FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO COMO FILOSOFIA DOS PAÍSES
SUBDESENVOLVIDOS
FILOSOFÍA DEL DESARROLLO COMO FILOSOFÍA DE
LOS PAÍSES SUBDESARROLLADOS
PHILOSOPHY OF DEVELOPMENT AS A PHILOSOPHY
OF UNDERDEVELOPED COUNTRIES
DOI:
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024010
Artigo
Recebido:
30/01/2023
Aprovado:
27/05/2024
Publicado:
12/06/2024
_________________________________
Breno Augusto da Costaª
https://orcid.org/0000-0002-9251-9533
ª Doutorando em Filosofia pela
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Minas Gerais,
Brasil. Professor do
Instituto Federal do Paraná, Jacarezinho, Paraná, Brasil. E-mail: brenobac@gmail.com
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a filosofia do
desenvolvimento conforme proposta pelos filósofos brasileiros Álvaro Vieira
Pinto (1909-1987) e Roland Corbisier (1914-2005). A partir do exame de alguns
dos principais textos desses autores, mostraremos que, ao invés de um mero
discurso filosófico sobre o desenvolvimento, essa proposta constitui uma
ciência filosófica autônoma e que toma como objeto principal as condições de
existência das coletividades. Da filosofia do desenvolvimento emerge uma
plataforma paradigmática que fundamenta a ética do desenvolvimento, a política
do desenvolvimento, a educação para o desenvolvimento, a sociologia dos países
subdesenvolvidos e outras mais que serão rapidamente apresentadas, além de
algumas das principais teses e conceitos que fundamentam tal disciplina.
Encerraremos indicando algumas linhas de investigação futuras.
Palavras-chave: Filosofia do
desenvolvimento, pensamento filosófico brasileiro, Álvaro Vieira Pinto, Roland
Corbisier, filosofia Latino-Americana.
Resumen:
El objetivo de este artículo es
presentar la filosofía del desarrollo conforme propuesta por los filósofos
brasileños Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) y Roland Corbisier
(1914-2005). A partir del examen de algunos de los principales textos de estos
autores, mostraremos que, en vez de un mero discurso filosófico sobre el
desarrollo, esta propuesta constituye una ciencia filosófica autónoma y que
toma como objeto principal las condiciones de existencia de las colectividades.
De la filosofía del desarrollo surge una plataforma paradigmática que
fundamenta la ética del desarrollo, la política del desarrollo, la educación
para el desarrollo, la sociología de los países subdesarrollados y otras más
que serán rápidamente presentadas, además de algunas de las principales tesis y
conceptos que apoyan esta disciplina. Cerraremos indicando algunas líneas de
investigación futura.
Palabras-clave: Filosofía del desarrollo; Pensamiento filosófico
brasileño; Álvaro Vieira Pinto; Roland Corbisier; Filosofía Latinoamericana
Abstract: The aim of this paper is to present the
philosophy of development as proposed by the Brazilian philosophers Álvaro
Vieira Pinto (1909-1987) and Roland Corbisier (1914-2005). Departing from the
examination of some of the main texts from those authors, we show that instead
of a mere philosophical discourse on development, this proposal constitutes an
autonomous philosophical science and that it takes as its main subject the
condition of existence of collectivities. From philosophy of development
emerges a paradigmatic platform that supports an ethics of development, a
politics of development, an education of development, a sociology of
underdeveloped countries and others that will be briefly presented, just as
some of the main thesis and concepts underlying this discipline. We conclude
indicating some future research lines.
Keywords: Philosophy of development;
Brazilian philosophical thinking; Álvaro Vieira Pinto; Roland Corbisier;
Latin-American philosophy.
INTRODUÇÃO
O
objetivo deste artigo é apresentar a filosofia do desenvolvimento conforme
proposta pelos filósofos brasileiros Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) e Roland
Corbisier (1914-2005). Nosso intuito não é defender alguma tese principal a
respeito desta proposta, mas apenas tematizá-la, uma
vez que tal tarefa constitui uma lacuna grave na história do pensamento
filosófico brasileiro e que qualquer outra linha investigativa depende deste
fundamento. Este artigo, então, tem caráter mais propedêutico do que propriamente
tético.
Ambos
os filósofos são reconhecidos pela tradição, dentre outras razões, por suas
contribuições ao debate acerca do desenvolvimento. Entretanto, nossa pretensão
é mostrar que a filosofia do desenvolvimento, conforme a obra deles, vai muito
além de uma mera discursividade filosófica sobre este fenômeno, mas se
constitui enquanto disciplina filosófica autônoma. Tal como tratamos da lógica,
da ética, da filosofia da mente e filosofia da linguagem é lícito tratar da
filosofia do desenvolvimento.
Vale
a pena indicar que outros autores, como o inglês Leonard Hobhouse
(1924) e Denis Goulet (1966) também produziram
filosoficamente utilizando a mesma expressão. Apesar disso, nosso propósito não
será buscar filiações ou avaliar críticas, mas apenas introduzir alguns
elementos fundamentais encontrados exclusivamente nas obras de Vieira Pinto e
Corbisier.
Metodologicamente,
este artigo é fundamentado em algumas das disposições de Rodolfo Mondolfo
(1969) a respeito da pesquisa em história da filosofia. Por sua vez, a lógica
negativa também nos fornece algumas referências metodológicas, notadamente as
implicações de uma fenomenologia da argumentação, bem como a consideração da
relevância de um contexto ou disposição argumentativa (Cabrera, 2018).
A
seguir, reconstituiremos cronologicamente a filosofia do desenvolvimento
conforme expressa nas obras de Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier. Estruturamos o artigo em dois subtópicos que expõem a
questão do desenvolvimento nacional na obra de ambos os autores. No primeiro,
abordaremos os contornos iniciais da disciplina, no âmbito do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), instituição responsável por pensar
criticamente o desenvolvimento brasileiro. No segundo, discutiremos a presença
da questão do desenvolvimento em sua obra do período pós-isebiano.
A FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO DURANTE O PERÍODO ISEBIANO
(1955-1964)
É comum que os autores, Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier,
sejam apresentados pela crítica como filósofos vinculados às discussões a
respeito do desenvolvimento nacional dos anos 1950 e 1960. Apesar disso, eles
produziram e publicaram diversos textos anteriores que, contudo, não constituem
objeto de interesse deste artigo. A reconstituição da filosofia do desenvolvimento
partirá de um dos capítulos de maior relevo da história da filosofia
brasileira: a experiência do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
Fundado
em 14 de julho de 1955, junto ao aparato organizacional do Ministério da
Educação e Cultura, embora dotado de liberdade de cátedra, o Instituto tinha
por finalidade:
[...] o estudo, o ensino, e
a divulgação das ciências sociais, notadamente da sociologia, da história, da
economia e da política, especialmente para o fim de aplicar as categorias e os
dados dessas ciências à análise e à compreensão crítica da realidade brasileira,
visando à elaboração de instrumentos teóricos que permitam o incentivo e a
promoção do desenvolvimento nacional (Brasil, Decreto Lei n. 37.608 de
14/7/1955, 1955).
A
instituição contava com um departamento de filosofia, além de outros
departamentos representando cada uma das ciências humanas citadas acima. A
proposta inicial do ISEB, em suma, era oferecer cursos em nível de
pós-graduação e seus estagiários, assim chamados, desenvolviam pesquisas
diversas sobre a realidade brasileira em suas dependências. Para maiores
subsídios a respeito da história e da constituição do ISEB, os estudos de
Bariani (2006), Fáveri (2014), Gomes (2012) e
Wanderley (2016) podem ser consultados.
Roland
Corbisier foi o primeiro diretor executivo da instituição. Já Álvaro Vieira
Pinto ocupou inicialmente a direção do departamento de filosofia e, a partir de
1962, ocupou o antigo cargo de Corbisier, que fora eleito deputado federal. E é
a partir da conferência inaugural do ISEB, proferida por Vieira Pinto em 14 de
maio de 1956, intitulada Ideologia e desenvolvimento nacional, que
verificamos o nascimento da filosofia do desenvolvimento.
Neste
texto programático o autor faz um rápido balanço da história da filosofia
brasileira e em seguida se propõe a discutir o papel da consciência das
coletividades na promoção do desenvolvimento nacional. O autor concebe
ideologia como sendo o conjunto de ideias que determinada coletividade possui,
sendo ao mesmo tempo possuída por elas. Ou seja, uma pessoa possui uma ideia,
sendo este o aspecto psicológico da ideologia, mas também é possuída por ela,
pois passa a agir em função dessa ideia, a intervir em sua realidade social:
por isso é lícito falar do aspecto sociológico da ideologia. A seguir Vieira
Pinto defende quatro teses principais: “[...] sem ideologia do desenvolvimento
não há desenvolvimento nacional” (1956, p. 29), “[...] a ideologia do desenvolvimento
tem necessariamente de ser fenômeno de massa” (1956, p. 30), “[...] o processo
de desenvolvimento é função da consciência das massas” (1956, p. 31) e “[...] a
ideologia do desenvolvimento tem de proceder da consciência das massas” (1956,
p. 34).
Essas teses fazem parte dos temas sugeridos pela reflexão acerca
daquelas que foram chamadas de condições subjetivas do processo de
desenvolvimento. Vieira Pinto, porém, não se torna idealista, porque suas
reflexões são elaboradas à luz da consideração do papel da atividade humana, ou
seja, do trabalho, e, portanto, de sua participação no processo econômico, na
determinação das formas de consciência coletiva da realidade. Ele tampouco cai
em um mecanicismo econômico, que defende que fenômenos como a ideologia são
simples reflexos das relações de produção, como se a consciência devesse ser
esvaziada de seu conteúdo e se reduzisse às relações econômicas vigentes.
Depois
de tratar de outros temas relacionados, como as implicações dessas teses para a
função social do filósofo e do sociólogo, Vieira Pinto propõe a filosofia do
desenvolvimento esclarecendo que:
[...] trata-se tão somente
de analisar, por meio de disciplinas científicas, os dados do processo
histórico de nosso país neste momento e de forjar a teoria explicativa de sua
realidade, para do conjunto extrair regras práticas que permitam a
intensificação útil do processo (Vieira Pinto,1956, p. 45).
Temos
aqui alguns dos principais fundamentos conceituais e téticos
da filosofia do desenvolvimento: a consideração das massas não apenas como
agentes históricos da transformação social, mas também como dotadas de uma
consciência a respeito desse processo; a relevância de se considerar a
ideologia para o processo de desenvolvimento, salientando aqui ser primordial
não tomar o termo “ideologia” como se fosse unívoco; e a relevância da ciência
para o desenvolvimento nacional.
Dois
anos depois, durante as aulas ministradas por Vieira Pinto no Curso de
Regular de Filosofia do ISEB, a filosofia do desenvolvimento passa por um
processo de crescimento. Existem dois poréns a
respeito desse texto: em primeiro lugar, sua fragmentariedade, isto é, não
chegaram até nós todas as aulas completas e o fato de que elas não foram
revistas pelo professor. Apesar disso, o texto é relevante, pois o autor se
propõe a denunciar e desmistificar diversas falácias em torno da história da
filosofia, e isto partindo da constatação de que a filosofia tendia a
irradiar-se dos centros dominadores para as regiões periféricas e dominadas. As
primeiras páginas desse texto de Vieira Pinto apresentam o programa do referido
curso. Na seção XI, intitulada Os determinantes humanos da filosofia, o
autor se propõe a abordar “o caráter nacional de escolas e tendências
filosóficas” (Vieira Pinto, 1958, p. 8), sendo que seria defendida alguma tese
a respeito da “relação entre os interesses das comunidades nacionais e os sistemas
filosóficos nelas predominantes” (Vieira Pinto, 1958, p. 8). A seguir, o autor
lista alguns casos históricos comprovadores dessa tese:
[...] a sofística ateniense; a
filosofia romana; o pensamento judaico; o platonismo italiano do Renascimento;
o empirismo inglês; o racionalismo continental; o idealismo alemão; o
pragmatismo [estadunidense]; o marxismo soviético; a ‘filosofia do desenvolvimento’ dos países atrasados (Vieira Pinto,
1958, p. 8, com grifos e adaptações nossos).
Dois
elementos reflexivos são os mais importantes para nossas reflexões: em primeiro
lugar, a filosofia do desenvolvimento é associada aos países subdesenvolvidos e
serve cumprindo determinada função de acordo com os interesses nacionais.
Entretanto, nas duas primeiras aulas do referido curso, quando ele justificou e
explicou o programa aos ouvintes, a explicação acerca dessa seção foi omitida.
