Centro pop
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.4, n.1, p. 35-54, Jan./Jun., 2018
CENTRO POP: QUANDO UMA POLÍTICA PÚBLICA INCOMODA1
P
OP CENTER
:
WHEN A PUBLIC POLICY IS UNCOMFORTABLE
Zuleika de Andrade Câmara Pinheiro
2
Lidia Maria Vianna Possas
3
RESUMO: O artigo propõe refletir sobre o fenômeno social “população em situação de rua”,cuja
política pública para este segmento tem recebido muitas críticas.Surgido pelos desequilíbrios
provocados pelo desenvolvimento da acumulação capitalista e adensamento de populações
nas cidades, estefenômeno tem aumentado a cada dia. Ser uma “pessoa de rua” não se reduz à
culpabilização imposta pela sociedade ao atribuir-lhe responsabilidades pela condição em que se
encontra e, por conseguinte, exigir que por si mesma consiga recursos para dissolver a conexão
com as ruas e a possibilidade de sair delas.Buscou-se pensar como surgiu a política blica Centro
POP considerando seu histórico e como esta política pública se constituium incômodo.Para
tantoargumenta-se como o “outro” (pessoa de rua) é percebido como “diferente” “marginal” e
“criminoso”.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
:
Políticas Públicas. Centro POP. Pessoas em Situação de Rua. Alteridade. Diferença.
ABSTRACT: The article proposes to reflect on the social phenomenon “population in situation of
street”, whose public policy for this segment has received many criticisms. Arisen by the imbalances
provoked by the development of capitalist accumulation and densification of populations in the
cities, this phenomenon has increased every day. Being a “street person” is not reduced to the blame
imposed by society when assigning responsibilities for the condition in which they are and therefore
require that by itself obtain resources to dissolve the connection with the streets and the possibility
of leaving from them. We tried to think how public policy emerged POP Center considering its
history and how this public policy is a nuisance. For this it is argued that the “other” (street person)
is perceived as “different” “marginal” and “criminal”.
K
EY WORDS
: Public policy. POP Center. People on the Street. Otherness. Difference.
1
Este texto faz parte de uma discussão mais ampla cuja etnografia aconteceu em cenários de circulação de
“pessoas em situação de rua”(Centros POPs e Praças) no centro de Fortaleza-CE. Pesquisa esta vinculada ao
Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG)/ UNESP/Marília-SP.
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UNESP/Marília/SP. zuleikacamara@yahoo.
com.br. Coordenadora e pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de nero (LIEG); Bolsista
de Produtividade do CNPq.Universidade Estadual Paulistalio de Mesquita Filho. AV. Vicente Ferreira, 1279/
Sala 10. Campus II. Marília/SP. Bolsista CAPES.
3
Profa. Livre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UNESP/Marília/SP. lidia.possas@
uol.com.br
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2018.v4.n1.04.p35
PINHEIRO, Z. A. C.; POSSAS, L. M. V.
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I
NTRODUÇÃO
No Brasil, o fenômeno social “população em situação de rua” tem
aumentado a cada dia. Surgido pelos desequilíbrios provocados pelo desenvol-
vimento da acumulação capitalista e “adensamento de populações nas cidades”
(GREGORI, 2009, p13), aschamadas“pessoas em situação de rua” têm como
característica principal a “exclusão social
4
”. Privadas de condições materiais e sim-
bólicas (FRANGELLA, 2009, p 15) as“pessoas de rua”
5
sobrevivem em zonas
de fronteiras e às margens. Ser uma “pessoa de rua”não se reduz à culpabilização
imposta pela sociedade ao atribuir-lhe responsabilidades pela condição em que
se encontra e, por conseguinte, exigir que por si mesma consiga recursos para
dissolver a conexão com as ruas e a possibilidade de sair delas.A “situação de rua”
é produto deuma complexa e intrincada trama de causalidade como laços famil-
iares interrompidos, desemprego, desilusões amorosas, drogras, alcóol, doenças
mentais, pobreza extrema, débitos com a justiça e não a simples opção do sujeito
de ir para a rua apenas por ter uma“extraordinária” vontade de sobreviver as in-
tempéries das ruas.
Entretanto, um paradoxo na abordagem desse fenômeno. Se por
um lado o estadobusca suprimir as necessidades e demandas desse segmento so-
cial específico,poroutro a“população em situação de rua” padece de constantes
intervenções de truculência e beligerânciado estadopor meio do aparato policial,
bem como dasintransigências de outras instituições sociais
6
.As experiências per-
turbadoras e transgressoras (por subverter o espaço público utilizando-o como
“morada”) das “pessoas de rua”expõemo imaginário social as quais são percebidas
como incômodas e ameaçadores da ordem pública.O que se observa é o aumen- to
dasintolerâncias por parte da sociedade para com estes sujeitosmantidos pela
distância social constituída num quadro de desigualdade estrutural. Para muitos
estessão como “coisas fora do lugar”, são “diferentes”, no entanto, questões de
“qualidade humana” (VARIKAS, 2014, p.120) que devem ser repensadas. Com
efeito, a questão da qualidade humana se coloca, que esta é seriamente posta em
dúvida pela rejeição que a convivência com estas pessoas lhes outorga (VARIKAS,
2014, p.120), ou seja, uma situação de losers.7
4
Zaluar (1997) o “conceito de exclusão” comporta dois problemas: um teórico e outro prático-político. Do
ponto de vista teórico o termo exclusão é tributário de toda uma tradição dos sistemas simbólicos que sendo
sistemas classificatórios acabam deixando de fora quem não faz parte de um determinado grupo. Do ponto de
vista prático-político a exclusão se manifesta como injusta vista que muitas pessoas são excluídas dos serviços e
garantias direitos de cidadania do Estado (RUI, 2014).
5
O termo êmico “pessoas de rua” refere-se às pessoas em situação de rua que vivem ou viveram na rua em algum
período de suas vidas. A exemplo da expressão “meninos de rua”, forjada três décadas “para designar crianças
e adolescentes dos estratos pobres” que passam um tempo considerável de suas vidas “morando” e sobrevivendo
nas ruas das grandes cidades brasileiras (GREGORI, 2000, p.15).
6
Entende-se por instituiçoes sociais os instrumentosreguladores das práticas sociais cujo conjunto de regras,
normas e procedimentos é reconhecido socialmente. São elas: a família, religião, o judiciário, a academina,
gestores, etc.
7
Valencio et. al. (2008) os losers são os vagabundos, os perdedores.
