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IDENTIDADES CONFLITUOSAS E O PÓS-COLONIAL NO
FEMININO: REBELDIA E TRANGRESSÃO EM LA SOIF (1957),
DE ASSIA DJEBAR
IDENTIDADES EN CONFLICTO Y LO POSCOLONIAL EN LO
FEMININO: REBELIÓN Y TRANSGRESIÓN EN LA SOIF (1957), DE
ASSIA DJEBAR
CONFLICTED IDENTITIES AND THE FEMININE IN
POSTCOLONIAL LITERATURE: REBELLION AND
TRANSGRESSION IN LA SOIF (1957), FROM ASSIA DJEBAR
DOI:
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024002
Artigo
Recebido: 19/04/2023
Aprovado: 31/01/2024
Publicado: 13/05/2024
_________________________________
Bruna Perrottiª
https://orcid.org/0000-0001-9954-7900
ª Mestra em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas,
São Paulo, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
Fapesp, número do processo: 2021/08157-2. E-mail: bruuperrotti@gmail.com
Artigo
Original
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Resumo: Assia Djebar (1936-2015) é hoje tida como uma das maiores escritoras do
Magrebe. A análise do romance de estreia da autora, La Soif (1957), a partir da teoria pós-
colonial e feminista teve como objetivo a compreensão de como a questão identitária se
apresentava a uma intelectual magrebina prestes a adentrar a pós-colonialidade. Sua
protagonista de inspiração autobiográfica se encontra entre dois mundos que regulam de
formas diferentes as condutas do corpo e da sexualidade. As condutas da protagonista
desafiam normativas da tradição, tendendo à ocidentalização em sua busca por liberdade,
ainda que suas escolhas possam lhe causar uma sensação de despertencimento. O
confronto de visões se manifesta em crises identitárias e em questionamentos ligados ao
destino da mulher frente ao casamento. A análise de La Soif evidencia ainda as agudas
críticas à situação da mulher na sociedade argelina, com ênfase para os impactos da
pressão do casamento e da maternidade sobre a saúde mental na esfera individual.
Palavras-chave: Pós-colonialismo; Gênero; Identidades; Assia Djebar.
Resumen: Assia Djebar (1936-2015) es hoy considerada una de las más grandes
escritoras del Magreb. El análisis de la primera novela de la autora, La Soif (1957), basada
en la teoría poscolonial y feminista, pretendía comprender cómo se presentaba la cuestión
de la identidad a una intelectual magrebí a punto de entrar en la poscolonialidad. Su
protagonista de inspiración autobiográfica se encuentra entre dos mundos que regulan el
comportamiento corporal y sexual de diferentes maneras. La conducta de la protagonista
desafía las normas tradicionales, tendiendo a la occidentalización en su búsqueda de
libertad, aunque sus elecciones puedan provocarle un sentimiento de falta de pertenencia.
El choque de opiniones se manifiesta en crisis de identidad y en cuestiones relacionadas
con el destino de las mujeres en relación con el matrimonio. El análisis de La Soif también
pone de relieve las duras críticas a la situación de las mujeres en la sociedad argelina,
haciendo hincapié en los impactos de la presión del matrimonio y la maternidad sobre la
salud mental a nivel individual.
Palabras Clave: Postcolonialismo, Género, Identidades, Assia Djebar.
Abstract: Assia Djebar (1936-2015) is regarded as one of the greatest writers of
Maghreb. The analysis of the author's debut novel, La Soif (1957) based on post-colonial
and feminist theory, aimed the understanding of how the identity issue presented itself to
a maghrebian intellectual about to enter postcoloniality. Its protagonist of
autobiographical inspiration lives between two worlds that regulate in different ways the
conduct of body and sexuality. The conducts of the protagonist challenge normative
tradition, tending to westernization in her search for freedom, though her choices can lead
to a sense of unbelonging. The confrontation of visions manifests itself as identity crises
and questions related to the destination of women facing marriage. La Soif and its analysis
highlight Djebar’s acute criticism of women's situation in Algerian society, with emphasis
on the impacts of pressure related to marriage and motherhood on mental health in the
individual sphere.
Keywords: Post-colonialism; Gender; Identities; Assia Djebar.
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Introdução
Nascida Fatima-Zohra Imalhayène, Assia Djebar (1936-2015) é hoje uma das
autoras mais reconhecidas do Magrebe, tendo sido eleita membro da Academia Francesa
e recebido diversos prêmios. Djebar foi também cineasta, periodista, historiadora e
professora. Sua vasta obra, que compreende diversas fases, é composta por romances,
contos, ensaios, poemas e uma peça de teatro.
Nascida em Cherchell, cidade no norte da Argélia, próxima a capital argelina, aos
seis anos de idade, Fatima Zohra começa a frequentar a escola francesa, graças ao seu
pai, que determinou assim desde sua infância, que ela poderia sair de casa e não teria que
usar o véu. Mesmo adotando certos valores ocidentais e nutrindo uma admiração pela
história revolucionária francesa, seu pai concordava com o nacionalismo crescente na
Argélia e seguia muitos dos costumes tradicionais islâmicos. Sua mãe, que durante sua
infância não dominava o francês, fez questão que Djebar frequentasse as aulas clássicas
de estudo do Corão. Em L’Amour, la Fantasia (Djebar, 1985), a autora discorre sobre essa
cisão espaço temporal que marcou sua infância: dois universos culturais distintos
representados por seu ambiente escolar, o qual frequentava todas as manhãs e o ambiente
tradicional islâmico de sua casa, ao qual voltava todos os dias depois das aulas.
Após concluir o ensino médio em Argel, a jovem se muda para Paris, onde se
concentra nos estudos preparatórios para enfrentar a concorrência acirrada do ingresso na
Escola Normal de Sèvres, de onde seria expulsa em 1956. Junto a outros estudantes
argelinos em Paris, Djebar aderiu à greve convocada pela Frente de Libertação Nacional
em solidariedade a causa da independência de seu país, e não compareceu aos exames
finais. Em 1957, aos vinte anos, Fathma Zohra publica seu primeiro romance La Soif,
estreando seu pseudônimo Assia Djebar que adotaria pelo resto de sua vida.
Tanto em La Soif (1957), primeiro romance de Assia Djebar, como em Les Enfants
du nouveau monde, terceiro (1962), as protagonistas que são apontadas pela crítica como
personagens de inspiração autobiográfica da autora têm uma aparência física que poderia
ser confundida com a de uma mulher europeia e ambas percebem nos olhares e contatos,
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como, na Argélia, a tomavam à primeira vista como tal. Em La Soif, a primeira descrição
que Nadia faz de si o romance é narrado pela personagem em primeira pessoa - é a
seguinte:
Além do mais, minha pele loira e meu comportamento emancipado confundia
a maior parte, e aqueles que me conheciam não se esqueciam de mencionar
minha mãe francesa, morta, é verdade, ao meu nascimento, e meu pai que havia
me criado, como eles dizem, “à europeia”. Eu fazia bem de os ignorar, eu era
um deles. Eu o sabia (...) (Djebar, 1957, p. 4,5).
