O discurso patriarcal através da música popular brasileira
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.4, n.1, p. 9-24, Jan./Jun., 2018
O
DISCURSO PATRIARCAL ATRAVÉS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
:
UMA ANÁLISE DAS CANÇÕES MISÓGINAS DO SÉCULO XX
THE PATRIARCHAL SPEECH THROUGH BRAZILIAN POPULAR MUSIC: AN
ANALYSIS OF THE MISSIONARY SONGS OF THE 20TH CENTURY
Arilda Ines Miranda Ribeiro
1
Jéssica Kurak Ponciano
2
R
ESUMO
:
O presente artigo pretende realizar uma discussão preliminar acerca das representações
femininas contidas em canções
brasileiras
de
diferentes
gêneros
musicais
que
popularizaram-
se
no país, em meados do século XX. Subsidiada pela teoria feminista, as reflexões pretendem
analisar as seguintes músicas contidas no cancioneiro local popular: Morocha”, de Mauro Ferreira
e Roberto S. Ferreira; “Mulher Indigesta”, de Noel Rosa; Cabocla Tereza”, de João Pacífico; “Me
Lambe”, da banda Raimundos e Mulheres Vulgares”, dos Racionais Mc’s explicitando os discursos
patriarcais à elas relacionados, a fim de comprovar que a cultura patriarcal se naturaliza através da
cultura musical no Brasil. Neste sentido, cada música eleita para a análise pertence a um gênero
musical distinto, fato que corrobora com a prerrogativa de que a misoginia perpassa por todos os
estilos musicais, que expressam culturas plurais e distintas. Cada uma das canções avaliadas trazem
uma perspectiva diferente sobre a imagem feminina, entretanto, possuem em comum o fato de
depreciarem a mulher, colocando-a em uma posição de inferioridade em relação ao homem. A
1
Graduada em Biblioteconomia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1980), Mestrado e Dou-
torado em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1987 e 1993) Livre-Do-
cente em Estrutura e Funcionamento da Educação Básica (2000). arilda@fct.unesp.br.
Atualmente é Professora Titular Concursada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2012)
Coordenou o Curso de Especialização em Arte Educação e Gestão Educacional da FCT/UNESP. Criou em
2003 o NUDISE-Núcleo de Diversidade Sexual em Educação até 2015 e o GPECUMA-Grupo de Pesquisa
em Educação, Cultura, Memória e Arte (FCT/UNESP) ambos cadastrados no CNPq. Fez parte da Pesquisa
sobre Homosuicídio (Unesp Assis)do programa Dst/Aids (Ministério da Saúde) e atuou no GDE (Gênero e
Diversidade na Educação-UaB/Unesp-Rio Claro). Participou como Orientadora de Turma dos Cursos de Pe-
dagogia semipresenciais e em EaD Unesp/UaB/Capes (2016-2016) UNESP/UNIVESP (2012-2013), Parfor,
Pedagogia Cidadã, Pec For Prof, além dos curso de formação Teia do Saber, e Circuito Gestão. Tem experncia
na área de Educação, com ênfase em História da Educação e da Formação de Professores no Brasil, atuando
principalmente nos seguintes temas: formação de professores presenciais e EaD, diversidade sexual, gênero, his-
tória da educação, história das instituições escolares e em gestão educacional. Possui diversos livros publicados
sobre Educação Feminina, Gestão Educacional e História das Instituições Escolares. É professora de Graduação
(1992) e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) no Programa de Educação da FCT-Unesp (2001), Campus
de Presidente Prudente, São Paulo.
2
Graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2011) Campus de Assis-SP.
Mestra em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2015) Campus de Presidente
Prudente - SP. jessica.kpp22@gmail.com.
Atuou como Professora Efetiva de Educação Básica II na disciplina de Língua Portuguesa e Literatura na Escola
Estadual Antônio Fioravante de Menezes, no município de Presidente Prudente - SP. Atualmente, trabalha
como Professora Coordenadora Pedagógica na mesma unidade escolar, membro do grupo NUDISE- Núcleo de
Diversidade Sexual em Educação.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2018.v4.n1.02.p9
RIBEIRO, A. I. M.; PONCIANO, J. K. .
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visão androcêntrica reiterada e propalada através do cancioneiro popular, perpetua uma cultura
de exclusão e violência contra as mulheres, neste sentido, propõem-se através destas discussões,
contribuir para a desconstrução de uma visão estereotipada e convencionalista dos papéis de gênero.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
: Música Brasileira, Feminismo, Gênero, Mulheres, Música Popular.