O porquê disso não pode ser facilmente determinado; seria uma falha do
ministrante que esqueceu de apresentar esse ponto? Ou então do taquígrafo, que
não anotou? O professor solicitou a supressão deste trecho nas anotações? São
respostas de difícil solução com os parcos recursos que temos disponíveis
atualmente. Uma tarefa importante, esta documental e quase arqueológica,
consiste na busca pelas notas das demais preleções: só ela permitiria o
encontro com o pensamento vieirista. Apesar disso, é
possível imaginar que seria defendida uma tese parecida com a seguinte: os
interesses das comunidades nacionais e os sistemas filosóficos que nelas
predominam interagem reciprocamente, a comunidade demanda a filosofia que lhe é
conveniente e a filosofia determina ideologicamente esta comunidade.
O
segundo elemento decorre da fragmentariedade desse texto: além da omissão de
Vieira Pinto na explicação da seção que evidenciamos, que deveria ter sido
feita entre o final da primeira e o começo da segunda aulas, nós temos
disponíveis apenas 14 aulas e, por conseguinte, o tema não está presente nem na
explicação do programa, nem nas demais aulas.
Apesar
disso, é possível extrair outros elementos importantes para a reconstituição da
filosofia do desenvolvimento: ela se relaciona ao processo de ascensão
histórica dos países subdesenvolvidos. Aqui temos um vislumbre mais do que das
implicações políticas dessa disciplina, mas também de alguns dos pares
intelectuais de Álvaro Vieira Pinto, e por extensão de Roland Corbisier: as
convergências percebidas por Ortiz (1994) ou Faustino (2022), portanto, entre
eles e Frantz Fanon, filósofo martinicano que se devotou
à descolonização argelina, ganha aqui um potencial esclarecimento. Como
veremos, ambos tinham preocupações muito além daquelas indicadas pela crítica
reducionista, que ainda é hegemônica, isto é, de que são autores
desenvolvimentistas sucursaleiros da Comissão
Econômica Para a América Latina e Caribe (CEPAL). Em realidade, ambos tinham
uma compreensão da geopolítica mundial atenta a diversos movimentos sociais e
nacionais daquele período. Por isso, além de Frantz Fanon,
é preciso avaliar a proximidade desses filósofos com Amílcar Cabral, Pierre
Moussa e toda a geração de pensadores e pensadoras que pensaram a libertação
africana e asiática.
Neste
mesmo ano de 1958, desta vez através da pena de Roland Corbisier, as
contribuições à filosofia do desenvolvimento se multiplicam e seu corpo tético se torna mais vigoroso. Em suas reflexões o autor dá
especial destaque às relações entre as metrópoles e os países que vivenciavam a
situação colonial, como era o caso do Brasil e dos outros países
subdesenvolvidos. Dialogando com Georges Balandier, Corbisier concebe que a
situação colonial é global, isto é, afeta todos os âmbitos da realidade
subdesenvolvida: tudo é colonial na colônia, desde a economia dela, que serve
mais aos interesses dos centros que lhe exploram que aos da sua própria
população; passando pela política, pois o país colonizado é equivalente a um
instrumento usado pelo país colonizador; até no plano cultural, o que é
percebido pela alienação dos pensadores desses países. Corbisier (1958, p. 87)
encerra os dois ensaios que constituem essa obra, Formação e problema da
cultura brasileira, afirmando que:
[...] entendida como a
autoconsciência da cultura, uma filosofia brasileira implicará o prévio
reconhecimento, o diagnóstico da situação colonial. Entendida como tarefa
histórica de libertação e não como exercício acadêmico, não será uma reflexão
desinteressada sobre o mundo e sobre nós mesmos, mas ao contrário, uma arma que
nos permitirá transcender o colonialismo e edificar a nossa própria cultura.
Libertando-nos do complexo colonial, à medida que toma consciência dele e o
converte em objeto, uma filosofia brasileira nos trará a revelação de nossa
própria entidade, de nosso ser como destino (Corbisier, 1958, p. 87).
Corbisier
(1958) deixa clara a associação entre “uma
filosofia brasileira” e a filosofia do desenvolvimento proposta
por Vieira Pinto ao argumentar que: “[...] se é verdade, como já se
disse, que ‘não há movimento revolucionário sem teoria do movimento
revolucionário’, não haverá desenvolvimento sem a formulação prévia de uma
ideologia do desenvolvimento nacional” (p. 87). Ademais, no decorrer de todo o
texto ele trata da questão do desenvolvimento e justifica a importância dessa
ideologia para tal processo.
Além
da explicitação das relações entre subdesenvolvimento, que
tal como temos mostrado é um conceito importante tanto para Corbisier quanto
para Vieira Pinto, e colonização, poderíamos citar o já aludido Fanon (2005), quando afirma que: “[...] o bem-estar e
progresso da Europa foram construídos com o suor e os cadáveres dos negros, dos
árabes, dos índios e dos amarelos [...]” (p. 116-117), para tratar de uma
reflexão convergente encontrada em Corbisier (1958). Esse texto é fundamental
para a filosofia do desenvolvimento por abordar novamente a questão da
consciência que uma comunidade nacional tem de si e de suas implicações para o
processo de desenvolvimento. Ele elabora uma teoria da consciência crítica cuja
gênese é centrada nas guerras europeias do século XX (1914-1918 e 1939-1945) e
suas implicações existenciais, econômicas e culturais no mundo subdesenvolvido;
nas crises diversas que sacudiram a nação, tendo uma delas culminado na
Revolução de 1930; e nas disparidades suscitadas pelo desenvolvimento vegetativo
de um país de estrutura colonial.
O
próximo texto que abordaremos teve seu primeiro volume publicado em 1960 e o
segundo no ano seguinte. Trata-se da principal obra de Álvaro Vieira Pinto, Consciência
e realidade nacional. Nela encontramos um crescimento exponencial das
teses, conceitos e temas de interesse da filosofia do desenvolvimento. Talvez a
principal das teses seja a de que a consciência crítica tende a acelerar o
desenvolvimento enquanto a consciência ingênua tende a retardá-lo[1].
