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CONFORMÃO DO HABITUS DOCENTE PELO DISCURSO
NEOLIBERAL DE ORGANISMOS INTERNACIONAIS
CONFORMACIÓN DEL HÁBITUS DOCENTE POR EL DISCURSO
NEOLIBERAL DE LOS ORGANISMOS INTERNACIONALES
CONFORMATION OF TEACHING HABITUS BY THE NEOLIBERAL
DISCOURSE OF INTERNATIONAL
DOI:
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024003
Artigo
Recebido: 09/03/2023
Aprovado: 06/02/2024
Publicado: 13/05/2024
_________________________________
Viviane Toraci Alonso de Andradeª
https://orcid.org/0000-0002-7342-3931
Edna Cristina Jaques Brelaz Castro
b
https://orcid.org/0000-0002-4244-7930
Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (2014); desde fevereiro de
2007, servidora concursada da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Recife, Pernambuco,
Brasil. Professora no Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (Profsocio) na
Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), coordenadora do Laboratório Multiusuários em
Humanidade (www.multiHlab.com) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Políticas, Práticas e Conteúdos curriculares em Humanidades na Escola
(gePecH). viviane.toraci@fundaj.gov.br.
b
Mestra em Sociologia pela Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) Recife, Pernambuco, Brasil.
Servidora concursada na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Marabá,
Pará, Brasil. Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília
(UNESP), Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: cristina.brelaz@unesp.br
; Texto final de trabalho
dissertativo com adaptações.
Artigo
Original
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Resumo: Este artigo analisa a concepção de formação docente que se apresenta nos
documentos produzidos por organismos internacionais e que se implementam à educação
brasileira, de modo a engendrar uma cultura de performatização à função do professor.
Defendemos a ideia de que este fato está relacionado a uma política global da educação
que historicamente vem habituando um metacontexto de transformações e renovações
mediante diretrizes e normas previstas em arcabouço legal. Em nossa análise, vamos
contemplar o discurso de um dos agentes, a Unesco, que se vale da monopolização do
discurso para a formulação de instrumentos de políticas por meio de sujeitos do
conhecimento pertencentes a sua cátedra educacional. No que diz respeito à metodologia,
empreendemos pesquisa documental, com a análise de conteúdo em documento
produzido no âmbito da Unesco. Nossa fundamentação teórica sustenta-se em Pierre
Bourdieu e suas concepções de estrutura, ação, campo e habitus. Concluímos o artigo,
vislumbrando os desdobramentos desses discursos na promoção de um estilo corporativo
e gerencial, e de que modo se assentam nos documentos brasileiros como perspectivas
para o papel do professor.
Palavras-chave: Discurso hegemônico; Política educacional; Habitus docente.
Resumen: Este artículo analiza la concepción de formación docente que se presenta en
los documentos producidos por Organismos Internacionales y que se implementan en la
educación brasileña, con el fin de generar una cultura de actuación en el papel del docente.
Defendemos la idea de que este hecho se relaciona con una política educativa global que
históricamente ha acostumbrado a un metacontexto de transformaciones y renovaciones
a través de lineamientos y normas previstas en el marco legal. En nuestro análisis
contemplaremos el discurso de uno de los agentes, la Unesco, que utiliza la
monopolización del discurso para formular instrumentos de política a través de materias
de conocimiento pertenecientes a su cátedra educativa. Concluimos el artículo,
vislumbrando las consecuencias de estos discursos en la promoción de un estilo
corporativo y gerencial, y cómo se fundamentan en documentos brasileños como
perspectivas para el papel del docente. En cuanto a la metodología, se realizó una
investigación documental, con análisis de contenido en un documento producido en el
ámbito de la Unesco. Nuestro fundamento teórico se basa en Pierre Bourdieu y sus
concepciones de estructura, acción, campo y habitus.
Palabras clave: Discurso hegemónico; Política educativa; Habitus docente.
Abstract: This article analyzes the conception of teacher training that is presented in
documents produced by international organizations and that are implemented in Brazilian
education, in order to engender a culture of performatization of the teacher’s role. We
defend the idea that this fact is related to a global education policy that has historically
been habituating a metacontext of transformations and renovations through guidelines
and norms provided for in the legal framework. In our analysis, we will contemplate the
discourse of one of the agents, Unesco, which uses the monopolization of discourse to
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formulate policy instruments through subjects of knowledge belonging to its educational
chair. Regarding the methodology, we undertook documentary research, with content
analysis in a document produced within the scope of Unesco. Our theoretical foundation
is based on Pierre Bourdieu and his conceptions of structure, action, field and habitus.
We conclude the article, envisioning the unfolding of these discourses in the promotion
of a corporate and managerial style, and how they are based on Brazilian documents as
perspectives for the role of the teacher.