A
BSTRACT
:
This article intends to conduct a preliminary discussion about the female representations
contained in Brazilian songs of different musical genres that became popular in the country in
the middle of the 20th century. Supported by feminist theory, the reflections intend to analyze
the following songs contained in the popular local songbook: “Morocha”, by Mauro Ferreira and
Roberto S. Ferreira; “Mulher Indigesta” by Noel Rosa; “Cabocla Tereza”, by João Pacífico; “Me
Lambe” by Raimundos and Mulher Vulgar”, by Racionais Mc’s explaining the patriarchal discourses
related to them, in order to prove that patriarchal culture is naturalized through musical culture
in Brazil. In this sense, each music chosen for analysis belongs to a distinct musical genre, a fact
that corroborates the prerogative that misogyny permeates all musical styles, which express plural
and distinct cultures. Each of the evaluated songs brings a different perspective on the feminine
image, however, they have in common the fact of depreciating the woman, placing it in a position
of
inferiority in relation to the man. The androcentric vision reiterated and propelled through the
popular songbook, perpetuates a culture of exclusion and violence against women, in this sense,
it is proposed through these discussions, contribute to the deconstruction of a stereotyped and
conventionalist view of gender roles.
K
EYWORDS
:
Brazilian Music, Feminism, Gender, Women, Popular Music.
I
NTRODUÇÃO
A História Cultural trouxe inúmeras inovações para as correntes his-
toriográficas, uma delas foi a possibilidade de abordagem de múltiplos campos
temáticos, diversificando os objetos de pesquisa, e trazendo à tona recortes inusi-
tados da realidade, ou revendo velhas fontes a partir de uma perspectiva ilumina-
da por novas indagações (PESAVENTO, 2004, p. 69). Neste sentido, é possível
verificar a relação histórica de diversos elementos que compõem a cultura de uma
determinada civilização, bem como a sua forma de compreender a existência e de
se relacionar com os elementos exteriores.
Partindo desta premissa, as expressões musicais de uma determinada
cultura trazem em suas letras sentidos implícitos e explícitos que ajudam a des-
vendar os discursos e as representações sociais que permeiam a realidade dos su-
jeitos que as produzem e consomem. Inúmeros objetos de pesquisa ofertam sub-
sídios para que seja constatada a forma como a sociedade brasileira está ligada as
suas égides patriarcais, e segue violentando as mulheres de várias maneiras. Des-
tarte, este artigo destina-se a realizar uma discussão preliminar acerca de algumas
músicas que povoam cancioneiros populares brasileiros, e que foram produzidas e
lançadas durante o século XIX, no sentido de detectar a forma como o patriarca-
do e a violência de gênero são marcados na cultura musical do país.
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Principiando a análise, é importante sintetizar a história do movimento
feminista no país destacando quais foram suas pretensões e manifestações. A par-
ticipação feminina na vida pública se iniciou em meados do século XIX, através
da imprensa e nos inúmeros jornais editados por mulheres, que trouxeram à tona
potencialidades femininas (ALMEIDA TELES, 1993, p. 33), e deram aberturas
para posteriores insurgências feministas.
O movimento feminista brasileiro organizou-se, posteriormente, ape-
nas no final do século XIX, e se estendeu pelas três primeiras décadas do século
seguinte reivindicando essencialmente em defesa do sufrágio e pela inclusão da
mulher à vida pública. Esta etapa foi descrita por Pinto (2003), como uma ten-
dência de “feminismo bem comportado”, que não buscava romper com a opres-
são feminina, mas sua luta residia apenas na inserção da mulher na sociedade, sem
a ruptura com os paradigmas da opressão de gênero. As sufragistas deste período
foram lideradas por Berta Lutz.
A segunda tendência, denominada “feminismo mal comportado”, era
composta por mulheres anarquistas, intelectuais e líderes operárias, que questio-
navam os modelos de educação feminina, bem como o acesso das mulheres ao
conhecimento científico. Além disto, esta tendência promoveu discussões acerca
de temas muito polêmicos como: divórcio, sexualidade e dominação masculina
(ALMEIDA TELES, 1993; PINTO, 2003). Nesta vertente, há também as mu-
lheres que foram além, promovendo debates ainda mais ousados, dentre elas se
destaca Maria Lacerda de Moura, que apesar de estabelecer parceria e diálogo com
o grupo de Berta Lutz, criticava-o pois acreditava que as discussões deste seg- mento
beneficiariam um número muito reduzido de mulheres. A esta tendência
filiavam-
se mulheres anarquistas e membros do Partido Comunista.