1
Logo de início se apresenta uma dicotomia identitária que atravessará todo este
primeiro romance. A descrição que a personagem de Djebar faz de si passa pela
necessidade de se posicionar frente a ela, uma vez que todos a sua volta pareciam fazer o
mesmo ao abordá-la. Então Nadia parece europeia, foi educada à europeia, tinha uma mãe
francesa, mas não era europeia: era um deles, apesar do que eles pudessem pensar. A
noção pouco precisa de Nadia de que existe um Eles ao qual ela, com esforço, se
encaixava em oposição a um Outro europeu traz à tona as discussões sobre alteridade e a
construção do Outro e de si – pela oposição.
Para Claude Levi-Strauss, em citação destacada por Edward Said:
A mente requer ordem e a ordem é alcançada pela discriminação e anotação de
tudo, pela inserção de tudo o que a mente percebe num lugar seguro e fácil de
encontrar pela atribuição as coisas de um papel a desempenhar na economia
dos objetos e identidades que compõem um ambiente (Lévi-Strauss, citado em
Said, 2017, p. 90).
A necessidade de categorizar e ordenar busca critérios que podem ser
completamente arbitrários, recorrendo, por exemplo, ao que Said descreve como uma
geografia imaginativa. As menções de Nadia à Europa ou à França ao longo do romance
não se referem necessariamente ao território, mas sim evocam sistemas de representações
culturais que foram construídos ao longo de séculos. Nesse sentido, é possível dizer que
a percepção de Nadia ou de Djebar - neste primeiro romance que busca entender a si
mesma e a sociedade em que vive a partir dessa dicotomia não é uma visão particular ou
individual da personagem, mas está enraizada no imaginário da sociedade argelina e faz
1
« D'ailleurs, mon teint de blonde et mon allure émancipée trompaient la plupart; et ceux qui me connaissaient
n'oubliaient pas de rappeler ma mère française, morte, il est vrai, à ma naissance, mais mon père m'avait élevée,
comme ils disaient, « à l'européenne ». J'avais beau les ignorer, j'étais une des leurs. Je le savais [...].” Tradução nossa.
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parte de uma história maior da construção da oposição entre Europa/ocidente e
Islã/oriente, que Said mapeou com maestria em Orientalismo.
Não cabe aqui discutir se de fato há um impulso a categorização e dicotomização
em qualquer choque cultural, mas sim enfatizar que se isso é um ponto comum no início
do contato, esperar-se-ia que ao longo de anos, décadas e séculos de convivência as
simplificações, estereótipos e visões estáticas caíssem, dando lugar a uma visão mais
complexa e descritiva das particularidades e transformações históricas das sociedades em
questão. Como sabemos, não foi isso que ocorreu. Ao contrário, nos séculos XIX e XX
as políticas coloniais foram na direção de aprofundar essas divisões, é o que defendem
Jane Burbank e Frederick Cooper:
Estudos recentes sobre os impérios coloniais dos séculos XIX e XX
enfatizaram que os construtores imperiais exploradores, missionários e
cientistas, bem como líderes políticos e militares empenhavam-se na criação
de distinções entre “nós” e “eles”, entre “eu” e o “outro”, ou seja, entre
colonizadores e colonizados. A partir dessa perspectiva, a manutenção ou
criação de diferenças o que inclui as de raça não se deram de forma natural:
elas exigiam trabalho. Estados coloniais, sobretudo nos séculos XIX e XX,
dispenderam grandes esforços para segregar o espaço, conceder às pessoas de
origem metropolitana um lar fora da terra natal, impedir que os agentes
coloniais “se tornassem nativos” e regulamentar as relações sexuais entre
populações distintas (Burbank; Cooper, 2019, p. 48).
Posteriormente, em Les Enfants du nouveau monde (1962), primeiro romance da
autora que trataria diretamente da guerra em curso na Argélia naquele momento, a
primeira cena que introduz Lila também joga com a questão do posicionamento da
protagonista frente a uma dicotomia, mas agora a oposição entre Eles e nós é deslocada
para um terceiro emissor de opinião e Lila parece se distanciar da confusão do porteiro:
“Estou sozinha”, diz Lila a si mesma; “Vou morar sozinha. E o que importa?”
- O que eu estava dizendo senhora, desculpe, senhorita, é para lhe dar conselho.
Você deveria escolher com cuidado uma “Fatma” para te ajudar.
2
- Uma Fatma sempre escolhe bem outra Fatma!
Ela tinha o hábito desse tipo de réplica, sua falta de agressividade então, apenas
uma ironia fria, intrigava aqueles ou aquelas que, devido ao seu
comportamento, suas roupas, e sua pele, a haviam tomado por uma Europeia e
com toda uma boa fé tranquila haviam então arriscado essa forma de
2
Durante o período colonial, Fatima e sua variante Fatma eram usados coloquialmente, e mesmo pejorativamente
pela população francesa colonial para designar mulheres argelinas serventes. Em: Mortimer, 2013, p. 111.
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solidariedade. O porteiro tomou a resposta como um capricho de um
estrangeiro arrogante; mas continuou em dúvida, e não ousou se aprofundar.
Ele veria o sobrenome em seguida; era provavelmente, pensou ele, uma dessas
francesas, vindas da França, em quantidade, com pressa para casar-se com um
árabe.
(...)
Ela perguntou distraída e o porteiro pensou “sim, é com certeza uma
estrangeira pois não tira os olhos do terreno vazio, das casas miseráveis,
calmas, no início da periferia atrás da colina. Ou uma “fatma” como ela afirma,
por que não? Não, ela não tem nada de uma « mouquere ». Quando essa gente
tenta se parecer conosco, resta sempre algo de sua origem.
Uma fatma não tem jamais os olhos verdes! Concluiu ele para se assegurar
(Djebar, 1957, p. 34).
3
Fica claro que esses primeiros romances da autora demonstram um
amadurecimento intelectual em direção a uma complexificação das dinâmicas de
identificação, Djebar passa a criticar a leitura de pessoas através de estereótipos binários.
Para Spivak (2010), que revisita o marxismo e o pós-estruturalismo, as análises de
diversos autores da reestruturação global que se deu a partir da segunda metade do século
XX e o advento da pós-modernidade, afirma que elas simplesmente não dão conta das
transformações das sociedades pós-coloniais e, portanto, não podem continuar se
pretendendo universais; nesse sentido, os teóricos do pós-colonialismo têm tido um
grande papel de descentramento das narrativas. Ainda assim, eles falham
consideravelmente em suas análises quando não consideram a dimensão de gênero.
McClintock se soma a Spivak ao apontar essa questão em Bhabha, (1986, p. ix) que
segundo a primeira, empenhado em tentar complexificar a dicotomia entre colonizador e
3
« Je suis seule, se dit Lila ; je vais habiter seule. Quelle importance ? »
- Ce que je vous disais, excuse-moi, ma petite dame, c’estait pour vous donner des conseils... il faudra que vous
choisissiez avec, soin la « Fatma » qui vous servira.
- Une fatma choisit toujours bien une autre Fatma !