Keywords: Hegemonic discourse; Educational politics; Teaching habitus.
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1 INTRODUÇÃO
É fato a premência de uma metagovernança impulsionando a mundialização da
educação. Sabemos tratar-se de uma estratégia neoliberal que vem se conformando, pela
via do discurso, mediante sucessivas reformas educacionais, referendadas por
documentos elaborados por organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial
(BM), Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE),
Organização Mundial do Comércio (OMC) e Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Essa é a dinâmica que tem se constituído como tendência global, expandindo-se
em formatos regional e local, a partir da elaboração de agendas comuns à educação. Tal
dinâmica encontra-se assentada sobre a lógica de mercado e, por conta disso, valores do
campo econômico são incorporados a ela, adotando-se princípios da visão sistêmica para
a formação de professores e formação para competências e habilidades. Não sem razão,
esses são princípios do coletivo empresarial, visto que, ao que parece, a finalidade é
refazer a educação à sua “imagem e semelhança” (Tarlau; Moeller, 2020, p. 555).
No caso brasileiro, podemos visualizar essa dinâmica através da hegemonia de
representantes do setor privado, a exemplo da Fundação Lemann (FL) e do Movimento
Todos pela Educação (MTPE), persuadindo instâncias públicas como a Câmara de
Educação Básica (CEB) e a Câmara de Educação Superior (CES), mediante tomadas de
decisão e aprovação de legislações, demonstrando uma reconfiguração da forma de
governo do Estado de bem-estar para as feições neoliberais de governança, de estilo
corporativo e em rede (Harvey, 2008).
Oriundos desse contexto, citamos a reforma do ensino médio (Lei nº 13.415/2017)
que passa a definir uma nova organização curricular contemplada pela Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial e
Continuada de professores da Educação Básica (BNC Formação). São documentos
muito criticados por apresentarem formato unificado para um desenho de itinerários
diferenciados e concepções distintas de formação docente, sob o pretexto de oportunizar
“aprendizagens sintonizadas às necessidades, possibilidades e os interesses dos
estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea” (Brasil, 2018, p.
463).
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Por apresentarem o mesmo eixo teórico-político, os documentos em questão
trazem o receituário dos organismos internacionais, no que diz respeito à visão de
educação numa perspectiva mercadológica. No raio dessa visão, incidem a ênfase para as
boas práticas, ensino com base em evidências e eficácia docente, nos dando o
entendimento de que, para os objetivos do projeto de governança, a escola e, mais
especificamente, os professores são molas propulsoras para garantir essa efetivação, ou
seja, bons resultados (Maues, 2021).
Queremos, neste artigo, discorrer sobre a influência dos discursos de organismos
internacionais que estão a performatizar a formação docente, mediante diretrizes e normas
previstas em arcabouço legal. Para essa finalidade, vamos contemplar o discurso de um
dos agentes, a Unesco. Nosso objetivo é vislumbrar seus desdobramentos na promoção
de um estilo corporativo e gerencial, e de que modo se assentam nos documentos
brasileiros como perspectivas para o papel do professor. No que diz respeito à
metodologia, empreendemos pesquisa documental, com análise de conteúdo em
documento produzido no âmbito da Unesco. Nossa fundamentação teórica sustenta-se em
Pierre Bourdieu e suas concepções de estrutura, ação, campo e habitus.
2 A CONCEPÇÃO BOURDIEUSIANA DE ESTRUTURA, AÇÃO, CAMPO E
HABITUS
A Sociologia praticada por Pierre Bourdieu tem como prerrogativa a compreensão
do mundo. Desse modo, o desvelamento das contradições sociais do poder e dos
fundamentos dissimulados da dominação sempre esteve na pauta de suas pesquisas,
constituindo, sobretudo, seu objeto de estudo, ou seja, sua teoria sociológica do poder e
da dominação. Todavia, tal prerrogativa e desvelamento dos sistemas de dominação
atravessaram gerações, transformando-se e fluindo-se em novas estruturas, exercendo
influência sobre agentes sociais, sendo necessário compreendê-los na dinâmica da
sociedade.
O projeto político neoliberal em curso na educação, por exemplo, caracterizado
pela inflexão do Estado e surgimento de novas formas de governança, poder e violências
simbólica e econômica, reflete exatamente esse momento de transformação do sistema de
dominação. Na visão bourdieusiana, esse cenário retroalimenta-se entre estrutura no
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indivíduo e ação dos indivíduos, relacionando, a essas concepções de estrutura e ação, as
noções de habitus e campo. Segundo Bourdieu (1992, p. 189), a estruturação interna das
práticas vai se realizar através do habitus, “[...] um sistema de disposições, modos de
perceber, de sentir, de saber, de pensar, que nos levam a agir de determinada forma em
uma circunstância dada”. Essas disposições são adquiridas via interiorização das
estruturas sociais por meio do habitus, podendo acontecer sob diversas formas, tais como
pela imitação, observação, tecnologias morais, práticas e influências de estruturas
similares, ou, como no dizer de Souza (2020), pela fabricação de consensos.