O movimento feminista brasileiro sofreu um retrocesso a partir do gol-
pe do Estado Novo, promovido por Getúlio Vargas em 1937, quando todos os
movimentos populares tornaram-se proibidos. Neste período, as feministas foram
silenciadas e suas reverberações fundiram-se as demais, que “resistia a ditadura
e defendia a democracia” (ALMEIDA TELES, 1993, p. 47). No ano de 1945,
período de redemocratização do país, muitas mulheres integraram lutas impor-
tantes para os aspectos políticos do país, porém sem carregarem consigo o rótulo
de “feministas”.
Em 1964, após o Golpe Militar, houve nova onda de repressão e silen-
ciamento de movimentos populares e de oposição à ditadura militar. Este efeito
fez com que o movimento feminista brasileiro praticamente desaparecesse. Ape-
sar disto, os grupos e as mulheres que se opunham à ditadura, organizavam-se
de maneira clandestina para promoverem atos públicos e protestos. Apenas em
1975, decretado pela ONU como Ano Internacional da mulher, o movimento
feminista ressurgiu no país. Este período proporcionou intensas discussões sobre
RIBEIRO, A. I. M.; PONCIANO, J. K. .
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as condições da mulher no país, além de ofertar possibilidade de agrupamentos
coletivos femininos, relacionados à partidos de esquerda (SARTI, 2013, p. 41).
A partir dos anos de 1980, o movimento feminista brasileiro se intensi-
ficou e radicalizou, nesta época o feminismo se delineava e estruturava no sentido
de consolidar-se enquanto grande força política emergente no Brasil. Com toda
a história de ruptura e reconstrução traçada pelo movimento das mulheres bra-
sileiras, é possível notar ao longo de todo o século XIX que, em muitos aspectos,
as lutas femininas, no sentido de desconstrução dos padrões hegemônicos de assi-
metrias de gênero, ainda eram árduas, pois o patriarcado instaurava-se com gran-
de força na cultura nacional, e aqui interessa-nos particularmente sua repercussão
nas músicas populares do século XIX no país.
As representações patriarcais situam-se na antiguidade ocidental, suas
origens historiográficas contemplam lendas e mitos de origem divina, criados por
diferentes povos para justificar questões inexplicáveis, dentre elas, aquelas que
dizem respeito ao modo de organização social das relações cotidianas, atribuin-
do-lhes sentido e lógica, para que o pacto social não seja desfeito pelos membros
subjugados.
Dentre as justificativas míticas, a origem do imperativo e da autoridade
patriarcal tem registros na Bíblia Sagrada, no livro Gênesis, a mulher é concebida
a partir do homem, atuando como subordinada e produto dele. Anterior a essa
narrativa, e pouco difundido pela cultura cristã, o mito de Lilith apresenta de
modo ainda mais explícito a subordinação da mulher ao patriarca, uma vez que,
após demonstração de insubordinação, Lilith é castigada e expulsa do paraíso
por Deus em virtude de sua desobediência à Ele e ao seu marido Adão (BRAGA;
PONCIANO; RIBEIRO, 2015).
À medida em que Lilith é punida e castigada, a Virgem Maria é venera-
da enquanto modelo de feminilidade, pois aceitou de forma submissa e resignada
os desejos de Deus, que a elegeu para gerar seu filho. A imagem da Virgem Maria
atribao feminino sua importância máxima através da maternidade, da humil-
dade e da subserviência ao masculino (Deus) (NARVAZ, 2005, p. 15).
Essas referências corroboram com a assertiva de Sardenberg e Costa
(1994), de que a opressão das mulheres, promovida pelo patriarcado, figura como
primeira forma de opressão da história da humanidade, e se perpetua contem-
poraneamente através da manutenção dos papéis de gênero (SARDENBERG &
COSTA, 1994, p. 81). Nesse sentido, é necessário rever discursos que dissemi-
nam representações estereotipadas e negativas sobre as mulheres, uma vez que,
como advoga Expósito et. al. (2005), uma das principais causas da violência de
gênero reside no conjunto simbólico que determina papéis de gênero onde mu-
lheres são educadas para a fragilidade, submissão e resignação e aos homens se
destina a agressividade, atividade, violência e dominação (2005, p. 20).
