O Brasil das paixões
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.6, n.2, p. 115-126, Jul./Dez., 2020
O B
RASIL DAS PAIXÕES
:
UMA INTERPRETÃO PELAS
FUNDAMENTAÇÕES
SOCIOLÓGICAS APONTADAS POR HIRSCHMAN
João Gabriel Ribeiro Pessanha LEAL
1
RESUMO:
A obra “A retórica da intransigência” apresenta como que se desenvolveu e se organizou,
as principais linhas argumentativas do pensamento conservador frente aos processos de conquistas
progressistas do direito à cidadania ao longo da história dos países ocidentais. Este trabalho
concentra o esforço sociológico para a seção do livro denominada: “Como não discutir em uma
democracia ”. Com o objetivo fundamental de refletir, a partir de incrementos teóricos desenhados
por Hirschman, a respeito dos possíveis impactos do uso político de uma retórica polarizada sobre
a estabilidade e legitimação de um regime democrático.
Palavras-chave:
Estabilidade Democrática; Polarização Política; Retóricas Argumentativa.
ABSTRACT:
The book “The rhetoric of intransigence” presents how the main argumentative lines
of conservative thought developed and organized in the face of the processes of progressive conquests
of the right to citizenship throughout the history of Western countries. This work concentrates the
sociological effort for the section of the book called: “How not to discuss in a democracy”. With the
fundamental objective of reflecting on the possible long-term effects of the actions resulting from a
politically polarized Brazil for the stability and legitimation of a democratic regime.
Keywords:
Argumentative Rhetorics; Political Polarization Democracy.
1.
O DEBATE POLÍTICO NO BRASIL, A RETÓRICA DA
INTRANSIGÊNCIA E A DEMOCRACIA
Vale lembrar que, décadas, o conservadorismo foi abolido de
nossa política, e as pessoas que se identificam com esses valores viviam sob
governos socialistas que entregaram o país à violência e à corrupção, feriram nossa
1 João Gabriel Ribeiro Pessanha Leal, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Graduado em Adminis-
tração Pública pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Possui o curso técnico
em Administração pela FAETEC-E.T.E João Barcelos Martins (2012-2014). Sua área de pesquisa é a Ciência
Política. Atua nos seguintes subcampos: Gasto Social e Rendas Petrolíferas; Políticas Públicas, com foco no
Sistema Único de Saúde (SUS); Estudos do Poder Local; Partidos Políticos e Financiamento de Políticas Sociais.
Utiliza predominantemente métodos quantitativos de pesquisa.
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2020.v6.n2.08.p115
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democracia e destruíram nossa identidade nacional
2
.” O argumento anterior foi
escrito e publicado por um dos atores políticos mais relevantes na construção do
debate público do país; o presidente da república. A linha de raciocínio costurada
pelo Bolsonaro expressa bem o cenário argumentativo que embasa uma parte do
debate político do Brasil nos últimos anos. Debate este que, por muitas vezes, é
centrado em proposições incisivas que levam, em boa medida, a polarização da
sociedade e dificulta a construção de perspectivas conciliadoras.
A política brasileira no período recente marcou-se por emblemáticos
acontecimentos. Destacam-se as manifestações de junho de 2013, o processo de
impeachment da presidente Dilma, as eleições de 2018. Essas situações possuem
como elemento em comum a forma que uma parcela da população argumentava
e se posicionava a respeito desses assuntos. Parecia existir um fio condutor que se
inclinava para a ideia do ‘Nós contra eles” (DI CARLO. J, KAMRADT. J, 2018;
DE LIMA. F. B, 2019).
Atualmente, uma agenda acadêmica nacional (DE ALMEIDA, 2019;
DIBAI. P. C, 2018; Lynch. C, 2020; ROCHA.2019) e internacional (CHAGAS-
BASTOS, F.H. 2019; GIDRON. N, HALL. P. A, 2017; HUNTER. W, POWER.