É nesse aspecto que Bourdieu concentrou seus esforços de análise, criando um
esquema de sistema social, cuja dinâmica social acontece no interior de um campo
específico, com valores e princípios que lhe dão suporte. Essa concepção do sistema
social está representada na Figura 1, a seguir.
Figura 1 - Sistema social de Pierre Bourdieu.
Fonte: Leme (2000, p. 27).
Conforme apresentado na Figura 1, a estrutura produz habitus, os quais são
internalizados por agentes sociais, grupos e indivíduos que, por sua vez, geram e
conformam práticas e representações. Em outras palavras, indivíduos incorporam as
estruturas na forma de habitus, reproduzindo-as em formas de ações sociais.
Relacionado a esse esquema de análise está o conceito de campo, uma vez que “a
experiência dos agentes sociais é estruturada externamente pelo campo e internamente
pelo habitus” (Carneiro, 2000, p. 46). De acordo com Bourdieu (1989), esses universos
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sociais são autônomos e específicos, assim temos o habitus do campo econômico, do
campo administrativo, do campo educacional. Eles estão na estrutura e por meio deles os
agentes se relacionam e disputam o posicionamento e legitimação do poder. Bourdieu
reflete que a melhor forma de compreensão das noções de habitus e campo é o
cotejamento com o sentido do jogo, haja vista que o “jogador tendo interiorizado
profundamente as regularidades de um jogo, faz o que faz no momento em que é preciso
fazê-lo, sem ter a necessidade de colocar explicitamente como finalidade o que deve
fazer” (Bourdieu, 1989, p. 62). Desse modo, o habitus possibilita que os agentes
(jogadores) saibam o que fazer ou não e conhecer o sentido dos limites e distâncias sociais
a serem respeitados.
Em suma, a noção de habitus e campo, teorizada por Bourdieu, nos dá a
compreensão de aderência da dominação na sociedade mediante condutas cotidianas. Isso
nos leva a endossar que o habitus da conduta econômica racional está estruturado na
sociedade e, de modo simultâneo, estruturante nela. Pois, conforme refletiu Bourdieu
(1989, p. 11):
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem
para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)
dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam
e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação
dos dominados”.
Assim, vamos perceber formas de persuasão e manobra mediante a violência
simbólica “não coerciva”, valendo-se de uma manobra consciente. Souza (2020) também
refletiu semelhante situação ao dizer que “o trabalho de dominação social passou a utilizar
cada vez menos a violência física e policial, e cada vez mais a violência simbólica da
manipulação consciente dos medos e ansiedades do público” (Souza, 2020, p. 58). Tal
constatação reforça que o habitus se edifica e efetiva como encarnação através da prática.
Assim, não se torna estranho o emprego massivo e sistemático de léxicos que expressam
a razão econômica e administrativa no campo da educação, a saber: eficiência, inovação,
competências, liderança, gestão para resultados, entre outros.
Segundo Bourdieu (1989), é nesse aspecto que ocorrem as formas de dominação,
ou seja, pelo processo de inculcação nos agentes de condutas que expressam uma visão
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particular de mundo, pretendida como universal. E o campo normativo tem sido o espaço
por onde os agentes interatuam para o exercício da autoridade e do poder (Bourdieu,
1989). Vamos dar maior evidência a esse respeito na próxima seção, onde abordaremos
a interferência dos organismos internacionais, mais precisamente da Unesco, como um
dos agentes que vem exercendo forte influência na construção de políticas educacionais
e de formação docente.
3 ORGANISMOS INTERNACIONAIS E ESTRATÉGIAS EDUCACIONAIS
Para esta seção é salutar fazer uma contextualização histórica do que afirmamos
na introdução desse artigo sobre o “momento de uma metagovernança impulsionando a
mundialização da educação” (Castro, 2020, p. 8). Governança global passa a ser um termo
emergente na literatura internacional, a partir dos anos de 1980 e 1990, principalmente
quando conjugado à crise sistêmica do capitalismo, ameaçado em sua própria estrutura
de funcionamento. Ganhava força, dentro desse contexto de crise, o chamado
neoliberalismo de tendências inglesa e americana, dando sustentação às políticas de
globalização de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A adoção de medidas como
políticas educacionais é um dos ajustes estruturais dentro dessa macropolítica, que visa a
atrair a educação às relações de livre-mercado (Castro, 2020).
