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FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO COMO FILOSOFIA DOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

FILOSOFÍA DEL DESARROLLO COMO FILOSOFÍA DE LOS PAÍSES SUBDESARROLLADOS

PHILOSOPHY OF DEVELOPMENT AS A PHILOSOPHY OF UNDERDEVELOPED COUNTRIES

 

DOI:

https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024010

Artigo

Recebido: 30/01/2023

Aprovado: 27/05/2024

Publicado: 12/06/2024

_________________________________

 

Breno Augusto da Costaª

 https://orcid.org/0000-0002-9251-9533

ª Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Minas Gerais, Brasil.  Professor do Instituto Federal do Paraná, Jacarezinho, Paraná, Brasil. E-mail: brenobac@gmail.com

 

 

 

 

 

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a filosofia do desenvolvimento conforme proposta pelos filósofos brasileiros Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) e Roland Corbisier (1914-2005). A partir do exame de alguns dos principais textos desses autores, mostraremos que, ao invés de um mero discurso filosófico sobre o desenvolvimento, essa proposta constitui uma ciência filosófica autônoma e que toma como objeto principal as condições de existência das coletividades. Da filosofia do desenvolvimento emerge uma plataforma paradigmática que fundamenta a ética do desenvolvimento, a política do desenvolvimento, a educação para o desenvolvimento, a sociologia dos países subdesenvolvidos e outras mais que serão rapidamente apresentadas, além de algumas das principais teses e conceitos que fundamentam tal disciplina. Encerraremos indicando algumas linhas de investigação futuras.

Palavras-chave: Filosofia do desenvolvimento, pensamento filosófico brasileiro, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier, filosofia Latino-Americana.

 

Resumen: El objetivo de este artículo es presentar la filosofía del desarrollo conforme propuesta por los filósofos brasileños Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) y Roland Corbisier (1914-2005). A partir del examen de algunos de los principales textos de estos autores, mostraremos que, en vez de un mero discurso filosófico sobre el desarrollo, esta propuesta constituye una ciencia filosófica autónoma y que toma como objeto principal las condiciones de existencia de las colectividades. De la filosofía del desarrollo surge una plataforma paradigmática que fundamenta la ética del desarrollo, la política del desarrollo, la educación para el desarrollo, la sociología de los países subdesarrollados y otras más que serán rápidamente presentadas, además de algunas de las principales tesis y conceptos que apoyan esta disciplina. Cerraremos indicando algunas líneas de investigación futura.

Palabras-clave: Filosofía del desarrollo; Pensamiento filosófico brasileño; Álvaro Vieira Pinto; Roland Corbisier; Filosofía Latinoamericana

 

Abstract: The aim of this paper is to present the philosophy of development as proposed by the Brazilian philosophers Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) and Roland Corbisier (1914-2005). Departing from the examination of some of the main texts from those authors, we show that instead of a mere philosophical discourse on development, this proposal constitutes an autonomous philosophical science and that it takes as its main subject the condition of existence of collectivities. From philosophy of development emerges a paradigmatic platform that supports an ethics of development, a politics of development, an education of development, a sociology of underdeveloped countries and others that will be briefly presented, just as some of the main thesis and concepts underlying this discipline. We conclude indicating some future research lines.

Keywords: Philosophy of development; Brazilian philosophical thinking; Álvaro Vieira Pinto; Roland Corbisier; Latin-American philosophy.

 

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é apresentar a filosofia do desenvolvimento conforme proposta pelos filósofos brasileiros Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) e Roland Corbisier (1914-2005). Nosso intuito não é defender alguma tese principal a respeito desta proposta, mas apenas tematizá-la, uma vez que tal tarefa constitui uma lacuna grave na história do pensamento filosófico brasileiro e que qualquer outra linha investigativa depende deste fundamento. Este artigo, então, tem caráter mais propedêutico do que propriamente tético.

Ambos os filósofos são reconhecidos pela tradição, dentre outras razões, por suas contribuições ao debate acerca do desenvolvimento. Entretanto, nossa pretensão é mostrar que a filosofia do desenvolvimento, conforme a obra deles, vai muito além de uma mera discursividade filosófica sobre este fenômeno, mas se constitui enquanto disciplina filosófica autônoma. Tal como tratamos da lógica, da ética, da filosofia da mente e filosofia da linguagem é lícito tratar da filosofia do desenvolvimento.

Vale a pena indicar que outros autores, como o inglês Leonard Hobhouse (1924) e Denis Goulet (1966) também produziram filosoficamente utilizando a mesma expressão. Apesar disso, nosso propósito não será buscar filiações ou avaliar críticas, mas apenas introduzir alguns elementos fundamentais encontrados exclusivamente nas obras de Vieira Pinto e Corbisier.

Metodologicamente, este artigo é fundamentado em algumas das disposições de Rodolfo Mondolfo (1969) a respeito da pesquisa em história da filosofia. Por sua vez, a lógica negativa também nos fornece algumas referências metodológicas, notadamente as implicações de uma fenomenologia da argumentação, bem como a consideração da relevância de um contexto ou disposição argumentativa (Cabrera, 2018).

A seguir, reconstituiremos cronologicamente a filosofia do desenvolvimento conforme expressa nas obras de Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier. Estruturamos o artigo em dois subtópicos que expõem a questão do desenvolvimento nacional na obra de ambos os autores. No primeiro, abordaremos os contornos iniciais da disciplina, no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), instituição responsável por pensar criticamente o desenvolvimento brasileiro. No segundo, discutiremos a presença da questão do desenvolvimento em sua obra do período pós-isebiano.

 

A FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO DURANTE O PERÍODO ISEBIANO (1955-1964)

É comum que os autores, Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier, sejam apresentados pela crítica como filósofos vinculados às discussões a respeito do desenvolvimento nacional dos anos 1950 e 1960. Apesar disso, eles produziram e publicaram diversos textos anteriores que, contudo, não constituem objeto de interesse deste artigo. A reconstituição da filosofia do desenvolvimento partirá de um dos capítulos de maior relevo da história da filosofia brasileira: a experiência do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

Fundado em 14 de julho de 1955, junto ao aparato organizacional do Ministério da Educação e Cultura, embora dotado de liberdade de cátedra, o Instituto tinha por finalidade:

[...] o estudo, o ensino, e a divulgação das ciências sociais, notadamente da sociologia, da história, da economia e da política, especialmente para o fim de aplicar as categorias e os dados dessas ciências à análise e à compreensão crítica da realidade brasileira, visando à elaboração de instrumentos teóricos que permitam o incentivo e a promoção do desenvolvimento nacional (Brasil, Decreto Lei n. 37.608 de 14/7/1955, 1955).

