Violência simbólica contra a mulher
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.6, n.1, p. 9-20, Jan./Jun., 2020
V
IOLÊNCIA
SIMBÓLICA
CONTRA
A
MULHER
:
D
O ESPAÇO DOMÉSTICO À UNIVERSIDADE
S
YMBOLIC
VIOLENCE
AGAINST
WOMEN
:
F
ROM
DOMESTIC
SPACE
TO
UNIVERSITY
Maria
Inês
Almeida
Godinho
1
RESUMO: Nesse texto o objetivo é analisar como a violência simbólica exercida contra as
mulheres no espaço familiar se estende ao espaço acadêmico universitário brasileiro. A hipótese é
que neste processo são reproduzidas as estruturas de dominação simbólica masculina desenhadas
pela família patriarcal brasileira durante gerações, o que torna este tipo de violência mais sutil se
comparada à violência física, mas o menos devastadora. Estudantes universitárias brasileiras são
constantemente alvo de agressões verbais, humilhações, abusos morais e psicológicos por parte de
professores, colegas e funcionários que compartilham com elas o espo acamico, mais tais atos
são recorrentemente naturalizados pelos agressores, e, muitas vezes, também pelas próprias vítimas
por estarem impregnados na sociedade brasileira. A análise se apoia principalmente nos estudos de
Bourdieu sobre a dominação masculina e o poder e a violência simbólicos.
PALAVRAS-CHAVE: Violência simbólica. Dominação masculina. Família patriarcal. Mulher.
Universidade.
ABSTRACT: In this text the objective is to analyze how the symbolic violence exerted against
women in the family space extends to the Brazilian university academic. The hypothesis is that
in this process the structures of male symbolic domination designed by the Brazilian patriarchal
family over generations are reproduced, which makes this type of violence more subtle compared
to physical violence, but no less devastating. Brazilian university students are constantly subjected
to verbal abuse, humiliation, moral and psychological abuse by teachers, colleagues and staff who
share the academic space with them, but such acts are recurrently naturalized by the perpetrators,
and often by the victims themselves. for being impregnated in Brazilian society. The analysis relies
mainly on Bourdieu’s studies of male domination and symbolic power and violence.
KEY-WORDS: Symbolic Violence. Male domination. Patriarchal family. Woman. University.
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduão em Cncias Sociais - Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília
UNESP Universidade Estaduallio de Mesquita Filho, e docente na UNIMAR Universidade de Malia.
E-mail: minesgodinho@hotmail.com
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2020.v6.n1.02.p9
GODINHO, M. I. A.
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INTRODUÇÃO
Todos os dias, em todo o mundo, os meios de comunicação divulgam
notícias sobre violências de diferentes tipos e intensidades contra as mulheres
- agressões psicológicas e morais, estupros, abusos físicos e homicídios, sendo
que a maior parte delas aponta o espaço doméstico como o local dos crimes.
Majoritariamente essa violência é perpetrada por homens que compartilham da
intimidade do lar destas mulheres - maridos, namorados ou companheiros , o
que transforma o lugar onde deveriam ser exercidas relões de respeito, confiança
e afeto, em um espaço marcado pela brutalidade, onde o homem exerce domina-
ção e controle.
No Brasil, a violência doméstica pode ser medida pelo alto índice de
feminicídios, crime que, de acordo com Bandeira (2013), é designado como o
assassinato de uma mulher pelo simples fato de ela ser mulher. Sempre cometidos
por homens, têm como motivações o ódio, o desprezo ou a perda do controle
sobre as mulheres, sem distinção de cultura, cor, classe ou credo, o que o torna,
segundo a autora, a “expressão perversa de um tipo de dominão masculina ain-
da fortemente cravada na cultura brasileira”.
Esse tipo de crime vem aumentando a cada ano, como aponta pesquisa
realizada em 2019 pelo IPEA Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas e
pelo FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança blica e publicada no Atlas da Vio-
lência 2019 (CERQUEIRA, 2019, p. 35): “entre 2007 e 2017 houve aumento de
20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres, quando a mesma passou de
3,9 para 4,7 mulheres assassinadas por grupo de 100 mil mulheres”, sendo que o
homicídio dentro das residências aumentou 17,1%, ao mesmo tempo em que a
taxa fora da residência diminuiu 3,3% no período (p. 42).