Por tratar-se, como bem refletiu Harvey (2008, p. 87), de “uma ampla
convergência das práticas do Estado neoliberal e do Estado desenvolvimentista”, era
necessário estabelecer novas formas de governar. Eis o sentido do termo governança, que
muito embora iniciado em décadas anteriores, como afirmado, é ressignificado, alterando
o modelo retilíneo de implementação de projetos políticos para um modelo em rede,
sistêmico, consensual, admitindo diversos atores e parcerias. A respeito dessa
remodelagem das formas de governar, Robertson (2012, p. 11) relaciona governança
global aos “agentes intergovernamentais e não-governamentais, movimentos de
cidadania e corporações multinacionais, que exercem autoridade e se envolvem em ações
políticas através das fronteiras dos Estados nacionais”. Esses próprios agentes
reconhecem as mudanças, como é o caso da Unesco, em um de seus relatórios de
monitoramento global, intitulado Superando a desigualdade: por que a governança é
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importante. Neste, a governança global é apresentada como “processos através dos quais
atores políticos e sociais interagem, projetam suas ações e definem o equilíbrio de forças
na participação e tomada de decisões” (Unesco, 2009, p. 35).
Perante o exposto, temos visto que essa “governança sem governo” (Robertson,
2012, p. 11) tem mobilizado políticas de educação com efeitos sobre a formação docente.
Para esse fim, os organismos internacionais se valem de algumas técnicas de mobilização
discursiva, dentre elas, o fato de que suas publicações são sempre elaboradas “por equipes
e organizações que coletivamente validam a sua própria perícia e que não fazem prova da
sua qualidade no contexto das revistas especializadas nem da avaliação pelos pares”
(Carvalho, 2016, p. 673). Desse modo, habilitados tecnicamente e pelo fato de não
estarem vinculados diretamente a instituições ou Estados, suas recomendações
prevalecem e se constituem como hegemônicas às representações dos países do ocidente.
Retroagindo no tempo, Castro (2020) demonstrou que, no caso brasileiro, essa
prevalência do discurso da agenda global da governança se difunde na elaboração dos
principais documentos que culminaram em reformas curriculares, conforme mostramos
na Figura 2, a seguir.
Figura 2 - Marcos da agenda global na política educacional brasileira.
Fonte: Castro (2020, p. 61).
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A Figura 2 nos mostra que a linha do tempo de ações estratégicas para a educação
tem como marco inicial a Conferência Mundial de Educação para Todos, que aconteceu
em Jomtien, na Tailândia, década de 1990. Focos desse evento foram o direito à educação
e o acesso às necessidades básicas da aprendizagem. A recomendação aos países
signatários seria o estabelecimento e cumprimento de metas para a satisfação dessas
necessidades, o que implicaria políticas e programas educacionais eficazes, conforme
reza a Declaração de Jomtien, no Artigo 10:
Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem constitui-se uma
responsabilidade comum e universal a todos os povos, e implica solidariedade
internacional e relações econômicas honestas e equitativas, a fim de corrigir as
atuais disparidades econômicas. Todas as nações têm valiosos conhecimentos
e experiências a compartilhar, com vistas à elaboração de políticas e
programas educacionais eficazes (WCEFA, 1990, p. 6, grifos nossos).
A permeabilidade dessas orientações consolidou-se no Brasil em todos os
governos eleitos pós-redemocratização, ainda que em conjunturas diferenciadas de
governos, convergindo às políticas de currículo e à formação de professores.
Considerando aqui, o que refletiu Bourdieu (1989) em ser o campo das normas espaço
propício à legitimação do poder, a Unesco, como cooperadora das estratégias globais à
educação, elabora documentos e monitora a consolidação das metas estabelecidas,
avaliando os progressos resultantes das Conferências e Fóruns por parte dos países-
membros.
Contemplaremos agora a centralidade de seu discurso na formulação das políticas
educacionais. A esse respeito, procedemos à análise de conteúdo em documento
elaborado por esse organismo, intitulado Declaração de Incheon e ODS 4 Marco de
ação da Educação 2030 (2016)
1
, disponível em seu site institucional. Utilizamos como
categoria de análise e interpretação a prática discursiva sobre o papel do professor,
direcionada à performatização da prática docente e à gestão dos resultados. Esse
documento ratifica a visão global Educação para Todos, iniciada em Jomtien, em 1990.
3.1 Unesco e a declaração de Incheon
1
A partir de 2015, a Unesco passa a conduzir suas ações no campo da educação pelos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), pactuados com a ONU. Os ODS dizem respeito a um apelo global
para cumprimento da Agenda 2030.