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Tornar visível este “problema
8
social é reconhecer a importância de
investigar a perda de potencial humano deste segmento populacional e assinalar
para uma mudança de paradigmas no sentido de que a sociedade perceba aqueles
que se encontram as margens de seus direitos e convívio social. Ao evidenciarmos
a dimensão social e política da vida das“pessoas de rua” tornamos visíveis práticas
e dispositivos de gestão do estado com seus mecanismos de opressão, punição,
proibição, higienização e esterilização dos corpos, bem como formas de existir e
assujeitar-se aos ditames sociais. Nestes termos a possibilidade de compreender
a dimensão humana do “outro” cuja sobrevivência é no limite evidencia práticas
disciplinares e normalizadoras das instituições sociais. (FOUCAULT, 2011).
No sentido de responder às necessidades e demandas desse segmen-
to específico o estado passou a implemetar políticas públicas de apoio àpopu-
lação em situação derua. Na dianteira das políticas públicas para “pessoas de rua”,
oCentro de Referência Especializada para População em Situação de Rua (Centro
POP) é um equipamento de política pública que faz parte da Política Nacional
de Assistência Social, cujas ões envolvem as múltiplas políticas direcionadas
à população que vive em situação de rua. No entanto, o Centro POP tem sido
alvo de contundentes críticas por parte da mídia e sociedade, pois pressão
sobre os gestorespara que o “problema do morador de rua” deva ter uma solução
rápida e eficaz. Entretanto, nem a mídia, nem a polícia, nem os agentes sociais
em seus discursos de rejeição, discriminação e preconceitos questionam as causas
que levam as pessoas irem para as ruas. Como alguém consegue “morar” e viver
nas ruas? O que é ser uma “pessoa de rua”? Embora sejam indagações ingênuas
são ao mesmo tempo complexas. A complexidade encontra-se exatamente nesta
ingenuidade que nos remete à ideia de que esta questão social já faz parte do
cenário urbano.
Este texto segue duas linhas de reflexão: pensar como surgiu a política
pública (Centro POP) para a “população em situação de rua”considerando seu
histórico; como esta política pública se constituium “incômodo”. Argumenta-se
como o “outro” (“pessoa de rua”) é percebido como “diferente” “marginal” e “cri-
minoso”.Para tanto observa-sequeas políticas sociais indicampráticas e ações que
definem o modelo de proteção social implementado pelo estado, dirigidas para a
redistribuição dos benefícios sociais com foco na diminuição das desigualdades
sociais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico. Com efeito, as “políti-
cas sociais têm suas raízes nos movimentos populares do século XIX, voltadas aos
conflitos surgidos entre capital e trabalho, no desenvolvimento das primeiras
revoluções industriais.” (HÖFLING, 2001, p. 31). O que não se pode perder
8
Coloca-se problema entre aspas, pois, dependendo do ponto de vista e da abordagem com que se trata o
fenômeno das “pessoas em situação de rua” não é caracterizado como um problema. Ou seja, como algo que
perturba, desequilibra e incomoda. Busca-se o entendimento de que esse fenômeno se trata de uma questão
social complexa. Trata-se de um assunto que requer um olhar atento e refinado visto que a condição de rua
sugere um tema que deve ser discutido e posto em escrutínio, pois, envolve múltiplos aspectos, muito embora
essa questão possa trazer desacordos e tensões entre os agentes sociais.
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de vista como aponta o sociólogo Gabriel Feltran
9
(2017) é o fato de que muitas
pessoas estão nas ruas por problemas sociais e, portanto, devem ser protegidas e
não criminalizadas. Os“outros” antes de serem um “problema” de ordem social é
uma questão de ordem política.
O desafio das políticas públicas para “pessoas em situação de rua” é
ultrapassar estigmas, discriminações e preconceitos dos discursos que naturalizam
e legitimam ações violentas ainda que simbolicamente, contra elas. Diariamen-
te são noticiadas pela mídia matérias que acabam por banalizá-las homogenei-
zando suas identidades e seus corpos como sendo todas “bandidas, marginais e
suspeitas”. No sentido e evitar possíveis mal-entendidos sobre as reflexões aqui
expostas visto que o assunto é como um campo minado” em nenhum momento
pretende-se mistificar as pessoas de rua” ou colocá-las em posição de “coitadas”.
Também não se pretende comprazer em uma atitude redentora, busca-se apenas,
fazer o exercício de alteridade e respeito ao “outro”considerando sua trajetória
de perdas sociais. Antes de olharmos para as “pessoas de rua” como “marginais”
vemo-las como sobreviventes. Devemosficar atentas a maneira como a mídia e
outras instituições contribuem para a “cultura do medo” (FONSECA, 2008, p.
12), rotulando as pessoas em situação de rua” como sempre “suspeitas”. Mas, o
que é uma pessoa suspeita?
CENTRO POP N
OTAS
H
ISTÓRICAS
No Brasil, foi a partir da redemocratização na década de 1980 que os
movimentos sociais passaram a atuar em busca de políticas públicas que garantis-
sem os direitos civis e políticos dos cidadãos. Com as altas taxas de desemprego
registradas e agravamento das questões sociais ampliaram-se as demandas por
acesso a saúde, educação, trabalho, renda e assistência social. Nesse cenário,
um aumento do crescimento das cidades que exigia cada vez mais investimentos
em infraestrutura, transporte, saneamento básico, energia elétrica e habitação.Os
movimentos sociais passaram então a reivindicar garantia de acesso e enfrenta-
mento das desigualdades sociais observadas na realidade brasileira. Nestas lutas,
a “população em situação de rua” torna-se pauta nos debates políticos e agendas
dos gestores que passaram a se preocupar com os chamados “moradores de rua”.
A partir da premissa explícita nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988
que determina igualdade para todos perante a lei e direitos sociais iguais, ficou
impossível não considerar nas agendas políticas as questões relacionadas à popu-
lação em situação de rua (BRASIL, 2013).
Um episódio que irá marcar a pressão e cobrança por parte do movi-
mento de Direitos Humanos por políticas de proteção social e ações afirmativas
9
Cf. reportagem de Ligia Guimarães.“Crise leva mais famílias a morar na rua”. Jornal Valor Econômico.
10/01/2017.
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para a “população em situação de rua” foi o trágico evento ocorrido na cidade de
São Paulo em 2004. Conhecido como o “Massacre da Sé” nas madrugadas entre
os dias 18 e 21 de agosto, cerca de quinze “pessoas em situação de rua” foram
atacadas enquanto dormiam. No primeiro ataque, na madrugada de quarta-feira
dia
18, três “pessoas de ruaforam assassinadas enquanto sete ficaram gravemente
feridas.