 

A instituição contava com um departamento de filosofia, além de outros departamentos representando cada uma das ciências humanas citadas acima. A proposta inicial do ISEB, em suma, era oferecer cursos em nível de pós-graduação e seus estagiários, assim chamados, desenvolviam pesquisas diversas sobre a realidade brasileira em suas dependências. Para maiores subsídios a respeito da história e da constituição do ISEB, os estudos de Bariani (2006), Fáveri (2014), Gomes (2012) e Wanderley (2016) podem ser consultados.

Roland Corbisier foi o primeiro diretor executivo da instituição. Já Álvaro Vieira Pinto ocupou inicialmente a direção do departamento de filosofia e, a partir de 1962, ocupou o antigo cargo de Corbisier, que fora eleito deputado federal. E é a partir da conferência inaugural do ISEB, proferida por Vieira Pinto em 14 de maio de 1956, intitulada Ideologia e desenvolvimento nacional, que verificamos o nascimento da filosofia do desenvolvimento.

Neste texto programático o autor faz um rápido balanço da história da filosofia brasileira e em seguida se propõe a discutir o papel da consciência das coletividades na promoção do desenvolvimento nacional. O autor concebe ideologia como sendo o conjunto de ideias que determinada coletividade possui, sendo ao mesmo tempo possuída por elas. Ou seja, uma pessoa possui uma ideia, sendo este o aspecto psicológico da ideologia, mas também é possuída por ela, pois passa a agir em função dessa ideia, a intervir em sua realidade social: por isso é lícito falar do aspecto sociológico da ideologia. A seguir Vieira Pinto defende quatro teses principais: “[...] sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional” (1956, p. 29), “[...] a ideologia do desenvolvimento tem necessariamente de ser fenômeno de massa” (1956, p. 30), “[...] o processo de desenvolvimento é função da consciência das massas” (1956, p. 31) e “[...] a ideologia do desenvolvimento tem de proceder da consciência das massas” (1956, p. 34).

Essas teses fazem parte dos temas sugeridos pela reflexão acerca daquelas que foram chamadas de condições subjetivas do processo de desenvolvimento. Vieira Pinto, porém, não se torna idealista, porque suas reflexões são elaboradas à luz da consideração do papel da atividade humana, ou seja, do trabalho, e, portanto, de sua participação no processo econômico, na determinação das formas de consciência coletiva da realidade. Ele tampouco cai em um mecanicismo econômico, que defende que fenômenos como a ideologia são simples reflexos das relações de produção, como se a consciência devesse ser esvaziada de seu conteúdo e se reduzisse às relações econômicas vigentes.

Depois de tratar de outros temas relacionados, como as implicações dessas teses para a função social do filósofo e do sociólogo, Vieira Pinto propõe a filosofia do desenvolvimento esclarecendo que:

[...] trata-se tão somente de analisar, por meio de disciplinas científicas, os dados do processo histórico de nosso país neste momento e de forjar a teoria explicativa de sua realidade, para do conjunto extrair regras práticas que permitam a intensificação útil do processo (Vieira Pinto,1956, p. 45).

 

Temos aqui alguns dos principais fundamentos conceituais e téticos da filosofia do desenvolvimento: a consideração das massas não apenas como agentes históricos da transformação social, mas também como dotadas de uma consciência a respeito desse processo; a relevância de se considerar a ideologia para o processo de desenvolvimento, salientando aqui ser primordial não tomar o termo “ideologia” como se fosse unívoco; e a relevância da ciência para o desenvolvimento nacional.

Dois anos depois, durante as aulas ministradas por Vieira Pinto no Curso de Regular de Filosofia do ISEB, a filosofia do desenvolvimento passa por um processo de crescimento. Existem dois poréns a respeito desse texto: em primeiro lugar, sua fragmentariedade, isto é, não chegaram até nós todas as aulas completas e o fato de que elas não foram revistas pelo professor. Apesar disso, o texto é relevante, pois o autor se propõe a denunciar e desmistificar diversas falácias em torno da história da filosofia, e isto partindo da constatação de que a filosofia tendia a irradiar-se dos centros dominadores para as regiões periféricas e dominadas. As primeiras páginas desse texto de Vieira Pinto apresentam o programa do referido curso. Na seção XI, intitulada Os determinantes humanos da filosofia, o autor se propõe a abordar “o caráter nacional de escolas e tendências filosóficas” (Vieira Pinto, 1958, p. 8), sendo que seria defendida alguma tese a respeito da “relação entre os interesses das comunidades nacionais e os sistemas filosóficos nelas predominantes” (Vieira Pinto, 1958, p. 8). A seguir, o autor lista alguns casos históricos comprovadores dessa tese:

[...] a sofística ateniense; a filosofia romana; o pensamento judaico; o platonismo italiano do Renascimento; o empirismo inglês; o racionalismo continental; o idealismo alemão; o pragmatismo [estadunidense]; o marxismo soviético; a ‘filosofia do desenvolvimento’ dos países atrasados (Vieira Pinto, 1958, p. 8, com grifos e adaptações nossos).

