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Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
Mal-estar e utopia deMocrática: autonoMia do conselho
tutelar e as consequências para a política pública infanto-
juvenil
Evil and dEmocratic utopia: autonomy of thE tutorial council
and thE consEquEncEs for child public policy
Antonio Nacilio Sousa dos Santos
1
resuMo: Este trabalho discute a autonomia institucional do Conselho Tutelar (CT) do município
de Horizonte/CE. Fez-se um esforço reexivo para se pensar a questão da autonomia institucional
tendo em vista que esse é o pressuposto básico para que o órgão coloque em prática as diretrizes as
quais lhes são pertinentes. Para isso, foi necessário elencar as tramas de relações que são construídas
na eleição que escolhem os membros. Reetir sobre as práticas cotidianas dos conselheiros tutelares
e os rebatimentos do fazer prossional para a garantia dos direitos e deveres infanto-juvenil. O
percurso metodológico incluiu a exploração de um caso, especíco, de um conselheiro tutelar
no qual foi conjugado com o olhar dos demais membros do CT com o objetivo de realizar uma
fotograa da vocação e identidade dos sujeitos que adentram este espaço. Na metodologia utilizou-se
a observação participante com os conselheiros tutelares do Município de Horizonte e conversas com
conselheiros tutelares de outros Municípios do Estado do Ceará quando oportunamente ocorriam
Congressos Regionais e Estaduais. Essa pesquisa foi realizada com os conselheiros tutelares que
compuseram a gestão entre os anos de 2010 a 2016. E, em um panorama maior, buscou-se tencionar
essas questões para se pensar os signicados de democracia, representatividade e participação social e
as consequências para a política pública infanto-juvenil.
palavras-chave: Conselho Tutelar, Autonomia, Democracia, Representatividade, Participação
Social.
abstract: is paper discusses the institutional autonomy of the Guardianship Council (CT) of
Horizonte municipality. ere was a reective eort to think about the question of institutional
autonomy given that this is the basic assumption that the agency put into practice the guidelines
which they are relevant. For this, we need to list the webs of relationships that are built in the
election who choose the members. Reect on the everyday practices of guardianship counselors
and the repercussions of the professional do to guarantee the childrens rights and duties. e
methodological approach included the exploration of a case, specic, a guardianship counselor in
which was combined with the look of the other members of the CT in order to make a vocation
of photography and identity of the persons who enter this space. Participant observation with the
Mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará, Brasil (2018). Professor da Ratio Faculdade
Teológica e Filosóca. naciliosantos1@hotmail.com
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2019.v5.n1.02.p9
https://doi.org/10.36311/2447-780X.2019.v5n2.10.p117
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tutelary councilors of the Municipality of Horizonte and conversations with guardianship counselors
from other the State of Ceará municipalities timely occurred when Congress Regional and State.
is research was conducted with the tutelary counselors who composed the management between
the years 2010 to 2015. And in the bigger picture, we sought to intend these issues to think about
the meanings of democracy, representation and social participation.
keywords: Guardian Council. Autonomy. Democracy. Representation. Social Participation.
introdução
Neste trabalho buscamos sistematizar algumas considerações acerca da
relação entre Conselho Tutelar (CT) do município de Horizonte/CE, como ór-
gão autônomo (art. 131, Lei Federal 8.068/90), o poder político do executivo
municipal e as consequências para a política pública infanto-juvenil. Deu-se um
esforço reexivo para se pensar a questão da autonomia institucional do órgão,
a partir da eleição dos membros ao Conselho Tutelar e do trabalho desenvolvido
por estes já eleitos; bem como a relação entre este órgão com as demais institui-
ções da sociedade civil, e debruçando-se, posteriormente, em questões maiores
como a própria concepção de democracia participativa.
Os Conselhos Tutelares (CTs) foram criados a partir da implantação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na década de 1990. Fruto de muitas
lutas sociais, o ECA/90 é um instrumento que busca horizontalizar direitos as
crianças e adolescentes que até então se viam sob o julgo dos ditames adultocên-
tricos (DEL PRIORE, 2007, p. 84). Agora esses Sujeitos de Direitos passam a ter
um lugar social diferenciado (PINHEIRO, 2006, p. 36) nas instituições públicas
do Estado, na sociedade civil e na Família.
Para a concretização desse novo cenário conferido a criança e ao ado-
lescente, foi necessário à criação de um órgão que buscasse proteger os direitos
e deveres dessa nova representação social (MOSCOVICI, 1978, p. 25). Logo,
criaram-se os Conselhos Tutelares que tem a função de promover e garantir esses
direitos e deveres. E para colocar isso na prática esse órgão utiliza-se de inúmeros
instrumentos de atuação no cotidiano infanto-juvenil.
Para poder efetivar a promoção e a garantia de direitos, o CT ganhou
características as quais são pertinentes para a atuação tutelar. Entre estas caracte-
rísticas temos a autonomia administrativa de atuação, que signica, entre outras
coisas, não depender da autorização de ninguém - nem do Prefeito, Vereador e
Juiz - para pôr em prática aquilo que lhe é atributivo e nem ser interrompido por
qualquer ente externo que venha prejudicar sua ação tutelar (BRASIL. Lei n°
8.069, 1990, art. 95, 101 (I a IV), 129 (I a VII) e 136).
Assim, levando em consideração que o CT possui sua autonomia de
atuação legal, este se reveste de prerrogativas constitucionais que o credencia em
poder tramitar nos mais diferentes órgãos, instituições e espaços com vistas a
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garantia e a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90) em
qualquer situação onde os Sujeitos de Direitos (PINHEIRO, 2006) possam ou
tenham suas garantias constitucionais violadas.
Portanto, o desenrolar da abordagem que empreendemos converge
para uma matriz temática cujo eixo pode ser assim formulado: como o Conselho
Tutelar pode ser considerado um órgão autônomo, como bem disposto na Lei
Federal 8.069/90 em seu artigo 131 do ECA, estando, como atualmente o é,
atrelado ao poder público municipal
2
, tanto no que diz respeito a sua estrutura
física-patrimonial, como o recurso humano (folha de pagamento entre outros
recursos)? Entorno dessa questão central, inúmeras indagações são articulada a
m de desdobrá-las em questões mais elementares, por exemplo, como o próprio
fazer cotidiano dos agentes sociais (DONZOLET, 2001), suas intervenções e suas
práticas.
A pesquisa foi desenvolvida no Conselho Tutelar do município de Ho-
rizonte, no Estado do Ceará. Essa cidade está situada na região metropolitana
de Fortaleza e conforme aponta o Instituto Brasileiro de Geograa e Estatísti-
ca (IBGE) é um dos municípios que mais cresce, em termos populacionais, no
Estado do Ceará. A investigação se dá de modo participativa conforme pontua
Márcio Goldman (1999), uma vez que estivemos
3
atrelados as congurações e as
forças que se entrelaçam neste espaço.