Na sexta-feira dia 20, um dos feridos veio a falecer. No segundo ataque,
na
madrugada de bado (21) para domingo, cinco foram agredidas com três
mortes. Oito feridos, sete mortos golpeados na cabeça “por objetos contundentes,
provavelmente de bastões de madeira ou marretas” foi este o saldo dos ataques
(COTES; ZEVEDO; ANUATE, 2004).
O massacre acirrou as discussões e debates sobre esta população e a par-
tir deste episódio no ano de 2005 representantes das“pessoas em situação de rua”
são convidados pela Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para num esforço conjunto
elaborarem o primeiro Programa Nacional para a População em Situação de Rua.
Deste esforço inclui-se na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) de 1993
o “atendimento especializado para a população em situação de rua.” (BRASIL,
2013, p.18).
Sem precedentes na história do estado brasileiro nunca tinha sido dis-
cutido com tenacidade o fenômeno social “pessoas em situação de rua”. Com
ação inédita do Governo Federal este promove várias iniciativas com a participa-
ção da sociedade civil para a formulação de políticas públicas específicas para essa
população. Assim, pela primeira vez houve na agenda dos gestores a inclusão dos
“excluídos” nas discussões políticas.
Entre os anos de 2007 e 2008 o MDS realizou uma Pesquisa Nacional
sobre População em Situação de Rua cujos dados foram divulgados no relatório
publicado em 2009. Com estes dados o debate intensificou-se e em maio de
2009 aconteceu em Brasília o II Encontro Nacional sobre População em Situação
de Rua no qual consolidou-se as propostas intersetoriais para esta população e
neste mesmo ano é instituida a Política Nacional para População de rua (BRASIL,
2013,18).
Alguns eventos de violência e ataques contra as “pessoas em situação
de rua” eram registrados em todo Brasil e ilustraram as manchetes internacionais.
Além do episódio do Massacre da Sé, a Chacina da Candelária ocorrida em 1993,
também chamou atenção das autoridades quando oito jovens (seis menores e
dois adultos) foram assassinados nas escadarias da igreja da Candelária na cidade
do Rio de Janeiro por policiais militares. A maioria dos casos nem sequer são
investigados e sendo muitas das “pessoas de rua” dependentes de álcool e drogas,
algumas portadoras de distúrbios mentais, muitas entram na cena política e na
pauta dos gestores quando o escândalo faz um estrago grande e assume propor-
ções internacionais.
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O Centro de Referência Especializada para População em Situação de
Rua (Centro POP) foi criado no dia 11 de novembro de 2009 como parte do
esforço de consolidação do Sistema Único de Assistência Social SUAS que por
sua vez faz parte da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004). Esta
política pública aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS)
a Resolução nº 109/2009, que trata da Tipificação Nacional de Serviços Socioa-
ssistenciais surge com o intuito de “tratar dos serviços da proteção social especial
de média complexidade” (BRASIL, 2011, p. 9). Constitui-se em uma unidade de
referência da Proteção Social de caráter público cujas ações devem:
Integrar-se às demais ações da política de assistência social, dos órgãos de defesa de direi-
tos e das demais políticas públicas - saúde, educação, previdência social, trabalho e renda,
moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional - de modo a compor
um conjunto de ações blicas de promoção de direitos, que possam conduzir a impac-
tos mais efetivos no fortalecimento da autonomia e potencialidades dessa população,
visando à construção de novas trajetórias de vida. (BRASIL, 2011, p. 10).
O Centro POP é um equipamento de política pública criado no âmbi-
to dos Programas de Proteção do Ministério de Desenvolvimento Social e Com-
bate à Fome (MDS) (BRASIL, 2013). Tem como finalidade desenvolver ações
de amparo e proteção social cujas relações de solidariedade e respeito às “pessoas
em situação de rua” nos remetem ao entendimento de que elas são protagonistas
de suas existências, saúde e sobrevivências. O equipamento é um espaço de refe-
rência para o convívio grupal e social, não uma política pública que busca a todo
custo obrigá-las a saírem das ruas. Embora quando se interessem sair da condição
de rua a equipe10 do Centro POP busca apoiar e reverter o quadro de vulnerabi-
lidade em que se encontram.
A equipe busca proporcionar convivências que estimulem os/as usu-
ários/as à organização de suas vidas, tendo em vista resgatarem a autoestima, o
exercício da cidadania, participação e reinserção social, bem como recuperar seus
direitos sociais e políticos (BRASIL, 2014).Realizam encaminhamentos para ou-
tros serviços da Rede de Assistência Social das demais políticas públicas setoriais
e órgãos do Sistema de Garantia de Direitos (BRASIL, 2017). Entretanto, para
que as “pessoas de rua” utilizem as dependências do equipamento para banhos, al-
moço, lavagem de roupa e participação nas oficinas sociopedagógicas que tratam
de saúde, cultura e educação devem possuir cadastro na unidade. Seguir algumas
regras é necessário para a boa convivência entre elas, por tal motivo não podem
entrar armado, nem brigar dentrodo equipamento, devem respeitar as filas e os
demais. Caso as regras sejam violadas o/a usuário/a pode passar até três meses
afastado/a, dependendo da violação das regras, sem frequentar as dependências do
Centro POP. Também faz parte dessa rede de acolhimento, Centros de Convi-
10
Formada por um/a coordenador/a, psicólogo/a, advogado/a, assistente social e educadores sociais (que ficam
na sede e que vão para as abordagens nas ruas). Também fazem parte da equipe cozinheira, faxineiras, motoristas
e porteiros.
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vência, Pousadas Sociais e Albergues. Atualmente existem no Brasil 230 Centros
POPs ativos distribuídos em cidades de grande e médio porte e nas metrópoles
(BRASIL, 2017).
O Serviço Especializado em Abordagens de Rua SEAR faz parte das
ações do Centro POP e tem como foco a abordagem in loco de “pessoas em
situação de rua” maiores de dezoito anos. Compete aos educadores sociais do
SEAR identificar e mapear espaços públicos nos quais identifiquem estas pessoas,
podendo tais ões acontecerem também por meio de averiguações de denún-
cias institucionais ou sigilosas de permanência destas pessoas em logradouros
públicos. Cabe ainda aos educadores sociais elencar demandas e realizar encami-
nhamentos à rede socioassistêncial que integra as múltiplas políticas públicas e
instituições da sociedade civil.