No primeiro volume da obra, o autor se propõe a defender algumas teses
propedêuticas, apresentar alguns conceitos e noções básicas e em seguida
realiza uma analítica da consciência ingênua, descrevendo trinta e três traços
que caracterizam essa forma de pensar. Vale destacar a proposta de duas tarefas
para a filosofia do desenvolvimento: em primeiro lugar, superar a noção de “tecnização”, o que é feito pela retomada do caráter
político do desenvolvimento e, em seguida, depois de calcada essa política em bases
democráticas, é sustentado pelo autor o rompimento com a tecnocracia nascente
no país. E em segundo lugar, a superação da oposição artificiosa entre
tecnologia e humanismo.
Nessa
obra Vieira Pinto também oferece uma abordagem filosófica do desenvolvimento
enquanto tal. Se, por um lado, defende ele no primeiro volume da obra, a
relação centro-periferia é conjuntural e trata-se de um fato político; por
outro, a relação desenvolvimento-subdesenvolvimento se refere ao fato objetivo
de que as massas possuem determinadas condições materiais de vida:
[...] o subdesenvolvimento tem de
ser apreciado em termos históricos relativos, mas, na verdade, é um conceito de
ordem existencial, cujo fundamento, em última análise, são as condições
materiais em que vive o [ser humano] (Vieira Pinto, 2020, vol. I, p. 103,
adaptações nossas).
Essa
relação, portanto, deve ser concebida como um fato econômico, ainda que aspectos culturais e políticos, por exemplo,
devam ser levados em consideração. Essa concepção, que o autor caracteriza à
luz da realidade econômica e que tem em seu horizonte a consideração de
aspectos materiais da existência, permite uma antevisão de uma reflexão
desenvolvida por ele em O conceito de tecnologia (2005), diga-se de
passagem. Nessa obra Vieira Pinto explicita ainda mais detidamente sua
compreensão da existência humana, que é sempre social e historicamente
condicionada.
Além
desta conceituação do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, o autor
conceitua consciência ingênua e consciência da seguinte forma: “[...] a consciência ingênua é, por essência,
aquela que não tem consciência dos fatores e condições que a determinam. A
consciência crítica é, por essência, aquela que tem clara consciência dos
fatores e condições que a determinam” (Vieira Pinto, 2020, vol. I, p. 88,
grifos nossos com base na edição original).
Segundo
o filósofo, trata-se da tese mais significativa de seu texto. Aliás, no
decorrer de toda sua obra posterior ele emprega a seguinte estratégia
argumentativa: começa apresentando o pensamento ingênuo sobre determinado
tópico e em seguida critica-o e sistematiza o pensamento crítico. Também nesse
texto, ele distingue os eixos que opõem as formas de consciência quanto à
criticidade (consciência ingênua versus consciência
crítica), quanto à ilustração (consciência culta versus consciência inculta, mesmo que rechaçando a dualidade
cultural) e quanto à autenticidade (consciência autêntica versus consciência inautêntica). A análise sociológica da
consciência, argumenta Vieira Pinto (2020, vol. I), para admitir a discussão do
problema da verdade, requer que a consciência seja crítica, “tal como se dá na
análise lógica dos juízos, que exigem para se caracterizarem como verdadeiros
ou falsos, que primeiro sejam dotados de sentido” (p. 27). Em sua concepção a
consciência crítica poderá ser culta ou inculta, tal como a consciência
ingênua, porém a autenticidade é privilégio daquela primeira forma.
Álvaro
Vieira Pinto defende outras teses fundamentais ainda nesse primeiro volume,
como a de que todo país tem condições de se desenvolver desde que as massas se
proponham a um projeto autônomo e autóctone; de que o processo de transformação
da realidade nacional aja reciprocamente com a consciência dos economistas, dos
políticos e das massas, suscitando a superação da consciência ingênua; reforça
as teses de “Ideologia e desenvolvimento nacional” ao defender que as massas
são as naturais portadoras da ideologia do desenvolvimento e que cabe ao
filósofo e sociólogo comprometidos com o movimento do real saber extrair delas
essa ideologia; de que o desenvolvimento está associado às inovações técnicas,
que por sua vez induzem à exigência de uma revolução tecnológica, que são fatos
também políticos de uma dada comunidade; de que o subdesenvolvimento constitui
a contradição principal que os países subdesenvolvidos enfrentam; de que só o desenvolvimento enquanto instrumento da
emancipação política e econômica nacional é que representa a conduta objetiva
autêntica em nosso processo histórico; de que apesar da multiplicidade de
contradições existentes, sua plena resolução só ocorre quando a principal é
eliminada; dentre outras.
Como
balanço parcial da obra Consciência e realidade nacional lida à luz da
reconstituição da filosofia do desenvolvimento, vale considerar as
contribuições de Álvaro Vieira Pinto para se pensar o desenvolvimento para além
do desenvolvimentismo ingênuo e afeito à feudalmania[2].
Também vale ressaltar a relevância da matriz filosófica dialética, através da
teoria das contradições múltiplas do real que, aplicada à situação dos países
subdesenvolvidos, permite-nos entrever dois temas fundamentais para tal ciência
filosófica: para estes países, a contradição principal seria aquela que opõe
seus interesses – de desenvolvimento – aos interesses das nações metropolitanas
– de desenvolvimento do subdesenvolvimento –; sem que a assunção desta como a
principal signifique a supressão de outras, como a de classes antagônicas, bem
como outros temas que merecem ser enquadrados nessa teoria, como o racismo e o
machismo. O outro tema será tratado no outro volume e versa sobre relevância de
uma alteração qualitativa da realidade para o processo de desenvolvimento.
No segundo volume da obra que estamos examinando,
o autor não emprega a expressão “filosofia do desenvolvimento”, entretanto é
nítida e evidente as suas propostas calcadas em tal ciência, assim como a
vinculação entre sua argumentação e os temas sugeridos por ela. Vislumbramos
nesse texto pela primeira vez um paradigma metafilosófico
de qual decorrem vários desdobramentos disciplinares: a filosofia do
desenvolvimento implica reflexões lógicas que exigem, por sua vez, uma lógica
do desenvolvimento, que é dialética. Vieira Pinto empreende uma dura crítica ao
formalismo lógico e seus efeitos entorpecedores da consciência nacional. Tal
como argumenta ele, essa forma de pensar é imobilizadora da ação
pró-desenvolvimento.
Por
sua vez, há também uma teoria política do desenvolvimento. Defendendo desde
teses em torno de um nacionalismo libertador[3],
através da justificação, por exemplo, desse nacionalismo frente a outras
propostas, como o municipalismo ou o patriotismo romântico; passando pela
defesa de teses que tocam questões diversas como a ocupação da terra no Brasil,
a crítica à exportação de matérias-primas etc.; e chegando até à recusa do
totalitarismo, o discurso vieirista, calcado na
filosofia do desenvolvimento, traz advindos téticos
de competência da filosofia política.