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Temos em mente que o cerne da razão e prática neoliberal é alterar as relações de
mercado, com o fim último, a formação de capital humano para o trabalho. A Unesco,
como organismo internacional e em obediência às pressões neoliberais, se vale da
monopolização do discurso para a formulação de instrumentos de políticas por meio de
“atores do conhecimento”, pertencentes a sua cátedra educacional (Saraiva; Souza, 2020).
Em função disso, o direcionamento das atividades da Unesco caminha para o
cumprimento de objetivos pactuados entre seus países-membros, relacionados a práticas
educacionais exitosas, no sentido de performatizar os agentes ao modelo da nova
governança.
Em síntese, são essas atividades que irão justificar a implementação de políticas e
reformas educacionais que apresentam um modelo de formação docente em consonância
com os princípios defendidos pelo neoliberalismo, isto é, a gestão para resultados como
qualificador das competências. Presumimos, então, que, ao prescreverem a formação para
novas habilidades e competências, escolas e professores sejam disciplinados aos métodos
e valores do mercado. Nesse sentido, na Declaração de Incheon e ODS 4, as competências
vêm expressas no objetivo 4 (quatro) “Educação de Qualidade”, do Marco de Ação para
a Educação 2030. Como sinônimo de “qualidade”, afirma-se ser necessário “aumentar o
contingente de professores qualificados, inclusive, por meio da cooperação internacional
para a formação de professores, nos países em desenvolvimento” (Unesco, 2016, p. 52).
Para efeito de monitoramento, a cátedra educacional da Unesco está organizada
em cinco pilares, dos quais destacamos dois: o de ação normativa, que atua na produção
de diretrizes educacionais; e o de apoio aos países-membros para desenvolvimento e
revisão de políticas e estratégias relacionadas à formação de professores. A atenção
especial é porque, segundo expressa a Declaração de Incheon e ODS 4, “os professores
são a chave para se alcançar a agenda completa da Educação 2030”, e reforça afirmando
que “os professores são condição fundamental para garantir uma educação de qualidade
[...]” (Unesco, 2016, p. 54).
Segundo Ball (2020), a reforma dos sistemas de ensino, alinhada aos estilos
gerencialista e empreendedor, é um eixo central de tendência global na política
educacional. Qual o sentido disso? Segundo o autor, é confirmar o papel do Estado, mas
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sob um novo formato, o do governo à governança. Isso implica uma nova cultura
organizacional, cujos estilos do campo empresarial se disseminam como concepções,
como a obtenção de resultados e o ensino com base em evidências e eficácia, que deverão
ser desempenhadas pelos professores.
Pragmaticamente, para assentar essa nova cultura organizacional, um conjunto de
tecnologias morais neoliberais é mobilizado como aspecto da metagovernança para
reformar a educação. Um exemplo de tecnologia de integração tem sido a tecnologia das
estatísticas, que vale-se do uso da informação pelos números para avaliar, comparar e
monitorar, servindo aos indicadores do PISA, rendimento escolar e ao sistema nacional
de avaliação. Somam-se a esse conjunto, as tecnologias da liderança e da
responsabilização para o desempenho, eficiência, eficácia, inovações práticas e o
empreendedorismo.
Outra técnica moral neoliberal que se destaca é a performatividade, uma vez que
ela abrange as práticas institucionais e as subjetividades dos praticantes, ou, como refletiu
Bourdieu (1989), abrange os agentes pela internalização do habitus de seu campo
específico. Laval (2020) vai afirmar que, segundo análise sociológica de Bourdieu (1989),
as tecnologias morais do neoliberalismo nada mais são do que a doxa, isto é, a doutrina
que legitima a luta pela dominação do campo. Nesse sentido, a doxa torna-se perceptível
mediante produção e circulação da visão que se impõe como válida, disseminada no
campo normativo.
Reiterando, vamos ver a doxa como coação simbólica, agindo sobre as
consciências; ela se apresenta na Declaração de Incheon e ODS 4 na forma de imperativo
ao expressar sobre governança, responsabilização e parcerias, como destacado a seguir:
É imperativo que todos os parceiros abracem a visão comum da Educação 2030
esboçada neste Marco de Ação e que sejam responsabilizados: as organizações
multilaterais devem prestar contas a seus Estados-membros, ministérios da
Educação e outros ministérios relacionados à educação devem reportar-se a
cidadãos, doadores a governos nacionais e cidadãos, e escolas e professores à
comunidade educacional e, de forma geral, aos cidadãos (Unesco, 2016, p.
60, grifos nossos).