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A DOMINAÇÃO NOS DIFERENTES GÊNEROS MUSICAIS
As canções brasileiras são heterogêneas e plurais, esta pluralidade é de-
corrente de diversos fatores, dentre eles: invasão lusitana e projeto de colonização
do país, focado na díade exploração dos recursos naturais e do trabalho escravo;
chegada de imigrantes europeus e asiáticos; uniões inter-raciais entre população
nativa (indígena), negra (africana), e imigrante europeu e asiático, etc. Esses fa-
tores, somados a outros de ordem política e econômica, deram vazão a uma vasta
gama de culturas regionais, que se unem e identificam como “brasileiros”, mas
comungam, regionalmente e/ou localmente, de modos de vida e peculiares.
Nesse sentido é interessante notar que a misoginia encontra-se presente
em canções de todas as regiões do país e de todos os gêneros musicais. Iniciando
esta análise por canções regionalistas, na região sul, a música Morocha”, compos-
ta por Mauro Ferreira e Roberto S. Ferreira, interpretada por David Menezes -
nior e pelo grupo Os Incompreendidos, em 1984, no festival da Coxilha Nativista,
em Cruz Alta - Rio Grande do Sul traz uma gama de associações negativas sobre
a relação entre mulheres mulatas e homens gaúchos.
Segundo Emerson Wendt (2015) a música ficou com a segunda posição
na categoria “canção”, recebendo premiação; além disto, a canção contou com
outros cinco prêmios: “Lenda da Panelinha”; “Romano Zanchi” (júri especial da
imprensa local); Música Mais Popular; troféu “Capitão Rodrigo”, o prêmio de
Melhor Intérprete para David Menezes Júnior, e; ainda, o “Troféu Grazzito”, para
a Melhor Indumentária, para Os Incompreendidos (WENDT, 2015, p.5).
Esta canção, segundo Berenice Lagos Guedes (2004) ainda é cantada
em muitas rodas gaúchas, e pode ser ouvida também em rádios que transmitem
as canções gauchescas:
Não vem morocha, te floreando toda
Que euo sou manso e esparramo as garras
Nasci no inferno, me criei no mato
E carrapato, é que em mim se agarra
Tu te aprochegas, reboleando os quarto
Trocando orelha, meu instinto rincha
E eu me paro, todo embodocado
Que nem matungo, quando aperta a cincha
Aprendi a domar
Amanunciando égua
E para as mulher
Vale as mesmas regra
Animal, te pára
Sou do rincão
RIBEIRO, A. I. M.; PONCIANO, J. K. .
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Mulher pra mim é como redomão:
Maneador nas patas e pelego na cara
Crinuda velha, não escolha o lado
Nos meus arreios não quem peliche
Tu inchas o lombo, te encaro o laço
Boto os cachorros e por mim que se abiche
Não te boleias que o cabresto é forte
O palanque é grosso: senta e te arrepende
Sou carinhoso, mas incompreendido
É pra o teu bem, se tu me entendes
[...]
A letra da canção possui grande teor de violência e obliteração da iden-
tidade feminina; nela, a mulher é associada a uma égua, e o homem gaúcho afirma
que a utilização da violência no trato com os equídeos é análoga àquela que deve
ser utilizada no sentido de promover a dominação da mulher. Ademais, é impor-
tante destacar que o vernáculo “Morocha” é regionalista (próprio do Rio Grande
de Sul), e significa Rapariga Morena (SANTOS; NEVES; CABRAL, 2017)
3
.
A canção animaliza a mulher mulata, aquela que não é vista como a
“prenda” (segundo a tradição gaúcha, prenda é a mulher branca, com atributos
exigidos para o casamento: docilidade, submissão, branquitude, etc.); reiterando
a visão colonial descrita pela obra clássica “Casa-grande & senzala”, de Gilberto
Freyre, expressa pelo seguinte bordão da época: “A negra no fogão, a mulata na
cama e a branca no altar” (FREYRE, 1975, p. 104). Nesta perspectiva, o gaúcho,
eu-lírico da canção, na mulher negra a possibilidade de domá-la como uma
égua, associando a sua imagem à dominação de teor sexual.