A atuação da equipe do Centro POP diferencia das equipes das outras
políticas públicas como CRAS, CREAS CAPS, CAPS-Ad
11
. Nestes equipamen-
tos os profissionais vão lidar com uma população cuja vivência é mais próxima da
nossa. Já no Centro POP o público alvo tem características nômades, são sujeitos
sem residência fixa, às vezes sujos, maltrapilhos, alguns com débitos com polícia e
justiça. Assim, a equipe além de ter que atender, acolher e encaminhar os/as usu-
ários/as tem que mediar conflitos, apartar brigas e conviver com ameaças. Estas
situações fazem parte do cotidiano da equipe.
Lançadas às margens do desenvolvimento econômico e convívio social
sem acesso a bens e serviços esta parcela da população brasileira passou a utilizar
os logradouros públicos das cidades como forma de sobrevivência; tem no Centro
POP seu suporte para enfrentar o dia a dia nas ruas. Em suas dependências os/as
usuários/as almoçam, se banham, jogam, participam das oficinas, resolvem ques-
tões relacionadas à justiça, saúde e trabalho e recebem encaminhamentos para ou-
tros equipamentos públicos. Estima-se que existam 101.854 “pessoas em situação
de rua” no Brasil e deste total cerca de 77,02% habitam as metrópoles e cidades
com mais de 900 mil habitantes e cerca de 40,1% moram em cidades com mais
de 200 mil habitantes. Ou seja, as “pessoas de rua” se concentram fortemente em
municípios maiores e nas metrópoles (CNMP, 2015). Para implementação do
Centro POP cabe a cada município realizar um diagnóstico socioterritorial obser-
vando a incidência das pessoas “morando” nas ruas, como fazer um mapeamento
da rede de serviços que poderá ser articulada com cada Centro POP. Deve-se
observar a localização dos equipamentos considerando para seu funcionamento
a capacidade de atendimento de cada equipamento, sua infraestrutura e recursos
humanos.
11
Centro de Referência de Assistência Social(CRAS), Centro de Referência Especializado em Assistência Social
(CREA), Centro de Atenção Psicossocial(CAPS) e Centro de Atenção PsicossocialÁlcool e Drogas (CAPS -
AD).
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CENTRO POP N
OTAS
E
TNOGRÁFICAS
“I
NCÔMODAS
Mesmo com todo o esforço no sentido de ofertar serviços e equipa-
mentos socioassistenciais o estado ainda não conseguiu ajustar suas ações para
“a população de pessoas em situação de rua” de modo a respeitar a pluralidade
das identidades e diversidade humana no trato com as “pessoas de rua”. As ações
da equipe do Centro POP devem atentar para a dinâmica de atuações que aten-
da os diferentes grupos de “pessoas de rua” numa perspectiva de acolhimento e
atendimento ajustada ao livre convencimento do outro. Na circulação das ruas
há grupos que preferem dormir na rua pela liberdade que esta proporciona, do
que dormir nas Pousadas Sociais, Centros de Convivência ou em Albergues, pois
nestes espaços algumas regras não podem ser violadas, como por exemplo, chegar
tarde da noite para dormir.
O Centro POP tem sido alvo decríticas por parte da mídia e socie-
dade visto que pressão para que o “problema do morador de rua” deva ter
uma solução rápida e eficaz. A sociedade pressiona os gestores para que estes
sujeitos saiam das ruas por meio da higienização social” (limpeza humana).
Para Schwarcz (1993),no início do século XX o Brasil era entendido e expli-
cado pelo conceito de raça e não pelos atuais modelos político, econômico e
sociocultural. A partir dos anos 1930 a medicina toma pra si a questão racial e
o tema passa a ser central no Brasil da época. Um modelo higienista começa a
imperar e a população passa a ser classificada em “sãos” e “enfermos”.Aos pou-
cos vai se intensificando a ideia de um Brasil carente de uma política de limpeza e
assim, a higienização estará atrelada à pobreza e aos negros. Nestes termos esta
população não deveria existir.Observa-se atualmente em pleno início do século
XXI que essa mesma ideia ainda impera, ou seja pressão para que o estado faça
a
retirada compulsória das pessoas que “moramnas ruas. A exemplo do que
vem ocorrendo com atual prefeitura da cidade de São Paulo desde o início da
gestão João Dória, o prefeito tem travado uma luta para retirar as pessoas das
ruas a todo custo do entorno da “cracolândia”.
Para a sociedade a “higienização social” é uma estratégia necessária no
sentido de sustentar o controle social visível aos olhos dos transeuntes. A esse
respeito, vale lembrar que no ano de 2014 a cidade de Fortaleza
12
sediou alguns
importantes jogos da Copa do Mundo e da FifaFanFest. Segundo matéria do
jornal Tribuna do Ceará nos dias de jogos a Prefeitura em parceria com o Go-
verno do Estado do Ceará montou um esquema para “recolher” as “pessoas de
rua” e evitar a presença delas nas imediações onde ocorriam os jogos e circulação
de turistas. Com mais de cem profissionais que faziam buscas por pessoas de
rua”na Praia de Iracema, Praia do Futuro, Beira Mar, Centroe arredores do Está-
dio Castelão “convidando-as”a passarem o dia na Escola Municipal Alba Frota,
12
Cf. Reportagem de Pedro Alves.“’Higienização’: projeto abriga crianças e adultos em situação de rua durante
a Copa do Mundo”. Jornal Tribuna do Ceará. 14/06/2014.
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o “projeto” Agenda de Convergência oferecia abrigo, lazer, proteção, conforto e
comida somente nos dias e horários dos jogos. Como exposto na reportagem a
escola foi abrigo improvisado para a “higienização” durante o período da Copa.
As cozinheiras que participaram do projeto” demostraram suas revoltas e indig-
nação chamaram as ações de “recolhimento” de “maquiagem” da Prefeitura para
a Copa do Mundo.
As equipesdos Centros POPs compreendem a insatisfação social sabem
que trata-se de uma situação delicada e complexa, entretanto, o equipamento
existe não pra atender as expectativas intolerantes da sociedade e sim, satisfazer as
necessidades das “pessoas em situação de rua”. O foco do atendimento é o/a usu-
ário/a e esta busca acolher da melhor maneira possível a demanda que chega ao
equipamento. De fato, o entendimento comum sobre esta política pública aponta
que a equipe acolhe e atende “marginais, bandidos e pedintes”. De acordo com o
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP, 2015) apenas uma minoria
de 15% é pedinte. Com feito, para a sociedade este equipamento público torna-se
um “incômodo”, um “estorvo” para seu entorno. Entretanto, nem a mídia, nem a
polícia, nem os agentes sociais em seus discursos de rejeição para com as “pessoas
de rua” questionam as causas que as levaram para as ruas; não buscam saber como
sobrevivem, como reconhecer o “diferente” e agir com alteridade, nem o que fazer
com elas uma vez estando nas ruas.