O excerto descrito demonstra a mobilização de esforços para o ODS sobre
educação e, no que tange ao aprimoramento de políticas educacionais que garanta
qualidade para todos, recomenda um conjunto de abordagens estratégicas de alcance e
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monitoramento. Entre essas abordagens estão o fortalecimento jurídico de políticas,
planos e sistemas e o foco na qualidade e na aprendizagem. Segundo o documento da
Unesco, a alegação é que “instrumentos internacionais de elaboração de normas protegem
o direito humano fundamental à educação”, passando a recomendar às lideranças
governamentais a instituição de “medidas para cumprir suas obrigações e garantir quadros
políticos e jurídicos fortes, que pavimentem a base e as condições para a oferta e a
sustentabilidade de uma educação de qualidade” (Unesco, 2016, p. 29). Isso justifica,
portanto, uma nova agenda com elaboração de programas e políticas educacionais que
convirjam à reforma dos currículos e formação de professores.
Recuperamos que o foco para a implementação dessa nova agenda, afirma a
Declaração, deve estar voltado à eficiência, à eficácia e à equidade dos sistemas
educacionais. Com vistas a esse direcionamento, recomendam-se procedimentos e
mecanismos de cunhos empresarial e administrativo ao mencionar que:
Os governos deveriam fortalecer os sistemas educacionais instituindo e
aprimorando mecanismos apropriados e eficazes de responsabilização e
governança; garantia de qualidade; sistemas de informação para
gerenciamento educacional; procedimentos e mecanismos de financiamento
transparentes e eficazes; e dispositivos de gerenciamento institucional, além de
garantir a disponibilização de informações confiáveis, atuais e acessíveis
(Unesco, 2016, p. 29-30).
Como já afirmado, os professores têm papel preponderante para o alcance dessas
estratégias de abordagem, advindo, disso, o foco para a qualidade e aprendizagem. Para
o sucesso da missão, prescrevem que as políticas e regulamentações de ensino sejam
aplicadas para garantir que professores sejam:
[...] bem treinados, qualificados profissionalmente, motivados. [...] uma
educação de qualidade inclui o desenvolvimento de habilidades, valores,
atitudes e conhecimentos que possibilitam aos cidadãos construir vidas
saudáveis e realizadas, fazer escolhas bem informadas e responder a desafios
locais e globais (Unesco, 2016, p. 31).
As assertivas nos dão a entender que, embora haja outros determinantes para a
qualidade da educação e resultados da aprendizagem, a presença de um professor bem
qualificado e motivado em sala, na visão da Declaração da Unesco, é um fator
significativo. Todavia, é salutar mencionar que o discurso da Unesco vem atrelado a um
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diagnóstico de pouca efetividade escolar, questionamentos de métodos de ensino, baixos
desempenhos de aprendizagem de alunos e da formação de professores. Frente a esse
diagnóstico insatisfatório, a estratégia do discurso continua, ou seja, aproveita-se do
cenário de insatisfação para inscrever uma ação maior, voltada à performatização do
professor, com base em princípios da gestão empresarial, convertendo a direção de sua
atividade a valores gerenciáveis (Laval, 2019).
Nesse ínterim, intensificam-se os discursos sobre visão sistêmica para formação
de professores, e formação integral voltada às competências e habilidades. Noutras
palavras, começam a ser apresentadas formas de atuação à formação docente, com vistas
ao desenvolvimento profissional contínuo de professores. É a partir dessa concepção,
nomeada e descrita na Declaração de Incheon e ODS 4, que ancora-se o discurso da
formação inicial e continuada presente nas políticas e reformas educacionais adotadas no
Brasil.
A esse respeito, percebemos argumentos semelhantes na Reforma do Ensino
Médio, compreendida no conjunto de reformas ocorridas no governo Michel Temer, nos
anos de 2016 e 2017, na proposta de implementação da Base Nacional Comum da
Formação de Professores da Educação Básica
2
(Brasil, 2019), pois a normativa apresenta,
em sua estrutura, a visão sistêmica da formação de professores, quando destaca: “a
articulação entre a formação inicial e a formação continuada” (Brasil, 2019, p. 3). Isso
demonstra uma absorção da ideia de desenvolvimento profissional contínuo que, no texto
da Resolução, é enfatizada como essencial à profissionalização docente, com o
imperativo de integração entre instituição e Projeto Pedagógico (PP), conforme destacado
no Artigo 6º, Inciso VIII, da Resolução nº 02/2019:
A formação continuada que deve ser entendida como componente essencial
para a profissionalização docente, devendo integrar-se ao cotidiano da
instituição educativa e considerar os diferentes saberes e a experiência docente,
bem como o projeto pedagógico da instituição de Educação Básica na qual atua
o docente (Brasil, 2019, p. 3).