Porém, a morte é somente a última etapa de uma série de violências que
as mulheres enfrentam em casa. Frequentemente é precedida por todo o tipo de
agressão por parte dos homens que tentam submetê-las a seu poder: agressões ver-
bais, opressão, humilhações, ou seja, todo tipo de desconstrão moral da mulher
antes da morte efetiva. Trata-se do mesmo tipo de processo descrito por Semélin
(2009, p. 25) na análise da violência extrema empregada contra o inimigo nos
massacres políticos: para o autor, destroçar moralmente a vítima antes de matá-la
é uma maneira de estigmatizar o outro, “de rebaixá-lo, de anulá-lo”.
Bourdieu (1989) chama de violência simlica este método de desmo-
ralização. Trata-se de um tipo de coão que não se utiliza de força sica, mas que
investe contra o indivíduo de forma tão ou mais cruel ao objetivar a imposição
de poder por via moral ou psicológica. Neste texto, a ênfase é dada à violência
simbólica exercida contra as estudantes universitárias brasileiras por professores,
colegas e funcionários que compartilham com elas o espaço acadêmico, e que
constantemente é naturalizada pelos agressores, e, muitas vezes, também pelas
próprias vítimas. A hipótese é que neste processo são reproduzidas as estruturas
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de dominação simbólica masculina desenhadas pela família patriarcal brasileira
durante gerações, o que torna este tipo de violência mais sutil se comparada à
violência física, mas não menos devastadora.
A
VIOLÊNCIA
SIMBÓLICA
CONTRA
A
MULHER
Para Bourdieu (1989), a violência simbólica é conseqncia do poder
simbólico, um tipo de poder invisível que regula práticas e condutas dos mem-
bros de uma sociedade e tem foa suficiente para moldar sua identidade, pois se
fundamenta na construção recorrente de valores, regras e normas de conduta que
induzem pessoas a se comportar segundo seus critérios. Para o autor, é assim que
o poder simbólico cumpre sua função política como instrumento de imposição
de uma classe ou grupo sobre outro, constituindo-se em uma autoridade invivel
que carrega consigo uma violência também simbólica, cuja preteno é justificar
preconceitos, estereótipos e práticas de dominação.
É justamente o caso das agreses psicogicas e morais contra a mulher,
onde a identidade, o comportamento, as ideias, os direitos e os corpos femininos
passam a ser vistos naturalmente como inferiorizados ou submissos em discursos
e ações dos homens, além de eternizados por instituições como família, igreja,
escola e mídia.
Como estes padrões são arquitetados historicamente pelo discurso
dominante, o indivíduo objeto de tal poder normalmente não se conta,
seguindo seus princípios sem questioná-los, em um processo de cumplicidade.
Assim, como fruto desta forma de poder, a violência simbólica se realiza, para
Bourdieu (1989, p. 47), como um tipo de agressão “invisível às suas próprias
vítimas e exercida pelas vias mais sutis de dominão”, pois se constrói por meio
de formas de expressão de uma sociedade, ou seja, valores, comportamentos e
hierarquias que contribuem para a reafirmação e reprodução uma ordem social.
Neste sistema, muitas vezes as mulheres não veem a vioncia como um
instrumento de imposição ou de legitimação da dominação, mas sim como um
tipo de respeito que “naturalmente” se exerce para o homem, que normalmente
elas não têm capacidade crítica para reconhecer a arbitrariedade das regras im-
postas. É por isso, que, como aponta o Bourdieu (1989), a violência simbólica é
consentida: “os dominadoso se oem ao seu opressor, já que não se percebem
como vítimas deste processo”.
Em episódios de violência simbólica contra a mulher, as regras da do-
minação e sua naturalização são transmitidas através da dimica de opressão fe-
minina perpetrada pela família patriarcal, como afirma Bourdieu (2018, p. 120):
“é, sem vida, à família que cabe o papel principal na reprodão da dominação
e da visão masculinas”.
GODINHO, M. I. A.
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A
FAMÍLIA
PATRIARCAL
E
A
DOMINAÇÃO
MASCULINA
A família é uma força social que envolve o indivíduo na maior parte de
sua vida, por isso pades hierárquicos e regras de conduta social são repassados
pela família à sociedade, e da sociedade de volta à família, em um continuum de
realimentação perpetuado por gerações. A família, então, funciona como uma
instância controladora que acaba por definir a vida social de seus membros e de
toda a sociedade.