A escolha desse objeto analítico está atrelada a nossa inserção neste
campo de atuação como conselheiro tutelar do município de Horizonte entre os
anos de 2010 a 2015. Essa função de estar inserido no campo como conselheiro-
-pesquisador, como arma Gilberto Velho (1981), possui uma complexidade por-
que constantemente estávamos a transitar “nosso olhar como agente e intérprete
em diferentes momentos, segmentos e domínios sociais” (p. 80). Diariamente
enfrentamos embates no plano institucional para poder colocar em prática aquilo
que é o princípio ativo da existência e da efetivação de um canal de participação
social que é a existência da autonomia. Contudo, a problemática maior está atrela-
da justamente na seguinte indagação: como pensar que o Conselho Tutelar pode
ser um órgão autônomo estando circunscrito em uma sociedade marcada pelas
Inúmeras pesquisas apontam que é o Estado – aqui representado na gura do Município – viola os direitos
das crianças e dos adolescentes. E se são estes os principais responsáveis por não colocar em prática aquilo que
está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90), como o Conselho Tutelar reage a este ente
federativo se está interligado em vários aspectos com aquele?
Em verdade, enquanto estávamos a seguir os passos das ações dos agentes tutelares, as vezes estávamos preocu-
pados mais em descrever – com pinceladas etnográcas – do que introduzir um olhar sociológico propriamente
dito. O trabalho possui uma diversicação metodológica: entrevistas, observações e participação, inferindo na
reexão e possuindo um conteúdo de análise qualitativa. Nossa inserção no campo foi muito próxima, pois
também erámos componentes da gestão 2010 – 2016. Ao mesmo tempo em que se tinha o conselheiro tutelar,
também tínhamos o pesquisador e vice-versa. Ou seja, estavámos querendo sempre viver a experiência através
desses dois vieses. Nesse ofício, que trago nesta reexão, trabalhamos a rotina, as palavras soltas, as ações delibe-
radas, conversas, entrevistas formal e informal, até que tudo isso forma uma massa considerável para a abstração
de conjecturas teóricas.
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SANTOS, A. N. S.
relações de trocas de favores, mandonismo, patriarcal, paternalista e coronelista
como é a sociedade brasileira e cearense? A escolha dos membros do Conselho
Tutelar está imune a essa trama de relações contextuais?
Os relatos que embasaram esse trabalho centram-se no olhar dos
conselheiros tutelares a respeito do panorama contextual na qual estão conti-
dos. Eles constroem seu próprio percurso (LAHIER, 2004) trazendo consigo
importantes elementos simbólicos (BOURDIEU, 1989) que irão resvalar na
sua atuação tutelar. O caso do conselheiro tutelar E.S.N
4
. Ilustra, no nível
empírico, alguns elementos que norteiam e dá vida a reexão aqui empreen-
dida (o mal-estar das eleições ao CT, o olhar destoado à ação tutelar, a relação
entre CT e os poderes municipais e as consequências para a política pública
infanto-juvenil).
A partir desse material empírico, pincelou-se uma radiograa da auto-
nomia de atuação do Conselho Tutelar do município de Horizonte e as consequ-
ências desse panorama para a sociedade civil, e em particular, para a defesa dos
direitos infanto-juvenil. Com isso, a partir desse material discutimos a questão
da autonomia institucional que está relacionada desde a escolha dos membros do
colegiado, bem como a inserção e a maneira como as forças políticas locais in-
uenciam a eleição, a participação da sociedade civil na escolha dos membros do
colegiado, a vocação e identidade de cada membro tutelar e o trabalho cotidiano
dos mesmos já na condição de conselheiro tutelar. Dessa forma, não procurando
encontrar respostas denitivas, mas já delineando algumas pistas interventivas,
estaremos expondo a relação que se dá entre este órgão de proteção com o poder
público municipal e os rebatimentos no fazer prossional.
Além disso, indaga-se: quais possibilidades de ruptura, ou busca por
caminhos alternativos, podemos vislumbrar dessa relação que coloca em xeque
a autonomia institucional desse órgão? E que consequências, que as denominei
de mal-estares, essa relação que começa logo no início da escolha dos candidatos
e passando pelo lócus de intervenção tutelar trará para a efetivação da política
pública infanto-juvenil, no caso, o ECA/90?
A intenção foi de fazer um apanhado analítico a respeito destas
questões, tencionando procurar pistas elucidativas e que visam mapear essas
relações que resvalam na instituição em foco, bem como na própria sociedade
civil. Outro objetivo é tencionar o debate crítico as temáticas aqui relaciona-
das. Assim, dividimos a estrutura do desenvolvimento desta reexão em três
seções, intitulada “O início do mal-estar: eleições para a escolha dos mem-
bros do Conselho Tutelar”; “O fazer cotidiano do Conselho Tutelar: casos e
situações que evidenciam a subjugação desta instituição ao poder público do
executivo municipal”; “Diante desse mal-estar como ca a situação da atu-
Mesmo com a permissão do sujeito em questão, escolheram-se letras que guram um nome ctício para a
preservação ética e moral da pessoa e da própria pesquisa.
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Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
ação tutelar, organização e avaliação do cotidiano de atuação e a autonomia
institucional?” E, posteriormente, tencionaremos toda essa reexão no campo
da democracia formal com algumas considerações pertinentes para a principal
política pública para a criança e o adolescente, isto é, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA/90).
o início do Mal-estar: eleições para a escolha dos MeMbros do conselho
tutelar
Ao iniciar uma radiograa
5
das eleições
6
para a escolha dos membros do
CT, faz-se necessário pontuar algumas indagações as quais sempre estiveram pre-
sentes quando da conversa informal que estava a desenvolver com os membros do
colegiado: a) Quem são esses cidadãos que se submetem ao cargo de conselheiro
tutelar, e por que se submetem? b) Será que verdadeiramente a submissão ao car-
go está ligada diretamente a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes? c)
Que histórico de atuação na defesa das crianças e dos adolescentes esses cidadãos
que se submetem ao cargo de conselheiro tutelar possuem? d) Esses cidadãos pos-
suem alguma relação política partidária com o poder político local, se sim, como
se materializa essa relação no cotidiano?
Tendo em vista que o que move a economia local dos municípios do
Estado do Ceará advém dos recursos do poder público municipal, assim como
os demais cargos públicos, o cargo de conselheiro tutelar está contido neste pa-
norama contextual. Fato esse comprovado quando indagados o que faziam antes
de tornarem conselheiros tutelares, e a maioria deu ênfase a armação que se
candidataram ao cargo em situação de desemprego. Assim, a eleição ao cargo de
conselheiro tutelar tornara-se uma oportunidade de adquirir ocupação mesmo
que por tempo determinado
7
.
Radiograa no sentido de tecer as teias de relações que são formadas. Relações de apadrinhamento, de coopta-
ção, de poder. Fazendo aquilo de que fala Karl Marx, indo da “aparência” para “essência” com vistas à obtenção
dos dados na sua concretude.
As informações que são analisadas parte da vivência que tivemos na condição de conselheiro tutelar do municí-
pio de Horizonte/CE, estando próximo de vários colegas conselheiros que através de conversas informais, relatos
de situações se entrevistas repassaram informações de como suas candidaturas foram realizadas, bem como o
fazer prossional cotidiano, os entraves diários e a relação que se estabelece junto ao poder público executivo.
Estivemos, como fala o autor português Machado Pais (2006), com o olhar comprometido com os direitos infan-
to-juvenis e o olhar intrometido, escavando os pormenores das ações com vistas ao entendimento da totalidade
que ora se espraiava aos nossos olhos.
A Lei n. 12.692/12 alterou as regras para as eleições ao cargo de Conselheiro Tutelar, entre outros dispositivos
de cunho administrativo. Através desta cou estabelecido que a eleição para a escolha dos membros do CT passa
a ocorrer em um único dia em todos os municípios do país, isto é, unicou-se o dia da eleição que ocorrerá no
primeiro domingo do mês de outubro pós ano da escolha do Presidente da República do Brasil. Além disso, no
dia 09 de Maio de 2019, o Presidente da República sancionou Lei para que qualquer conselheiro tutelar possa
candidatar-se quantas vezes quiser.