A pesquisa que embasa este artigofoi nos dois Centros POPs da cidade
de Fortaleza/CE. No entanto, teve-seoportunidade de conhecer os Centros POPs
de duas cidades paulistas, Marília e Franca. Em Fortaleza o equipamento do Cen-
tro era numa área de comércio com muitas casas fechadas na vizinhança; não se
tem notícias de reclamações deste equipamento. Porém, o Centro POP do Ben-
fica bairro vizinho ao centro que mistura comércio, residências de “classe média
baixa” e unidades acadêmicas da Universidade Federal do Ceará (UFC) tem rece-
bido muitas reclamações do seu entorno. Em conversa com um educador social
13
este relata que por várias vezes a equipe recebia reclamações dos comerciantes e
residentes das redondezas e afirmavam que o Centro POP fez “surgir” os “mora-
dores de rua”, pois, foi a existência do equipamento que atraiu “esse povo” para o
Benfica. Para os residentes a solução da prefeitura para o “problema” era a de que
o equipamento deveria ir para algum lugar mais escondido e afastado dos bairros
mais centrais, portanto, distante do campo de visão dos agentes sociais. Segundo
o educador os residentes do Benfica aludem que os “moradores de rua” se deslo-
cam pela cidade, assim, seria fácil caminhar até os bairros mais afastados, essa é
a
lógica da vizinhança do equipamento. Atualmente o Centro POP Benfica não
tem recebido mais reclamações. A equipe buscou argumentar junto à vizinhança
que o equipamento é uma política pública com ações continuadas e atendimento
ininterrupto, não é um projeto e sim um serviço que atende a Política Nacional
13 Notas de Campo: entrevista realizada no dia 01 de agosto de 2017. Centro POP Benfica.
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de Assistência Social, portanto, acolhe as pessoas em situação de rua que em al-
gum momento de suas vidas necessitam de acolhimento.
O Centro POP da cidade de Marília fica na região central cuja vizi-
nhança é formada em sua grande maioria por comércio. No início de sua ins-
talação houve também algumas resistências ao seu funcionamento e às ações da
equipe. De acordo com a coordenadora14 a princípio a vizinhança cogitou fazer
um abaixo-assinado para a retirada do equipamento do bairro. No entanto, esta
percebeu que a circulação das “pessoas de rua” no entorno não representava ame-
aça, deste modo não levaram adiante a demanda do abaixo-assinado para retirada
do Centro POP do local (Rua Quatro de Abril, 763 Centro).
Na cidade de Franca o problema do “incômodo” se estende até hoje
e não parece ter prazo para acabar tamanha é a polêmica que se instalou sobre
o Centro POP na Av. Hélio Palermo.As reuniões, discussões e debates têm en-
volvido o Ministério Público, Defensoria, Conselho Municipal de Ação Social
e
Câmara do Vereadores. Em Franca o equipamento fica também num bairro
com um misto de comércio e residências de classe média. Por vários dias seguidos
passávamos pelo equipamento e visualizávamos as “pessoas de rua” no entorno
ou indo ao Centro POP ou perambulando pelas ruas e avenidas. O que se ouvia
falar era do “incômodo” que o equipamento causava aos comerciantes do bairro.
Estes alegavam que a queda nas vendas do comércio ocorreu devido a circula-
ção e aproximação das “pessoas de rua” pedindo dinheiro aos clientes. Além dos
comerciantes os residentes também rechaçavam o Centro POP, pois, segundo
eles, os “moradores de rua” deixam sujeira nas calçadas e por serem percebidos
como marginais intimidavam os residentes da área. Deste modo, o medo estava
imperando nas cercanias do Centro POP francano. Um residente comenta da
importância de um abaixo-assinado cujo objetivo era transferir o equipamento
para outro lugar15.
A situação do Centro POP francano gerou tanta polêmica que as dis-
cussões foram parar na Câmara de Vereadores e envolveu até a UNESP/Franca.
“O que fazer com o Centro POP?” esta foi a pergunta lançada pelo Grupo Corrêa
Neves de Comunicação (GCN ‒ Rádio, Jornal e Website) da cidade. A mídia não
se fartou de produzir reportagens e matérias desqualificando esta política pública.
Em uma das últimas reportagens do GCN se lê: “Moradores de Rua incomodam
os vizinhos do Abrigo Provisório”.
O “incômodo” foi amplamente divulgado por meio de várias reporta-
gens da mídia francana, mais particularmente pelo GCN que acabou produzindo
uma imagem negativa do equipamento. Houve um convencimento sobre a situ-
ação das “pessoas de rua” e a população de Franca passou a reproduzir as ideias e
14 Notas de Campo: conversa realizada no dia 20 julho de 2017.
15 Cf. Reportagem de Priscilla Sales“Centro POP no centro da polêmica. Muita reclamação, briga e morte”.
Jornal GCN. 02/11/2014.
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opiniões do GCN tendo o vereador Corrêa Neves Junior (Partido Social Demo-
crático - PSD) Diretor Executivo do Grupo encabeçando a ideia de fechamento
do Centro POP. Este utilizou a tribuna16para pedir a extinção do equipamento
e nesta sessão o vereador distorce um estudo feito sobre esta política públicapor
estudantes da UNESP que frequentaram o equipamento. Em seu discurso no
plenário o vereador confunde suas opiniões pessoais sobre o equipamento (como
sendo uma política pública fracassada) com o relatório feito pelos estudantes da
instituição17. Seguindo o mesmo nexo de compreensão dos residentes e comer-
ciantes do bairro Benfica em Fortaleza, o vereador proferiu que o número de
“moradores de rua” tem aumentado devido a instalação da unidade em Franca
(CÂMARA MUNICIPAL DE FRANCA, 2017).Acompanhando estes argumen-
tos seu colega vereador Walmir Della Mota (Partido Trabalhista Nacional - PTN)
(tenente da Polícia Militar aposentado) defendeu o fechamento urgente do equi-
pamento alegando aumento da criminalidade em seu entrono. Numa outra a ses-
são
18
um estudante do quarto ano de Direito da UNESP / Franca ocupa a tribuna
para resguardar a instituição dos mal entendidosesclarecer os fatos e defender a
permanência do Centro POP na região central. O aluno discute com os dois ve-
readores e argumenta que o caminho não é a extinção do equipamento nem mu-
-lo de endereço, pois tal ação não irá resolver este problema” social e as falhas
que possivelmente existam não serão solucionadas instalando o Centro POP em
outro local. O estudante defendeu o direito dos/as usuários/as de frequentarem o
equipamento e termina sua fala alfinetando os vereadores “Não podemos acusá-
-los pelo aumento da violência. O crime organizado veste terno” .