 

Dois elementos reflexivos são os mais importantes para nossas reflexões: em primeiro lugar, a filosofia do desenvolvimento é associada aos países subdesenvolvidos e serve cumprindo determinada função de acordo com os interesses nacionais. Entretanto, nas duas primeiras aulas do referido curso, quando ele justificou e explicou o programa aos ouvintes, a explicação acerca dessa seção foi omitida. O porquê disso não pode ser facilmente determinado; seria uma falha do ministrante que esqueceu de apresentar esse ponto? Ou então do taquígrafo, que não anotou? O professor solicitou a supressão deste trecho nas anotações? São respostas de difícil solução com os parcos recursos que temos disponíveis atualmente. Uma tarefa importante, esta documental e quase arqueológica, consiste na busca pelas notas das demais preleções: só ela permitiria o encontro com o pensamento vieirista. Apesar disso, é possível imaginar que seria defendida uma tese parecida com a seguinte: os interesses das comunidades nacionais e os sistemas filosóficos que nelas predominam interagem reciprocamente, a comunidade demanda a filosofia que lhe é conveniente e a filosofia determina ideologicamente esta comunidade.

O segundo elemento decorre da fragmentariedade desse texto: além da omissão de Vieira Pinto na explicação da seção que evidenciamos, que deveria ter sido feita entre o final da primeira e o começo da segunda aulas, nós temos disponíveis apenas 14 aulas e, por conseguinte, o tema não está presente nem na explicação do programa, nem nas demais aulas.

Apesar disso, é possível extrair outros elementos importantes para a reconstituição da filosofia do desenvolvimento: ela se relaciona ao processo de ascensão histórica dos países subdesenvolvidos. Aqui temos um vislumbre mais do que das implicações políticas dessa disciplina, mas também de alguns dos pares intelectuais de Álvaro Vieira Pinto, e por extensão de Roland Corbisier: as convergências percebidas por Ortiz (1994) ou Faustino (2022), portanto, entre eles e Frantz Fanon, filósofo martinicano que se devotou à descolonização argelina, ganha aqui um potencial esclarecimento. Como veremos, ambos tinham preocupações muito além daquelas indicadas pela crítica reducionista, que ainda é hegemônica, isto é, de que são autores desenvolvimentistas sucursaleiros da Comissão Econômica Para a América Latina e Caribe (CEPAL). Em realidade, ambos tinham uma compreensão da geopolítica mundial atenta a diversos movimentos sociais e nacionais daquele período. Por isso, além de Frantz Fanon, é preciso avaliar a proximidade desses filósofos com Amílcar Cabral, Pierre Moussa e toda a geração de pensadores e pensadoras que pensaram a libertação africana e asiática.

Neste mesmo ano de 1958, desta vez através da pena de Roland Corbisier, as contribuições à filosofia do desenvolvimento se multiplicam e seu corpo tético se torna mais vigoroso. Em suas reflexões o autor dá especial destaque às relações entre as metrópoles e os países que vivenciavam a situação colonial, como era o caso do Brasil e dos outros países subdesenvolvidos. Dialogando com Georges Balandier, Corbisier concebe que a situação colonial é global, isto é, afeta todos os âmbitos da realidade subdesenvolvida: tudo é colonial na colônia, desde a economia dela, que serve mais aos interesses dos centros que lhe exploram que aos da sua própria população; passando pela política, pois o país colonizado é equivalente a um instrumento usado pelo país colonizador; até no plano cultural, o que é percebido pela alienação dos pensadores desses países. Corbisier (1958, p. 87) encerra os dois ensaios que constituem essa obra, Formação e problema da cultura brasileira, afirmando que:

[...] entendida como a autoconsciência da cultura, uma filosofia brasileira implicará o prévio reconhecimento, o diagnóstico da situação colonial. Entendida como tarefa histórica de libertação e não como exercício acadêmico, não será uma reflexão desinteressada sobre o mundo e sobre nós mesmos, mas ao contrário, uma arma que nos permitirá transcender o colonialismo e edificar a nossa própria cultura. Libertando-nos do complexo colonial, à medida que toma consciência dele e o converte em objeto, uma filosofia brasileira nos trará a revelação de nossa própria entidade, de nosso ser como destino (Corbisier, 1958, p. 87).

 

Corbisier (1958) deixa clara a associação entre “uma filosofia brasileira” e a filosofia do desenvolvimento proposta por Vieira Pinto ao argumentar que: “[...] se é verdade, como já se disse, que ‘não há movimento revolucionário sem teoria do movimento revolucionário’, não haverá desenvolvimento sem a formulação prévia de uma ideologia do desenvolvimento nacional” (p. 87). Ademais, no decorrer de todo o texto ele trata da questão do desenvolvimento e justifica a importância dessa ideologia para tal processo.

Além da explicitação das relações entre subdesenvolvimento, que tal como temos mostrado é um conceito importante tanto para Corbisier quanto para Vieira Pinto, e colonização, poderíamos citar o já aludido Fanon (2005), quando afirma que: “[...] o bem-estar e progresso da Europa foram construídos com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos índios e dos amarelos [...]” (p. 116-117), para tratar de uma reflexão convergente encontrada em Corbisier (1958). Esse texto é fundamental para a filosofia do desenvolvimento por abordar novamente a questão da consciência que uma comunidade nacional tem de si e de suas implicações para o processo de desenvolvimento. Ele elabora uma teoria da consciência crítica cuja gênese é centrada nas guerras europeias do século XX (1914-1918 e 1939-1945) e suas implicações existenciais, econômicas e culturais no mundo subdesenvolvido; nas crises diversas que sacudiram a nação, tendo uma delas culminado na Revolução de 1930; e nas disparidades suscitadas pelo desenvolvimento vegetativo de um país de estrutura colonial. 

O próximo texto que abordaremos teve seu primeiro volume publicado em 1960 e o segundo no ano seguinte. Trata-se da principal obra de Álvaro Vieira Pinto, Consciência e realidade nacional. Nela encontramos um crescimento exponencial das teses, conceitos e temas de interesse da filosofia do desenvolvimento. Talvez a principal das teses seja a de que a consciência crítica tende a acelerar o desenvolvimento enquanto a consciência ingênua tende a retardá-lo[1]. No primeiro volume da obra, o autor se propõe a defender algumas teses propedêuticas, apresentar alguns conceitos e noções básicas e em seguida realiza uma analítica da consciência ingênua, descrevendo trinta e três traços que caracterizam essa forma de pensar. Vale destacar a proposta de duas tarefas para a filosofia do desenvolvimento: em primeiro lugar, superar a noção de “tecnização”, o que é feito pela retomada do caráter político do desenvolvimento e, em seguida, depois de calcada essa política em bases democráticas, é sustentado pelo autor o rompimento com a tecnocracia nascente no país. E em segundo lugar, a superação da oposição artificiosa entre tecnologia e humanismo.