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Outra característica dos candidatos a conselheiros tutelares é que não
possuíam, antes de elegerem-se para a função, experiência
8
direta com a questão
social (NETTO, 2008) que envolve a criança e o adolescente. Essa realidade con-
traria a resolução n° 170 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos
Adolescentes (CONANDA) promulgado no dia 10 de dezembro de 2014, bem
como em anos anteriores, de que é necessário para concorrer ao cargo de conse-
lheiro tutelar “experiência na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança
e do adolescente”.
Em verdade, os novos membros do colegiado passaram a ter contato
com relações em inconformidade com a norma familiar (COSTA, 1989) e so-
cietária de crianças e adolescentes quando começaram a exercer o cargo de con-
selheiro tutelar. Anteriormente, os cinco conselheiros tutelares em questão nesta
pesquisa exerciam, o primeiro, o trabalho como vendedor ambulante de produtos
variados; o segundo, por sua vez, moto taxista; a terceira, dona de casa, um era
funcionário público e o outro estudante.
Todos os conselheiros tutelares advêm da classe social menos favorecida
da população, com pouca escolaridade e que procurava galgar uma melhor ocu-
pação, com melhores dividendos para seu sustento e o provimento da sua família.
E observaram que a função de agente social tutelar, denominação cunhada por
Jacques Donzolet (2001) para caracterizar prossionais que trabalham com ques-
tões sociais, um canal para minorar as refrações da questão social (IAMAMOTO,
2012) também vivida por eles.
Essa não é uma realidade restrita ao Conselho Tutelar do município
de Horizonte. Em conversas com outros agentes tutelares de vários municípios,
essa armação é quase que generalizada. Dos 121 municípios do Estado do Ce-
ará que tivemos comunicação, 119 deles demonstram essa realidade. Portanto, a
função de conselheiro tutelar, levando em consideração esse primeiro dado tem
em seu embrião a alocação de trabalho. Enquanto que a atmosfera da defesa dos
direitos infanto-juvenis aparece para esses cidadãos como algo secundário. E isso
é percebido porque esses cidadãos possuem pouco ou quase nada em termos de
conhecimento referendado as questões que envolvem o universo infanto-juvenil.
Além disso, existem cidadãos que embora possuam ocupação/emprego,
se utilizam do cargo de conselheiro tutelar e do espaço social conferido a este,
para promover-se com vistas a galgar notoriedade para as eleições municipais. Para
Lefebvre (1973) o espaço social é constituído de elementos importantes, logo, ob-
jeto político utilizado por aqueles que querem chegar ao poder e sua hierarquia.
8
Imagine um espaço como é o Conselho Tutelar onde ocorrem inúmeras violações de direitos a criança e adoles-
cente e os agentes tutelares – antes de serem conselheiros tutelares – não possuíam nenhum contato com criança
e adolescentes e suas refrações da questão social? Como podemos vislumbrar que o trabalho que será desenvol-
vido pelos mesmos está em consonância com as necessidades do indivíduo que teve seus direitos transgredidos?
E mais, estamos falando de crianças e adolescentes que são estupradas, que sofrem agressões físicas, psíquicas,
negligenciadas, que passam privações as mais diversas possíveis.
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Assim, a eleição ao cargo de conselheiro tutelar tem como objetivo tornar-se um
trampolim para obter visibilidade e popularidade para, depois, candidatar-se ao
cargo de vereador nas eleições proporcionais na Cidade. Além de passar pela ex-
periência de uma eleição, mesmo que não obrigatória, é uma espécie de simulacro
eleitoral onde se tem na rua carros de som com seus jingles, o denominado “san-
tinhos” com a foto do candidato, pessoas nas ruas no denominado porta a porta
atrás de angariar votos, e tudo isso se congura como um ensaio para a campanha
eleitoral proporcional com o objetivo de ascender socialmente e chegar ao poder.
Há, pois, no cargo de conselheiro tutelar uma proximidade com famí-
lias fragmentadas (ROUDINESCO, 2003), que veem seus direitos sociais sendo
dilacerados pelos entes governamentais (MONTAÑO e DURIGUETTO, 2011).
Situação que abre espaço para o oportunismo daqueles que buscam arregimentar
adeptos a sua candidatura. Segundo Leal (2012), a “situação de dependência e
subjugação das pessoas é incontestável” (p.44) diante de uma estrutura socioeco-
nômica na qual estão inseridas. Assim, tornam-se “presas fáceis” para aqueles que
dispõem de poder político local.
As pessoas que procuram os serviços do CT ainda veem a atuação dos
conselheiros tutelares como que sendo um favor, ou como diz o antropólogo
Mauss (1989), uma dádiva, e se veem numa situação de “pagar” – contra dádiva
- por tal serviço prestado. Bobbio (1986) arma que uma das condições indis-
pensáveis para o funcionamento da democracia é que as pessoas tenham as reais
condições de poder escolher entre uma e outra opção. E o que se observa é que
as condições ou realidade objetivas (LESSA, 1996) de existência da população,
seu entrelaçamento contextual, fatores socioeconômico
9
inuenciam para que as
mesmas sejam facilmente manipuladas quando em contexto de vulnerabilidade.
Considerem, por exemplo, o caso do atual vereador do município de
Horizonte, E.S.N. Este, em 2010, concorreu ao cargo de conselheiro tutelar ob-
tendo o primeiro lugar no pleito com mais de mil e quatrocentos votos. Em
2012, nas eleições proporcionais ao cargo de vereador o mesmo candidatou-se
conseguindo obter êxito em primeiro lugar, sendo eleito com quase mil e trezen-
tos votos
10
. Em conversa, ele concedeu a seguinte informação “a minha intenção
desde quando me candidatei a função de conselheiro tutelar era de futuramente
galgar uma vaga na Câmara Municipal, e deu certo”, enfatiza.
O que foi garantido na Constituição Federal de 1988 está muito longe da realidade. A mesma garante edu-
cação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à ma-
ternidade e à infância, assistência aos desamparados, entre outros. Isso é obrigação do Estado Democrático de
Direito, e na ausência destes os cidadãos se veem reféns daqueles que possuem poder político e econômico local.
Logo, a não concretização dos princípios constitucionais também se conguram em um fator que resvala na
subserviência da população corroborando com o “mandonismo, o lhotismo, o falseamento do voto, a desor-
ganização dos serviços públicos locais” (LEAL, 2012, p. 44). E isso é constatado quando o agente Legislativo
executa algumas funções no cotidiano que não diz respeito as suas prerrogativas legais: disponibilizando matérias
de construções, intermediando consultas e cirurgias médicas, doando cestas básicas entre outras necessidades.
10
Fonte do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE).
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SANTOS, A. N. S.
Antes de adentrar o espaço tutelar, E.S.N. era funcionário público con-
cursado do município de Horizonte. O único, entre os cinco conselheiros tutela-
res, que possuía um emprego consolidado. Mas sua área de atuação estava atrelada
a algo técnico e não tinha relação com o público infanto-juvenil.