19
A secretária de Ação Social da Prefeitura de Francaargumenta numa
reportagem do Jornal GCN
20
que entende ser “até natural” que as pessoas demon-
strem seus incômodos com o equipamento.No entanto, acrescenta “mas os ‘mora-
dores de rua’ existem, estão aqui. Representam uma questão social que precisa ser
enfrentada” e questiona: “o que vamos fazer com eles? Jogá-los para debaixo do
tapete ou tratá-los?”.A repórter escreve que esta não é uma pergunta fácilde re-
sponder e justifica expondoque os vizinhos do Centro POP/Franca não avaliam-
como sendojusto terem que “arcar com o ônus desse problema social”. E segue
a matéria dizendo queos vizinhos não são contrao “tratamento” das “pessoas de
rua”, o que reivindicam são as razões pelas quais o equipamento é instaladonum
bairro residencial e na região central da cidade. A secretária comenta que a escolha
do local deve-se ao fato de que a incidência de “pessoas de rua” ocorrenos arre-
dores do Centro POP e por tal motivo é mais fácil o acesso aos/as usuários/as.
16 Sessão do dia 14 de janeiro de 2017.
17 Cf. Reportagem da Record: Programa Balanço Geral. 07/ 02/ 2017.
18
Sessão do dia 7 de fevereiro de 2017.
19
Cf. Reportagem Centro POP provoca discussão entre vereadores e unespiano. de Edson Arantes: 07/02/2017.
20
Cf. Reportagem de Priscilla Sales. “Centro POP no centro da polêmica. Muita reclamação, brigas e morte”.
Jornal GCN on line. 02/14/2014.
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a vizinhança se incomoda com a argumentação da secretária e provoca alegando
que “enquanto a escolha do endereço foi feita para facilitar a vida do grupo de
frequentadores, criou um problema para o grande número de famílias da região”,
alude a reportagem. Essa polêmica sobre a extinção do Centro POP francano se
entende até os dias de hoje.
As descrições acima evidenciam discursos com profunda desigualda-
dedas relações sociais. Iluminar esta questão que a política pública revela sobre o
“incômodo” urbano é acendero tensionamento entre as relações nós”/“eles”,vidas
possíveis/rejeição, centro/margens cujas conexões de forçase interesses individu-
ais atravessam questões políticas sobre a “população em situação de rua”.Parece-
-nos que tais discursos seguem o nexo do modelo neoliberal de estratégias para
a manutenção da ordem pública cujo “problema deva ser resolvido seguindo a
penalidade de “remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos
Estado” econômico e social” (WACQUANT, 2011, p.9). A partir dessa perspec-
tiva as teorias políticas liberais idealizam as funções do estado voltadas funda-
mentalmente para a segurança dos direitos individuais. Esses direitosdestacam-se
como se a propriedade privada fosse um direito “natural”, “assim como o direito à
vida, à liberdade e aos bens necessários.” (HÖFLING, 2001, p.36). Assim, con-
siderando as visões dos vereadores, residentes e comerciantes a vigilância dessas
“vidas precárias” (BUTLER, 2011; 2015 p.14) se faz necessária para “estancar a
desordem” cuja visão econômica neoliberal fundada no individualismo e mercan-
tilização se traduz sob a rubrica de “justiça”. (WACQUANT, 2011, p.19).
Butler (2011; 2015) nos ajuda a pensar sobre o enquadramento mi-
diático que constrói a imagem do “outro” como sendo um marginal” ou “cri-
minoso”. Reflete sobre o conceito de “rosto” (não necessariamente um rosto
humano, mas, um “rosto de uma vocalização sem palavras do sofrimento e da
precariedade) descrito pelo filósofo Emmanuel Levinas, que alude sobre o que
nos
vincula eticamente à alteridade, ao “outro” pode ser compreendido como
pessoas marcadas por vidas precárias. Entretanto, quanto menos alteridade mais
conflitos são revelados, pois, muitos não conseguem praticar a compreensão ao
“outro” considerando suas dimensões de vulnerabilidade e invisibilidade. Em
tempos midiatizados nossa relação com o “outro” e a representação do mesmo
emerge quando reconhecemos a humanidade deste sob ameaça. Essa visão não nos
permite ver a alteridade que constitui-se em meio a humanização / desumani- zação
do reconhecimento da conexão com o “outro”. Butler chama atenção para
os
“rostos” e a problemática em torno do enquadramento do nosso olhar para a
desumanização do “outro”que a mídia incita. A autora sugere que as pessoas se
fazem representar a si próprias e assim, têm mais chances de serem humanizadas,
enquanto aquelas que não conseguem ser representadas correm o risco de serem
mal representadas, ou seja, desumanizadas. Ela faz uma reivindicação sobre nós,
uma demanda moral que não requeremos, mas também não podemos evitar. As
vidas precárias das “pessoas em situação de rua” servem de objeto de “tática me-
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diante a qual a prova é manipulada de maneira a fazer uma acusação falsa parecer
verdadeira”(BUTLER, 2015, p.27). Estes enquadramentos governam a condição
de decidirem quais vidas são reconhecíveis e quais vidas podem circular livremen-
te. Com efeito, os rostos das “pessoas de rua” chegam até nós pela mídia que nos
oferece rostos “marginais” e “criminosos”. Tanto os vereadores quanto a vizinhan-
ça dos equipamentos desejam que as “pessoas de rua” permaneçam distantes e na
invisibilidade, sem nenhuma representação humana. Este comportamento social
de rejeição dependerá da maneira como se enfrenta a diferença e desigualdades
sociais que implicam questões políticas, bem como da concepção que se tem do
que é ser um humano.