Nessa obra Vieira Pinto também oferece uma abordagem filosófica do desenvolvimento enquanto tal. Se, por um lado, defende ele no primeiro volume da obra, a relação centro-periferia é conjuntural e trata-se de um fato político; por outro, a relação desenvolvimento-subdesenvolvimento se refere ao fato objetivo de que as massas possuem determinadas condições materiais de vida:

[...] o subdesenvolvimento tem de ser apreciado em termos históricos relativos, mas, na verdade, é um conceito de ordem existencial, cujo fundamento, em última análise, são as condições materiais em que vive o [ser humano] (Vieira Pinto, 2020, vol. I, p. 103, adaptações nossas).

 

Essa relação, portanto, deve ser concebida como um fato econômico, ainda que aspectos culturais e políticos, por exemplo, devam ser levados em consideração. Essa concepção, que o autor caracteriza à luz da realidade econômica e que tem em seu horizonte a consideração de aspectos materiais da existência, permite uma antevisão de uma reflexão desenvolvida por ele em O conceito de tecnologia (2005), diga-se de passagem. Nessa obra Vieira Pinto explicita ainda mais detidamente sua compreensão da existência humana, que é sempre social e historicamente condicionada.

Além desta conceituação do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, o autor conceitua consciência ingênua e consciência da seguinte forma: “[...] a consciência ingênua é, por essência, aquela que não tem consciência dos fatores e condições que a determinam. A consciência crítica é, por essência, aquela que tem clara consciência dos fatores e condições que a determinam” (Vieira Pinto, 2020, vol. I, p. 88, grifos nossos com base na edição original). 

Segundo o filósofo, trata-se da tese mais significativa de seu texto. Aliás, no decorrer de toda sua obra posterior ele emprega a seguinte estratégia argumentativa: começa apresentando o pensamento ingênuo sobre determinado tópico e em seguida critica-o e sistematiza o pensamento crítico. Também nesse texto, ele distingue os eixos que opõem as formas de consciência quanto à criticidade (consciência ingênua versus consciência crítica), quanto à ilustração (consciência culta versus consciência inculta, mesmo que rechaçando a dualidade cultural) e quanto à autenticidade (consciência autêntica versus consciência inautêntica). A análise sociológica da consciência, argumenta Vieira Pinto (2020, vol. I), para admitir a discussão do problema da verdade, requer que a consciência seja crítica, “tal como se dá na análise lógica dos juízos, que exigem para se caracterizarem como verdadeiros ou falsos, que primeiro sejam dotados de sentido” (p. 27). Em sua concepção a consciência crítica poderá ser culta ou inculta, tal como a consciência ingênua, porém a autenticidade é privilégio daquela primeira forma.

Álvaro Vieira Pinto defende outras teses fundamentais ainda nesse primeiro volume, como a de que todo país tem condições de se desenvolver desde que as massas se proponham a um projeto autônomo e autóctone; de que o processo de transformação da realidade nacional aja reciprocamente com a consciência dos economistas, dos políticos e das massas, suscitando a superação da consciência ingênua; reforça as teses de “Ideologia e desenvolvimento nacional” ao defender que as massas são as naturais portadoras da ideologia do desenvolvimento e que cabe ao filósofo e sociólogo comprometidos com o movimento do real saber extrair delas essa ideologia; de que o desenvolvimento está associado às inovações técnicas, que por sua vez induzem à exigência de uma revolução tecnológica, que são fatos também políticos de uma dada comunidade; de que o subdesenvolvimento constitui a contradição principal que os países subdesenvolvidos enfrentam; de que só o desenvolvimento enquanto instrumento da emancipação política e econômica nacional é que representa a conduta objetiva autêntica em nosso processo histórico; de que apesar da multiplicidade de contradições existentes, sua plena resolução só ocorre quando a principal é eliminada; dentre outras.

Como balanço parcial da obra Consciência e realidade nacional lida à luz da reconstituição da filosofia do desenvolvimento, vale considerar as contribuições de Álvaro Vieira Pinto para se pensar o desenvolvimento para além do desenvolvimentismo ingênuo e afeito à feudalmania[2]. Também vale ressaltar a relevância da matriz filosófica dialética, através da teoria das contradições múltiplas do real que, aplicada à situação dos países subdesenvolvidos, permite-nos entrever dois temas fundamentais para tal ciência filosófica: para estes países, a contradição principal seria aquela que opõe seus interesses – de desenvolvimento – aos interesses das nações metropolitanas – de desenvolvimento do subdesenvolvimento –; sem que a assunção desta como a principal signifique a supressão de outras, como a de classes antagônicas, bem como outros temas que merecem ser enquadrados nessa teoria, como o racismo e o machismo. O outro tema será tratado no outro volume e versa sobre relevância de uma alteração qualitativa da realidade para o processo de desenvolvimento.

No segundo volume da obra que estamos examinando, o autor não emprega a expressão “filosofia do desenvolvimento”, entretanto é nítida e evidente as suas propostas calcadas em tal ciência, assim como a vinculação entre sua argumentação e os temas sugeridos por ela. Vislumbramos nesse texto pela primeira vez um paradigma metafilosófico de qual decorrem vários desdobramentos disciplinares: a filosofia do desenvolvimento implica reflexões lógicas que exigem, por sua vez, uma lógica do desenvolvimento, que é dialética. Vieira Pinto empreende uma dura crítica ao formalismo lógico e seus efeitos entorpecedores da consciência nacional. Tal como argumenta ele, essa forma de pensar é imobilizadora da ação pró-desenvolvimento.

Por sua vez, há também uma teoria política do desenvolvimento. Defendendo desde teses em torno de um nacionalismo libertador[3], através da justificação, por exemplo, desse nacionalismo frente a outras propostas, como o municipalismo ou o patriotismo romântico; passando pela defesa de teses que tocam questões diversas como a ocupação da terra no Brasil, a crítica à exportação de matérias-primas etc.; e chegando até à recusa do totalitarismo, o discurso vieirista, calcado na filosofia do desenvolvimento, traz advindos téticos de competência da filosofia política.