Os papéis sociais do homem e da mulher são exemplos de valores dese-
nhados a partir da família e replicados nos vários outros pais que os indivíduos
exercem na sociedade, como aponta Goode (1970, p. 17): “o desempenho de um
papel que é aprendido na família se torna o modelo ou o protótipo do desempe-
nho dos papéis exigidos nos outros segmentos da sociedade”.
A estrutura dominante de família na sociedade capitalista do século
XX, de acordo com Poster (1979, p. 186), é a família nuclear burguesa europeia,
marcada pela figura central do patriarca, que é ao mesmo tempo chefe da família
(composta por indivíduos com laços de sangue e/ou agregados) e administrador
das posses e do capital social nela investido com o objetivo de produzir vincu-
lações sociais úteis e duráveis que garantam o acesso a benefícios simbólicos ou
materiais (BOURDIEU, 2001, p. 151)
Segundo Romanelli (1995, p. 74), além da estrutura hierarquizada que
garante ao pai ou marido a autoridade e o poder, a família nuclear burguesa tem
ainda como caractesticas uma rígida divisão social do trabalho, com atribuições
e tarefas divididas entre masculinas e femininas; o controle da sexualidade femini-
na e uma dupla moral sexual, onde a mulher sofre um rígido controle sobre seus
desejos e posturas.
Este modelo foi o ponto de partida da história da instituição familiar
no Brasil, um modelo trazido pelo colonizador português e adaptado às condi-
ções socioculturais brasileiras da época (latifúndio escravagista), com variações
de acordo com a região do país (Mariano, 2016, p. 431), e estendeu-se à toda a
sociedade, sendo reforçada por outras instituições disciplinadoras, a exemplo da
Igreja e do Estado, e mais tarde pelas representações sociais postas em circulação
pela mídia.
Isso fez com que o modelo de falia nuclear fosse acolhido como ver-
dadeiro e desejado. Todos os outros arranjos familiares que o fossem similares a
ele passaram à esfera doanormal’, como aponta Szymanski (1995, p. 23): “quan-
do a família se afastava do modelo era chamada desestruturada ou incompleta e
consideravam-se os problemas emocionais que poderiam advir da ‘desestrutura’
ou ‘incompletude”.
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Mesmo existindo cada vez mais muitas outras configurações familiares,
a exemplo das matrifocais
2
, para Romanelli (1995, p. 74), o significado simbólico
do modelo patriarcal nuclear é muito forte, e quase sempre é o modelo persegui-
do como “um ideal de vida doméstica”.
Assim, este padrão familiar impôs suas normas e fez com que os indi-
víduos aceitassem os papéis designados a eles e naturalizassem condutas que, na
verdade, o socialmente construídas e normatizadas, a exemplo da autoridade e
da violência do homem e da sujeão e da passividade das mulheres, como lembra
Saffioti (2015, p. 37): elas são socializadas para desenvolver comportamentos
dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrário, são estimulados a de-
senvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem foa e coragem.”
Hoje, de acordo com Bilac (1995, pp. 36-37), a família o é mais vista
como organizada por normas fixadas a partir do poder patriarcal, mas, sim, fruto
de contínuas negociações e acordos entre seus membros, resultado de mudanças
em sua organização geradas pelo acesso da mulher à instrução e por sua entrada
no mercado de trabalho e no âmbito político. Mas para Bourdieu (2018, p. 137)
estas mudanças visíveis na condição feminina na verdade “mascaram a perma-
nência de estruturas invisíveis” no âmbito familiar, como os resquícios do poder
patriarcal.
Romanelli (1995, p. 76) concorda com a ressalva de Bourdieu quando
afirma que ainda hoje a capacidade de negociação dentro de um núcleo familiar
o é a mesma para todos os seus membros. Principalmente quando estas aspira-
ções partem de uma das mulheres da família e faz com que os homens se vejam
confrontados com seu pátrio poder.
Deste modo, apesar do visível definhamento da família patriarcal, os
homens ainda partem para a vioncia sica ou simbólica - quando as mulheres
não concordam com a submissão, tentando garantir o pátrio-poder conquistado
culos. Como lembra Castells (1999, p. 278), “o patriarcalismo sinais no
mundo inteiro de que ainda está vivo e passando bem ”.