A descrição da mulata nos moldes expressos pela música “Morocha” são
amplamente explorados por muitos autores da literatura nacional da época. Sobre
este fato, Nubia Hanciau (2012) explica que a imagem da mulata é explorada nas
produções literárias de forma muito homogênea: ora exaltada, ora desqualificada;
boa cozinheira; beleza exótica; dotada de uma sensualidade muito intensa e liber-
tina, seduz até mesmo aos homens mais honrados (2012, p. 2).
A naturalização da violência contra a mulher marca também o samba
de Noel Rosa, artista importante no processo de consolidação do gênero musical
em meio à classe média carioca e as rádios mais populares da época. A música
“Mulher Indigesta” apresenta um esboço da necessidade de dominação masculina
através da violência:
3
Vernáculo pesquisado no Dicionário Online de Português, seus colaboradores são: bora Ribeiro Santos,
Flávia de Siqueira Neves e Luís Felipe Cabral. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/morocha/>. Acesso
em 07 mai. de 2017.
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Mas que mulher indigesta!(Indigesta!)
Merece um tijolo na testa
Essa mulher o namora
Também o deixa mais ninguém namorar
É um bom center-half pra marcar
Pois não deixa a linha chutar
E quando se manifesta
O que merece é entrar no açoite
Ela é mais indigesta do que prato
De salada de pepino à meia-noite
Essa mulher é ladina
Toma dinheiro, é até chantagista
Arrancou-me três dentes de platina
E foi logo vender no dentista
Na perspectiva da canção, a mulher não deve desafiar o homem, tam-
pouco manifestar-se perante ele, caso contrário, a violência contra ela tornar-se
necessária. De acordo com Manoel P. Ribeiro (2011), a canção retrata a ojeriza
de
Noel Rosa com relação às alcoviteiras com quem o músico mantinha certa
convivência (2011, p. 130). A escolha lexical da palavra “indigesta” empregada
na caracterização da mulher objetiva depreciá-la e compará-la à algo que possa ser
“degustado”, “comido” (Ela é mais indigesta do que prato / De salada de pepino à
meia-noite) (MORICONI, 2013, p. 91).
Angélica Moriconi (2013) explica que ao associar a mulher à um prato
de salada de pepino, o enunciador “deixa implícita uma alusão ao próprio ato de
“comer” o alimento e, analogamente, a própria enunciatária - numa referência ao
ato sexual (2013, p. 91)”. A analogia neste caso destaca que a ingestão do pepino
ao anoitecer é tão negativa quando a “conjunção carnal” com mulheres “indiges-
tas”, não submissas e que não se submetem aos caprichos e vontades do parceiro.
Com relação aos crimes de honra, a canção “Cabocla Tereza4”, com-
posta por João Pacífico, e interpretada por inúmeras duplas sertanejas relata a
história de uma mulher que saiu de sua casa, abandonando seu esposo, para viver
um novo amor:
[...]
Vi uma cabocla no chão
E um cabra tinha na mão
Uma arma alumiando
[...]
4
“Esta toada de Raul Torres e João Pacífico, gravada por ambos pela Victor em 1940, tomou-se um dos maiores
sucessos da Moda Caipira, recebendo mais de quarenta regravações, sendo a mais famosa a de Torres e Florêncio
(BARISON, 1999, p. 286)”.
RIBEIRO, A. I. M.; PONCIANO, J. K. .
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tempo eu fiz um ranchinho
Pra minha cabocla morá
Pois era ali nosso ninho
Bem longe deste lugar.
No arto da montanha
Perto da luz do luar
Vivi um ano feliz
Sem nunca isso esperá
E muito tempo passou
Pensando em ser tão feliz
Mas a Tereza, doutor,
Felicidade não quis.
O meu sonho nesse oiá
Paguei caro meu amor
Pra r de outro caboclo
Meu rancho ela abandonou.
Senti meu sangue fer
Jurei a Tereza ma
O meu alazão arriei
E ela eu percurá.
Agora me vinguei
É esse o fim de um amor
Esta cabocla eu matei
É a minha história, doutor.
Segundo Osvaldo Luis Barison (1999), analisando o cenário em que
a narrativa do eu-lírico ocorre, associada à forma como o mesmo interage com
os outros dois personagens da música, nota-se que o objetivo desta construção
discursiva visou a construção de uma atmosfera intimista, carregada pela solidão
e introspecção, fazendo com que os ouvintes entrem em contato, de forma mais
íntima com o pseudo-romantismo do homem que, amargurado e traído, justi-
ficativa e razão para tirar a vida de uma mulher (1999, p. 285)
Além disso, Barison (1999) destaca que “a característica cultural do ma-
chismo assume uma representação complexa e dissimulada” (BARISON, 1999,
p. 288), uma vez que, os dois personagens que ouvem a história do “feminicí-
dio” não se posicionam, ao contrário, ouvem atentamente a história do assassino,
numa postura que pode ser interpretada como neutralidade em relação à narrati-
va, ou até mesmo como cumplicidade e fruição em decorrência da mesma.