E.S.N., antes de eleger-se vereador, sempre esteve vinculado a uma -
gura política do município. Ele e os que compõem a extensa família possuíam
uma relação muito próxima de determinado vereador na Cidade. Sua família era
denominada como sendo um dos principais “braço político” eleitoral de determi-
nada gura política local. Muitos exerciam e exercem funções/cargos de conança
na administração local. Tanto que a gura política ajudou – nanciou – e arregi-
mentou suas “amarras” eleitorais, ou como fala Pierre Bourdieu (1989) utilizou
seu capital político, que, entre outras coisas signica utilizar-se da sua inuência
para conseguir adeptos a campanha ao cargo para conselheiro tutelar de E.S.N.
Contudo, o vereador não sabia que os planos do E.S.N., depois de ele-
ger-se conselheiro tutelar era de trabalhar a m de chegar ao poder na condição
de vereador do município de Horizonte. Ao saber desse propósito, rompeu-se a
aliança existente de anos, e E.S.N. passou a trabalhar para conseguir seu objetivo.
Comentou E.S.N.
[...] o cargo de conselheiro tutelar foi de fundamental importância por-
que consegui o que queria. Importante porque, primeiro, a eleição ao
CT, que durou três meses, assim como ocorrem nas eleições propor-
cionais e ao executivo, fez com que eu me aproximasse da população.
Segundo, meu nome tornou mais popular. Terceiro fez com que come-
çasse a conseguir pessoas para compor meu grupo político através das
pessoas que procuravam o CT.
E.S.N. utilizou-se da função para angariar votos para o pleito nas elei-
ções proporcionais. Todas as suas ações no CT tinham por objetivo aproximar-se
das pessoas criando vinculo para obtenção do voto. Realizava o que podemos
chamar de bricolagem situacional (LÉVI-STRAUSS, 1996) onde utilizava-se da
situação da fragmentação intrafamiliar de crianças e adolescentes para chegar aos
pais, família e familiares. Já para Michel De Certeau, na obra A Invenção do Coti-
diano (1994), vai interpretar a ação colocada em prática por E.S.N. como aquilo
que ele denomina de táticas e estratégias objetivas, uma vez que o espaço tutelar
conferiu-lhe os meios essenciais para a obtenção daquilo que almejava que era
eleger-se nas eleições proporcionais.
Além disso, E.S.N. levou para o espaço tutelar aquilo que há vários
anos vivenciou na sua vida, a militância política partidária. O Conselho Tutelar,
como diz Pierre Bourdieu (1989), tornara-se um espaço-campo onde o habitus
incorporado pelo mesmo ao longo de sua vivência como “cabo eleitoral” foi colo-
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Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
cado em consonância passando por cima das prerrogativas concernentes ao órgão
e, consequentemente, aos direitos das crianças e adolescentes.
Em conversa com os demais conselheiros tutelares do município de
Horizonte, os quais zeram parte no período observado, bem como o atual verea-
dor, fomos informados que todos possuem ligação direta com algum representan-
te político da Cidade ou com a própria administração local. Muitos foram enfáti-
cos em dizer que obtiveram a ajuda destes no momento da campanha eleitoral ao
cargo de conselheiro tutelar, isto é, o nanciamento da campanha a função adveio
de muitos políticos da cidade.
Essa realidade não é apenas no município de Horizonte, mas também
em quase todos os municípios do Estado do Ceará. Há uma percepção generali-
zada da normalidade dessa relação que é exposta abertamente para a sociedade.
Armou-se, através de conversas informais e entrevistas com muitos conselheiros
tutelares nos encontros estaduais, regionais e capacitações a constatação dessa re-
lação direta entre o poder público, quer seja executivo ou legislativo, para com o
candidato a função de agente tutelar.
Essa relação se dá porque na visão dos representantes políticos locais –
vereadores e prefeito - o Conselho Tutelar é um espaço onde os agentes tutelares
estão muito próximos do eleitorado em situação de subjugação social/vulnerabi-
lizados/dilacerados em suas relações mais íntimas que são as relações intrafami-
liares. A ação tutelar, para a população desprovida de conhecimento crítico veem
tais atitudes como que sendo um favor que deve ser pago posteriormente. Dessa
forma, os representantes buscam, entre outros motivos, ncar um elo entre o con-
selheiro tutelar e sua gura política, fazendo com o agente social tutelar em perí-
odo político partidário seja capaz de “devolver na mesma moeda” a “mão amiga
que o auxiliou na execução da sua campanha. Logo, radiogracamente temos o
conselheiro do vereador X, o outro que é do vereador Y, e assim, sucessivamente.
A exemplo da armação acima, no sétimo Seminário Regional sobre
Promoção, Defesa e Controle Social dos Direitos da Criança e do Adolescente
no Ceará, realizado no dia 23 de março de 2011, no Centro de Treinamento do
Banco do Nordeste do Brasil, na cidade de Fortaleza/Ceará, onde estavam pre-
sentes representantes do Ministério Público, entre outros órgãos de direito, além
dos conselheiros tutelares e presidentes dos Conselhos Municipais dos Direitos
das Crianças e dos Adolescentes (COMDICAS) de alguns municípios, estava
a presença de um prefeito municipal do interior do Estado. Quando da fala da
representante do Ministério Público Estadual, onde pedia para que os prefeitos
pudessem dar maiores e melhores condições de trabalho aos conselheiros tutela-
res, o dito prefeito, na ocasião, expôs que vem dando “ajuda” aos membros do
órgão mesmo antes destes serem eleitos, isto é, ainda no período das eleições ao
cargo de conselheiro tutelar. Falou que ajudou alguns candidatos com combustíveis
e na gráca com panetos [...]”
126 Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.5, n.2, p. 117-138, Jul./Dez., 2019
SANTOS, A. N. S.
Esse foi um dos momentos públicos onde armou-se e constatou-se
como o poder público municipal está intrinsecamente relacionado as eleições,
inuenciando o resultado para a escolha dos membros do colegiado. Assim como
podemos perceber a visão distorcida que os representantes do executivo possuem
sobre o órgão. Indagado se tinha “ajudado” a todos os candidatos, este disse que
não tinha condições de ajudar a todos, mas que fez o possível para ajudar os candida-
tos que tinham chances de se elegerem [...]”
Esse momento não provocou nenhuma manifestação negativa por par-
te de mais de cem participantes que estavam no evento. Então, como encarar
essa “naturalidade” dos conselheiros tutelares, mas principalmente, do Ministério
Público Estadual que lá se encontrava? De posse desse momento, não medimos
esforços e conversando com muitos conselheiros tutelares, onde todos foram en-
fáticos a armar que nos municípios os quais pertenciam era “comum” o prefeito
e demais vereadores da cidade “escolher alguns”, aqueles que eram seus para ajudar
no custeio da campanha ao cargo.
Dessa forma, muitos que se elegiam estavam sob a tutela do poder pú-
blico municipal. Estavam diretamente relacionados à administração do prefeito
ou vereador, o qual foi seu principal “cabo eleitoral” para a promoção da candida-
tura. Assim, a autonomia de atuação a que se refere o ECA/90 ca comprometida
tendo em vista que a ação tutelar necessita de independência funcional, algo que
será limitada na ação cotidiana de atuação justamente por causa do nanciamen-
to a que estes se submeteram.