2
A Resolução CNE/CP nº2, de 20/12/2019, embora aprovada, teve seu prazo de adequação dos cursos de
licenciaturas prorrogado até o final do ano de 2022, de acordo com o Parecer CNE/CES nº 498/2020. Em
parte, isso tem a ver com as intensas mobilizações em defesa de proposições construídas historicamente
pelo movimento de educadores e que divergem daquelas que visam à desqualificação e
desprofissionalização docente.
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Outro argumento atrelado à visão sistêmica de formação e que se apresenta na
estrutura da Resolução nº 02/2019 é o da formação integral às competências, o qual se
faz presente também na BNCC, visto que o referido documento menciona dez
competências gerais necessárias ao desenvolvimento pleno dos alunos. Todavia, na visão
do Conselho Nacional de Educação (CNE), que admite o discurso da Unesco, a efetivação
dessas competências só ocorrerá quando professores desenvolverem um conjunto de
competências profissionais que os qualifiquem para colocá-las em prática. Isso está
claramente expresso na referida Resolução:
As aprendizagens essenciais, previstas na BNCC-Educação Básica, a serem
garantidas aos estudantes, para o alcance do seu pleno desenvolvimento, nos
termos do art. 205 da Constituição Federal, reiterado pelo art. 2º da LDB,
requerem o estabelecimento das pertinentes competências profissionais dos
professores (Brasil, 2019, p. 1, grifos nossos).
Para sedimentar o discurso do desenvolvimento profissional contínuo
recomendado na Declaração de Incheon e ODS 4, as competências profissionais docentes
vêm acompanhadas de competências específicas, estruturadas em três dimensões:
conhecimento, prática e engajamento profissional. Essas dimensões, segundo a
Resolução, são interdependentes e sem hierarquia, integrando-se e complementando-se
na ação docente. Nosso entendimento é de que no âmago das competências específicas
assentam-se os requisitos da eficácia e do ensino com base em evidências, os quais são
recomendados pelos Intelectuais Orgânicos do Capital e tidos como fundamentais à
aderência de um estilo análogo ao da nova governança, de caráter corporativo e gerencial.
Os requisitos mencionados estão sob a égide de uma das tecnologias morais
neoliberais que mencionamos acima, a performatividade. Através dela, busca-se formar
professores hábeis à visão sistêmica de sua profissão (conhecimento), que saibam gerir
resultados, motivar aprendizes para melhorar rendimentos, trabalhar competências
(prática profissional), e que estejam comprometidos com o seu desenvolvimento
profissional (engajamento profissional). Assim, é dado um caráter de continuidade à
formação do capital humano, fator necessário para o crescimento econômico e, portanto,
fundamental à manutenção do sistema capitalista financeirizado.
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A Unesco-OREALC
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, a partir de cúpulas internacionais sobre profissão docente,
produziu o documento Formación Inicial Docente em Competencias para el Siglo XXI y
Pedagogías para la Inclusion em América Latina (2018), no qual recomenda
competências nas dimensões do campo cognitivo (criatividade e inovação, resolução de
problemas e trabalho colaborativo, pensamento crítico, gestão da informação e gestão das
TIC), intrapessoal (habilidades pessoais) e interpessoal (competências associadas à
cidadania, responsabilidade social). O documento em tela se trata de uma estratégia
regional sobre docentes que, a nosso ver, não deixa de ser uma manobra de inculcação
que visa a desenraizar as formas de ensino, habitus do campo educacional, para a
produção de um novo habitus de feições econômica e administrativa (Bourdieu, 1992).
O discurso é replicado consensualmente através de mídias sociais, recursos
materiais produzidos por parceiros da governança, produção de conhecimento, partidos
políticos e projetos de Lei. Sobre este último, não é demais sublinhar o PL nº 2.944/2021,
que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de autoria da senadora Kátia Abreu
(PP/TO), o qual prevê a inclusão dos temas “Empreendedorismo” e “Inovação” nos
currículos da educação básica e superior, temas esses ligados ao campo empresarial e
administrativo. A premissa contida no discurso político é semelhante ao discurso presente
em documento da Unesco-OREALC, quando recomenda as competências para preparar
jovens, com estímulos ao pensamento crítico e inovador, desenvolvendo capacidades
emocionais e socioemocionais.
Em síntese, esses são alguns desdobramentos que mostram o projeto da
governança na educação a pleno vapor. Almejam, com isso, subordinar a formação de
professores ao modelo de empresa. O impulso a essa configuração tem sido a via do
discurso, do consenso entre múltiplos agentes sociais e o neotecnicismo digital,
proclamado como via de ação pedagógica, recurso para obtenção de metas e padrões a
serem avaliados. Esse ponto tem colaborado para um processo contínuo de qualificação,
intensificado em função da pandemia do coronavírus, introduzindo novas formas de
ensinar e aprender, decerto, novas estratégias pedagógicas.