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A canção “Cabocla Tereza” atua como uma crônica, capaz de expressar
os valores contidos no ambiente rural de meados do século XX no país. Apesar de
expressar valores relativos à violência e hierarquias de gênero, a canção foi regrava-
da inúmeras vezes por diversos cantores sertanejos, denotando o caráter de aceita-
ção que a mesma ainda possui em ambientes rurais, visto que “ao se referir e, por
conseqüência, referenciar estes valores como naturais e imutáveis, a moda reforça,
involuntariamente, uma cristalização destes valores (BARISON, 1999, p. 288)”.
O rock nacional dos anos 90 também carrega em suas letras estereó-
tipos negativos sobre a condição da mulher. Na canção Me Lambe”, da banda
Raimundos, aborda a objetificação e sexualização de mulheres adolescentes.
O quê? O que que essa criança fazendo toda mocinha?
Vê, já sabe rebolar, e hoje em dia quem não sabe?
Se ela der mole eu juro que eu não faço nada
cadeia e é contra o costume
Mas se eu tiver na rua e ela de mão dada com outro cara
Eu morro de ciúme
E eu contente com as malvada
Achando que era o tal
E me aparece essa coisinha
Me dê agora seu telefone, outro dia a gente se liga
Eu quero te levar pra onde um frio na barriga
Me fala a verdade... quantos anos você tem?
Eu acho que com a sua idade
pra brincar de fazer neném
Como a vista é linda da roda gigante
É... tão grande
Acho que ela viajou que eu era um picolé
Me lambe
No parque de diversões foi que ela virou mulher
Das forte
Menina pega a boneca e bota ela de
Sinto, amigo, lhe dizer, mas ela é “de menor”
Isso é crime
Seu guarda, se não fosse eu podia ser pior
Imagine
O homem de cassetete disse, quando me algemou
Que ela tinha dezessete, que o pai dela era doutor
RIBEIRO, A. I. M.; PONCIANO, J. K. .
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E que se fosse eu ainda faria igual
Se fosse no ano que vem ia ser normal [...]
Nessa música, um homem jovem, porém detentor de todos os atos
da vida civil (maioridade), apaixona-se por uma garota de 17 anos. A idade do
homem não é revelada, porém a letra da canção deixa explícita uma atmosfera de
“infantilização” da figura da garota, expressa pela escolha do ambiente em que o
homem escolhe para marcar o encontro (parque de diversões), e pelos vocábulos
“boneca”, “picolé”, “roda gigante” “criança”. Nesse sentido, quando o eu-lírico
fala sobre “uma criança” que está “se fazendo de mocinha”, ele ressalta que é
legitimo que crianças do sexo feminino são desejáveis e podem povoar a fantasia
de homens adultos, inclusive relacionarem-se de modo afetivo e sexual com eles.
É importante destacar também a postura do policial que prende o ho-
mem que se relaciona com a menor, apesar de representar a lei, o policial afirma
que “se fosse ele faria igual”, e destaca que esprendendo o pedófilo porque a
adolescente “tinha dezessete e o pai dela era doutor”, levando a crer que, caso se
tratasse de uma adolescente “pobre”, que não fosse filha de doutor, provavelmen-
te o homem não estaria sendo preso pela relação com a menor. É preocupante
avaliar um discurso em que a própria “justiça”, representada pela fala do policial,
não considera “errado” a exploração sexual de menores, no entanto prende o ex-
plorador por mera convenção social.
Sobre isso Felipe (2006) explicita que na relação que se estabelece entre
corpo, gênero e sexualidade, a sociedade ensina que o corpo da mulher jovem e
infantilizada deve ser objeto de desejo e erotização (FELIPE 2006, apud SERPA,
2016, p. 48). Esta perspectiva isenta o abusador da culpa, o homem passa a não
se sentir como um “pedófilo”, mas sim como um homem “normal”, guiado por
seus instintos, que assim como os demais indivíduos do sexo masculino, desejam
uma mulher infantil para manterem relações sexuais.