Vieira Pinto (2020, vol. II) também elabora uma ética do desenvolvimento a partir do postulado de que “[...] para decidir do nosso comportamento em face do desenvolvimento do país e da contribuição a lhe dar, não é indiferente a postura ética teórica que adotamos, em vista das consequências sobre o nosso entendimento dos fatos” (p. 235). Ele sugere uma ética do desenvolvimento que deve induzir suas posições da realidade em contraste às éticas idealistas, que deduzem concepções abstratas a partir de princípios idealistas. Concebe ele que é do contato com os fatos humilhantes que nossa realidade nos apresenta que devemos desentranhar uma ética que atenda à busca das ações materiais promotoras do desenvolvimento.

A educação para o desenvolvimento, por sua vez, trata da filosofia da educação conveniente para o empreendimento do desenvolvimento nacional. O autor ainda neste mesmo livro supera a falsa dicotomia entre educação humanista e educação técnica e propõe a importância de se tomar a educação como processo de transmissão e, por conseguinte, de multiplicação da consciência crítica.

Vale também citar as sete categorias que orientam o pensamento crítico segundo Vieira Pinto. Ele analisou trinta e três traços da consciência ingênua, como supracitado. Pois bem, sua antípoda, para apreender a realidade, apresenta sete categorias que foram sistematizadas pelo autor: objetividade, historicidade, racionalidade, totalidade, atividade, liberdade e nacionalidade. Antes de fazer o balanço do segundo volume, seja-nos lícito fazer duas observações sobre este tema. Em primeiro lugar, a consciência crítica, por definição, é aquela que toma consciência dos fatores e condições que determinam seu pensar. Ora, se uma das categorias do pensamento crítico é a liberdade, isto ocorre pois no mundo existe uma contrapartida para esta liberdade. Se, tal como propõe Vieira Pinto, a liberdade é retirada do plano das especulações metafísicas e é assentada no domínio na análise sociológica e histórica, então a liberdade equivale ao libertar. A liberdade não é assumida por ele como a faculdade inerente ao ser e anterior ao ato, pois se assim fosse, a rigor, ela seria dispensável. A liberdade não consiste em escolher, defende ele, mas em ter escolhido. À medida em que o ser humano assume sua realidade com suas contradições e age de forma que sua ação seja conveniente a um estágio superior, então estamos em face do processo libertador. O desenvolvimento, então, implica a superação das diversas situações que limitam e oprimem a existência nos países dominados. Aparece aqui mais uma nota para a conceituação de subdesenvolvimento de acordo com Vieira Pinto: ele é constituído por um conjunto de situações-limite, conceito este compreendido por ele de forma radicalmente oposta à conceituação original de Karl Jaspers. Para Vieira Pinto (2020, vol. II, p. 283 e segs.), a situação-limite é um fenômeno da existência coletiva e marca a fronteira entre o ser e o mais ser. Não é o abismo infranqueável onde terminam as possibilidades humanas, mas sim a margem onde começam as mais ricas possibilidades de uma coletividade. Não é a abertura para a transcendência religiosa ou metafísica, mas é a abertura para a transcendência histórica. Não é a circunstância que torna inútil a liberdade, mas ao contrário, é a convocação mais intensa para o exercício da liberdade que, conforme mostrado acima, equivale ao libertar, segundo o autor[4].

A segunda observação pode ser desenvolvida a partir do recurso ao mais importante e rigoroso estudo de “Consciência e realidade nacional”: trata-se do livro Esperança e democracia: as ideias de Álvaro Vieira Pinto, de Norma Côrtes (2003). A autora expõe o pensamento vieirista e uma de suas reflexões, acerca da dialética que rege as próprias categorias do pensamento crítico, tem grande relevância para a filosofia atual: se as categorias do pensamento crítico são determinadas historicamente, então quais seriam as categorias que orientam o pensar crítico na atualidade? Nossa pretensão, que será devidamente exposta em outro trabalho, é justificar a importância da exterioridade, conforme concebida por Enrique Dussel (2011), e da imersibilidade, que elaboramos a partir da obra de Paulo Freire (2016), como categorias do pensamento crítico na atualidade.

Por fim, apresentamos os dois últimos elementos, ambos elaborados pelo autor a partir de uma abordagem similar, calcada na teoria da multiplicidade de contradições do real. O primeiro deles é a defesa da solidariedade entre as nações subdesenvolvidas em processo de superação do imperialismo, que sugere uma linha de ação política internacional para enfrentar as causas do subdesenvolvimento. Considerando a defesa abstrata da solidariedade universal dos trabalhadores, o autor indica alguns óbices para ela, sendo o principal deles a existência de nações com condições dispares de desenvolvimento: apenas abstratamente são iguais o trabalhador do norte do Brasil, a trabalhadora do sudeste, um trabalhador imigrante nos Estados Unidos e um trabalhador norueguês nativo. De um ponto de vista concreto existem diferentes determinações sociais que devem ser levadas em consideração, uma delas, a que foi salientada por Vieira Pinto (2020, vol. II), é a disparidade entre o desenvolvimento dos países metropolitanos e o subdesenvolvimento dos periféricos. Frente a isso ele propõe a solidariedade geopolítica dos países subdesenvolvidos. Eles, pois, enfrentam a mesma contradição que opõe seus interesses aos interesses dos países centrais, colonizadores. Esta é uma das teses que evidenciam a presença da questão da descolonização no pensamento de Álvaro Vieira Pinto, pois ele faz referência direta à onda de descolonização africana e asiática daquele período.

Por fim, o último elemento desse volume, que salientaremos como interessante para a reconstituição da filosofia do desenvolvimento, é a teoria da revolução feita pelo autor. Além de Vieira Pinto, Roland Corbisier também abordou essa questão e a argumentação dos autores torna a revolução não apenas um dos temas da filosofia do desenvolvimento, mas uma condição necessária para que o país subdesenvolvido rompa com os determinantes de sua situação de subalternidade internacional, que engendra o subdesenvolvimento. Através dela o país poderá transitar até um “novo sistema social de produção, refletindo na percepção da consciência a alteração das relações entre os homens, no processo pelo qual cada um provê sua subsistência” (Vieira Pinto, 2020, vol. II, p. 576, grifos nossos). Enquanto no primeiro volume da obra que estamos examinando Vieira Pinto indica a relevância da revolução tecnológica em particular, no segundo volume ele elabora uma teoria da revolução em sentido amplo.