A “autonomia” a que se refere o dispositivo é sinônima de independência funcional, que
por sua vez se constitui numa prerrogativa do órgão, enquanto colegiado, imprescindível
ao exercício de suas atribuições. Embora, como resultado de sua prefalada autonomia, o
Conselho Tutelar não necessite submeter suas decisões ao crivo de outros órgãos e ins-
tâncias administrativas, lhe tendo sido inclusive conferidos instrumentos para execução
direta das mesmas (conforme art. 136, inciso III, do ECA), estão aquelas sujeitas ao con-
trole de sua legalidade e adequação pelo Poder Judiciário, mediante provocação por parte
de quem demonstre legítimo interesse ou do Ministério Público (cf. art. 137, do ECA).
Essa relação direta – conselheiro tutelar e Poder Público (Executivo
ou Legislativo) irá se debruçar em vários mal-estares na atuação do cotidiano do
CT, uma vez que, mais a frente, a ajuda conferida vai minorar a autonomia do
órgão. Essa inserção do poder público na escolha dos membros do colegiado, de
forma direta, vai resvalar na ação que estes deveriam ter quando da existência de
violação de direitos por parte das instituições públicas municipal nos direitos de
crianças e adolescentes. E o que se verá é a omissão dos tramites legais, não colo-
cados em prática por parte dos conselheiros tutelares, justamente por terem tido
o contributo do prefeito ou vereador da cidade. E aí se desenvolverá na atuação
tutelar um mal-estar que já vem sendo delineado desde a escolha dos membros
do colegiado.
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.5, n.2, p. 117-138, Jul./Dez., 2019 127
Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
o fazer cotidiano do conselho tutelar: casos e situações que evidenciaM a
subjugação desta instituição ao poder público do executivo Municipal
As atribuições do Conselho Tutelar estão dispostos nos artigos 95, 136,
191 e 194 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90). De modo geral,
buscam garantir os direitos e deveres de crianças e adolescentes. No que diz res-
peito aos direitos, estão sempre atentos a situações de violações, procurando ga-
rantir a restauração do direito violado. Para isso, scalizam instituições, instauram
procedimentos judiciais, atendem criança e adolescentes, pais ou responsáveis;
realizam encaminhamentos ao Ministério Público de casos situacionais; executam
medidas de proteção, noticam, assessoram os entes governamentais para políti-
cas públicas infanto-juvenis; representam em nome da pessoa ou da família, além
de requisitar inúmeros serviços essenciais para a proteção integral.
Essas são as ferramentas utilizadas pelos conselheiros tutelares diante
das inúmeras violações de direitos que chegam corriqueiramente ao CT. Viola-
ções de direitos, por exemplo, que ocorrem no âmbito das instituições munici-
pais. Cito como exemplo de violação de direitos, casos por parte das instituições
de ensino público, onde diretores de escolas expulsam alunos por motivos os mais
banais, ou que simplesmente não admitem, nas palavras dos mesmos, a estada
do aluno-problema em sua instituição escolar. Dessa forma, não conseguindo
solucionar a situação no âmbito tutelar, os agentes sociais possuem receio, ou
mesmo, diculdade de encaminhar ao Ministério Público (MP) situações como
essa, onde alunos são expulsos de um ambiente que lhe é de direito.
Essa diculdade na representação ao MP é consequente da situação
onde tanto os conselheiros tutelares como os servidores públicos no exercício da
função enquanto diretores e coordenadores de instituições de ensino são apadri-
nhados politicamente pelas mesmas forças políticas do Município. Em verdade,
é que na maioria dos municípios do Estado do Ceará, os cargos de direção e co-
ordenação são escolhidos a partir do apadrinhamento político do vereador ou do
prefeito municipal, é o denominado “cargo de conança” (LEAL, 2012).
As direções de instituições de ensino público, bem como outros órgãos,
de acordo com Leal (2012) servem como cabide eleitoral para alocar pessoas do
grupo político vitorioso nas eleições; pessoas estas que estiveram nas ruas an-
gariando votos para o candidato, ou por pertencer a famílias tradicionais que
enraizaram nos cargos públicos municipais. Portanto, a escolha destes nada tem
haver com o perl que o cargo almeja. Dessa forma, por não possuírem o perl
para estarem no cargo de uma instituição de ensino e por não conhecerem prin-
cípios constitucionais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90),
muitos desses funcionários acabam violando direitos fundamentais para a prote-
ção integral. São verdadeiros “donos e donas” das escolas, e as arbitrariedades são
inúmeras que vai desde palavras de baixo calão para com o sujeito de direitos,
bem como expulsões, represálias, perseguições, transferências, entre outras situa-
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SANTOS, A. N. S.
ções. Portanto, a naturalidade, com que transgridem os direitos infanto-juvenis,
só pode ser compreendida porque possuem o favorecimento político partidário
para manter-se no cargo.
E essa situação-exemplo se agrava porque os conselheiros tutelares não
querem criar o chamado “atrito” com a administração municipal, visto que esta
foi decisiva para sua vitória no pleito e para o cargo que exerce. Dessa forma, a
criança e o adolescente, e os familiares destes que recorrem ao CT a procura de so-
luções contra a violação de direitos sofridos cam a mercê da própria sorte. O que
acaba ocorrendo é que esses sujeitos que deveriam possuir a atenção do CT perce-
bem que este não consegue solucionar/intervir na situação em que se encontram
e não realizam os procedimentos cabíveis; em outras palavras, tornam-se omissos
e negligentes, advindo de uma autonomia administrativa quase inexistente, con-
sequência da situação de cooptação a que foram submetidos. E assim acontece
em outras situações/problemas em setores outros, como na saúde, na assistência
social, em relação ao lazer. A sociedade civil que recorre ao ambiente tutelar, em
relação a questões que envolvem violações dos direitos infanto-juvenis por parte
do poder público, saem do órgão com a sensação de frustação
11
e desamparo.
Muitos dos agentes sociais os quais foram cooptados pela administração
municipal, em relação a colegiados antigos, quando deixam de ser conselheiros
tutelares, passam a fazer parte do quadro da administração local. Atualmente os
conselheiros tutelares veem essa oportunidade, de, futuramente, posterior à esta-
da na função que exercem e ao comportar-se como manda os interesses daqueles
que estão no poder, estarem participando, posteriormente, em algum cargo da
administração pública municipal justamente por terem sido “parceiros”. Diferen-
temente se tivessem colocados em prática aquilo que lhe é atributo, distancian-
do-se das amarras e desvios funcionais, feitos os devidos encaminhamentos de
violação de direitos, por exemplo, ao Ministério Público (MP), na visão destes,
não conseguiriam de maneira alguma um futuro posto na administração municipal
uma vez que a relação teria se desenvolvida de maneira conituosa, disse um con-
selheiro tutelar.
Mesmo sendo cônscio da proximidade que os conselheiros apadrinha-
dos possuem com o poder público municipal evidencia-se a falta de estrutura
do órgão: inexistência de recursos humanos para poder agilizar as intervenções
do colegiado, falta de material, indisponibilidade de veículo para fazer as visitas
domiciliares, baixos salários para com o grande número de atividades complexas
que devem ser desenvolvidas, entre outras. Contudo, nada disso é levado com
seriedade pelo poder público municipal. O que se percebe é que a administração
11
Corriqueiramente escutamos da sociedade civil que o Conselho Tutelar “não faz nada”, que é inútil ir ao
órgão porque não obtêm respostas ou atitudes que visem solucionar sua situação. Essas falas possuem uma carga
simbólica importante porque é consequência de todo esse processo desviante e cheio de vícios onde estão envolvi-
dos a sociedade civil, os representantes políticos e os agentes tutelares. Tudo isso converge para essa situação de
ineciência institucional.