T. J, 2019; INGLEHART.R. F, NORRIS P, 2016; RENNÓ. L. R, 2020) tem
como objeto de pesquisa a ascensão do discurso e de políticos considerados de
extrema direita. Uma das principais características desses grupos é a utilização
de uma retórica política marcada por argumentos extremos, com potencias de
polarizar o debate público.
Ainda existem inúmeros caminhos bibliográficos para serem construídos
e sofisticados dentro desta temática. Entre esses, um que busque responder
a seguinte questão: de algum modo, a retórica política polarizada interfere na
estabilidade de uma democracia? Dentro deste contexto de construção intelectual,
este artigo utiliza uma base sociológica desenhada por Hirschman para agregar
elementos teóricos na interpretação de fatos que, ao longo dos últimos anos,
mostram-se tão importantes para compreender os recentes acontecimentos
políticos do Brasil.
O artigo é fundamentado a partir da análise do livro “A retórica da
intransigência”. Desta forma, é necessário compreender alguns apontamentos
que envolve esta obra. Na década de 50 foi inserida dentro da sociologia um
dos maiores clássicos produzidos, o T.H. Marshall apresentou a sua obra
“desenvolvimento da cidadania” no Ocidente (MARSHALL, 1967). A obra
aponta a evolução histórica das dimensões civis, política e social da cidadania
(HIRSCHMAN, 1992, p.11). A Figura 01 representa a sistematização sociológica
elaborada por Marshall. Como pode ser notado, o autor apresenta um esquema
que alocou quase um século para cada uma das três tarefas.
1 Mensagem publicada no twitter oficial do Jair Bolsonaro no dia 16 de junho de 2020. Link: twitter.com/
jairbolsonaro/status/1273065055060361218
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Hirschman volta o seu olhar analítico para as contras investidas
ideológicas de força extraordinária que se mostraram ao longo do desenvolvimento
das três investidas progressistas explicitadas (HIRSCHMAN, 1992, p.12). Neste
sentido, o foco do livro centra a atenção sobre as reações aos sucessivos avanços.
A retórica da intransigência apresenta, com base em uma perspectiva histórica,
como que se desenvolveu e se organizou, as principais linhas argumentativas
do pensamento conservador frente aos processos de conquistas progressistas do
direito à cidadania dos indivíduos ao longo da história dos países ocidentais.
Dentro dos três períodos tiveram argumentos delineados pelos
reacionários com o objetivo de deslegitimar a onda progressista. O autor na
fase final do livro também discorre, de modo não tão complexo, sobre algumas
retóricas utilizadas pelo campo progressista ao longo do desenvolvimento político.
Tabela 01.
Esquema da cidadania de Marshall
Fonte
: Livro “ A retórica da intransigência”. Elaboração do autor.
A obra de HIRSCHMAN, 1992 fornece um cenário espetacular de
discussões acadêmicas, na qual existem várias temáticas e resultados que devem
ser discutidos e, consequentemente, questão-chave para outras pesquisas e
trabalhos científicos. Neste sentido, este trabalho concentra o esforço sociológico
para a parte do livro denominada: “Como não discutir em uma democracia
(HIRSCHMAN, 1992, pg.140). Na qual trata sobre as práticas argumentativas
realizadas pelos cidadãos que podem se tornar danosas para a sustentação de uma
democracia.
Devido à complexidade e relevância do tema existe uma robusta
justificativa acadêmica do porquê uma contribuição sociológica da década de 1980
apresentar relevância para interpretação de fatos do final dos anos de 2010.
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Principalmente, ao se tratar do cenário brasileiro em tempos recentes
3
na qual se
caracteriza por uma marcante polarização no campo do debate político. Diante
deste contexto, objetivo central do trabalho é refletir, a partir de incrementos
teóricos desenhados por Hirschman, a respeito dos possíveis impactos do uso
político de uma retórica polarizada sobre a estabilidade e legitimação de um
regime democrático.