Vieira
Pinto (2020, vol. II) também elabora uma ética do desenvolvimento a partir do
postulado de que “[...] para decidir do nosso comportamento em face do
desenvolvimento do país e da contribuição a lhe dar, não é indiferente a
postura ética teórica que adotamos, em vista das consequências sobre o nosso
entendimento dos fatos” (p. 235). Ele sugere uma ética do desenvolvimento que
deve induzir suas posições da realidade em contraste às éticas idealistas, que
deduzem concepções abstratas a partir de princípios idealistas. Concebe ele que
é do contato com os fatos humilhantes que nossa realidade nos apresenta que
devemos desentranhar uma ética que atenda à busca das ações materiais
promotoras do desenvolvimento.
A
educação para o desenvolvimento, por sua vez, trata da filosofia da educação
conveniente para o empreendimento do desenvolvimento nacional. O autor ainda neste mesmo livro supera a falsa dicotomia
entre educação humanista e educação técnica e propõe a importância de se tomar
a educação como processo de transmissão e, por conseguinte, de multiplicação da
consciência crítica.
Vale
também citar as sete categorias que orientam o pensamento crítico segundo
Vieira Pinto. Ele analisou trinta e três traços da consciência ingênua, como
supracitado. Pois bem, sua antípoda, para apreender a realidade, apresenta sete
categorias que foram sistematizadas pelo autor: objetividade, historicidade,
racionalidade, totalidade, atividade, liberdade e nacionalidade. Antes de fazer
o balanço do segundo volume, seja-nos lícito fazer duas observações sobre este
tema. Em primeiro lugar, a consciência crítica, por definição, é aquela que
toma consciência dos fatores e condições que determinam seu pensar. Ora, se uma
das categorias do pensamento crítico é a liberdade, isto ocorre pois no mundo
existe uma contrapartida para esta liberdade. Se, tal como propõe Vieira Pinto,
a liberdade é retirada do plano das especulações metafísicas e é assentada no
domínio na análise sociológica e histórica, então a liberdade equivale ao
libertar. A liberdade não é assumida por ele como a faculdade inerente ao ser e
anterior ao ato, pois se assim fosse, a rigor, ela seria dispensável. A
liberdade não consiste em escolher, defende ele, mas em ter escolhido. À medida
em que o ser humano assume sua realidade com suas contradições e age de forma
que sua ação seja conveniente a um estágio superior, então estamos em face do
processo libertador. O desenvolvimento, então, implica a superação das diversas
situações que limitam e oprimem a existência nos países dominados. Aparece aqui
mais uma nota para a conceituação de subdesenvolvimento de acordo com Vieira
Pinto: ele é constituído por um conjunto de
situações-limite, conceito este compreendido por ele de forma radicalmente
oposta à conceituação original de Karl Jaspers. Para
Vieira Pinto (2020, vol. II, p. 283 e segs.), a situação-limite é um fenômeno
da existência coletiva e marca a fronteira entre o ser e o mais ser. Não é o
abismo infranqueável onde terminam as possibilidades humanas, mas sim a margem
onde começam as mais ricas possibilidades de uma coletividade. Não é a abertura
para a transcendência religiosa ou metafísica, mas é a abertura para a
transcendência histórica. Não é a circunstância que torna inútil a liberdade,
mas ao contrário, é a convocação mais intensa para o exercício da liberdade
que, conforme mostrado acima, equivale ao libertar, segundo o autor[4].
A
segunda observação pode ser desenvolvida a partir do recurso ao mais importante
e rigoroso estudo de “Consciência e realidade nacional”: trata-se do livro Esperança
e democracia: as ideias de Álvaro Vieira Pinto, de Norma Côrtes (2003). A
autora expõe o pensamento vieirista e uma de suas
reflexões, acerca da dialética que rege as próprias categorias do pensamento
crítico, tem grande relevância para a filosofia atual: se as categorias do
pensamento crítico são determinadas historicamente, então quais seriam as
categorias que orientam o pensar crítico na atualidade? Nossa pretensão, que
será devidamente exposta em outro trabalho, é justificar a importância da
exterioridade, conforme concebida por Enrique Dussel
(2011), e da imersibilidade, que elaboramos a partir
da obra de Paulo Freire (2016), como categorias do pensamento crítico na
atualidade.
Por
fim, apresentamos os dois últimos elementos, ambos elaborados pelo autor a
partir de uma abordagem similar, calcada na teoria da multiplicidade de
contradições do real. O primeiro deles é a defesa da solidariedade entre as
nações subdesenvolvidas em processo de superação do imperialismo, que sugere
uma linha de ação política internacional para enfrentar as causas do
subdesenvolvimento. Considerando a defesa abstrata da solidariedade universal
dos trabalhadores, o autor indica alguns óbices para ela, sendo o principal
deles a existência de nações com condições dispares de desenvolvimento: apenas
abstratamente são iguais o trabalhador do norte do Brasil, a trabalhadora do
sudeste, um trabalhador imigrante nos Estados Unidos e um trabalhador norueguês
nativo. De um ponto de vista concreto existem diferentes determinações sociais
que devem ser levadas em consideração, uma delas, a que foi salientada por
Vieira Pinto (2020, vol. II), é a disparidade entre o desenvolvimento dos
países metropolitanos e o subdesenvolvimento dos periféricos. Frente a isso ele
propõe a solidariedade geopolítica dos países subdesenvolvidos. Eles, pois,
enfrentam a mesma contradição que opõe seus interesses aos interesses dos
países centrais, colonizadores. Esta é uma das teses que evidenciam a presença
da questão da descolonização no pensamento de Álvaro Vieira Pinto, pois ele faz
referência direta à onda de descolonização africana e asiática daquele período.
Por
fim, o último elemento desse volume, que salientaremos como interessante para a
reconstituição da filosofia do desenvolvimento, é a teoria da revolução feita
pelo autor. Além de Vieira Pinto, Roland Corbisier também abordou essa questão
e a argumentação dos autores torna a revolução não
apenas um dos temas da filosofia do desenvolvimento, mas uma condição
necessária para que o país subdesenvolvido rompa com os determinantes de sua
situação de subalternidade internacional, que engendra o subdesenvolvimento.