Vieira Pinto (2020, vol. II) define revolução como “o ato histórico pelo qual as forças sociais de uma comunidade, correspondentes ao grau de desenvolvimento do respectivo processo econômico, solucionam a contradição principal que no momento envolve essa comunidade” (p. 579-580). Tendo adotado a teoria da multiplicidade de contradições do real, ele sustenta que estas contradições são hierarquicamente distribuídas, e que a contradição que opõe os interesses dos países subdesenvolvidos pelo desenvolvimento nacional aos interesses das nações metropolitanas em manter o imperialismo é a principal. Por conseguinte, sua resolução é condição para que o mesmo ocorra com as demais, pois dentre as vicissitudes que o imperialismo impõe à nação dominada está a alienação cultural, que termina por desorientar a consciência da realidade nacional. Assim, a inteligência seria incapaz de apreender corretamente a estruturação das relações de poder que gera e mantém o quadro de dominação. Os demais antagonismos só passariam por uma alteração qualitativa suprema, se a contradição principal viesse a ser resolvida, alterando a totalidade vigente. Considerando as demais contradições e o problema da ação antinômica, o autor propõe o conceito de “metacontradição”: o indivíduo ou a coletividade só conseguirão atingir a eficácia máxima na resolução das contradições se se conscientizarem do modo como uma contradição secundária vincula-se a um dos polos da principal e das demais e, consequentemente, agir de forma coerente a tal tomada de consciência. Por fim, vale indicar que o autor ataca a objeção de que o estabelecimento de uma contradição principal promoveria uma cavilosa conciliação de classes.

Álvaro Vieira Pinto, claro está, anunciava a filosofia do desenvolvimento como uma filosofia dos países subdesenvolvidos. Se é correta aquela nossa hipótese a respeito do curso oferecido por Vieira Pinto no ISEB, em 1958, a de que ele defenderia uma tese similar à que afirma que os interesses das comunidades nacionais e os sistemas filosóficos que nelas predominam interagem reciprocamente, então é lícito assumir que ela implica necessariamente as transformações que culminam na ascensão história destas nações, e logo também é lícito assumir esta como sendo a finalidade precípua da filosofia do desenvolvimento.

Ao lado das teses defendidas nesse livro, os conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento, as contribuições a uma lógica dialética, seu caráter sistemático e racional, o nacionalismo libertador, o papel essencial da técnica, a necessidade da revolução e da alteração cultural, todos esses são elementos constituintes da filosofia do desenvolvimento.

Em 1964 a filosofia do desenvolvimento sofre um ferimento potencialmente mortífero junto ao Golpe imperialista-militar: os pares de Corbisier e Vieira Pinto não se deram conta do caráter libertador de sua proposta, mas os opressores do povo brasileiro, sim. Enquanto os pares dos isebianos centravam-se em outros aspectos de sua produção, ambos, bem como outros pensadores vinculados ao ISEB, sofriam as desventuras da perseguição[5]. Aliás, uma hipótese a ser devidamente testada em estudos futuros é a relação entre essas operações. Não é casual, pois, que a historiografia do silêncio e da deturpação se vincule ao eurocentrismo, uma das armas culturais do imperialismo.

A FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO SOB A MIRA DO FUZIL: A PRODUÇÃO DE ÁLVARO VIEIRA PINTO E DE ROLAND CORBISIER DURANTE A DITADURA

 

No ano de 1968, enfrentando as adversidades do Golpe, a filosofia do desenvolvimento apresenta uma respiração tênue, dá passos vacilantes, mas ainda persiste. Corbisier, então, publica o livro Reforma ou revolução?, constituído em sua maior parte por textos escritos no ano do Golpe. Ele retoma algumas das teses de Vieira Pinto, bem como o referencial da teoria da multiplicidade de contradições e reforça a pretensão dessa ciência de vincular-se à realidade dos países subdesenvolvidos e da superação desse quadro. É nessa obra que o autor elabora sua teoria da revolução. Além disso, é de interesse para a reconstituição dela a distinção entre o discurso científico do desenvolvimento, este sim pode ser associado ao desenvolvimentismo Pós-Segunda Guerra, e o desenvolvimento enquanto fato, que está presente em toda a história da humanidade.

No início dos anos 1970, durante a redação de O conceito de tecnologia, ou mesmo nos anos anteriores, considerando 1969, quando vem à luz “Ciência e existência”, a filosofia do desenvolvimento apresenta uma piora drástica. Álvaro Vieira Pinto abandona o uso do termo filosofia do desenvolvimento enquanto tal, mas mantém uma certa “teoria do desenvolvimento”. Ele mantém também várias de suas teses e conceitos anteriores: a noção de contradição, a polaridade entre consciência ingênua e crítica, a defesa da necessidade de superação do imperialismo em seus vários campos de manifestação: cultural, política e econômica. Naturalmente diversas de suas reflexões poderiam ser abordadas desde a filosofia do desenvolvimento enquanto disciplina filosófica autônoma, mas nessas obras ela perde centralidade.

No ano de 1975, temos a publicação de Filosofia política e liberdade (1978, 2. ed.), de Corbisier. Esta é a obra em que o autor mais aborda o tema e o faz de maneira sistemática. Nela ele distingue crescimento e desenvolvimento nacional, esboça uma fundamentação da filosofia do desenvolvimento na dialética do senhor e do escravo de Hegel e aplica essas reflexões à análise econômica, social e política.

Ele retoma algo já exposto em Reforma ou revolução? (1968): a distinção entre o desenvolvimento enquanto fato, isto é, sempre houve nações ricas e pobres, metrópoles e colônias, ou seja, situação de domínio; e o desenvolvimento enquanto ideia: ela começou a ser empregada na literatura especializada a partir da Segunda Guerra.