O trabalho se divide, além desta seção, por mais sete seções. A seção a
seguir discute os três tipos de retóricas conservadoras. A seção três apresenta as
retóricas progressistas. A seção quatro discorre sobre os contornos em torno da
polarização no Brasil. A seção cinco apresenta o tópico do livro que é a discussão
central deste trabalho. A seis apresenta as considerações finais da empreitada. Por
sim, a seção sete trata das referências bibliográficas complementares utilizadas no
trabalho.
2.
OS TRÊS TIPOS DE RETÓRICA CONSERVADORA
A chave sociológica do livro A retórica da intransigência é a de delinear
os tipos formais de retórica, dando ênfase, nas posturas e manobras políticas mais
importantes e mais utilizadas por aqueles que têm como objetivo deslegitimar as
políticas e os movimentos de ideias “progressistas” (HIRSCHMAN, 1992, p.15).
Ou seja, o livro possui o objetivo de esboçar os principais meios de criticar, atacar
e ridicularizar as três investidas “progressistas” (HIRSCHMAN, 1992, p.15).
Neste sentido, o autor apresenta três teses reativo-reacionárias principais,
que foram utilizadas ao longo da história para afetar negativamente os avanços
progressistas, as teses foram dividias da seguinte forma:
a tese da perversidade; a
tese do efeito perverso; a tese da futilidade; a tese da ameaça
. (HIRSCHMAN,
1992, p.15).
A tese da perversidade, qualquer ação proposital para melhorar um
aspecto da ordem econômica, social ou política serve para exacerbar a situação
que se deseja remediar (HIRSCHMAN, 1992, p.15). A tese da
futilidade
sustenta
que as tentativas de transformação social serão infrutíferas, que simplesmente
não
conseguirão “deixar uma marca” (HIRSCHMAN, 1992, p.15). A tese da
ameaça argumenta que o custo da reforma ou mudança proposta é alto demais,
pois coloca em perigo outra preciosa realização anterior (HIRSCHMAN, p.15).
Devido à tendência predominante da concretização das modificações sociais na
opinião pública, ninguém se atreve a atacar de frente os avanços civilizatórios esta
é um traço marcante da retórica reacionária”.
Para a melhor compreensão do assunto a figura 02 apresentada como
que se organizam e sistematizam as argumentações trabalhadas no livro. A
3 Refira-se ao ano de 2013 até, pelo menos, o ano de 2019.
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primeira figura apresenta o resumo a definição das teses e as principais linhas
argumentativas utilizadas pelos autores ao longo dos três momentos de progresso
civilizatório, como pode ser visto a seguir:
Tabela 02.
Característica das retóricas conservadoras
Fonte:
Livro A retórica da intransigência”. Elaboração do autor.
Em resumo, cada uma das três teses tem seu próprio domínio de
influência especial. Não tem muito sentido ir além dessa constatação e tentar
estabelecer uma hierarquia geral das três teses em termos de importância histórica.
Se fosse possível, segundo Hirschman, é provável que a alegação de perversidade
fosse proclamada a ‘‘vencedora” , como a arma isolada mais popular e efetiva nos
anais da retórica reacionária (HIRSCHMAN, 1992, p.117).
3.
AS RETÓRICAS PROGRESSISTAS
Hirschman no final da obra, o autor aborda uma discussão de como se
apresenta as retóricas do lado oposto, politicamente falando, daquele apresentado
ao longo do livro. No campo progressista as retóricas apresentam-se a partir de três
teses: 1- A ilusão da Sinergia. 2- A tese do Perigo Eminente. 3- Ter a história do
nosso lado. As duas primeiras originaram de transformações da tese da1 ameaça.
Enquanto o terceiro ponto nasceu da tese da futilidade.