Através dela o país poderá transitar até um “novo sistema social de produção, refletindo na percepção da
consciência a alteração das relações entre os homens, no processo pelo qual
cada um provê sua subsistência” (Vieira Pinto, 2020, vol. II, p. 576, grifos
nossos). Enquanto no primeiro volume da obra que estamos examinando Vieira
Pinto indica a relevância da revolução tecnológica em particular, no segundo
volume ele elabora uma teoria da revolução em sentido amplo.
Vieira
Pinto (2020, vol. II) define revolução como “o ato histórico pelo qual as
forças sociais de uma comunidade, correspondentes ao grau de desenvolvimento do
respectivo processo econômico, solucionam a contradição principal que no
momento envolve essa comunidade” (p. 579-580). Tendo
adotado a teoria da multiplicidade de contradições do real, ele sustenta que
estas contradições são hierarquicamente distribuídas, e que a
contradição que opõe os interesses dos países subdesenvolvidos pelo
desenvolvimento nacional aos interesses das nações metropolitanas em manter o
imperialismo é a principal. Por conseguinte, sua resolução é condição para que
o mesmo ocorra com as demais, pois dentre as vicissitudes
que o imperialismo impõe à nação dominada está a alienação cultural, que
termina por desorientar a consciência da realidade nacional. Assim, a
inteligência seria incapaz de apreender corretamente a estruturação das
relações de poder que gera e mantém o quadro de dominação. Os demais antagonismos só passariam por uma alteração
qualitativa suprema, se a contradição principal viesse a ser resolvida,
alterando a totalidade vigente. Considerando as demais contradições e o
problema da ação antinômica, o autor propõe o conceito de “metacontradição”:
o indivíduo ou a coletividade só conseguirão atingir
a eficácia máxima na resolução das contradições se se conscientizarem do modo
como uma contradição secundária vincula-se a um dos polos da principal e das
demais e, consequentemente, agir de forma coerente a tal tomada de consciência.
Por fim, vale indicar que o autor ataca a objeção de que o estabelecimento de
uma contradição principal promoveria uma cavilosa conciliação de classes.
Álvaro
Vieira Pinto, claro está, anunciava a filosofia do desenvolvimento como uma
filosofia dos países subdesenvolvidos. Se é correta aquela nossa hipótese a
respeito do curso oferecido por Vieira Pinto no ISEB, em 1958, a de que ele
defenderia uma tese similar à que afirma que os interesses das comunidades
nacionais e os sistemas filosóficos que nelas predominam interagem
reciprocamente, então é lícito assumir que ela implica necessariamente as
transformações que culminam na ascensão história destas nações, e logo também é
lícito assumir esta como sendo a finalidade precípua
da filosofia do desenvolvimento.
Ao
lado das teses defendidas nesse livro, os conceitos de desenvolvimento e
subdesenvolvimento, as contribuições a uma lógica dialética, seu caráter
sistemático e racional, o nacionalismo libertador, o papel essencial da
técnica, a necessidade da revolução e da alteração cultural, todos esses são
elementos constituintes da filosofia do desenvolvimento.
Em
1964 a filosofia do desenvolvimento sofre um ferimento potencialmente mortífero
junto ao Golpe imperialista-militar: os pares de Corbisier e Vieira Pinto não
se deram conta do caráter libertador de sua proposta, mas os opressores do povo
brasileiro, sim. Enquanto os pares dos isebianos
centravam-se em outros aspectos de sua produção, ambos, bem como outros
pensadores vinculados ao ISEB, sofriam as desventuras da perseguição[5].
Aliás, uma hipótese a ser devidamente testada em estudos futuros é a relação
entre essas operações. Não é casual, pois, que a historiografia do silêncio e
da deturpação se vincule ao eurocentrismo, uma das armas culturais do
imperialismo.
A FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO SOB A MIRA DO FUZIL: A PRODUÇÃO DE
ÁLVARO VIEIRA PINTO E DE ROLAND CORBISIER DURANTE A DITADURA
No
ano de 1968, enfrentando as adversidades do Golpe, a filosofia do
desenvolvimento apresenta uma respiração tênue, dá passos vacilantes, mas ainda
persiste. Corbisier, então, publica o livro Reforma ou revolução?, constituído em sua maior parte
por textos escritos no ano do Golpe. Ele retoma algumas das teses de Vieira
Pinto, bem como o referencial da teoria da multiplicidade de contradições e
reforça a pretensão dessa ciência de vincular-se à realidade dos países
subdesenvolvidos e da superação desse quadro. É nessa obra que o autor elabora
sua teoria da revolução. Além disso, é de interesse para a reconstituição dela
a distinção entre o discurso científico do desenvolvimento, este sim pode ser
associado ao desenvolvimentismo Pós-Segunda Guerra, e o desenvolvimento
enquanto fato, que está presente em toda a história da
humanidade.
No
início dos anos 1970, durante a redação de O conceito de tecnologia, ou
mesmo nos anos anteriores, considerando 1969, quando vem à luz “Ciência e
existência”, a filosofia do desenvolvimento apresenta uma piora drástica.
Álvaro Vieira Pinto abandona o uso do termo filosofia do desenvolvimento
enquanto tal, mas mantém uma certa “teoria do desenvolvimento”. Ele mantém
também várias de suas teses e conceitos anteriores: a noção de contradição, a
polaridade entre consciência ingênua e crítica, a defesa da necessidade de
superação do imperialismo em seus vários campos de manifestação: cultural,
política e econômica. Naturalmente diversas de suas reflexões poderiam ser
abordadas desde a filosofia do desenvolvimento enquanto disciplina filosófica
autônoma, mas nessas obras ela perde centralidade.
No
ano de 1975, temos a publicação de Filosofia política e liberdade (1978,
2. ed.), de Corbisier. Esta é a obra em que o autor mais aborda o tema e o faz
de maneira sistemática. Nela ele distingue crescimento e desenvolvimento
nacional, esboça uma fundamentação da filosofia do desenvolvimento na dialética
do senhor e do escravo de Hegel e aplica essas reflexões à análise econômica,
social e política.
Ele
retoma algo já exposto em Reforma ou revolução? (1968): a distinção
entre o desenvolvimento enquanto fato, isto é, sempre houve nações ricas e
pobres, metrópoles e colônias, ou seja, situação de domínio; e o
desenvolvimento enquanto ideia: ela começou a ser empregada na literatura
especializada a partir da Segunda Guerra.