Segundo o mesmo autor, a condição para tratar do tema em novas bases, isto é, a partir de uma filosofia do desenvolvimento, é a mudança na correlação de forças mundiais. Aqui ele considera importante não apenas a Guerra Fria, mas também a ascensão histórica dos países subdesenvolvidos. Quanto aos critérios para aferir o desenvolvimento, o autor recusa a atitude platônica e emprega de uma fenomenologia do desenvolvimento. 

Enquanto a atitude platônica como critério para a definição do desenvolvimento cifra-se em “definir um modelo ideal e com ele comparar a realidade” (Corbisier, 1978, p. 112), concebendo o grau de desenvolvimento dos países de acordo com o seu coeficiente de participação nesse modelo; o critério utilizado pelo autor “procura definir o subdesenvolvimento em função da realidade dos países desenvolvidos” (Corbisier, 1978, p. 113). À luz disso, ele aponta a relevância da descrição da estrutura econômica, social, política e cultural dos países que são considerados, consensualmente diz ele, desenvolvidos, como Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França, Alemanha e Japão. Sua conclusão é de que, desta forma, o paradigma, ou ponto de referência, deixa de ser ideal e aprioristicamente definido e se torna a própria realidade histórica. A descrição fenomenológica feita pelo autor ressalta quatro critérios para aferir o grau de desenvolvimento de um país: a industrialização ou produção industrial; a estrutura ocupacional, ou seja, a distribuição da mão-de-obra nas várias ramificações da atividade econômica; a renda nacional per capita; e a urbanização. É digno de nota a crítica que ele faz em relação ao terceiro critério.

Para sustentar que os índices de renda per capita podem ser ilusórios, se considerados de forma isolada, ele argumenta citando o caso dos países do Oriente Médio, exportadores de petróleo. Eles apresentam altíssimo desempenho nesse quesito, mas como essa renda não se acha distribuída junto à maior parte da população, porém concentrada nas mãos de poucos senhores da terra e proprietários de campos de exploração de petróleo, esses povos se incluem entre os mais pobres, atrasados e subdesenvolvidos do mundo.

Ainda nesse mesmo livro, Corbisier tematiza a dialética senhor-escravo de Hegel, pois concebe que ela é uma relação análoga às relações entre metrópole e colônia. A este propósito ele retoma o texto Formação e problema da cultura brasileira (1958), o que faz ressaltar o caráter do colonialismo enquanto fenômeno total e sustenta a tese de que a dependência econômica é a principal característica da situação colonial.

Entretanto, aquilo que mais nos interessa nessa obra é a proposta de uma sociologia dos países subdesenvolvidos. Até aqui vínhamos tratando da plataforma metafilosófica do desenvolvimento, isto é, do fato de que da filosofia do desenvolvimento emerge uma lógica do desenvolvimento, uma ética do desenvolvimento, uma educação para o desenvolvimento. Por que não uma sociologia do desenvolvimento, ao invés de uma sociologia dos países subdesenvolvidos? Nossa hipótese é que ambos os autores, Corbisier e Vieira Pinto, pois logo veremos como este último também propõe uma disciplina com o mesmo nome, desejavam se afastar dessa concepção de origem cepalina[6]. A razão para tal distanciamento pode estar relacionada, de acordo com nosso raciocínio, à pretensão dos autores de alcançar um pensamento próprio e articulado com sua defesa da libertação também epistemológica dos países subdesenvolvidos. Segundo Corbisier (1978), a sociologia dos países subdesenvolvidos deveria ser elaborada em função e a partir do ponto de vista dos povos coloniais e tem caráter crítico e libertador. Ela é, pois, a “ciência que procura explicar a gênese, a formação, e as transformações da sociedade, ou das sociedades” (Corbisier, 1978, p. 135), sendo construída em contraste com a sociologia metropolitana. É por essa razão que nessa obra de Corbisier o tema do racismo ganha evidência.

O autor também propõe sua política do desenvolvimento, tomada como técnica “que inclui as normas, os planos e os projetos a serem aplicados na promoção do desenvolvimento dos países atrasados” (Corbisier, 1978, p. 135-136). O autor parte do pressuposto de que tudo é subdesenvolvido nos países subdesenvolvidos. Logo, é necessária uma transformação do Estado para que este se torne um instrumento a serviço da emancipação e modernização da economia nacional. O tema da oposição, radical ou não, entre capitalismo e socialismo aparece na discussão dessa questão.

Nos anos seguintes, a filosofia do desenvolvimento tem um prognóstico marcado por certo ceticismo de Álvaro Vieira Pinto. Ele escreve o seu A sociologia dos países subdesenvolvidos (2008), obra cujo subtítulo carrega as seguintes palavras: “introdução metodológica ou prática metodicamente desenvolvida da ocultação dos fundamentos sociais do ‘vale de lágrimas’”. O autor relata que começou a escrever o livro em 13 de agosto de 1974, e que a revisão do original foi feita no dia 13 de fevereiro de 1977, conforme se verifica, respectivamente, nas notas das páginas 19 e 354. Não se trata de uma obra de sociologia enquanto ciência empírica, mas sobretudo é uma obra de sociologia das ciências e que toma como objeto principal a sociologia e as ciências humanas. O autor desenvolve principalmente análises sociológicas e epistemológicas visando denunciar e superar os engodos teóricos que ajudam a manter a situação do “vale das lágrimas”, além de contribuir para uma rigorosa compreensão da realidade humana e do mundo onde vive o ser humano.

A imagem do “vale das lágrimas” é oriunda de uma prece católica intitulada Salve, rainha. Nela o fiel clama: “[...] A vós bradamos, os degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando, neste vale de lágrimas [...]” (Catholic Church, 1961, tradução nossa). A intenção do autor, ao empregá-la inicialmente como título da obra (ideia que foi abandonada), e depois – e de forma definitiva – como subtítulo, é denunciar a perspectiva pessimista e paralisante que converte o mundo em um lugar inóspito, tenebroso e cruel e transforma a ação humana em inútil para mudar isso.