Elle avait l'habitude de ce genre de répliques; son manque d'agressivité alors, à peine une ironie froide. déroutait ceux
ou celles qui, à cause de son allure, de ses vêtements, de son teint, l'avaient prise pour une Européenne et s'étaient
ainsi risqués, avec une bonne foi tranquille, dans cette solidarité. Le concierge prend la réponse pour un caprice
d'étrangère snob; mais le doute est en lui, il n'ose approfondir. Il verra le nom ensuite; à moins que ce ne soit, songe-
t-il, une de ces Françaises, venues de France, trop nombreuses, hélas, pour épouser un Arabe. [...]
Elle posait la question nonchalamment et le petit homme, en répondant, pensait : «Oui, c'est vraiment une étrangère
pour ne pas détourner ainsi ses yeux du terrain vague, des cabanes misérables qui, derrrière, se tassent, début du
bidonville derrière la colline. Ou une « Fatma » comme elle l'a affirmé, pourquoi pas ? non, elle n’a rien d'une «
mouquère ». Quand ces gens-là veulent nous ressembler, il leur reste toujours quelque chose de leur origine.
Une Fatma n'a jamais les yeux verts ! » concluait-il pour se rassurer. » Tradução nossa.
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colonizado, não conseguiu enxergar que o gênero era justamente uma dimensão que, se
analisada, poderia romper com o binarismo (Mcclintock, 2018, p. 530).
A vasta produção de Djebar abarca um período de cinquenta anos em que a autora
buscou dialogar com a História de seu país, retratar a realidade das mulheres argelinas e
tecer uma feroz crítica a violência colonial. A sociedade argelina na década de cinquenta
já era extremamente plural e não podia ser apreendida por categorias estáticas. Seus
romances são excelentes fontes para captar o mosaico de diversidades linguísticas,
culturais, religiosas, políticas e sociais do país. Para compreender a riqueza da obra da
autora de forma transversal em suas multiplicidades, é necessário, entretanto, nos
debruçarmos sobre essas obras iniciais que nos permitem abordar a problemática da
identidade que está colocada a uma intelectual que começa a publicar em plena Guerra
de Independência (1954-1962), quando a literatura de seu país, marcada quase que
exclusivamente por nomes masculinos, pensava e inventava identidades coletivas que
pudessem mobilizar para a luta anticolonial. Essa mesma literatura, entretanto, retratava
as mulheres como elementos da paisagem, como símbolos da tradição ou como objetos
do desejo masculino. Como a questão identitária se apresentava então a uma brilhante
jovem literata como Djebar, que em um contexto tão turbulento se aventurava a abordá-
la em seu primeiro romance?
Desenvolvimento
La Soif causou logo bastante alvoroço na crítica parisiense e argelina o escândalo
de uma protagonista argelina tratando de sua vida afetiva, usando maiôs e expressando
suas vontades, além da ausência quase completa de menções à causa anticolonial foram
suficientes para que a crítica nacionalista a taxasse de alienada e superficial.
(...) Os revolucionários argelinos consideraram indecente o fato de que Djebar
só se preocupava nesse livro com a questão sexual sendo que a Argélia estava
passando por uma guerra terrível. Será que realmente compreendemos que a
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descoberta do corpo pela personagem de La Soif foi também uma revolução
importante? (Khatib, 1968, p. 62).
4
Ao mesmo tempo, a crítica parisiense prestava atenção um pouco condescendente
à jovem, atribuindo qualquer boa expressão literária que a obra contivesse à influência da
literatura francesa e ao sucesso do sistema educacional colonial francês. La Soif
apresentava já fortes toques autobiográficos, tendência que permaneceria em suas obras
posteriores. Mesmo por críticas mais generosas da obra de Djebar, a publicação de La
Soif já foi tida como importante apenas por ser um romance de formação identitária da
autora:
De fato, pode até ser que rebelião adolescente e a busca por identidade não seja
a coisa dos grandes romances de amanhã, se esse é ou não o caso é irrelevante.
O que importa é que esses trabalhos são de muitas formas autênticos e
necessários; você precisa saber algumas coisas básicas sobre si mesma antes
de começar a escrever sobre o seu lugar no milênio (Accad, 1996, p. 801).
5
Na realidade, esse primeiro romance que Djebar publica aos vinte anos, já traz
críticas relevantes e aborda temas que atravessariam toda sua obra nas próximas décadas.
Analisá-lo é crucial para entender o ponto de partida de uma escritora que se consagraria
posteriormente como uma das maiores de todo o Magrebe, sendo traduzida para mais de
vinte idiomas, premiada em vários âmbitos, e convidada a integrar a Academia de Letras
Francesas. Em linhas gerais, o romance se passa em Cherchell, cidade natal de Djebar, e
conta a história de um verão de uma argelina que ansiava viver novas experiências e tinha
uma visão bastante crítica acerca dos costumes que regulavam a conduta das mulheres de
seu meio, particularmente em relação às pressões em torno do casamento e da
maternidade, que levam Jedla, uma das personagens, a uma tentativa de suicídio e a um
aborto clandestino cujo o desfecho é sua morte. Nadia, a protagonista, não usava o véu,
se deslocava livremente e se afirmava por meio de suas condutas “ocidentalizadas” com
ares de rebeldia. Ao longo do romance, entretanto, vislumbramos os dilemas, crises
4
« [...] Des révolutionnaires algériens ont trouvé indécent le fait que Djebar ne se préoccupe dans ce livre que du
problème sexuel alors que l’Algérie était en proie à une guerre effroyable. ‘A-t-on vraiment compris que la découverte
du corps pour le personnage de La Soif est aussi une révolution importante?’». Tradução nossa.
5
In fact, it may well be that adolescent rebellion and the search for identity are not the stuff of the great novels of
tomorrow; whether or not this is the case is irrelevant. What matters is that these works were in many ways authentic
and necessary; you must know some basic things about yourself before you can begin to write about your place in the
millennium.” Tradução nossa.
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identitárias e pressões que a personagem principal enfrentava por se sentir presa entre
duas culturas que regulavam diferentemente as condutas femininas em relação ao corpo
e a sexualidade.
Escrito em primeira pessoa, La Soif apresenta Nadia como uma jovem entediada
no início do romance que iria passar o verão em uma casa de praia, antes de retornar a
seus estudos, sua tranquilidade é convulsionada pela chegada de Jedla, sua amiga de
infância, com o marido, Ali. Um dia, Nadia escuta uma briga do casal e descobre não
que Ali havia traído a amiga e tido um filho com uma francesa quando estavam noivos,
mas também que Jedla estava encontrando problemas para engravidar. Poucos dias
depois, Ali aparece desesperado na casa da protagonista, pedindo ajuda pois sua mulher
havia sofrido um acidente. Nadia descobre que, na verdade, a amiga tentara suicídio e o
episódio as reaproxima, aproximando-a também do marido da amiga, pelo qual começa
a nutrir sentimentos. Ao confessar o que sentia a Jedla essa se enfurece, mas pouco depois
acaba propondo algo surpreendente: que Nadia seduza seu marido para que, sob a
justificativa de infidelidade, ela possa abandoná-lo; Jedla admite a amiga que havia
recebido a notícia de um médico de que não poderia engravidar e que não poderia suportar
a dor do marido a repudiar por esse motivo ou viver com ela apenas por pena.