Segundo o mesmo autor, a condição para tratar do tema
em novas bases, isto é, a partir de uma filosofia do desenvolvimento, é a
mudança na correlação de forças mundiais. Aqui ele considera importante não
apenas a Guerra Fria, mas também a ascensão histórica dos países
subdesenvolvidos. Quanto aos critérios para aferir o desenvolvimento, o autor
recusa a atitude platônica e emprega de uma fenomenologia do
desenvolvimento.
Enquanto a atitude platônica como critério para a definição do
desenvolvimento cifra-se em “definir um modelo ideal e com ele comparar a
realidade” (Corbisier, 1978, p. 112), concebendo o grau de desenvolvimento dos
países de acordo com o seu coeficiente de participação nesse modelo; o critério
utilizado pelo autor “procura definir o subdesenvolvimento em função da
realidade dos países desenvolvidos” (Corbisier, 1978, p. 113). À luz disso, ele
aponta a relevância da descrição da estrutura econômica, social, política e
cultural dos países que são considerados, consensualmente diz ele,
desenvolvidos, como Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França,
Alemanha e Japão. Sua conclusão é de que, desta forma, o paradigma, ou ponto de
referência, deixa de ser ideal e aprioristicamente definido e se torna a
própria realidade histórica. A descrição fenomenológica feita pelo autor
ressalta quatro critérios para aferir o grau de desenvolvimento de um país: a
industrialização ou produção industrial; a estrutura ocupacional, ou seja, a
distribuição da mão-de-obra nas várias ramificações da atividade econômica; a
renda nacional per capita; e a
urbanização. É digno de nota a crítica que ele faz em relação ao terceiro
critério.
Para sustentar que os índices de renda per capita podem ser ilusórios, se considerados de forma isolada,
ele argumenta citando o caso dos países do Oriente Médio, exportadores de
petróleo. Eles apresentam altíssimo desempenho nesse quesito, mas como essa
renda não se acha distribuída junto à maior parte da população, porém
concentrada nas mãos de poucos senhores da terra e proprietários de campos de
exploração de petróleo, esses povos se incluem entre os mais pobres, atrasados
e subdesenvolvidos do mundo.
Ainda
nesse mesmo livro, Corbisier tematiza a dialética senhor-escravo de Hegel, pois
concebe que ela é uma relação análoga às relações entre metrópole e colônia. A
este propósito ele retoma o texto Formação e problema da cultura brasileira
(1958), o que faz ressaltar o caráter do colonialismo enquanto fenômeno total e
sustenta a tese de que a dependência econômica é a principal característica da
situação colonial.
Entretanto,
aquilo que mais nos interessa nessa obra é a proposta de uma sociologia dos
países subdesenvolvidos. Até aqui vínhamos tratando da plataforma metafilosófica do desenvolvimento, isto é, do fato de que
da filosofia do desenvolvimento emerge uma lógica do desenvolvimento, uma ética
do desenvolvimento, uma educação para o desenvolvimento. Por que não uma
sociologia do desenvolvimento, ao invés de uma sociologia dos países
subdesenvolvidos? Nossa hipótese é que ambos os autores, Corbisier e Vieira Pinto,
pois logo veremos como este último também propõe uma disciplina com o mesmo
nome, desejavam se afastar dessa concepção de origem cepalina[6].
A razão para tal distanciamento pode estar
relacionada, de acordo com nosso raciocínio, à pretensão dos autores de
alcançar um pensamento próprio e articulado com sua defesa da libertação também
epistemológica dos países subdesenvolvidos. Segundo Corbisier (1978), a
sociologia dos países subdesenvolvidos deveria ser elaborada em função e a
partir do ponto de vista dos povos coloniais e tem caráter crítico e
libertador. Ela é, pois, a “ciência que procura explicar a gênese, a formação,
e as transformações da sociedade, ou das sociedades” (Corbisier, 1978, p. 135),
sendo construída em contraste com a sociologia metropolitana. É por essa razão
que nessa obra de Corbisier o tema do racismo ganha evidência.
O
autor também propõe sua política do desenvolvimento, tomada como técnica “que
inclui as normas, os planos e os projetos a serem aplicados na promoção do
desenvolvimento dos países atrasados” (Corbisier, 1978, p. 135-136). O autor
parte do pressuposto de que tudo é subdesenvolvido nos países subdesenvolvidos.
Logo, é necessária uma transformação do Estado para que este se torne um
instrumento a serviço da emancipação e modernização da economia nacional. O
tema da oposição, radical ou não, entre capitalismo e socialismo aparece na
discussão dessa questão.
Nos
anos seguintes, a filosofia do desenvolvimento tem um prognóstico marcado por
certo ceticismo de Álvaro Vieira Pinto. Ele escreve o seu A sociologia dos
países subdesenvolvidos (2008), obra cujo subtítulo carrega as seguintes
palavras: “introdução metodológica ou prática metodicamente desenvolvida da
ocultação dos fundamentos sociais do ‘vale de lágrimas’”. O autor relata que
começou a escrever o livro em 13 de agosto de 1974, e que a revisão do original
foi feita no dia 13 de fevereiro de 1977, conforme se verifica,
respectivamente, nas notas das páginas 19 e 354. Não se trata de uma obra de
sociologia enquanto ciência empírica, mas sobretudo é uma obra de sociologia
das ciências e que toma como objeto principal a sociologia e as ciências
humanas. O autor desenvolve principalmente análises sociológicas e
epistemológicas visando denunciar e superar os engodos
teóricos que ajudam a manter a situação do “vale das lágrimas”, além de
contribuir para uma rigorosa compreensão da realidade humana e do mundo onde
vive o ser humano.
A
imagem do “vale das lágrimas” é oriunda de uma prece católica intitulada Salve,
rainha. Nela o fiel clama: “[...] A vós bradamos, os degredados filhos de
Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando, neste vale de lágrimas [...]” (Catholic Church, 1961, tradução
nossa). A intenção do autor, ao empregá-la inicialmente como título da obra
(ideia que foi abandonada), e depois – e de forma definitiva – como subtítulo,
é denunciar a perspectiva pessimista e paralisante que converte o mundo em um
lugar inóspito, tenebroso e cruel e transforma a ação humana em inútil para
mudar isso.