Vieira Pinto estava quase certo de que essa obra não seria publicada, o que explica o prognóstico cético que indicamos. Tal fato é patente na observação que ele faz ao final do primeiro caderno que constitui o livro: “[...] este trabalho [...], no estado em que hoje o deixo [...], representa pouco mais do que o rascunho de um futuro livro, que provavelmente nunca será publicado” (Vieira Pinto, 2008, p. 412).

Ainda que Vieira Pinto (2008) nessa obra não mencione explicitamente a filosofia do desenvolvimento, em várias teses e argumentações ele retoma os temas propostos por ela. Ademais, é nessa obra que encontramos a mais explícita argumentação contra o desenvolvimentismo cepalino (cap. 40 e segs.). Em particular, cabe citar que o autor critica a ocultação semântica do desenvolvimento, que se cifra na prática de sugerir termos novos que escamoteiem, especialmente em face das classes populares, a discussão do tema. Também nessa obra ele empreende uma releitura da dialética senhor e escravo, mas aplicada à superação do subdesenvolvimento e da colonização, tal como Corbisier.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A filosofia do desenvolvimento foi um programa filosófico e político descontinuado e sistematicamente combatido através do uso de diversas estratégias. Entretanto, nossa pretensão com este artigo é sugerir uma radical revisão da história da filosofia brasileira e latino-americana. A obra dos isebianos deve ser avaliada também em função de suas contribuições originais e autorais, e nesse âmbito a tematização da filosofia do desenvolvimento é tarefa obrigatória.

Além da filosofia do desenvolvimento como movimento filosófico dos países subdesenvolvidos, tal como proposto por Corbisier e Vieira Pinto e da filosofia do desenvolvimento como paradigma filosófico ou como corrente filosófica que abre a possibilidade de uma ética do desenvolvimento, política do desenvolvimento e assim sucessivamente, é preciso questionar a atualidade da questão do desenvolvimento.

Norma Côrtes[7] afirmou que o pensamento de Vieira Pinto, e talvez poderíamos estender tal afirmação a Corbisier, foi cravado pela teoria da dependência. Por outro lado, considerando especificamente o âmbito filosófico, e por conseguinte a história da filosofia latino-americana, há que se considerar o impacto e os desdobramentos do surgimento da filosofia da libertação. Assim, a tematização da filosofia da libertação no sentido fraco do termo, exige, segundo pretendemos, a consideração da produção isebiana, que foi, tal como indicamos, pelo menos um antecedente importante para tal movimento.

Outros estudos devem ser feitos, investigando a relação entre Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier e outros filósofos que tratavam da questão da libertação, como Pierre Moussa, Amílcar Cabral e Frantz Fanon; abordando a delimitação metafilosófica entre filosofia política e ética, especialmente, e filosofia do desenvolvimento; avaliando os impactos da filosofia do desenvolvimento em outros autores, como Paulo Freire, quem escreve sua principal obra sob forte influência de Vieira Pinto e de sua produção na fase isebiana.

 

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NOTAS

 


Agradecimentos: Não se aplica.

Financiamento: Não se aplica.

Comitê de ética em Pesquisa: O trabalho respeitou a ética durante a pesquisa, porém não foi necessário comitê de ética.

Contribuições dos autores: Breno Augusto da Costa: é responsável pela pesquisa, análise, redação e correções do artigo. Assumindo integral responsabilidade pelo trabalho e o conteúdo publicado.

Disponibilidade de dados e material: Os dados e materiais utilizados no trabalho estão disponíveis para acesso por meio das referências disponibilizadas no artigo.

Conflitos de interesse: Não há conflitos de interesse a declarar.

Publisher: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências Sociais. Portal de Periódicos UNESP. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

 

 


Recebido: 30/01/2023  |  Aprovado: 27/05/2024  |  Publicado: 12/06/2024

 



[1] Nos baseamos nesta tese para defender que, no contexto pandêmico, a consciência crítica tende a suscitar comportamentos pró-vida enquanto a consciência ingênua tende a suscitar comportamentos pró-necropolítica (Costa, 2020).

[2] Feudalmania é um conceito proposto por Grosfoguel (2008) para se referir ao dispositivo de dominação que oculta a exploração do Sul pelo Norte Global, ou seja, do centro pela periferia, através da negação da coetaneidade entre ambos. A postura feudalmaníaca corresponde à assunção de que o país subdesenvolvido está atrasado em comparação com o país desenvolvido, e que por isso deve seguir os modelos propostos por este para alcançar o desenvolvimento. Ora, negar a coetaneidade entre o desenvolvimento de uns e o subdesenvolvimento de outros implica na ocultação do fato de que os países desenvolvidos exploram economicamente os subdesenvolvidos. Aliás, buscando contribuições em Vieira Pinto (2008) poderíamos acrescentar ainda outro aspecto desse dispositivo: a feudalmania anula os esforços da inteligência do país subdesenvolvido em pensar a sua própria realidade e a superação dos problemas com que se defronta: afinal, se a teoria mais avançada, isto é, se o modelo de superação do subdesenvolvimento vem do país desenvolvido, por que elaborar uma alternativa?

[3] Por várias razões, que exporemos em outros trabalhos, é equivocado atribuir-se a Vieira Pinto um nacionalismo desenvolvimentista. Apesar da tônica no desenvolvimento, o melhor caracterizador para seu nacionalismo é libertador. A filosofia do desenvolvimento de Álvaro Vieira Pinto e de Corbisier é mais próxima à filosofia de um Frantz Fanon, tal como já indicamos, de um Amílcar Cabral e outros filósofos da libertação nacional na África e na Ásia, do que a do pensamento cepalino. Este pequeno artigo é uma propedêutica necessária para defendermos outras teses.

[4] Essa concepção de situação-limite, diga-se de passagem, foi utilizada por Paulo Freire (2016).

[5] Investigamos melhor o tema em outro trabalho (Costa, 2023)

[6] A este respeito, conferir a sociologia do desenvolvimento de José Medina Echavarría (López, 2016).

[7] Conferir sua fala no 3º Colóquio Álvaro Vieira Pinto, ocorrido em Porto Alegre em 14 de dezembro de 2018.