3
No nível regional, as estratégias da Unesco operam através da Oficina para a Educação da América
Latina e Caribe (Orealc).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sobre os documentos aqui analisados, em específico, o documento da Unesco
Declaração de Incheon e ODS 4-Marco de ação da Educação 2030 (2016), fica clara a
influência do discurso no sentido de disciplinar sujeitos pela via normativa. O objetivo é
auspicioso, ou seja, alterar o habitus do campo educacional, em específico da formação
docente, sobre os pretextos da qualidade e da aprendizagem. Assim, historicamente,
prescrevem recomendações para (re)direcionar a formação docente à cultura de
performatividade, à cultura gerencial, e por fim, à cultura de resultados. Para tanto, esses
documentos se valem de tecnologias morais, a exemplo do recurso das estatísticas de
realidades educacionais em contextos diferenciados, para domesticar o discurso da
mudança (Popkewitz; Lindblad, 2016). A prática discursiva contida no documento da
Unesco vem acompanhada de diagnósticos de insatisfação, que, de forma mimética,
replica-se como justificativa na elaboração e implementação de políticas educacionais e
curriculares no Brasil. Esses diagnósticos, todavia, não se apresentam no contexto de
contradições do capitalismo que produz e reproduz desigualdades sociais, econômicas e
educacionais.
Teoricamente, concordamos com Bourdieu (1989), quando reflete sobre a
dissimulação da dominação, mediante sua fluidez nos processos de transformação para
uma nova governança. Vamos perce-la na relação verticalizada do discurso, presente
na Declaração de Incheon e ODS 4, culminada na Reforma do Ensino Médio, iniciada em
2016, cimentadas na BNCC, via competências gerais, e na Resolução de formação de
professores, via competências profissionais específicas. Isso reforça a concepção do autor
sobre estrutura no indivíduo, ou seja, a conformação do habitus de um campo específico
capitalista , influenciando, e possivelmente, alterando o habitus do campo educacional,
consequentemente, do trabalho docente.
Considerando o teor dos textos acima mencionados, depreendemos que a visão
contida neles sobre o papel do professor reflete e, aqui, citamos o termo empregado por
Bourdieu a doxa da razão neoliberal, pautada na ideologia empresarial, em termos de
gestão e de resultados. E, sob essa perspectiva, parece-nos que a figura do professor que
se quer formado e atuando nas escolas é a figura de um professor similar, isto é, o
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professor mentor, gerente, apto para desenvolver lideranças, motivar alunos, tal qual, se
espera do papel de um gerente em uma empresa. Para esse fim, a força-tarefa é incutir
nos professores a visão hegemônica, e o fazem pelo aparato das normas.
Como estamos vivenciando o processo de mudanças, nossa análise apresenta-se
como uma discussão em andamento sobre um tema que desperta especulações,
controvérsias e reflexões que julgamos pertinentes de serem feitas no âmbito das Ciências
Sociais. Sua realização nos permite, como movimento de contradoxa – e cremos que já o
estamos fazendo ao produzir esse texto , questionar esse modelo de governança que
tem/vem descaracterizado/descaracterizando a escola de sua função social.
Temos revelado, a partir da produção científica acadêmica, os modos de
dominação que, historicamente, têm assentado os discursos assimétricos de poder. Na
mesma medida, podemos produzir e fazer circular novos discursos, capazes de
reinventar/organizar/mobilizar a ação coletiva em nosso campo de atuação. Tal ação,
segundo Bourdieu, deve ser enraizada também através do habitus.
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NOTAS
Agradecimentos: Agradeço à professora Viviane Toraci que coescreve comigo este
trabalho, pelo rigor e qualidade de suas intervenções.
Financiamento: Não se aplica.
Comitê de ética em Pesquisa: Não se aplica.
Contribuições dos autores: Os autores contribuíram igualmente para a escrita,
processamento, análise, interpretação dos dados e a revisão final deste artigo.
Disponibilidade de dados e material: Os dados e materiais utilizados no trabalho estão
disponíveis para acesso por meio das referências disponibilizadas pelos autores.
Conflitos de interesse: Os autores declaram não haver conflitos de interesse pertinente.
Publisher: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências
Sociais. Portal de Periódicos UNESP. As ideias expressadas neste artigo são de
responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos
editores ou da universidade.
Recebido: 09/03/2023 | Aprovado: 06/02/2024 | Publicado: 13/05/2024