O fato é que as “pessoas de rua” são vistas sempre como uma ameaça e
intimidação aos transeuntes por circularem pela cidade e terem “rostos” de “mar-
ginais”. E “por razões de segurançacomo alude Agamben (2014) o apelo à
manutenção da ordem pública muda constantemente seu pretexto, mas nunca
seu escopo: governar as populações. É mais fácil e barato, além de não “manchar”
reputação de ninguém banir as “pessoas de rua” de circulação e recolocá-las em
seu lugar, a estratégia é deslocá-la do lugar de onde nunca deveriam ter saído ou
seja, a periferia. Fica claro que os esteriotipos “vagabundo”, “bandido”, “ladrão”,
“preto”, marginal”, “desocupado” construidos pelo senso comum são “categorias
acusatórias e depreciativas” (FELTRAN, 2010, p. 573). Nos parece que esta lógi-
ca de criminalizar apenas “pessoas de rua” segue o modelo de gestão policial de
diferenças nas cidades segue a política do programa Tolerância Zero importado do
centro de pesquisa Manhattan Institute de Nova York, Estados Unidos (WA-
CQUANT, 2011). A antropóloga Taniele Rui (2014) esclarece que em termos
políticos, o combate a esta população é, mais que tudo, um combate aos seus
espaços de concentração” (RUI, 2014, p.214) daí a ideia de banir das redondezas
os Centros POPs.
Neste processo de reconhecimento do “outro”como tendo um “déficit
de humanidade” segue-se a ideia de Butler (2006) quando argumenta que é na
experiência de reconhecimento que qualquer um de nós se constitui socialmente
ou seja, nos refazemos sujeitos através do olhar do reconhecimento do “outro”
que nos confirma. Butler reflete sobre os riscos que os sujeitos correm quando
desconstroem padrões e normas estabelecidas. Ajustando o foco de sua políti-
ca de reconhecimento de inspiração hegelianacentrada na sobrevivência para as
“pessoas de rua”, os termos pelos quais estes sujeitos são reconhecidos são social-
mente articulados e mutáveis. Tais termos conferem humanidade”a uns sujeitos
colocando-os no campo do inteligível, mas, privam outros da possibilidade de
alcançarem tal condição. Para Butler certos humanos não são reconhecidos como
tal, e isso leva a outra ordem de vida impossível de viver, portanto:
Se os esquemas de reconhecimento disponíveis para nós o aqueles capazes de “desfa-
zeremuma pessoa conferindo reconhecimento, ou desfazuma pessoa negando reco-
nhecimento, então o reconhecimento torna-se um lugar de poder pelo qual o humano é
produzido diferencialmente. (BUTLER, 2006, p. 14).
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um paradoxo nesses nexos, qual seja, rejeição à presença do “ou-
tro” que ameaça21 à vida da vizinhança ao mesmo tempo em que a prática
da violência simbólica no desejo de que o “outro” desapareça de seu campo de
visão. Há possíveis violências físicas provocadas pela “população em situação de
rua” quando circula no entorno dos Centros POPs; ao mesmo tempo em que os
agentes sociaisatuam com violência simbólica ao querer afastá-la de sua convi-
vência. Analisando sobre as vidas precárias e o desejo do “outro” morrer Butler
(2011) vai argumentar que há dilemas constitutivo da ansiedade ética, pois
uma constante tensão entre o medo de ser submetido à violência, ou seja, o temor
de ser machucado ou até morto pelo “outro” e o impulso de ser obrigado a infligir
violência. Este dilema é produzido por meio dos discursos que chegam até nós
“como um endereçamento que não desejamos” de que certas violências nos reme-
tem a discursos nomeados, submetidos e uma série de imposições compelidos a
responder a uma alteridade exigente” (BUTLER, 2011, p. 23). um desejo de
que as “vidas infames
22
das“pessoas de rua” sejam vidas vividas “corretamente”
e que devem seguir o padrão de normalização e atenda às políticas neoliberais,
afinal, não devem dar prejuízos ao estado.Estes esquemas normativos operam
produzindo ideais de humano e as “pessoas de rua” não respondem à imagem de
pessoas humanas e produtivas.
Essa questão do reconhecimento da humanidade do “outro” ou da ten-
tativa de sua retirada do entorno dos Centros POPs pode ser melhor entendido
a partir do pensamento do sociólogo francês que estudou sobre delinquência em
Nova York. LoïcWacquant em seu livro As Prisões da Miséria (2011) denuncia as
ações de repressão aos delinquentes e perseguição aos homeless (sem-teto) nos
Estados Unidos cuja política de “tolerância zero” visava conter as desordens ge-
radas pelo desemprego e retração das políticas de proteção social. O autor faz
críticas aos políticos da América Latina ao importarem as técnicas de truculência
e agressividade de segurança made in USA como solução rápida para a violência
urbana. Para Safatle (2017) é nas articulações das sociedades neoliberais, ou seja,
as sociedades cuja economia e moral se misturam constantemente nas quais po-
líticas econômicas são oferecidas por meio de valores morais de “austeridade”,
“controle”, “contenção”, “culpabilidade”, não seria possível que os sofrimentos
nas dimensões afetivas e de reconhecimento deixassem de repercutir modos de ra-
21
Esta ameaça nem sempre é real e muitas vezes são fabricadas, são percepções geradas pela comoção blica
noticiada pela mídia quando algum episódio de ameaça acontece isolado. Isso não quer dizer que não exista
de fato pessoas circulando pelas ruas com débitos com a polícia e justiça. A questão é passar a ideia de que as
“pessoas de rua” necessariamente o “marginais” e “criminosas” cujas identidades autoevidentes revelam pessoas
inumanas.
22
A ideia de “vidas infames” parte do pensamento de Foucault em seu texto La viedeshommes infames (1979),
no qual homens e mulheres são marcados por existências singulares que são, ao mesmo tempo, obscuras e
desgraçadas; personagens subversivos aos conformes, ditames e padrões morais de suas épocas, cujas vidas o
desprezíveis, tornando-se visíveis a partir do momento em que se chocam contra a luz do poder.