E
MPATIA SELETIVA NO RAP
MULHERES VULGARES
Apesar de se popularizarem por suas letras críticas e empáticas ao coti-
diano do povo negro, habitante das favelas da grande São Paulo, o grupo Racio-
nais MC’s se envolveram em polêmicas acerca do teor “machista” e “misógino”
de algumas de suas canções. O rap “Mulheres Vulgares”, contido no LP “Holocausto
Urbano”, do grupo Racionais MC’s gerou, na época de seu lançamento, grandes
polêmicas para o grupo, inclusive foi alvo de ataques em debates promovidos pela
ONG Gelédes - Instituto da mulher negra:
[...]
Qual é a mão?
É sobre mulher, e tal.
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Mulher? Que tipo de mulher?
Se liga aí:
Derivada de uma sociedade feminista
Que considera e dizem que somos todos machistas.
Não quer ser considerada símbolo sexual.
Luta pra chegar ao poder, provar a sua moral
Numa relação na qual
Não admite ser subjulgada, passada pra trás.
Exige direitos iguais.......
E o outro lado da moeda, como é que é?
Pode crê!
Pra ela, dinheiro é o mais importante.
Seu jeito vulgar, suas idéias são repugnantes.
É uma cretina que se mostra nua como objeto,
É uma inútil que ganha dinheiro fazendo sexo.
No quarto, motel, ou tela de cinema
Ela é mais uma figura vil, obscena.
Luta por um lugar ao sol,
Fama e dinheiro com rei de futebol! (ah, ah!)
no qual quer se encostar em um magnata
Que comande seus passos de terno e gravata. (otário ....
)
Quer ser a peça central em qualquer local.
Se julga total,
Quer ser manchete de jornal.
Somos Racionais, diferentes, e não iguais.
Mulheres Vulgares, uma noite e nada mais!
Mulheres. ... vulgares.
Mulheres vulgares, uma noite e nada mais.
Mulheres. ... vulgares.
Mulheres vulgares, uma noite e nada mais.
E aí, Brown? Cola aí, e tal...
Fala tua parte, e tal..... certo mano...
Ô, falo sim! Peraí, peraí.
É bonita, gostosa e sensual.
Seu batom e a maquiagem a tornam banal.....
Ser a mal, fatal, legal, ruim. .... Elao se importa!
quer dinheiro, enfim.
Envolve qualquer um com seu ar de ingenuidade.
Na verdade, por trás mora a mais pura mediocridade.
Te domina com seu jeito promíscuo de ser,
Como se troca de roupa, ela te troca por outro.
Muitos a querem para sempre
Mas eu a quero por uma noite, você me entende?
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Gosta de homens da alta sociedade.
Até os grandes traficantes entram em rotatividade.
Mestiça, negra ou branca
Uma de suas únicas qualidades: a ganância.
A impressão que se ganha é de decência
Quando se trata de dinheiro e sexo, se torna indolência.
Fica perdida no ar a pergunta:
Qual a pior atitude de uma prostituta?
Se vender por necessidade ou por ambição?
Tire você a conclusão.
[...]
Então, irmão, é de coração.
Abra os olhos e veja a razão.
Querer, poder, ter
Não é pra você se proteger, prever antes de acontecer.
E hoje ela diz: Que cara vou dormir?”
Com seu rosto bonito é fácil atrair, e daí.....
Pra sair não precisa insistir.
É ser alguém e estalar os dedos assim (plec!)
Francamente ela se julga capaz
De dominar a qualquer idiota que tenha conforto pra dar.
Não importa a sua cor, não importa a sua idéia,
Apenas dinheiro esnobando, jogando pela janela.
Não entre nessa cilada.
Fique esperto com o mundo e atento com tudo e com nada.
Mulheres só querem/preferem o que as favorecem
Dinheiro,ibope, te esquecem se não os tiverem.
Somos Racionais, diferentes, e não iguais.
[. . ]
É mano, tem uns caras que ficam iludidos com essas mina aí......
Capa de revista, pôster, viagem pra Europa......
Mas por baixo mano, mó sujeira!
[. . ]
Logo nos primeiros versos, o rap destina-se a criticar o próprio “movi-
mento feminista”, que busca “direitos iguais”, julga os homens como machistas,
mas que, segundo os compositores, um “outro lado da moeda”, pois existem
mulheres “interesseiras” que se preocupam com status e dinheiro, e vão na con-
tra mão do que prega o movimento feminista. É interessante notar que a culpa
pela objetificação da mulher não é atribuída em momento nenhum à cultura pa-
triarcal e machista, ao contrário, a música defende que as “mulheres vulgares” são
influenciadas pelo feminismo, porém, o eu-lírico se reporta àqueles que erotizam
e hipersexualizam os corpos femininos.