A ilusão da Sinergia, os progressistas têm excessiva confiança em que
todas as reformas são mutuamente solidárias, mediante o que eles gostam de
chamar de “princípio da sinergia” (HIRSCHMAN, 1992, p.127). A falácia
sinergia a sobre a relação sempre harmônica e mutuamente solidária entre as
reformas novas e as antigas (HIRSCHMAN, 1992, p.129).
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A tese do Perigo Eminente, o que não quer dizer que os progressistas
nunca se deem conta de qualquer problema, mas apenas que, tipicamente, estão
mais atentos aos perigos da inação que aos da ação (HIRSCHMAN, 1992,
p.127). O argumento do perigo iminente a favor da necessidade de seguir em
frente com novas reformas, evitando, assim, os perigos que se correria na ausência
delas (HIRSCHMAN, 1992, p.129).
O argumento, que pode ser chamado de tese do perigo iminente possui
duas características essenciais em comum com seu oposto, a tese da ameaça. Antes
de mais nada, ambas olham para apenas uma categoria de perigo ou risco quando
um programa novo é discutido: o campo da ameaça conjura exclusivamente os
perigos da ação, enquanto os partidários do perigo iminente concentram-se por
inteiro nos riscos da inação. Em segundo lugar, ambos os campos apresentam seus
cenários respectivos, os danos que serão causados pela ação ou pela inação, como
se fossem inteiramente certos e inevitáveis (HIRSCHMAN, 1992, p.128).
Ter a história do nosso lado, é a afirmação da existência de um movimento
para a frente, ou progresso, também com caráter de lei (HIRSCHMAN, 1992,
p.131). Para o autor o marxismo foi simplesmente o corpo de pensamento que
declarou com mais autoconfiança o caráter de lei, inevitável, de um determinado
movimento para a frente da história humana (HIRSCHMAN, 1992, p.131).
Qualquer proposição de que as sociedades humanas passam necessariamente
por um número finito e idêntico de estágios ascendentes é parenta próxima, do
lado progressista, do que foi descrito aqui como a tese reacionária da futilidade
(HIRSCHMAN, 1992, p.131). Segue, uma figura que apresenta o resumo das
teses apresentadas.
Tabela 03.
Característica das retóricas progressistas
Fonte:
Livro A retórica da intransigência”. Elaboração do autor.
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4.
O BRASIL DA POLARIZAÇÃO
Existem várias frentes analíticas para se debruçar sobre o recente
período de polarização política no Brasil. Nos últimos anos o fenômeno é
abordado como um tema relevante para a sociedade e vem sendo, por exemplo,
o assunto principal de inúmeros embates jornalísticos e acadêmicos. Nesta seção
a problemática é desenvolvida por meio de um fio condutor central; apontar o
processo de acirramento político a partir de três marcos (FREITAS, A; DA SILVA,
G. P, 2018). A saber, as Jornadas de Junho de 2013, o Processo de Impeachment
da Ex-presidente Dilma e as Eleições de 2018. Busca-se responder a seguinte
pergunta: como se desenvolveu a polarização nesses períodos?
O que começa por um aumento no preço do transporte público em
São Paulo demostra ao longo dos protestos que “não era por 20 centavos” e
se torna uma das maiores movimentações de rua ocorridas no Brasil no Século
XXI (MOREIRA, O. de Lima; SANTIAGO, I. M. F. L, 2013). O episódio
protagonizado no ano de 2013 deu início a um processo em curso até os dias
atuais. A onda de protestos tinha a característica de não ter pautas definidas,
interpretou-se à época um movimento como se a juventude tivesse entendido
que podia ocupar as ruas para reivindicar demandas ao Governo. Além de não
ter pautas claras e estruturadas não existia, também, uma identificação
ideológica muito menos uma articulação ligada a um partido político, inclusive,
a movimentação apontava inúmeras críticas as estruturas partidárias. Desse
movimento, surgiram muitos grupos articulados, principalmente em redes
sociais. Grupos esses que foram importantes para o desenvolvimento do segundo
marco descrito; o impeachment.