Vieira
Pinto estava quase certo de que essa obra não seria publicada, o que explica o
prognóstico cético que indicamos. Tal fato é patente na observação que ele faz
ao final do primeiro caderno que constitui o livro: “[...] este trabalho [...],
no estado em que hoje o deixo [...], representa pouco mais do que o rascunho de
um futuro livro, que provavelmente nunca será publicado” (Vieira Pinto, 2008,
p. 412).
Ainda
que Vieira Pinto (2008) nessa obra não mencione explicitamente a filosofia do
desenvolvimento, em várias teses e argumentações ele retoma os temas propostos
por ela. Ademais, é nessa obra que encontramos a mais explícita argumentação
contra o desenvolvimentismo cepalino (cap. 40 e segs.). Em particular, cabe
citar que o autor critica a ocultação semântica do desenvolvimento, que se
cifra na prática de sugerir termos novos que escamoteiem, especialmente em face
das classes populares, a discussão do tema. Também nessa obra ele empreende uma
releitura da dialética senhor e escravo, mas aplicada à superação do
subdesenvolvimento e da colonização, tal como Corbisier.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
filosofia do desenvolvimento foi um programa filosófico e político
descontinuado e sistematicamente combatido através do uso de diversas
estratégias. Entretanto, nossa pretensão com este artigo é sugerir uma radical
revisão da história da filosofia brasileira e latino-americana. A obra dos isebianos deve ser
avaliada também em função de suas contribuições originais e autorais, e nesse
âmbito a tematização da filosofia do desenvolvimento é tarefa obrigatória.
Além da filosofia do desenvolvimento como movimento filosófico dos
países subdesenvolvidos, tal como proposto por Corbisier e Vieira Pinto e da
filosofia do desenvolvimento como paradigma filosófico ou como corrente
filosófica que abre a possibilidade de uma ética do desenvolvimento, política
do desenvolvimento e assim sucessivamente, é preciso questionar a atualidade da
questão do desenvolvimento.
Norma
Côrtes[7]
afirmou que o pensamento de Vieira Pinto, e talvez poderíamos estender tal
afirmação a Corbisier, foi cravado pela teoria da dependência. Por outro lado,
considerando especificamente o âmbito filosófico, e por conseguinte a história
da filosofia latino-americana, há que se considerar o impacto e os
desdobramentos do surgimento da filosofia da libertação. Assim, a tematização
da filosofia da libertação no sentido fraco do termo, exige, segundo
pretendemos, a consideração da produção isebiana, que foi, tal como
indicamos, pelo menos um antecedente importante para tal movimento.
Outros
estudos devem ser feitos, investigando a relação entre Álvaro Vieira Pinto e
Roland Corbisier e outros filósofos que tratavam da questão da libertação, como
Pierre Moussa, Amílcar Cabral e Frantz Fanon;
abordando a delimitação metafilosófica entre
filosofia política e ética, especialmente, e filosofia do desenvolvimento;
avaliando os impactos da filosofia do desenvolvimento em outros autores, como
Paulo Freire, quem escreve sua principal obra sob forte influência de Vieira
Pinto e de sua produção na fase isebiana.
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NOTAS
Agradecimentos: Não se aplica.
Financiamento: Não se aplica.
Comitê de ética em Pesquisa: O trabalho respeitou a
ética durante a pesquisa, porém não foi necessário comitê de ética.
Contribuições dos autores: Breno
Augusto da Costa: é responsável pela pesquisa, análise,
redação e correções do artigo. Assumindo integral responsabilidade pelo
trabalho e o conteúdo publicado.
Disponibilidade de dados e material: Os dados e materiais utilizados no trabalho estão disponíveis para
acesso por meio das referências disponibilizadas no artigo.
Conflitos de interesse: Não há conflitos de interesse a declarar.
Publisher:
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de
Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências Sociais.
Portal de Periódicos UNESP. As ideias expressadas neste artigo são de
responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião
dos editores ou da universidade.
Recebido: 30/01/2023 |
Aprovado: 27/05/2024
| Publicado: 12/06/2024
[1] Nos
baseamos nesta tese para defender que, no contexto pandêmico, a consciência
crítica tende a suscitar comportamentos pró-vida enquanto a consciência ingênua
tende a suscitar comportamentos pró-necropolítica (Costa, 2020).
[2]
Feudalmania é um conceito proposto por Grosfoguel (2008) para se referir ao
dispositivo de dominação que oculta a exploração do Sul pelo Norte Global, ou
seja, do centro pela periferia, através da negação da coetaneidade entre ambos.
A postura feudalmaníaca corresponde à assunção de que o país subdesenvolvido
está atrasado em comparação com o país desenvolvido, e que por isso deve seguir
os modelos propostos por este para alcançar o desenvolvimento. Ora, negar a
coetaneidade entre o desenvolvimento de uns e o subdesenvolvimento de outros
implica na ocultação do fato de que os países desenvolvidos exploram
economicamente os subdesenvolvidos. Aliás, buscando contribuições em Vieira
Pinto (2008) poderíamos acrescentar ainda outro aspecto desse dispositivo: a
feudalmania anula os esforços da inteligência do país subdesenvolvido em pensar
a sua própria realidade e a superação dos problemas com que se defronta:
afinal, se a teoria mais avançada, isto é, se o modelo de superação do
subdesenvolvimento vem do país desenvolvido, por que elaborar uma alternativa?
[3] Por
várias razões, que exporemos em outros trabalhos, é equivocado atribuir-se a
Vieira Pinto um nacionalismo desenvolvimentista. Apesar da tônica no
desenvolvimento, o melhor caracterizador para seu nacionalismo é libertador. A
filosofia do desenvolvimento de Álvaro Vieira Pinto e de Corbisier é mais
próxima à filosofia de um Frantz Fanon, tal como já indicamos, de um Amílcar
Cabral e outros filósofos da libertação nacional na África e na Ásia, do que a
do pensamento cepalino. Este pequeno artigo é uma propedêutica necessária para
defendermos outras teses.
[4] Essa
concepção de situação-limite, diga-se de passagem, foi utilizada por Paulo
Freire (2016).
[5]
Investigamos melhor o tema em outro trabalho (Costa, 2023)
[6] A este respeito, conferir a sociologia do desenvolvimento de José
Medina Echavarría (López, 2016).
[7]
Conferir sua fala no 3º Colóquio Álvaro Vieira Pinto, ocorrido em Porto Alegre
em 14 de dezembro de 2018.