Antes que o plano das duas pudesse ser posto em prática, Jedla descobre que está
grávida, retira tudo o que disse e corta relações com a amiga. Nesse meio tempo, Nadia
descobre que Hassein estava noivo: o personagem é um ex-namorado seu que já havia
passado um tempo com a protagonista no romance, Nadia então cai em depressão. Jedla
aparece, depois de dias na casa da amiga, visivelmente transtornada e pergunta se ela
acreditava que Ali poderia ainda ser infiel, essa responde que todos os homens poderiam;
Jedla pede então ajuda para abortar e Nadia, se arrependendo de suas palavras, tenta sem
sucesso dissuadir a amiga da ideia. As duas vão então a uma clínica clandestina e Jedla
não resiste ao aborto. Sua morte consome Nadia de remorso até que ela recebe uma
ligação de Ali, que desabafa sobre sua própria culpa: sua viagem à Paris tinha tido na
verdade o objetivo de encontrar seu filho com a francesa. A confissão de Ali livra a
consciência de Nadia, que ao fim do romance acaba se casando com Hassein, enquanto
aquele sucumbe sozinho ao alcoolismo.
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Em relação à protagonista, temos durante toda a narrativa, uma descrição de si
como superficial. Nadia quer chamar a atenção de Hassein e de Ali unicamente para se
divertir e alimentar seu ego. A personagem está constantemente tentando escapar, matar
tempo com diversões passageiras, frequenta bares e cassinos, bebe e fuma cigarros, gosta
de dirigir e sentir o embriagar da velocidade. São todas atitudes opostas ao
comportamento de Jedla, que é mais discreta e reservada. A exposição ou não do corpo
também é algo que diferencia as duas: nas cenas em que vão para praia, Nadia veste
maiôs, toma sol, descreve o contato da luz em sua pele e mergulha enquanto Jedla não
deixa o véu e observa de longe a amiga. Nadia se veste com uma atitude cínica, irônica,
e constantemente apela a comportamentos “ocidentais”, que transgrediam expectativas
moralistas para chocar e provocar as pessoas ao seu redor:
Esse calmo segredo na face de Miriem me endurecia, ela se aproximava da
libertação e sua desenvoltura continha algo de insolente. Seu marido me
ignorava; eu começava a me incomodar com seu desprezo anterior; eu tentava
infantilmente o provocar com meus cigarros, minhas calças e minha postura.
Ele se mantinha ausente. Somente com seus filhos eu o via rir, relaxar. E a
felicidade que tomava seu rosto antipático me confundia; ele partia todas as
noites, após o jantar com Rachid para uma caminhada noturna (Djebar, 1957,
p. 78).
6
Esse comportamento provocativo, que define como os outros veem Nadia, não se
encontra mais presente em Lila, personagem de inspiração autobiográfica de Djebar em
seu terceiro romance, ainda que essa também andasse desacompanhada nas ruas e sem o
véu – mas aparece de maneira mais radical, neste terceiro romance, incorporado em uma
outra personagem: Touma. Quanto mais Touma era insultada e assediada nas ruas, quanto
mais a olhavam com desprezo, mais a menina com raiva, ria alto, acendia novos cigarros,
chamava atenção, bebia com os soldados franceses, em uma atitude que para além da
assimilação de uma mulher liberada para usar o termo que aparece nas fontes da época
- dá ao leitor a impressão de desequilibrada e autodestrutiva. Em La Soif, essa relação
entre a opressão que recaía sobre a personagem que transgredia as normativas tradicionais
e a radicalização de um comportamento provocativo é mais sutil, e Nadia parece sempre
6
« Ce calme secret du visage de Myriem me rendait dure; elle approchait de la délivrance et son épanouissement avait
quelque chose d'insolent. Son mari m'ignorait; j'en venais à regretter son mépris passé; j'essayais puérilement de le
provoquer avec mes cigarettes, mes pantalons et ma désinvolture. Il restait absent. Seulement avec ses enfants, je le
voyais rire, se détendre. Et le bonheur que prenait son visage antipathique me déroutait; il partait tous les soirs, après
le dîner, avec Rachid pour une promenade nocturne. » Tradução nossa.
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estar no controle da situação como se nada realmente a afetasse. Nadia tem plena
consciência da superficialidade de suas preocupações; em uma de suas primeiras
reflexões na obra, afirma: “ma vie était tranquille, superficielle, vide, (Djebar, 1957, p.
2) parece ter também relativa consciência de seus privilégios: “Eu fui uma criança
mimada não somente por meu pai, mas também pela sorte; eu sempre soube. Me bastava
desejar algo secretamente, mesmo vagamente, para que logo as circunstâncias viessem
me socorrer” (Djebar, 1957, p. 8)
7
.
As praias argelinas elegidas como cenário em La Soif eram frequentadas
majoritariamente por colonos e turistas, sendo que os personagens principais Nadia, Jedla,
Hassein e Ali, eram os únicos muçulmanos do local, o que já indica a boa situação
socioeconômica dos protagonistas. Em Les Enfants, Djebar, por meio do narrador e outras
personagens, como o porteiro de Lila, se mostra crítica da situação da Argélia sendo usada
como um ‘quintal de verão para turistas, e temos a impressão de que se referem
justamente às praias que aparecem no primeiro romance “(...) meu Deus! Nossa cidade
se tornou não mais um lugar protegido, mas um resort para turistas solitários atraídos pelo
repouso e o exílio” (Djebar, 1962, p. 35)
8
.
A questão da classe social é levantada uma única vez de forma direta em La Soif,
quando, em uma conversa com Hassein, a protagonista conta a história do término com
seu ex-noivo. Havia saído um dia para dançar com Hassein e a família de Said, seu noivo,
ficara sabendo - bref, tout un scandale de bourgeoises. Mesmo Said tendo decidido
perdoá-la, ela quis romper o noivado: “- Eu já tinha tudo esquecido. Não vale a pena
voltar a falar nisso. No fim, eu estou feliz de ter rompido com esse homem, com eles
todos, esse bando de gente rica, triste, e estupidamente desavergonhada” (Djebar, 1957,
p. 10)
9
.
No texto Libertação Nacional e Cultura, Amílcar Cabral analisa a situação
colonial e aponta como a assimilação aos costumes e a cultura colonial encontra maior
espaço nas camadas privilegiadas da sociedade colonizada (Cabral, 2011, p. 355-377).
7
« J'étais une enfant gâtée pas seulement par mon père, mais aussi par la chance ; je l'avais toujours su. Il me
suffisait d'avoir un désir secret, même vague, pour qu'aussitôt les circonstances vinssent à mon secours. » Tradução
nossa.
8
« Étrange jeune femme qui surgit ainsi, sans bagages comme si, grand dieu ! notre ville était devenue non plus un
lieu retranché, mais une station pour touristes solitaires qu’attireraint le repos et l’exil. » Tradução nossa.