Podemos verificar esta premissa quando analisamos os relatos de vion-
cia sofridos atualmente pelas mulheres no espaço acadêmico, que, como exteno
social do espo familiar, replica seus valores, condutas e hierarquias, a exemplo
da dominação masculina, como lembra Saffioti (2015, p. 49): “o patriarcadoo
abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade como um todo”.
2 O conceito de matrifocalidade foi criado por Raymond Thomas Smith para designar o núcleo familiar cen-
trado na mãe na ausência do pai ou quando este tem um papel secundário. Ver SMITH, Raymond T. The
matrifocal family: power, pluralism and politics. London: Routledge, 2014.
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VIOLÊNCIA
SIMBÓLICA
CONTRA
MULHERES
NA
UNIVERSIDADE
Do espaço privado da família a violência simbólica contra as mulhe-
res se expande para o espaço público da universidade. Cotidianamente, casos
de violênciasica, moral e psicológica são reportados por alunas, funcionárias e
professoras de faculdades blicas e privadas: assédios sexuais e morais, agressões
físicas e verbais, coações psicológicas, coerções, estupros e mortes, perpetrados
por professores, alunos e funcionários das instituições. E os números vêm aumen-
tando, como aponta Bandeira (2017, p. 52):
Dentre os espaços com plena expansão de expressividades da violência de -
nero e contra as mulheres, observa-se um ‘avanço’ desenfreado seu em diver-
sos campi universitários espalhados pela vastidão do país, onde se realizam: os
‘trotes violentos’, os assédios sexual e moral, além de estupros, e em algumas
situações chegou-se ao assassinato.
Entre notícias de violência nos campi universitários brasileiros, as se-
guintes estamparam os jornais em 2018 e no início de 2019:
- “Formandas da UEM protestam contra demora em investigações
sobre assédio sexual por professores” - G1 - 12/03/2018
-
Universitárias da Unesp protestam contra professores durante forma-
tura: ‘Quero aula, não assédio‘ - G1 - 16/03/2018
-
“Alunas são feridas em trote violento - alunas de Física do Instituto
Federal de Alagoas (Ifal), campus Maceió, denunciam que foram feri-
das com subsncias químicas durante uma calourada nesta sexta-feira
(16) - Repórter Nordeste - 17/03/2018
-
“Dez alunas denunciam professor de universidade em SC por crimes
sexuais” - O Estado de São Paulo - 31/03/2018
-
“Assédio, motel e estupro: os abusos dos professores nas universida-
des” – R7 08/04/2018
-
“Professores universirios são demitidos as denúncias de agressão
sexual - um dos docentes trabalhava na Federal Fluminense e outros
dois na Federal de Goiás; eles negam as acusações das alunas” Folha
de São Paulo - 10/02/2019
-
Trote com calouros de odontologia em simulação de sexo causa polê-
mica no Oeste de SC- G1 Santa Catarina - 15/02/2019
A atenção da mídia sobre a vioncia simlica contra as mulheres nas
universidades brasileiras cresceu após o “Rodeio das gordas”, realizado em 2010
na cidade de Assis, interior de São Paulo, no denominado INTER (anteriormente
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chamado INTERUNESP), evento esportivo que reúne anualmente milhares de
alunos de todos os campi da UNESP.
Considerado um marco nos estudos de violência no âmbito da univer-
sidade, o Rodeio das Gordas” foi tratado pelos alunos como uma brincadeira”.
Consistia em perseguir as colegas acima do peso, prendê-las e montar em suas
costas como se fossem animais em um rodeio. O tempo era cronometrado e prê-
mios eram atribdos aos rapazes que conseguissem se manter no dorso da garota
por mais tempo. As regras da competão foram postados pelos participantes em
uma página criada no, hoje extinto, site de relacionamento Orkut.
3
Fonte: #FórumPOLITZ - 09/11/2010
Disponível: https://forum.politz.com.br/index.php?threads/rodeio-de-gorda.75225/
Alunos e ONGs fizeram abaixo-assinado contra o “Rodeio das gordas”
e a Unesp instaurou processo para investigar o bullying coletivo e em seguida fo-
ram instauradas um inquérito policial e uma investigação do Ministério Público.
A comunidade digital original no Orkut também foi então retirada do ar, mas,
provando que a violência masculina ainda é naturalizada por muitos, um mês
depois do evento novas comunidades na mesma rede foram criadas para apoiar
o “Rodeio das Gordas”, de acordo com reportagem de Cinthia Rodrigues para o
site de notícias IG São Paulo publicada em 19/11/2010: “Uma delas critica a ‘im-
prensa marrom pelas críticas. Outra diz ‘Valeu InterUnesp 20 e pede ‘liberda-
de a livre manifestão’. Uma terceira ofende as obesas desde a descrição do grupo
e a quarta diz estar organizando o rodeio das gordas da capital paulista’”.
