminismo de Estado’” (p. 238). Não como
simplificar as lutas feministas somente “à criação de ministérios e secretarias especiais
destinados à elaboração de políticas públicas para as mulheres (p. 238), pois, para além
da conquista dos direitos, “os feminismos lutam por ‘políticas de nós mesmas’, para a
possibilidade de nos afirmarmos em nossa singularidade e de criarmos outros estilos de
vida, outros vínculos de amizade e de sociabilidade que escapem da competitividade, da
violência e do narcisismo [...]” (Rago, 2017, p. 237).
Considerações Finais
Vimos que a performatividade do discurso de ódio tem grande alcance e
consequências danosas em função do seu potencial destrutivo, aumentando os desafios
postos para a constituição de gêneros, considerando a formação de uma sociedade
heterossexual.
Com Judith Butler vemos os desafios que a constituição de gêneros tem para
enfrentar, numa sociedade predominantemente alicerçada na identidade heterossexual, na
qual as pessoas que não seguem as regras são estereotipadas e agredidas psicológica e
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fisicamente. Portanto, é necessário o enfrentamento das estruturas conservadoras,
almejando construir bases sociais que favoreçam o respeito às mais diversas diferenças,
derrubando as bases de uma sociedade, predominantemente, patriarcalista.
Historicamente, os discursos misóginos, machistas e sexistas foram
naturalizados por uma sociedade patriarcal que fincou a mulher numa situação de
desvantagem e discriminação, o que acarretou elevados índices de violência de gênero.
Dessa situação desigual surgem os movimentos feministas e de direitos humanos, que
posicionam refletores e dão visibilidade para as distintas formas de violência de gênero.
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Cristiane Maria Marinho é Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará
(UFC), Fortaleza, Ceará, Brasil. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de
Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil. Pós-doutorado em Filosofia da Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil.
Professora Emérita Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará, Brasil.
Professora Permanente da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará,
Brasil. E-mail: cristiane.marinho@uece.br
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NOTAS
Contribuição de Autoria: Cristiane Maria Marinho é responsável concepção e
elaboração do manuscrito, coleta e análise de dados, discussão dos resultados, revisão,
correções e aprovação da versão final do manuscrito.
Agradecimentos: Não se aplica.
Financiamento: Não se aplica.
Comitê de Ética em Pesquisa: O trabalho respeitou a ética durante a pesquisa, porém
não foi necessário comitê de ética.
Disponibilidade de Dados e Material: Os dados e materiais utilizados no trabalho estão
disponíveis para acesso por meio das referências disponibilizadas no artigo.
Conflitos de Interesse: A autora declara não haver conflitos de interesse pertinente.
Uso de Inteligência Artificial (IA): Não houve uso de Inteligência Artificial no processo
de escrita deste trabalho.
Publisher: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências
Sociais. Portal de Periódicos da UNESP. As ideias expressadas neste artigo são de
responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos
editores ou da universidade.
Como citar este artigo: MARINHO, Cristiane Maria. O querosene do discurso de ódio na
fogueira da violência de gênero. Revista Aurora, [S. l.], v. 17, p. e024009, 2024. DOI:
10.36311/1982-8004.2024.v17.e024009