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.5, n.2, p. 117-138, Jul./Dez., 2019 129
Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
local não tem interesse de ver o órgão com a estrutura necessária para desenvolver
suas atividades, tendo em vista que isso implicaria na autonomia de atuação e
consequentemente em ações efetivas de scalização das ações em relação às polí-
ticas públicas voltadas a infância e juventude no município.
O que verdadeiramente há é uma cooptação e consequentemente sub-
missão do colegiado a partir do momento que tiveram suas candidaturas patro-
cinadas pelos representantes públicos do poder local. Os conselheiros tutelares se
conguram como uma extensão dos interesses da administração municipal que pouco
ou nada faz justamente porque a raiz do mal-estar começa a partir do momento
que os sujeitos-candidatos se submetem ao pleito apadrinhado por aqueles.
O conselheiro tutelar passa a ncar um elo direto aos interesses de
alguma gura política local, evidenciando sua subjugação e submissão. As ações
tutelares nesse momento cam bastante comprometidas, ou pode-se dizer que
chegam a resultados irrisórios no plano da defesa dos direitos infanto-juvenil.
Ações as mais escusas possíveis são trabalhadas dentro desse espaço, tais como:
arregimentação de documentação para a população de diversas faixas etárias de
pessoas que são encaminhadas pelo candidato a vereador ou prefeito; o veículo
que deveria ser utilizado apenas para ações tutelares passa a ser arregimentado
para viagens a parente e amigos, lazer, ou qualquer outro objetivo longe daquilo
que deveria ser inerente as prerrogativas do órgão. Outra utilização são as visitas
as famílias que ao longo do tempo foram sendo acompanhadas pelo CT e agora
o conselheiro tutelar retorna a casa dos mesmos não para o acompanhamento
da situação refratária a que levaram aqueles a estarem no rol tutelar, mas sim
para apresentação e arregimentação de voto para o candidato no qual este está
vinculado. Além disso, temos a seletividade das situações/processos para aquelas
pessoas que pertencem ao grupo político em que o conselheiro tutelar integra.
Se o indivíduo não faz parte do grupo político integrante do conselheiro tutelar,
e mais ainda, se esse mesmo indivíduo faz parte de um grupo político adversá-
rio, a situação/problema que levou o cidadão a recorrer ao órgão simplesmente
é ignorada.
Assim, todas as forças e dispêndio de tempo os quais são arregimenta-
das para pôr em prática os interesses acima descritos fazem com que as situações
que envolvem criança e adolescente sejam deixadas de lado, corroborando com
a fragilidade da principal política pública de defesa das crianças e adolescentes.
diante desse Mal-estar coMo fica a situação da atuação tutelar, organização,
avaliação e MonitoraMento das ações cotidianas?
Através dos relatos, conrma-se que muitos daqueles que conseguem
estar no cargo de conselheiro tutelar não possuem uma proximidade das refrações
da questão social que envolve a criança e o adolescente antes de adentrarem esse
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SANTOS, A. N. S.
lócus de atuação. Muitos começam a debruçar-se com as refrações na condição
de membro do CT. Portanto, o conhecimento destes é muito pouco, ou quase
nada, como alguns falam que aprendemos a lidar com os problemas que aparecem
na marra mesmo. Essa situação se agrava ainda mais porque não possuem auxílio
para capacitação continuada, algo prescrito no Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA/90).
Questões relacionadas à mediação de conitos, lidar com situações
refratárias (DONZOLET, 2001) como estupro, violência intrafamiliar, negligên-
cia, é desconhecido destes que se enveredam na função; o que colocam em prática
nas mais variadas situações é aquilo que trazem da vivência, do seu cotidiano.
Mas como ter a garantia de que, o que trazem do cotidiano são as ferramentas
adequadas para lidar com situações bastante peculiares, que envolvem situação
intrafamiliar e de descumprimento dos direitos desses sujeitos? O que trazem do
seu espaço campo, condicionado ao habitus (BOURDIEU, 1989) e os dispositivos
microssociais de sua vivência, serão as prerrogativas que darão a tônica do seu
fazer prossional no micro campo de atuação tutelar.
Mesmo em situações onde passam por determinado treinamento/ca-
pacitação, contudo, a duração é irrisória e supercial, ocorrendo no mesmo mo-
mento em que todos já estão na ponta do iceberg tendo que lidar com as mais
variadas situações. Esse pequeno espaço conferido à assimilação do conhecimento
para uma ação qualicada de intervenção tutelar não é o suciente para que estes
prossionais do social possam intermediar situações bastante delicadas no âmbito
do Conselho Tutelar.
Corriqueiramente o CT convive com situações as mais diversas pos-
síveis em termos de problemas intrafamiliar infanto-juvenil. São situações que
chegam a qualquer momento e horário. E diante dessa situação percebe-se a di-
culdade de se fazer um planejamento estratégico em um espaço bastante peculiar.
Um exemplo corriqueiro é a existência de muitos convites para estarem presentes
nas instituições de ensino para esclarecerem questões pertinentes aos direitos e
deveres de crianças e adolescentes. Contudo, quase sempre esses encontros não
acontecem, justamente porque no momento do encontro/palestras surgem situ-
ações (várias) que impossibilita a estada de conselheiros tutelares nos estabeleci-
mentos de ensino, ou em visitas agendadas, oriundo da possível (de)sorganização
da agenda de atividades que ocorrem não só no município de Horizonte, como
na maioria dos colegiados do Estado do Ceará.
Contudo, criar um cronograma de atuação diante de um espaço que
trabalha com o dito inesperado (MORIN, 2001) não é tarefa fácil. O inesperado,
no que diz respeito a violação de direitos, não tem horário para acontecer; volta
e meia os membros do CT são chamados a estarem presentes em qualquer ins-
tituição ou órgão, independente do horário. Não dá para prever qual momento
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.5, n.2, p. 117-138, Jul./Dez., 2019 131
Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
teremos conselheiros tutelares disponíveis
12
com vistas ao delineamento de ações
que visam a prevenção, esclarecimento e repasse do conhecimento do ECA/90
nos vários setores da sociedade civil.
Atualmente são poucos os Conselhos Tutelares os quais tivemos acesso
que possuem algum plano de médio prazo a ser delineado. Os que possuem, falam
que foram organizados por técnicos contratados pela prefeitura municipal, justa-
mente porque os membros do órgão desconhecem como proceder a elaboração
de um plano de ação. Mas falam que as ações ora escritas não saem do papel, uma
vez que a dinâmica do órgão não consegue seguir as atividades programadas por
causa do inesperado situacional e porque o conhecimento técnico delineado ca
muito longe da realidade. É o velho “abismo entre a lei e a realidade”, no plano
teórico e prático, delineado no trabalho da pesquisadora Ângela Pinheiro (2006).
Diante dessa situação, observamos a diculdade do órgão em cumprir
metas, em ter um indicativo das ações as quais foram realizadas, bem como as
intervenções que são realizadas corriqueiramente.