Além das festas e eventos esportivos universitários, como o INTERU-
NESP, também os trotes acamicos se constituem em espaços onde regularmen-
3 O Orkut foi uma rede social digital criada em 2004 nos Estados Unidos por um engenheiro do Google e desati-
vada em 30 de setembro de 2014. No Brasil teve mais de 30 miles de usuários, mas em 2011 foi ultrapassada
pelo Facebook.
GODINHO, M. I. A.
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te são praticadas violências contra as mulheres, pois os veteranos devem se mos-
trar mais fortes e poderosos aos ingressantes, explicitando, como afirma Bandeira
(2017, p. 58), as relações de poder inscritas na sociedade.
Desde a implantação das primeiras faculdades brasileiras eram re-
portadas violências nos eventos de recepção dos calouros, a exemplo da verificada
no primeiro trote brasileiro, em 1831, que acabou na morte de um aluno na
Faculdade de Direito de Olinda
4
. E a partir das últimas três décadas, quando as
mulheres comaram a ter expressividade numérica nas universidades brasileiras,
os trotes violentos, que antes eram dirigidos somente aos rapazes, começaram a
incluir também as mulheres.
Assim, os trotes passaram a reafirmar também as desigualdades de gêne-
ro,
estendendo ao âmbito universitário as relações de dominação masculina pre-
sentes na família patriarcal. Segundo Bandeira (2017, p. 58), a presença feminina
pôs em xeque a autoridade masculina na universidade, e, consequentemente, o
domínio dos rapazes no âmbito econômico:
A presença de jovens mulheres [...] passa a incomodar e a colocar em questão
essa hegemonia masculina, seja pelo bom desempenho que evidenciam, seja
pela autonomia que detém, seja ainda pela condição de ‘atuais’ e ‘futuras com-
petidoras no mercado de trabalho.
Além da violência física aplicada quando as calouras não concordam
com as “brincadeiras” - a exemplo dos “leilões” em função de seus “atributos”
físicos e da simulação de atos sexuais-, diversos tipos de violência simlica re-
cheiam a pesquisa realizada pelo Instituto Avon em 2015 sobre a violência contra
a mulher no ambiente universitário brasileiro.
Foram entrevistados 1823 universirios de todo o ps, de instituições
blicas e privadas, sendo 40% homens e 60% mulheres. A pesquisa considerou
seis tipos de vioncia: asdio sexual, coeão, vioncia sexual, vioncia sica,
desqualificação intelectual e agressão moral e/ou psicogica.
O âmbito da violênciasica inclui violência sexual - estupro, tentativa
de abuso enquanto sob efeito de álcool, ser tocada sem consentimento, ser força-
da a beijar veterano, 28% das entrevistadas afirmou que sofreu, e 46% conhece
alguém que sofreu. No da vioncia sica, sem conotão sexual, 10% sofre-
ram e 22% conhecem casos.
Circundando o universo do simbólico, a pesquisa do Instituo Avon
levantou números expressivos sobre distintos tipos de vioncia sofridas pelas uni-
versitárias, como o assédio sexual (56%), coerção (18%), desqualificação inte-
lectual (49%) e agressão moral e/ou psicogica (52%). Percebemos, assim, que
4 Informação disponível em: http://mundoestranho.abril.com.br/cotidiano/quais-foram-os-trotes-mais-crueis-
-do-brasil/
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nos trotes acadêmicos a violência simlica contra a mulher pode ser considerada
rotina, o que constantemente leva as estudantes a desistirem do curso ou mesmo
de suas futuras carreiras, principalmente entre as matriculadas em cursos onde os
homens predominam, como as engenharias. Como aponta Bandeira (2017, p.
70), a ameaça simbólica na universidade “deteriora e desestabiliza sua condição
de mulher e sua capacidade de formação profissional”.