9
« J'ai déjà tout oublié. Ce n'est pas la peine d'en reparler. Je suis finalement heureuse d'avoir rompu avec cet
homme, avec eux tous, avec cette bande de jeunes gens riches, tristes, et bêtement dévergondés. » Tradução nossa.
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Ainda assim, ou talvez por isso, Djebar, nesse primeiro romance, critica o
conservadorismo tradicional de sua classe, se queixando dos olhares e julgamentos que
atraía por andar desacompanhada, ou falar aos homens olhando-os nos olhos e não com
a cabeça baixa. Sua visão crítica das condutas patriarcais nesse primeiro romance é
particularmente limitada à sua própria posição social. É apenas em Les Enfants que a
autora busca sair do seu círculo para abarcar opressões que recaem sobre mulheres em
realidades distintas, o que a leva a criar um desfecho completamente distinto para Touma
que é assassinada por seu irmão, que quer restaurar a honra da família. Essas mortes
por honra eram vistas nas camadas mais populares, ou seja, não teriam se passado no
círculo em que Djebar cresceu e retratou em La Soif (Zimra, 2005).
É interessante ainda apontar que, na passagem citada, Nadia escolhe romper o
noivado. Quando analisamos a trajetória de sua amiga Jedla no romance, a história é bem
diferente, em sua visão, seu marido não teria motivo algum para não a descartar se ela de
fato, não pudesse engravidar, e sua tentativa de suicídio mostra o quanto a pressão da
maternidade, tida como a função primordial da mulher, e cuja falha poderia justificar o
repúdio pelo marido, pesava em sua vida.
O fato de que no romance seu marido está constantemente confortando-a e
tentando deixá-la segura no relacionamento, mostra que Djebar não estava tentando
denunciar um caso específico, mas um traço da sociedade argelina no período. Na obra
Les Enfants, Chérifa, uma das personagens principais, também se pergunta
constantemente, preocupada, quando engravidaria e se já não estaria demorando demais.
Quando Jedla de fato engravida, fica a princípio extremamente feliz, calma e
aliviada, mas já está tão tomada pela pressão e pelos distúrbios psicológicos que tinham
se desenvolvido nos últimos meses que, em um momento de desespero, foca na
possibilidade de não ser uma boa mãe, pois ficaria sempre voltando ao passado e à traição
do marido e aí recorre ao aborto, o qual não resiste. Nesse ponto, temos que fazer um
adendo para chamar atenção que, sendo apenas a terceira mulher argelina a publicar
romances,
10
e com um estigma tão forte em seu meio em relação ao casamento e a
10
Em 1947, Djamila Debeche havia publicado Leila, jeune fille d’Algérie, seguida de Aziza e Jacinthe Noire, de Taos
Amrouche, que iniciou suas publicações no mesmo ano. A primeira ainda publicou no início dos anos 1950 um ensaio
não ficcional sobre a liberação das mulheres argelinas, mulheres e o ensino da língua árabe e o direito das mulheres ao
voto.
10
Se houve outras mulheres escrevendo ou publicando, elas não foram muito reconhecidas ou comentadas.
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maternidade, é impossível não considerar como um ato político transgressor Djebar ter
desenhado uma trajetória como essa na figura de Jedla, denunciando não só as
consequências psicológicas das pressões sociais para as mulheres, como, também, os
perigos de um aborto clandestino, pauta que só ganharia força política na França em 1971
– a partir da petição que reuniu 343 assinaturas de personalidades publicada no jornal Le
Nouvel Observateur (Kirkpatrick, 2020, p. 315).
A situação de opressão das mulheres nas sociedades colonial e pós-colonial foi
bem captada por Spivak em Pode o subalterno falar? Neste texto, a autora demonstra
uma consciência crítica de que ela seria usada pelo discurso colonial contra os
movimentos independentistas em uma narrativa de superioridade civilizacional, ao
mesmo tempo que seria abafada pelos partidos nacionalistas e revolucionários (Spivak,
2010). Spivak encerra sua exposição sobre o lugar da mulher subalterna com o caso de
Bhuvaneswari Bhaduri, uma jovem de 16 ou 17 anos, que era membro de um dos grupos
armados da luta pela independência da Índia, e que se suicidou no apartamento de seu pai
em 1926. O caso, na época, foi tido como resultado de um delírio, já que a jovem estava
menstruada, o que atestava que ela não enfrentava o destino da desonra de uma gravidez
ilícita. Para Spivak, a jovem desloca o suicídio feminino para perto da tragédia social da
expectativa da boa esposa (Spivak, 2010, p. 123), a mesma expectativa que teria levado
aos desequilíbrios psicológicos de Jedla e consequentemente a sua tentativa de suicídio e
ao aborto clandestino que acabaria em sua morte.
Fica claro que já em La Soif, Djebar tece uma crítica aguda às opressões que
recaem sobre as mulheres em seu meio, mas a partir da trajetória de Nadia ela recorre à
ocidentalização como uma blindagem infalível para tal opressão. Em uma conversa com
Hassein, entretanto, toda essa construção de Nadia como alguém que sempre está no
controle da situação se mostra relativamente frágil e para além da ironia ácida da
personagem diante das investidas sexistas de Hassein, fica nítido os conflitos identitários
que a personagem vivia. Depois de muitos dias tranquilos, Hassein sugere que eles
poderiam ser amantes, sem o compromisso do rótulo de um casamento “- Eu poderia te
Segundo Tahon, Djebar foi a única a publicar durante o período de 1956 a 1976, a Aicha Lemsine publicar La
Criysalide e ser seguida por Yamina Mechakra, La Grotte Ecla(1979). A crítica afirma que foi só a partir da década
de 1980 que emergiriam várias outras escritoras e que, até esse momento, parecia que as mulheres só mereciam ser
notadas se escrevessem sobre a guerra (Tahon, 1992, p. 41).
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amar muito, muito... como minha amante. Nos amar dois, três, quatro anos, o tempo de
nossa juventude, isso não a tenta?” (Djebar, 1957, p. 15).
Nadia não diz nada. Ele continua:
- Apesar de sua emancipação e liberdade, que outras meninas invejam, não
creio que você tenha chegado lá.
Eu foquei meu pensamento nesse “lá” transparente. Eu ri zombando. “Não há
ninguém melhor que os homens para pensar sobre o seu “lá”!” (...).
Hassein prossegue:
- Além do mais, você não parece muito confortável em seu lugar! Sim, seja
sincera, convenhamos: você não está confortável! (“Meu Deus, claro que não
estou, ainda mais no sol deste verão!”) Convenhamos! Nessa fronteira ambígua
entre duas civilizações, você não sabe o que fazer, um pobre pequeno produto
de fabricação mista que você é! Você pisa em falso e não tem coragem de sair.
E ir aonde, sair para ir aonde? Aonde?
Bruscamente, seu riso me pareceu selvagem; como um uivo, como um inchaço,
ele destruía meu bem-estar.
- Cale-se! Cale-se! Eu disse em uma voz baixa, ao fundo da qual eu reconheci
soluços mortos (Djebar, 1957, p. 15).
