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S
OBRE ESCLARECIMENTO
,
EMANCIPAÇÃO
,
FORMAÇÃO E
SEMIFORMAÇÃO
CULTURAL: KANT E ADORNO, COMPREENSÃO,
REFLEXÃO E DIÁLOGO.
CLARIFICATION, EMANCIPATION, CULTURE FORMACION AND
SEMIFORMACION: KANT AND ADORNO, UNDERSTANDING, REFLECTION
AND DIALOGUE.
Giza Guimarães Pereira Sales
1
R
ESUMO
:
Neste artigo, apresentam-se algumas reflexões sobre “esclarecimento”, “emancipação”,
“formação” e “semiformação”, apontados por Kant e Adorno e como esses conceitos estão
relacionados com a educação e a história da formação de professores nos dias atuais. Pensar a relação
entre esclarecimento, emancipação, formação e semiformação com a formação de professores nos
dias atuais é, no mínimo, uma tarefa das mais difíceis, principalmente quando tais termos são
utilizados em documentos oficiais, norteadores de políticas públicas educacionais, quase nunca
se levando em consideração a origem dos conceitos. Nesse sentido, para a elaboração deste artigo,
tomam-se por referência a existência atual dessa problemática e o fato de as discussões sobre esses
conceitos perdurarem em nossa sociedade mais de dois séculos.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
: Educação, Esclarecimento, Emancipação, Formação e semiformação cultura.
A
BSTRACT
:
In this article, some reflections on “clarification”, “emancipation”, culture “formation
and semiformation”, pointed out by Kant and Adorno, are presented and how these concepts are
related to education and the history of teacher education in the present day. To think about the
relationship between clarification, emancipation, formation and semiformation with the formation of
teachers in the present day is at least a task of the most difficult, especially when these terms are
used in official documents, guiding public educational policies, hardly ever taking into account
the origin of the concepts. In this sense, for the preparation of this article, reference is made to the
current existence of this problem and the fact that the discussions about these concepts have lasted
in our society for more than two centuries.
K
EYWORDS
: Education, Clarificacion, Emancipation, Culture Formation and semiformation.
I
NTRODUÇÃO
Neste texto, apresento algumas reflexões sobre “esclarecimento”,
“emancipação”, “formação” e semiformação” apontados por Kant e Adorno e
1 Doutoranda em Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - UNESP Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Filosofia e Ciências FFC/Câmpus de Marília.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2017.v3.n2.05.p53
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como esses conceitos estão relacionados com a educação e a história da formação
de professores nos dias atuais.
A questão da emancipação, como mudança de uma condição menor
para uma condição maior, de esclarecimento (que mais recentemente tem
se traduzido em acesso à cultura, ascensão social, relações de poder etc.) está
presente nos discursos desde o século XVIII, no entanto, a realidade da educação
nem sempre favorece a essa condição. Professores, governantes e intelectuais
enfatizam a educação como prioritária para a formação do sujeito crítico, ativo,
participativo, mas infelizmente o que se tem ao longo da história do processo
educativo, especialmente no Brasil, é uma infindável somatória de reproduções
de
tradições que nada favorecem a essa formação.
Dessa forma, passei a refletir sobre como os conceitos de esclarecimento
e emancipação se relacionam com a formação do sujeito (e nesse caso a formação
de professores) e como essa formação, ao longo do tempo, tem se transformado
em semiformação. Em que medida, um sujeito semiformado pode contribuir
para a formação e emancipação de seus alunos?
Para compreender as questões apontadas, buscarei enfocar,
principalmente, o Texto de Kant Resposta à pergunta: que é esclarecimento
(Aufklärung), publicado originalmente em 1783 e o texto de Adorno Educação
e emancipação, (1995), no qual estão reunidos resultados de conferências e
entrevistas do autor entre as cadas de 1950 e 1960, assim como outros textos
que possam vir a contribuir para a discussão.
Embora o tema educação, emancipação e formação estejam presentes
no conjunto da obra desses autores, para os objetivos deste texto, apresentarei
de forma singela, apenas algumas reflexões que pude depreender do pensamento
desses dois autores, especificamente nos textos mencionados.
SOBRE ESCLARECIMENTO, EMANCIPAÇÃO, FORMAÇÃO E SEMIFORMAÇÃO DO
ILUMINISMO AO SÉCULO XXI.
Com o objetivo de libertar-se da compreensão de um modelo formação
humana anterior ao século XVIII, a qual era marcada pela força da autoridade,
pela submissão a preceitos e regras impostas arbitrariamente, em que o ideal de
formação estava vinculado à obediência como princípio básico, muitos pensadores
do século XVIII, questionando o que consideraram com período de trevas
intelectuais, propuseram uma forma de compreensão do conceito de formação
humana e da produção de conhecimento fundamentadas na razão, objetivando
livrar-se desse passado. Essa nova fase que, para contrapor-se ao passado
considerado de obscuridade, foi denominada de “Século das luzes” e propunha
a busca do conhecimento pelo poder da razão, com base no esclarecimento, na
iluminação, fazendo surgir assim, termos que melhor representassem essa nova
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maneira de conceber o conhecimento. Palavras como Iluminismo, Lumières,
Enligbtenment, Ilustraciós e Aufklärung eram agora utilizadas para designar essa
nova maneira de compreensão do conhecimento.