O segundo mandato da presidente Dilma se inicia após uma eleição
vencida por uma pequena margem. O candidato perdedor não aceita a derrota e
judicializa a campanha eleitoral
4
. A polarização se acirra, daí por diante a eleição de
2014 não se encerra. A operação Lava Jato se expande e com ela as manifestações
de apoio que, além de apoiar a “Força Tarefa”, misturavam- se com pedidos
de afastamento da presidente. O retrospecto da operação e os seus impactos
políticos são questões a parte que, atualmente, são amplamente exploradas pela
bibliografia. Determinados procuradores e juízes ocuparam o vácuo deixado pela
negação da política e se apresentaram como verdadeiros líderes revolucionários
(Lynch. C, 2017, p. 163). A polarização se cristaliza, uma identificação clara
de dois grupos ideológicos. O ano de 2015, então, caracteriza-se por inúmeras
manifestações de carácter à direita dando apoio ao impeachment e manifestações
de grupos inclinados à esquerda contrários ao impeachment.
A relação conflituosa entre discursos políticos chega em um dos pontos
mais sensíveis; as eleições de 2018. A disputa eleitoral do referido ano caracteriza-
se por uma ruptura da forma de se fazer campanha. Houve uma considerável
3
g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/psdb-pede-tse-cassacao-de-dilma-e-posse-de-aecio-como-presidente.html
LEAL, J. G. R. P.
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diminuição do peso do tempo de Tv e um abrupto aumento do uso das redes
sociais nas campanhas eleitorais. A utilização de aplicativos como “Instagram”,
“Facebook” e “WhatsApp” marcaram definitivamente essa eleição. Notava-se um
clima de divisão exacerbada da sociedade.
Duas movimentações exemplificam esta dinâmica. Refiro-me, em
primeiro momento, a grande mobilização em torno do “Ele não”
5
Em segundo
momento, a movimentação nas redes sociais a respeito do “Sou Robô do
Bolsonaro”
6
.Uma das consequências desta marcante polarização foi que, para
alguns analistas, não se discutiu nessas eleições. Segundo pesquisa realizada pelo
Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) a campanha de
2018 teve basicamente cunho emocional, com a preocupação e a indignação/
raiva como os sentimentos mais populares entre os eleitores brasileiros
7
.
5.
O “X” DA QUESTÃO: COMO “NÃO” DISCUTIR EM UMA
DEMOCRACIA
Nesta seção do livro chamada Como “não” discutir em uma democracia,
Hirschman apresenta, primeiro, uma discussão histórica, sobre as origens das
democracias pluralistas, e, em segundo lugar, uma discussão teórica, sobre as
condições a longo prazo para a estabilidade e a legitimidade de tais regimes
(HIRSCHMAN, 1992, p.139).
Sobre a discussão histórica, para o autor se reconhece cada vez mais que
os regimes pluralistas modernos surgiram porque vários grupos que estiveram em
pé de guerra por um longo período foram forçados a reconhecer sua incapacidade
mútua para alcançar a dominação. A tolerância e a aceitação do pluralismo
acabaram resultando de um certo “empate” entre grupos opostos visceralmente
hostis (HIRSCHMAN, 1992, p.139).
Esse ponto de partida histórico da democracia não é, de certa forma,
muito promissor para a estabilidade desses regimes. Segundo o autor existe uma
alegação teórica de que um regime democrático realiza a legitimidade na medida
em que suas decisões resultem da deliberação plena e aberta de seus principais
grupos, corpos e representantes (HIRSCHMAN, 1992, p.139).