11
Essa passagem é bastante significativa para compreender a situação da
personagem. Em outros momentos, Nadia coloca Hassein como o único que conseguia a
enxergar realmente, e seus soluços demonstram como a fala do namorado toca em uma
questão sensível. A personagem, que se descrevia como completamente emancipada e que
por vezes menosprezava em seus pensamentos a possibilidade de sucumbir a certas
submissões tradicionais, se via na verdade como presa entre duas civilizações, sem
conseguir se entregar verdadeiramente a nenhuma.
Se o contato prolongado com a cultura colonial por si só já seria suficiente para
apresentar a Nadia uma série de possibilidades e formas de existência outras, capazes de
causar uma cisão em seu ser que de outra forma se veria em muito maior sintonia com as
práticas e condutas de seu meio, é necessário ainda ponderar que o momento em que o
romance é escrito o situa em meio ao processo de independência e a consequente
necessidade da cultura árabe argelina se afirmar em torno de um nacionalismo crescente
11
« J'aurais pu vous aimer beaucoup, beaucoup... comme ma maîtresse.
Nous aimer deux, trois, quatre ans, le temps de notre jeunesse, cela ne vous tente pas ?
Malgré votre émancipation et votre liberté, que les autres filles vous envient, je pense que vous n'en êtes pas arrivée
là.
J'arrêtai ma pensée sur ce « là » transparent. Je m'en moquais. « Il n'y a que les hommes pour y penser, à votre « là
» ! » (...). Tradução nossa.
Brusquement, son rire me parut sauvage ; comme un hurlement, comme une houle, il déchira mon bien-être.
Taisez-vous ! Taisez-vous ! fis-je d'une voix basse, au fond de laquelle je reconnus comme des sanglots morts.»
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que tinha a mulher como símbolo da tradição, tradição essa inegavelmente atrelada a um
conservadorismo religioso em relação às práticas sexuais. Ao mesmo tempo e para
complexificar o contexto e as dinâmicas de identificação apresentadas à jovem escritora,
o romance vem à tona após a publicação e ampla circulação de O Segundo Sexo (1949) e
às vésperas do turbilhão que a década de sessenta traria para o mundo, tendo em vista a
revolução cultural e sexual, bem como a segunda onda do feminismo que impactaria com
certeza as identidades atravessadas por gênero em formação. Para Stuart Hall, a crise de
identidade ocorre justamente quando “[...] processos mais amplos de mudança que
deslocam estruturas sociais abalam os quadros de referência que dão aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social.” (Hall, 2006, p. 7)
A sede que dá título ao romance se refere aos desejos e impulsos que a personagem
não conseguia satisfazer. Nadia não queria um casamento que a igualasse a sua irmã
Miriam, que obedecia, em todas as circunstâncias, a seu marido, mas também não
conseguia se tornar amante de Hassein ignorando completamente as convenções sociais
que postulavam que a mulher que tivesse relações sexuais antes do casamento, desonrada,
se tornaria imprestável para tal. Nos próximos capítulos essas crises apontadas por
Hassein aparecem novamente. Jedla acabava de se recuperar da tentativa de suicídio, e
Nadia, depois do choque da situação, sentia raiva da amiga ao ver que mesmo após o que
considerava ter sido um ato egoísta, via essa com a perspectiva de retomar sua vida com
o marido Ali, que se mostrava totalmente dedicado e atencioso:
Eu me dirigi a uma porta fechada de uma vida de mulher, a de Jedla de Jedla
que renasceria, que receberia desta dor ainda mal curada, que tinha suas cinzas
quentes. Eu fixava a porta, e depois saía, vazia. Uma ira escorria em mim,
insinuante e fria, que me deu medo (Djebar, 1957, p. 19).
12
Era Nadia que fechava atrás de si a porta de uma vida de mulher, mas era ela
própria que se sentia vazia após o ato. É compreensível que apesar de ser de Nadia a
decisão de, ao menos até então, não se render a tal vida, um vazio se apodere dela um
momento depois. Sua sensação reflete a normativa social. Para Beauvoir, uma mulher só
“[...] é um ser socialmente incompleto, ainda que ganhe sua vida; cumpre que traga uma
aliança no dedo para que conquiste a dignidade integral de uma pessoa e a plenitude de
12
« Je me suis tournée vers la porte fermée sur une vie de femme, de Jedla de Jedla qui allait renaître, qui recevrait
cette douleur encore mal éteinte, qui en aurait les cendres brûlantes. Je fixai la porte, puis je sortis, vite. Une haine
glissait en moi, insinuante et froide, qui me fit peur. » Tradução nossa.
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seus direitos.” (Beauvoir, 2016, p. 191). Ainda que se refira a América do Norte e a França
a percepção social na Argélia é a mesma: o que é uma mulher sem a vida de mulher? Sem
o casamento? Sem os filhos? Só pode ser um ser incompleto e vazio, como se descrevia
Nadia. Para a filósofa e feminista, se como esposa ainda assim a mulher não atinge a
completude como indivíduo, ela se tornará esse indivíduo como mãe: “o filho é sua alegria
e sua justificação. É por ele que ela acaba de se realizar sexual e socialmente.(Beauvoir,
2016, p. 277) Mas quando Miriam, irmã de Nadia, a questionava sobre casamento “pois
já estava na idade de se casar” - ela reagia mal:
- Porque você me ligou? Disse ela, calma.
- Eu queria te dizer que Hassein está apaixonado por mim, e que eu não me
importo, mas que eu acho...
- Você deveria pensar nisso seriamente. É o momento de pensar em se casar.
- Em me casar? (Eu ri nervosamente). Me casar? Mas basta te ver hoje, aí
diante de mim... para não ter mais vontade (Djebar, 1957, p. 37).
13
Ainda que sob o risco de não se completar como indivíduo, de sentir-se
eternamente vazia, ainda que a sede nunca pudesse ser satisfeita sem o risco de um exílio
social, pois como afirma Beauvoir “[...] os costumes tornam ainda difícil a libertação
sexual da mulher solteira [...]” (Beauvoir, 2016, p. 190). Nadia ainda não estava pronta
para fechar o contrato, um contrato que vem com condições de trabalho, de manutenção
do lar, um contrato que poderia lhe render um destino de submissão como o da irmã e que
poderia muito bem a levar a um sofrimento por “[...] se ver reduzida à sua pura
generalidade [...]” (Beauvoir, 2016, p. 330). É compreensível que a crise da protagonista
seja mais perceptível quando relacionada a sua vida afetiva, amorosa e sexual, uma vez o
corpo e a sexualidade são sempre alvos de controle de estruturas patriarcais.
No que concerne à oposição que Djebar constrói entre Nadia e Jedla, temos como
tonalidade principal da obra uma representação que acaba corroborando o discurso
colonial dual representando Nadia como ocidentalizada e, portanto, liberada, e Jedla presa
a tradição e, portanto, uma mulher submissa, vítima das circunstâncias. Entretanto, há
ainda uma oposição secundaria e mais sutil que se revela aos poucos na narrativa e explica
13
« —Pourquoi m'as-tu appelée ? fit-elle, placide.