No geral, a pesquisa apontou que somente 10% das mulheres relataram
espontaneamente que sofreram algum tipo de vioncia sica ou simlica - nos
campi ou em festas, mas quando estimuladas com uma lista de vários tipos de vio-
lências, este número subiu para 67%, o que indica que muitas vezes a violência,
principalmente a simbólica, não é vista como tal pelas estudantes, reafirmando
a observação de Bourdieu (2018, p. 133) de que tem a “cumplicidade” de suas
próprias vítimas:
Através da experiência de uma ordem social sexualmente ordenada e das cha-
madas à ordem explícitas que lheso dirigidas por seus pais, seus professores
e seus colegas, e dotadas de princípios de visão que elas próprias adquiriram
em experiências de mundo semelhantes, as meninas incorporam, sob forma de
esquemas de percepção e de avaliação dificilmente acesveis à consciência, os
princípios da visão dominante que as levam a achar normal, ou mesmo natural,
a ordem social tal como é.
A naturalização da violência simbólica contra as mulheres nos cam-
pi também pode ser sentida nas respostas dadas pelos homens entrevistados na
pesquisa: somente 2% admitiram espontaneamente ter cometido algum tipo de
violência contra as colegas universitárias, mas, ao serem confrontados com a lista
de vioncias omero subiu para 38%, mas ainda assim eles não reconheceram
seus atos como agressões, e sim brincadeiras ou simples respostas ao comporta-
mento das colegas:
-
27% não consideram violência sexual abusar da garota caso esteja
alcoolizada.
-
35% não consideram como violência submeter as estudantes a ativi-
dades degradantes como desfiles e leilões.
-
31% não consideram violência repassar fotos e deos sem a autoriza-
ção da pessoa fotografada.
Como visto acima, assim como na vida privada a universidade tamm
é um espaço onde a relação de dominação do homem sobre a mulher é naturali-
zada, pois se trata de uma constrão histórica incorporada pela sociedade através
do que Bourdieu (2018, p. 10) denominou “esquemas inconscientes de percep-
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ção e apreciação”, que levam mulheres e homens a acreditarem ser normal os -
rios
tipos
de
violência
simbólica
sofridas
pelas
alunas,
funcionárias
ou
professoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como afirma Saffioti (2015, p.86), “as mulheres, no mundo privado
e na universidade, vivem em constante terror”; um sentimento eternizado pela
naturalização de regras de conduta e de valores construídos no seio da família
patriarcal que acabam por violentar silenciosamente muitas mulheres ou que as
destroem quando discordam ou o se submetem aos padrões de comportamen-
tos impostos.
Acreditamos que para frear esta violência que perpassa a vida familiar
e a vida acadêmica das mulheres, seja necessário desvendar e desconstruir os me-
canismos históricos que eternizam o controle masculino e retiram da mulher seu
papel de agente histórico, como aponta Pierre Bourdieu no precio de “A Domi-
nação Masculina(2018): “é contra essas foas hisricas de des-historizão que
deve orientar-se, prioritariamente, uma iniciativa de mobilização, visando repor
em marcha a hisria, neutralizando os mecanismos de neutralizão da história.
Ao encontro desta ideia o movimento feminista décadas tem ten-
tado transformar a história e mover as barreiras da desigualdade entre homens e
mulheres, e, no caso da violência simbólica no mundo acadêmico, nos últimos
anos temos visto um aumento expressivo de ações de grupos de estudantes uni-
versitárias que têm como objetivo denunciar abusos e pedir políticas institucio-
nais de prevenção e de enfrentamento de violências de gênero dentro dos campi
das universidades brasileiras.
Mais recentemente, outras iniciativas se somaram à luta das mulheres, a
exemplo da CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito/Ato 56, de 2014 (CPI),
criada pela ALESP Assembleia Legislativa de São Paulo para investigar a violên-
cia
nas universidades paulistas, além de ações de universidades como a USP, que
instituiu a “Rede Não Cala em 2015, um projeto encabeçado por professoras da
instituição que objetiva o fim das situações de abuso cada vez mais frequente no
ambiente universitário.
Mas estas ações não terão resultado se os próprios homens não toma-
rem a inciativa de desconstruir estes mecanismos, o que pode ser iniciado a partir
de novas vivências dentro de suas famílias e de sua vida social; vivências que
possam abrir caminhos para que as mulheres possam atravessar da dimensão da
sobrevivência para uma dimeno onde não tenham que se perguntar até quando
terão medo dos homens.
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Submetido em: 19/08/2019
Aprovado em: 05/01/2020
GODINHO, M. I. A.
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.6, n.1, p. 9-20, Jan./Jun., 2020