Em relação aos registros dos casos que por lá passam, há a existência de
um mecanismo denominado de Sistema de Informação para a Infância e Adoles-
cência (SIPIA
13
), mas muitos possuem diculdades de se fazer o registro. Expõem
que são muitas perguntas e que falta tempo para realizarem os devidos cadastros,
e que não existem, para além dos conselheiros, outros prossionais que possam
auxiliá-los na execução das atividades. Para conrmar essa situação, atualmente
poucos municípios “alimentam” o SIPIA justamente por causa da dinâmica do
lócus de trabalho, que se congura em diversas atividades: atendimento indivi-
dual, fazer relatório situacional, inúmeros documentos especícos do Conselho
Tutelar, casos inesperados, visita domiciliar, noticações, vericações in lócus,
acompanhamento de casos, requisições de diversos serviços públicos, entre outras
atividades que já foram delineadas acima. Os que ainda conseguem realizar algum
12
Poderia estabelecer a experiência do rodízio onde cada conselheiro tutelar caria responsável por cada ativida-
de. Contudo, algo especíco ao Conselho Tutelar do Município de Horizonte travava essa possibilidade. Antes
de assumirem o cargo em 2010, cada conselheiro tutelar trabalhava três (3) dias semanais. Com a nova gestão
isso prevaleceu pactuado com o executivo municipal de que os conselheiros tutelares trabalhariam três dias na
semana como ocorria anteriormente. Logo, apenas três conselheiros tutelares estavam ao dispor diariamente
para o exercício tutelar. Com o crescimento população ocorreu uma forte demanda, fazendo com que os três
conselheiros não mais dessem conta das atividades diárias. Essa situação foi levada ao executivo municipal em
inúmeras reuniões para que os conselheiros tutelares passassem a trabalhar quatro (4) dias na semana e que, ob-
viamente, tivesse um acréscimo de seu salário. Contudo, o executivo municipal não cedeu o acréscimo ao salário
tendo em vista que na visão dele – do executivo municipal – o favor por ele já teria sido feito ao ajuda-los – -
nanceiramente - na eleição ao cargo de conselheiro tutelar. E assim, se passaram os cinco (5) anos de mandato,
com três conselheiros tutelares na atividade diária recebendo o mesmo salário ao longo de mais de cinco anos.
13
Fonte: http://www.sipia.gov.br/. SIPIA (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência). Criado para
que os Conselhos Tutelares possam disponibilizar informações a respeito dos casos que acorreram e foram
assistidos e acompanhados pelo olhar tutelar. Serve para que os entes governamentais tenham a disposição um
mapeamento de casos com os objetivos de propor políticas públicas efetivas de acordo com a radiograa social
em que criança e adolescentes estão inseridas.
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SANTOS, A. N. S.
registro se percebem quão pouco são as informações diante da quantidade de
casos que por lá passam.
O poder público também não possui interesse em reorganizar essa situ-
ação. Percebe-se que para ter um plano de atividades para ser delineado pelos con-
selheiros faz-se necessário um plausível treinamento. Conhecer profundamente as
diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90) requer capacitações
sistemáticas e um dispêndio de atenção por parte do órgão competente, algo que
não ocorre; para criar um banco de dados é necessário a existência de recursos
humanos para poder ajudar no registro dos casos que recebem o crivo do olhar
tutelar. Ter conhecimento do fundo da Infância e Juventude do Município requer
treinamento do colegiado, contudo, isso não é disponibilizado ao órgão, além dos
já pontuados problemas da falta de estrutura de trabalho.
conclusão
O Conselho Tutelar (CT) em sua concepção inicial tem por base a par-
ticipação da sociedade civil na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Essa participação da sociedade deve-se pautar de maneira democrática, onde as
pessoas não sejam inuenciadas por interesses particulares e difusos, a agirem
conforme os interesses de um grupo ou de pessoas que buscam desviar
14
e detur-
par esse mecanismo de defesa e participação social.
O que mais chama atenção e o que mais dá curso as ações do CT é a
importância de se ter autonomia institucional. Ter autonomia em sua função é
dar curso as atribuições que estão circunscritas no Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (ECA/90) sem a interferência de fatores externos.
No âmbito municipal, onde os Conselhos Tutelares estão instalados,
é corriqueira a violação de direitos por parte do poder público, da sociedade e da
família. No que concerne ao poder público, percebemos quão negativo é a vincu-
lação dos membros do colegiado com o executivo municipal, visto que muitas das
violações de direitos advêm deste e se faz necessária uma ação enérgica por parte
dos conselheiros tutelares para poder recongurar direitos transgredidos.
14
Na escolha dos membros do Conselho Tutelar do município de Horizonte, não diferente do que ocorre nas
eleições proporcionais municipais para a escolha dos representantes ao cargo do executivo e legislativo, obser-
vamos a existência de grupos que escolhem uma gura para representá-los no pleito tutelar. Até aí tudo bem se
esse mesmo grupo ou guras locais não interferissem através do “toma lá da cá” impelindo os eleitores a votarem
no mesmo. É aquilo que há muito já expôs Leal (2012) em sua obra “Coronelismo, enxada e voto”. Podemos
exemplicar essa subjugação quando, por exemplo, determinado vereador local aluga um espaço de lazer – sítio
– para arregimentar e “pedir” que “seus amigos” votem no “seu” candidato. Nesse momento é servido “comes e
bebes gratuito” a m de afeiçoá-los para votarem no candidato que representa seus interesses. Além disso, temos
o denominado “porta a porta” realizado pelo (a) vereador(a) no período eleitoral juntamente com seu candidato
ao posto de conselheiro tutelar nas casas em que este – o eleitor – “possui dívidas” para com o representante
político local.
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Mal-estar e utopia democrática Artigos/Articles
Atento para o fato de que foi um ganho constitucional descentralizar
essa política pública voltada para a infância e juventude. Contudo, os vícios e de-
turpações do jogo do poder que se encontram no emaranhado político partidário
que se desenvolve nas eleições proporcionais acabaram que sendo incorporadas
as eleições a função de conselheiro tutelar. Portanto, o que se deve sanar não é
a relação em si entre poder público e Conselho Tutelar, mas sim o mal-estar das
práticas coronelistas, paternalista e mandonistas (LEAL, 2012) que implica na
limitação da autonomia institucional do órgão.
O órgão Conselho Tutelar ainda é visto pela população como um espa-
ço de alocação de trabalho, daí a identidade e a vocação - este compreendido atra-
vés do histórico - daqueles que se disponibilizam a ser candidato ao cargo tutelar.
Os conselheiros tutelares desta reexão tinham como primeiro objetivo a busca
pela ocupação de trabalho e não possuíam nenhuma relação direta com a causa da
infância e juventude. Isso é um empecilho para a atuação autônomo institucional
quando inúmeros outros elementos não funcionam: falta de treinamento inicial,
capacitação sistemática e condições de trabalho.
Além disso, o mal-estar se desenvolve a partir do momento que temos
o “nanciamento” da campanha de candidatos ao órgão por políticos locais. A
nalidade primeira desse nanciamento, entre outras coisas, é justamente a sub-
jugação dos membros do colegiado ao poder local. Ao vincular-se nanceiramen-
te, “o conselheiro ca em dívida” para com aquele que foi seu “braço de ferro” e
que encabeçou sua campanha. Dessa forma, agora na condição de prossional do
social, esse se vê na linha tênue em não dar curso a ações que possam colocar a
administração local em situação “desagradável” frente à jurisdição.
São inúmeros os casos
15
em que conselheiros tutelares “lavam as mãos
em não dar curso à determinada ação frente o Ministério Público (MP) justamen-
te por ter “boas relações” com o poder executivo. A troca de favor entre ambos
congura-se em um mal-estar que resvala na atuação ineciente do CT, e o que
vemos são situações onde crianças e adolescentes veem seus direitos sendo viola-
dos enquanto que os agentes sociais de proteção nada fazem justamente por serem
uma extensão dos órgãos que violam tais direitos.