Je voulais te dire que Hassein est amoureux de moi, que je m'en fous, mais que j'y pense...
Tu devrais y penser sérieusement. C'est le moment de songer à te marier.
A me marier ? (Je ris nerveusement,) A me marier ? Mais il me suffit de te contempler aujourd'hui, là, devant
moi... pour en avoir l'envie coupée. » Tradução nossa.
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por que Nadia se sentia muitas vezes atraída a amiga, admirando-a em muitos aspectos e
nutrindo um ódio de si mesma: encontramos descrições positivas de Jedla associadas a
cultura árabe/berbere. Enquanto Jedla era descrita como pura, densa, verdadeira,
profunda, Nadia, se retratava como podre, sem escrúpulos, fútil e superficial. Nessa
passagem vemos essa oposição transposta na língua utilizada pelas duas. Jedla falava em
árabe com outras pessoas, mas se dirigia a Nadia somente em francês, o que chateava a
amiga, que se sentia distanciada:
Ela conversava muito à mesa, brincava e ria, um riso insolente, que parecia
escorrer de outra garganta. Seu rosto então se tornou quase uma careta. Ela se
dirigiu principalmente a Aïcha, em seu árabe gutural; às vezes ela se voltava
para mim e instintivamente retomava seu francês banal (Djebar, 1957, p. 59).
14
Vemos que enquanto o árabe é descrito como gutural som grave, rouco, profundo
que provém da garganta – o francês é descrito como banal. Para Memmi (1977, p. 97), o
bilinguismo colonial “expressa e simboliza a dilaceração essencial do colonizado”. É
inegável que se a língua colonial é a que permite inúmeros acessos e possibilidades, a
língua materna é “[...] aquela que contém a maior carga afetiva [...]”. Para Nadia, ser
excluída desse universo afetivo é sem dúvida doloroso, pois é como se Jedla ao se referir
a ela em francês, sinalizasse o não pertencimento de Nadia, uma vez que, tal bilinguismo
não pode ser
(...) confundido com qualquer dualismo linguístico. A posse de duas línguas
não é apenas a de dois instrumentos, é a participação em dois reinos psíquicos
e culturais. Ora aqui, os dois universos simbolizados, carregados pelas duas
línguas, estão em conflito: são os do colonizador e o do colonizado. (Memmi,
1977, p. 97)
Mais uma vez eles agiam como se ela não fosse um deles, mas então quem era?
Onde se situava? Em outra passagem, Jedla quer saber sobre a vida de Nadia e suas
familiares:
Esse foi também o momento das confidências. (...)
Ela não se contentava comigo, como eram minhas irmãs? Ela ficou espantada
e decepcionada de saber que elas eram diferentes, provavelmente porque se
casaram jovens. Eu concordei. Miriem que amava e temia seu marido, havia
no fim guardado uma espécie de amargura de sua juventude perdida. Ela não
teve nunca tempo de aproveitar. “De aproveitar”, dizia Jedla divagando... Leila
jamais foi sentimental. Seu marido era de uma boa situação, tinha desde o
14
« Elle parla beaucoup à table, plaisanta et rit, d'un rire insolent, qui semblait ruisseler d'une autre gorge. Son visage
devenait alors presque grimaçant. Elle s'adressait surtout à Aïcha, dans son arabe guttural; quelquefois, elle se
retournait vers moi et reprenait instinctivement son français banal. » Tradução nossa.
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princípio cativado seus sogros. Era ela a pessoa que dirigia sua casa, e isso era
o essencial.
Uma raiva me tomou, Jedla escondia mal sua decepção diante de tão pouco.
Eu lhe dei então as roupas de baixo que ela esperava: No ano passado, uma de
minhas primas fugiu de casa com um rapaz e acrescentei mais baixo: “um
europeu!” Seus pais diziam que ela foi se tratar no exterior... Uma de minhas
amigas tinha uma reputação sem manchas... porque ela sabia escolher suas
aventuras discretamente, esperando o “bom partido” para se arranjar. Também
lhe dei exemplos engraçados daqueles que alimentaram minhas fofocas com
minhas irmãs. Citei então essa tia jovem, pura e ingênua que se casou no
interior, em uma família rica de marabout. Ela estava o tempo todo grávida.
Cinco vezes, ela teve filhas, a sexta vez, seu marido, exasperado, a fez abortar.
Ela veio a Argel, Leila cuidou disso discretamente. E justo dessa vez,
descobriu-se, que seria um menino.
A necessidade de revoltá-la, de lhe dar o que ela queria, me assombrava
naqueles dias; Eu reencontrei, com um hábito morno, minha antiga e amarga
lucidez.
Pra que falar da voz terna de meu pai? da submissão de Miriem ao marido? de
Leila, que tinha um curioso prazer em ser atendida por um europeu?... Ela
queria se convencer de que o dinheiro, a liberdade e a educação "europeia"
haviam apodrecido a todos nós e a mim mais do que aos outros. E ela
provavelmente estava certa (Djebar, 1957, p. 76, 77).
15
A “educação europeia” atrelada a uma perspectiva de classe parecem isolar Nadia
do universo de Jedla. Na perspectiva de Jedla, Nadia e sua família eram frutos podres,
certamente, pesa, aqui, o moralismo religioso que julga e condena as condutas sexuais
que se mostram disruptivas do ponto de vista da tradição e do costume. A questão mais
importante, entretanto, é que para Nadia, Jedla provavelmente estaria certa, ou seja, assim
como sentia o vazio por fechar uma porta de uma vida de mulher, sentia também o peso
do julgamento de sua comunidade como se tal julgamento fosse a expressão do correto.
15
« Ce fut aussi le moment des confidences. […]
Elle ne s'en tint pas à moi; comment étaient mes sœurs ? Elle fut étonnée et comme déçue de savoir qu'elles étaient
différentes; probablement parce qu'elles s’étaient mariées jeunes. J'approuvais. Myriem qui aimait et craignait son
mari, avait quand même gardé une espèce d'amertume de sa jeunesse gâchée, disaitelle. Elle n'avait pas eu le temps
d'en profiter. « D'en profiter », reprenait Jedla rêveusement... Leila, elle, n'avait jamais é sentimentale. Son mari avait
une très bonne situation; elle avait dès le début apprivoisé ses beaux-parents. Elle était la maîtresse dans sa maison,
c'était, pour elle, l'essentiel.
Une hargne me prit; Jedla cachait mal sa déception devant si peu de chose. Je lui livrai donc les dessous qu'elle
attendait : L'an passé, une de mes cousines s'était enfuie de chez elle avec un jeune homme - et j'ajoutai plus bas : « un
Européen ! » Ses parents disaient qu'elle était allée se faire soigner à l'étranger... Une de mes amies avait une réputation
sans tache... parce qu'elle savait choisir ses aventures discrètement, en attendant le « bon parti » pour se ranger. Je
donnais aussi des exemples cocasses, de ceux qui avaient alimenté mes commérages avec mes sœurs. Je citai donc
cette jeune tante, pure et naïve, qui s'était mariée à l'intérieur, dans une riche famille de marabout. Elle était tout le
temps enceinte. Cinq fois, elle eut des filles; la sixième fois, son mari, excédé, l'obligea à se faire avorter. Elle était
venue à Alger; Leila s'en était occupée, discrètement. Et justement, il se trouva que, cette fois-là, l'enfant aurait été un
garçon.