O discurso patriarcal através da música popular brasileira
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Além disso, é comum observar, como assevera Motta et. al. (2004), que
os Racionais MC’s trazem em suas canções, elementos que justificam a entrada do
jovem no crime, alegando que o sistema o compele a praticar delitos, em um
discurso que funciona como “escudo ético” das ações dos homens negros, entre-
tanto não há, na perspectiva do rap Mulheres Vulgares” tentativa de justificar e/
ou produzir um “escudo ético” que justifique a “prostituição”.
Segundo o eu lírico, a ação de se prostituir atribuí a mulher a condição
de vulgar” e questiona se é pior para uma prostituta se vender por “necessidade
ou ambição”. No caso do homem negro, que se envolve no crime e no tráfico, ou-
tros raps do grupo Racionais MC’S justificam que o sistema capitalista bombar-
deia a mente dos jovens com ideais de vida e consumo que os mesmos não podem
obter por meio de atividades lícitas, e por conta disso partem para o lado ilícito
a fim de conquistá-la. Já no caso da mulher, não há essa alternativa, se ela almeja
os mesmos padrões de vida impostos pela sociedade, não pode obtê-los por meio
da barganha de seu corpo e sexo, ainda que isso seja “menos” nocivo socialmente,
pois envolve a degradação daquele se prostitui.
Mulheres Vulgarestrabalha também com a dicotomia “ingenuidade”
versus promiscuidade”, uma vez que o considera que as mulheres se utilizam de
sua imagem de “puras” e “ingênuas” para satisfazerem a sua ganância de conquis-
tar homens em quem possa lhes dar “conforto”. Afirma-se também que uma das
únicas qualidades da mulher é a “ganância”, corroborando com a prerrogativa
patriarcal de que as mulheres devem ser definidas como seres “para os outros”,
pois a maternidade e as relações familiares são a sua única finalidade (SANTOS;
IZUMINO, 2014, p. 149) não devem possuir desejos e ganâncias, mas sim per-
manecerem resignadas e submissas às condições que seus donos” (pai, esposo,
etc.) podem lhes proporcionar.
A imagem da mulher é associada a enganação, ao pecado e a tentação,
pois tem caras que ficam iludidos com essa mina”, é explícita a relação da mulher
a figura mítica de Lilith, que rebela-se contra a vontade masculina e deseja gozar
do prazer carnal. A depreciação da mulher na letra Mulheres Vulgares”, aponta
para uma empatia seletiva, pois uma generalização das condutas femininas, afi-
nal “não importa a sua cor” as mulheres querem apenas “dinheiro, status e ibope”,
fazendo com que as críticas ao sistema e a empatia com relação ao sofrimento do
povo periférico e negro se reduza exclusivamente ao homem. A partir desta aná-
lise, é possível concluir que as mulheres encontram-se fora do projeto libertário
traçado pelo grupo Racionais MC’s.
BREVES CONSIDERAÇÕES
Analisar diferentes gêneros musicais para detectar o tratamento dado ao
feminino é muito importante visto que muitos estudos analisam representações
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negativas apenas em um determinado gênero. A breve discussão proposta tencio-
nou explicitar que a misoginia, o machismo e as visões estereotipadas acerca das
mulheres o são particularidades de um único gênero musical. Ao contrário, a
deturpação do feminino e a incitação da violência contra a mulher é uma realida-
de presente inclusive em músicas regionalistas.
Destarte, é importante que se discuta a influência que estas letras pos-
suem na construção da consciência coletiva sobre os papéis de gênero. Além disto,
o fato de a escolha das canções buscar uma diversidade de estilos que represen-
tam culturas populares específicas, faz com que a possibilidade de compreensão
de diferentes culturais regionais compreendem o patriarcado e as representações
acerca das mulheres. A ideia principal, oriunda destas reflexões é demonstrar que,
mesmo grupos e movimentos musicais que se apresentam como revolucionários,
críticos e socialmente engajados, excluem as mulheres de suas lutas e reiteram
estereótipos que as relegam a condições de exclusão, violência e inferioridade.
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Submetido em: 15/03/2018
Aprovado em: 25/07/2018
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