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cionalização que dizem respeito ao horizonte ideal da vida social em suas macro-
estruturas. Portanto, no conjunto de análises sobre o reconhecimento do “outro”
surge a certeza de como sujeitos servem-se de suas experiências de sofrimento para
constituir caminhos arriscados e laços, ou não laços singulares. Assim, na visão da
sociedade é fundamental reprimir a “população em situação de rua”, pois, não pode
fazer do espaço público uma área de morada. Estas são manobras a serviço do
neoliberalismo uma vez que esta população não faz parte do livre mercado, ao
contrário, dá prejuízo para o estado e despesas sem lucro como retorno. Em tem-
po, governosneoliberais são contra políticas públicas pois segundo algunsgestore-
sa população se torna dependente do estado e deste modo sobrecarrega a máquina
pública, além de se pensar que os sujeitos aos serem assistidos pelo estado deixam
de recorrer ao mercado para seu sustento, onerando os cofres públicos
O vereador Corrêa Neves Junior em um de seus pronunciamentos na
Câmara dos Vereadores de Franca alude que não é justo gastar dinheiro público
alimentando “moradores de rua” e que o dinheiro deveria estar sendo destinado
para outros fins
23
. Criminalizar esta população é mais fácil para justificar as ações
de repulsa e exclusão do que buscar entender e praticar a alteridade de que este
fenômeno é resultado de uma multiplicidade causal que deu forma a esta situação
cujas vidas possibilitam descobrir suas múltiplas faces.
Para Butler (2007, p. 662) há que considerarmos os “deslocamentos
históricos das configurações do humano” no sentido de desenvolvermos uma vi-
são crítica sobre as causas que levam os sujeitos a destruírem as próprias condições
de humanidade do “outro”. Quando não identificação com o “outro” esta
pode “levar a atitude de desprezo, de aversão [...]. “À medida que este “outro” é
visto como muito distinto, ele perde sua condição de semelhante, de humano,
torna-se animal, estranho, uma coisa.” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016, p.
111). Quando certas vidas são rejeitadas e hostilizadas como resultado de aversão,
repulsa e indignação devemos resistir contra esse esforço de nos separar uns dos
“outros”. A distribuição diferencial da dignidade de certas vidas acontece dentro
das organizações racistas da sociedade na qual aludem que algumas vidas devem
ser defendidas a todo custo e “outras são tratadas como instrumentais e descartá-
veis como perdidas ou socialmente mortas” (BUTLER, 2017, p 29-40). Pare-
ce-nos que a ideia dos vereadores e vizinhança dos Centros POPs é manter a todo
custo as “pessoas em situação de rua” nas margens ou se preferirem, nas periferias
que é de que elas são. Igualmente, o conflito e tensionamento surgem quando
tais pessoas se deslocam e as margens e o centro se encontram.
Albuquerque Júnior (2016) adverte que ser xenofóbico não diz respei-
to apenas a relação com aquele que é de outro território nacional. Diz respeito
também a aversão ao “estrangeiro” que é “de casa” aquela pessoa de rua que pode
23
Cf. Reportagem: Encontro garante a manutenção do Centro POP. Jornal Diário de Franca.10/02/2017.
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estar diante de nós dormindo do ouro lado da calçada. Um educador social
24
do
Centro POP /Benfica em Fortaleza narra um episódio ocorrido há cerca de um
ano em frente ao equipamento. O educador aponta para o muro do outro lado da
rua onde se avista uma enorme mancha preta chamuscada (três metros de altura
por cerca de dois metros de largura), parecendo de incêndio. “Sabe o que foi aqui-
lo ali? Foi um coquetel molotov que jogaram em cima de dez ‘pessoas de rua’ que
dormiam lá!”. Numa sexta-feira, por volta das 21 horas, jogaram o coquetel mo-
lotov em cima das pessoas que dormiam em colchões na calçada e antes que o in-
cêndio tomasse maiores proporções elas conseguiram correr. Segundo o educador
até hoje não se sabe quem provocou o atentado e a investigação não foi adiante.
Com efeito, a visão que muitos têm do Centro POP nos parece ofere-
cer uma imagem de uma política pública falida cujas ações são perdas de tempo,
pois trata de vidas de “menor valor” sem reconhecimento humano. Para muitos
os Centros POPs são como “criadouros” de “drogados, desocupados, criminosos
e bandidos”. Possivelmente, não um entendimento da precariedade da vida
do “outro” (BUTLER, 2011). Uma “pessoa de rua” narra com os olhos cheios
d’água: “o que me dói na minha vida de rua é que as pessoas não acham que sou
humano. Acham que sou um bicho”. 25 Em que medida a sociedade e o Estado
minimizam ou maximizam a precariedade das vidas das “pessoas de rua”? Como
fazê-las sumir? Ou melhor, por que fazê-las sumir? O que de fato contribui para
a distorção do entendimento da condição de vida precária das “pessoas de rua”?
Como acabar com este “incômodo”?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trabalhar com a “população em situação de rua” é tarefa complexa e
muitas vezes a equipe tem que lidar com situações que fogem suas assistências e
busca num “jogo de cintura” tentar resolver os problemas. É nítido o empenho
da equipe que se esforça para resolver as demandas que fogem de suas atuações
profissionais, não por não saberem resolver os problemas, mas, por questões de
normas e princípios da política pública.
O Centro POP é uma política pública recente e surge como um centro
de apoio à população em situação derua” cuja estratégia do estado visa responder
às demandas desse segmento específico. No sentido de desistigmatizá-la, afinal a
“situação de rua” é antes de tudo uma “sobra” do sistema e não uma preferência do
sujeito, logo, é responsabilidade dos gestores e estes encontram na relação Centro
POP e vizinhança seu ponto nevrálgico. O “incômodo” que o equipamento causa
se em Fortaleza, Marília, Franca, Nordeste ou Sudeste parece-nos evidenciar que
as “pessoas de rua” são como “entulhos” humanos de uma sociedade de mercado
24
Entrevista em 02 de agosto de 2017. Centro POP (Benfica)/ Fortaleza.
25 Notas de Campo: entrevista com Edu 27/ 08/2016.
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que se ressente quando o estado investe em políticas públicas para esse segmento
especifico e o “Estado-social se transmuta em Estado-penal.” (WACQUANT,
2009, p. 9).
O condicionamento de nosso olhar associado a diferentes condições de
existência e experiência de vida possibilitam práticas de reconhecimento e clas-
sificação as quais os sujeitos envolvem princípios de constituição e avaliação da
realidade. Neste processo algumas visões do mundo social são classificatórias e di-
ferenciadas. O problema da classificação é que esta captura e trava nosso olhar nos
deixando reféns de hierarquias sociais e fronteiras simbólicas bem demarcadas.
caímos numa armadilha, pois o perigo da classificação, quais vidas são vivíveis e
quais não são (BUTLER, 2015), é que esta confisca nossa percepção e inscreve-se
no fato de que, ao classificarmos, deixamos fora do nosso campo de visão as várias
possibilidades de outras experiências de vida, outras vivências humanas além de
criarmos invisibilidades e produzirmos exclusão.
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Submetido em: 16/05/2018
Aprovado em: 30/07/2018
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