Le besoin de la révolter, de lui donner ce qu'elle désirait me hanta, durant ces jours; je retrouvai, avec une habitude
morne, mon ancienne lucidité amère.
A quoi bon parler de la voix tendre de mon père ? de la soumission de Myriem devant son mari ? de Leila qui éprouvait
un curieux plaisir à se faire servir par une Européenne?... Elle voulait se convaincre que l'argent, la liberté, l'éducation
« européenne » nous avaient pourris tous, et moi plus que d'autres. Et elle avait sans doute raison. » Tradução nossa.
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Sua pulsão de liberdade e transgressão encontrava obstáculos e sustentá-la tinha
consequências para sua relação consigo própria.
As crises identitárias da personagem no primeiro romance são então expostas, mas
não resolvidas: Nadia impactada por tudo que aconteceu naquele verão, acaba se casando
com Hassein e cedendo à vida de mulher que se mostrava tão reticente em assumir; a
personagem não consegue encontrar soluções para as opressões que ela e outras mulheres
ao seu redor viviam, a não ser aceitar a ocidentalização, e as desvantagens do
distanciamento do indivíduo de suas origens, com uma postura niilista de alguém que não
vê saídas.
Conclusão
No romance de estreia de Assia Djebar, escrito aos vinte anos, a questão identitária
se mostra latente a uma intelectual que vive a transição de uma sociedade colonial para
outra pós-colonial. A dicotomia colonizador/colonizado se apresenta e é distorcida pela
dimensão de gênero e podemos ler as crises e os dilemas de uma protagonista fragmentada
que vive dois universos distintos em suas concepções, línguas, tradições e particularmente
no que concerne ao lugar de Djebar enquanto mulher, que regulam diferentemente sobre
as condutas ligadas ao corpo e à sexualidade. Sem se acomodar em nenhum, Nadia se
afirma com irreverência, ares de rebeldia, sempre pronta a transgredir normas veladas e
escancarar a hipocrisia do moralismo burguês que a rodeia.
Subestimada pela crítica em seus primeiros trabalhos, Djebar foi taxada de
alienada por não tratar diretamente da Guerra de Independência em curso na Argélia. Na
verdade, a obra aqui analisada já traz discussões que a autora exploraria em romances
posteriores, como a crítica as pressões sociais em torno do papel da mulher da sociedade
argelina, principalmente no que concerne o casamento, a maternidade e o aborto. Fica
claro que a concepção daquilo que pode ser considerado como político na literatura em
seu meio não incluía a realidade cotidiana das mulheres.
O grito de indignação de Djebar frente ao patriarcado argelino em La Soif é lido
a partir da dramática trajetória de Jedla, que sucumbe a uma tentativa de suicídio e a um
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aborto clandestino que leva à sua morte, tudo graças aos distúrbios psicológicos que se
agravavam diante das expectativas em torno da “boa esposa” que deveria realizar seu
destino como “mãe” ou poderia ser descartada pelo marido e a sociedade. Mesmo por
críticas mais generosas da obra da autora, La Soif foi tido como apenas um romance de
formação identitária da autora. Minimizar a questão identitária no caso de Djebar é
claramente um equívoco, uma vez que a autora é um caso paradigmático para
entendermos o lugar da mulher colonizada no norte da África, sendo a única na Argélia a
publicar romances durante a guerra e na década seguinte.
Como afirma Spivak, a mulher colonizada é duplamente silenciada, silenciada
pois não pertence à geografia do poder que a permitiria com facilidade se inscrever na
História e na Literatura, e silenciada dentro de sua comunidade enquanto mulher. Para a
teórica indiana, a função primordial da intelectual pós-colonial é fazer com que as vozes
das mulheres subalternas sejam ouvidas (Spivak, 2010) e Djebar dedicaria toda sua obra
posterior a esse objetivo.
Em obras posteriores, Djebar alinharia as resistências e as transgressões femininas
aos aspectos tradicionais e religiosos ligados às culturas árabes e berberes, costurando a
partir da memória e da ancestralidade o feminismo a um pertencimento cultural na
sociedade argelina, pertencimento este que ela tão claramente busca nesse primeiro
romance, sem alcançar. Em La Soif, os conflitos identitários se explicitam sem chegar
propriamente a uma solução. Sempre que encontra contradições em como se via, Nadia
não se dedica a analisá-las, e parece aceitar que as perdas de conexão são o preço a pagar
por sua revolta e liberdade. A protagonista é a jovem que se modernizou, se libertando
das amarras patriarcais, mas agora se vê como alienada em relação aos dramas de seu
próprio povo, como fútil e vazia. Em oposição temos Jedla que segue as convenções
tradicionais, se sente perfeitamente confortável na língua berbere/árabe, está ligada a uma
ideia de raízes, mas acaba com um papel de vítima na narrativa, Nadia a vê dessa forma
e nutre sentimentos conflitantes, que oscilam entre amor, amizade genuína, uma profunda
admiração e por vezes inveja e desprezo.
Nadia apresenta ainda uma visão pejorativa de si mesma que mostra o impacto
psicológico da tensão entre o discurso colonial e o discurso nacionalista. Fanon, em Pele
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Negra, máscaras brancas (2008), e Memmi, em Retrato do colonizado, precedido do
retrato do colonizador (1977), tratam dessa questão do indivíduo formado por duas
culturas, sendo uma a dele, de sua família, de seus ancestrais, e outra aquela que
possibilitou a ele diversas experiências e que é apresentada todo tempo como superior em
uma escala racial e civilizacional. Como precursores da corrente pós-colonial, assim
como outros tantos que viriam após, apresentam dificuldades de situar a mulher nesse
universo cindido. Obras como a de Djebar, nos permitem superar as dicotomias e
mergulhar na realidade feminina de um Magrebe prestes a se libertar, mas que ainda
apresentava inúmeros desafios na busca por sociedades mais justas e igualitárias.
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https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024002
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NOTAS
Agradecimentos: Não se aplica.
Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fapesp,
número do processo: 2021/08157-2
Comitê de ética em Pesquisa: O trabalho respeitou a ética durante a pesquisa, porém
não foi necessário comitê de ética.
Contribuições dos autores: A Autora é responsável pela pesquisa, análise e redação do
artigo.
Disponibilidade de dados e material: Os dados e materiais utilizados no trabalho estão
disponíveis para acesso por meio das referências disponibilizadas no artigo.
Conflitos de interesse: A autora declara não haver conflitos de interesse pertinente.
Publisher: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências
Sociais. Portal de Periódicos UNESP. As ideias expressadas neste artigo são de
responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos
editores ou da universidade.
Recebido: 19/04/2023 | Aprovado: 31/01/2024 | Publicado: 13/05/2024