Diante de uma situação como essa, percebe-se que o Conselho Tutelar,
desde a sua gênese, não se congura naquilo que foi pensado inicialmente como
uma instância de proteção dos direitos e deveres das crianças e adolescentes. O
que vemos é mais um espaço de prolongamento do poder existente dos interesses po-
líticos locais, cheio de vícios e que estão a serviço dos interesses daqueles que querem
15
Casos como engavetamento de denúncias de diretores escolares que violam direitos de crianças e adolescentes,
mas que por ser apadrinhado político de terminado representante e por ser cônscio disso, a denúncia é enga-
vetada, não levando para conhecimento do Ministério Público (MP). Violações de direitos por várias pessoas
que são tidas como “cabo eleitoral” do representante que ajudou na eleição ao cargo de conselheiro tutelar é
corriqueiramente deixado de lado e o que se observa é a prática da impunidade em um espaço que foi criado
para garantir e preservar direitos.
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SANTOS, A. N. S.
permanecer no poder. Como fala Michel Foucault em sua obra Microfísica do Poder
(1979), “as relações de poder estão em todos os espaços”, e o CT não poderia ser
diferente, onde encontramos diferentes maneiras de arregimentar os mais dife-
rentes interesses.
Isso se revela pelo interesse que os políticos locais da cidade têm em
investir nas candidaturas. E em troca desse investimento - do capital político
(BOURDIEU, 1989) e “nanceiro” que foi utilizado no momento do processo
eleitoral - temos a subjugação, cooptação, submissão dos que são eleitos em rela-
ção ao apadrinhamento oferecido.
A participação de qualquer ator político está condicionada a situação
contextual (BOBBIO, 1986) e o CT e seus membros não estão imunes a isso. Vi-
vemos numa sociedade regida pelo mandonismo, patriarcalismo, troca de favores,
subserviência daqueles que estão em situação social de vulnerabilidade em relação
aos detentores do poder. As eleições a função ao cargo, assim como as eleições
proporcionais, também sofrem vícios e deturpações fragilizando a concepção de
democracia participativa.
A busca por caminhos alternativos a esta situação só se dará quando a
população tiver as condições necessárias para poder fazer suas próprias escolhas
sem a interferência de terceiros. Para isso, é necessário que os ganhos constitu-
cionais saiam do papel. Que a Constituição Federal do Brasil de 1988 seja uma
realidade e não um horizonte ainda a ser galgado.
Essa armação é muito cara, mas ousamos dizer que a instância Con-
selho Tutelar (CT) na atualidade está muito longe de ser aquilo que se quer e
necessita como órgão de proteção. Em outras palavras, é como se não existisse.
Visualizamos como sendo mais um espaço de interesses do poder político muni-
cipal, atendendo como um local onde está circunscrito o interesse da armação e
perpetuação das amarras dos currais eleitorais pelas guras políticas locais.
O espaço tutelar, engendrado por essas relações sociais com inúmeros
interesses em questão, afasta-se da concepção inicial e suas prerrogativas, criando
um novo signicado social ainda não plausível de denição. Ou então podemos
inferir que, ainda por estar com quase vinte e nove (29) anos da existência do
ECA/90, esse espaço ainda esteja vivenciando as conitualidades oriunda de uma
sociedade que precisa amadurecer em relação a questões sobre participação social,
representação e própria democracia.
A exemplo disso trouxemos a candidatura ao cargo de vereador do
Conselheiro Tutelar E.S.N. que procurou entre os anos de 2010 a 2012 engen-
drar todo tipo de relação através do trabalho tutelar para arregimentar alianças
populares para que pudesse ser eleito nas eleições municipais em 2012.
Os demais conselheiros tutelares que não saíram como candidato as
eleições proporcionais estiveram presentes nas eleições municipais como “cabo
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eleitoral” do vereador que nanciou sua campanha ao cargo. É corriqueiro ver
no espaço do CT, no período político eleitoral municipal, pessoas procurando o
conselheiro tutelar para intermediar ligações com o candidato a vereador. Nesse
momento o CT se congura mais como sendo um comitê político-eleitoral onde
os agentes tutelares retiram suas vestes - os quais tentam esconder - e passam a se
debruçarem em “ajudar” de forma direta, objetiva e explicitamente na eleição do
padrinho político.
Portanto, diante de uma sociedade marcadamente regida por desvios
(deturpações e vícios) na escolha de seus representantes, a eleição dos membros
ao colegiado, como pode ser constatado, também sofre inuência dessa situação.
Muitos dos candidatos recebem a “mão-amiga” em forma de ajuda dos represen-
tantes políticos locais. Logo, muitos dos candidatos que conseguem adentrar o
colegiado possuem vínculo com aqueles que estão no poder. “[...] os pressupostos
deliberativos asseguram o vínculo entre democracia e liberalismo ocasionando
uma falsa sensação de que população possa deliberar, onde na verdade sabe-se que
quem delibera é uma elite política às portas fechadas.” (MOUFFE, 2005, p.105).
Uma das questões mais debatidas na era contemporânea são a ecácia
e a eciência dos canais de participação social. Dessa forma, é importante ree-
tir essa relação sobre os rebatimentos no cotidiano de atuação dos conselheiros
tutelares. Diante do que já foi exposto, situo, pois, a partir da análise acima, os
mal-estares como consequentes destas situações em que a atuação tutelar estará
vinculada à rede de interesses políticos locais nem sempre conectada com as ne-
cessidades da criança, do adolescente, das famílias e da sociedade civil em geral.
Mal-estares surgem para a sociedade a partir do momento que o Con-
selho Tutelar deixa de lado os interesses daqueles que deveria defender, ou seja,
os direitos do segmento infanto-juvenil. Quando identicada esta disjunção, su-
postamente o Conselho Tutelar passa a ser percebido como uma instância utópica
de democracia participativa
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, uma vez que desde a eleição ao cargo, bem como as
ações dos conselheiros eleitos passam a estar vinculadas a interesses externos ao
próprio Conselho.
Dessa forma, pode-se constatar que a relação que se dá entre o Con-
selho Tutelar e o poder público municipal, delineada pela intervenção deste na
escolha dos membros do colegiado tutelar afeta a qualidade e a autonomia de
atuação do conselheiro tutelar, sendo, assim, uma fonte de mal-estares presentes
nos agenciamentos cotidianos dos conselheiros tutelares.
Portanto, para a efetivação de práticas verdadeiramente pautadas nas
diretrizes do ECA/90 e que venha trazer os frutos necessários para se colocar em
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Eram recorrentes na literatura internacional a ideia de que era quase impossível a criação de espaços de par-
ticipação nos países da América Latina por causa das características das instituições políticas e de seus atores
políticos. Recorrem a tese de que as instituições estariam dominadas por pactos e acertos informais e elitistas e
pela fraqueza da sociedade civil (Grindle & omas, 1991).
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SANTOS, A. N. S.
prática os verdadeiros direitos das crianças e dos adolescentes faz-se oportuno que
os membros tutelares possuam efetivamente sua autonomia garantida. A quebra
dessa relação espúria e desviante entre colegiado tutelar e poder público munici-
pal deve ocorrer urgentemente; a autonomia daquele deve sair do papel para que
se tenha um colegiado atuante, protetivo e compelido para com a defesa daqueles
que precisam de uma efetiva autonomia de atuação.
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Recebido: 05/06/2019
Aceito: 14/09/2019
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