Para o autor, a deliberação é concebida como um processo formador de
opinião: os participantes não devem ter opiniões formadas de maneira definitiva
no início; espera-se que se dediquem a um debate significativo, esses devem estar
dispostos a modificar as opiniões que tinham anteriormente à luz dos argumentos
4
bbc.com/portuguese/brasil-45700013
5
exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-ganha-legiao-de-robos-apoiadores-na-internet
6
abc.org.br/2018/11/26/nao-se-discutiu-politica-nessas-eleicoes-afirma-academico-em-evento-sobre-eleicoes-
-presidenciais-na-abc
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dos demais participantes, e também como resultados das informações tornadas
acessíveis no curso do debate (HIRSCHMAN, 1992, p.139).
Se é isso que é preciso para que o processo democrático se torne
auto-sustentante e adquira uma estabilidade e uma legitimidade a longo prazo,
então o fosso que separada tal estabilidade dos regimes pluralistas democráticos
que surgiram historicamente do conflito e da guerra civil é inquietamente e
perigosamente profundo (HIRSCHMAN, 1992, p.139).
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A democracia brasileira é considerada jovem em comparação aos
modelos adotados na América Latina e, principalmente, aos modelos Europeus.
Foram realizadas, após a redemocratização, oito eleições presidenciais. Mesmo
“novo”, o regime brasileiro já passou por dois processos de impeachment,
momento considerado por muitos como uma ruptura democrática. Como
apontado anteriormente, desde junho de 2013 o país experimenta uma onda de
discussões políticas intensamente afloradas entre os indivíduos. Que vai da divisão
entre “Coxinhas e Pão com Mortadela”
8
até aos “Petralhas e Bolsominions”
9
.
Mediante a este cenário, quais podem ser os reflexos deste processo para a
estabilidade e legitimidade do regime democrático no Brasil?
A obra A retórica da intransigência” apresenta um norte teórico para
interpretar as consequências desta dinâmica, principalmente, na seção do livro
em discussão neste trabalho. Os pressupostos teóricos para a elaboração de um
diálogo interpretado com amistoso para a democracia (HIRSCHMAN, 1992,
p.140) estão distantes de serem efetivados em grandes partes dos embates políticos
em âmbito nacional. As pessoas estão entrando cada vez mais com argumentações
pré-definidas e com posições fixas sobre determinados temas.
A polarização política faz com que, em uma parcela significativa das
vezes, o debate se assente no estágio das paixões, dos argumentos a flor da pele.
Em um movimento no qual, parece distante de um cenário onde os cidadãos
estão dispostos a participar de uma arena de debates na qual todos demostram-se
flexíveis para remodelar a sua argumentação de acordo com as narrativas e os fatos
apontados pelo outro.
A sobrevivência de uma democracia não se apenas de amarrações
institucionais, as práticas rotineiras protagonizadas pelos indivíduos são
fundamentais. As ditas “regras informais” do cidadão não cabem em um sistema
jurídico. Essas são como um modus operandi dos indivíduos que fazem o
7
Termologia mais utilizada no início do período referenciado. Ver mais em: 1- epoca.globo.com/politica/noti-
cia/2018/06/legados-de-junho-como-o-levante-da-sociedade-civil-contra-o-estado-virou-briga-entre-coxinhas-
-e-petralhas.html / 2- LAUTERT, 2017.
9
Termologia mais utilizada no período eleitoral do ano de 2018.
LEAL, J. G. R. P.
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arcabouço institucional das democracias se legitimem e funcionem. De um
determinado ponto de vista, algumas dessas práticas podem estar sendo quebradas/
alteradas (Levitsky. S, Ziblatt. D, 2018).
Quais são os efeitos deste movimento a longo prazo? Será que as
estruturas institucionais conseguem suportar? Quais são as saídas políticas? As
bases teóricas e conceituais onde as democracias pluralistas foram fundamentadas
conseguem resistir a este desafio? São questionamentos que se apresentam no
período atual.
7.
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Submetido em: 23/03/2020
Aprovado em: 17/03/2021
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126
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.6, n.2, p. 115-126, Jul./Dez., 2020