Dentre os pensadores desse período, conhecidos como iluministas, estava
Immanuel Kant (1724-1804), nascido em uma família humilde na Prússia, tornou-
se professor catedrático da Universidade de Konigsberg e construiu todo um
sistema filosófico que veio a se contrapor à Metafísica tradicional, tornando-se um
dos maiores representantes do pensamento filosófico moderno. Dentre a extensa
obra deixada por Kant, está o ensaio “Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento
(Aufklãrung)?”, publicado originalmente em 1783, é nele que Kant aborda
diretamente o tema do esclarecimento (Aufklãrung), da Educação (Erziebung) e
da formação cultural (Bildung), redirecionando o pensamento filosófico vigente e
lançando bases para a construção de uma teoria pedagógica. (PAGNI, 2008).
As considerações de Kant e sua abordagem com ênfase numa filosofia
do sujeito tornaram-se marcos importantes para a compreensão das questões
educacionais e forneceram referencial para a constituição de uma teoria pedagógica
no
pensamento moderno e atual. Segundo Pagni (2008), o texto de Kant tornou- se
“[...] um dos textos emblemáticos para se abordar o problema da emancipação
e,
de certo modo, da educação na modernidade.” (PAGNI, 2008, p. 225).
Dentro do contexto social e intelectual da Alemanha iluminista, Kant
relaciona a sua filosofia do sujeito, considerando que os fundamentos da
pedagogia seriam dados pela filosofia. Assim, filosofia e educação são indissociáveis
e pressupõe que a filosofia deveria levar o povo ao esclarecimento, ao Aufklãrung.
Kant, ao reconsiderar o papel da filosofia, inaugura novos significados às palavras
educação e cultura.
O conceito de Aufklãrung, segundo Kant, é a “[...] saída do homem
de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.” (KANT, 1974, p. 100). Esse
estado de menoridade é a situação em que o homem se encontra incapacitado de
utilizar o próprio entendimento, necessitando da tutela de outrem. Para Kant, a
preguiça e a covardia são estados de comodidade que favorecem a essa condição
de menoridade. Vencer essa condição não é tão fácil assim, uma vez que os seres
humanos estão acostumados, e até certo ponto, apegados a ela. (PAGNI, 2008).
Para Kant, esse estado de menoridade torna-se cômodo, uma vez
que, não temos necessidade de pensar, pois outros poderão se encarregar disso
por
nós (KANT, 1974). No entanto, essa acomodação ou situação confortável,
acaba sendo reforçada pelos tutores, uma vez que, ao instruírem seus alunos, não
permitem que eles ousem ou deem passos sozinhos (KANT, 1974).
É difícil portando para um homem em particular se desvencilhar da menoridade que
para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora
realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer
a tentativa de assim proceder. (KANT, 1974, p. 102).
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Segundo Kant, necessário se faz um ato de coragem para se libertar desse
estado de menoridade, e partir em busca da autonomia da razão (KANT, 1974).
A liberdade, no entanto, se conquistada, pode ser o caminho para o Aufklãrung.
O grande problema, no entanto, aponta Kant, dessa forma de pensar
e do Iluminismo como um todo, é que essa atitude seja encarada como atitude
individual, pois assim o fazendo o homem individual se revoltaria contra todo
tipo de tutor e passaria a um estado de despotismo pessoal levando ao mesmo
resultado final da antiguidade de trevas: massas de pessoas aprisionadas em
preconceitos, destituídas de pensamento.
Pensar a relação do homem com a liberdade e a cultura, implica
considerar aspectos complexos, uma vez que, Segundo aponta Gelamo (2009),
essas questões estão vinculadas a uma condição de humanização.
Poderíamos dizer que a submissão às leis e à cultura não direciona o homem para a
autonomia e a liberdade, porque o aprisiona e o condiciona. Ainda que essa problematização
faça sentido, para Kant, a autonomia e a liberdade podem se efetivar quando o homem
se torna humanizado, ou seja, quando passa pelo processo de humanização e pela
aprendizagem do uso livre e autônomo da razão enquanto oposição ao aprisionamento
face à vontade selvagem e irracional em que vivia anteriormente. Desse modo, aquilo
que poderia ser um indicativo de limitação da liberdade e da autonomia é, para Kant, a
condição necessária para a sua efetivação. (GELAMO, 2009, p. 42).
A autonomia e a liberdade, no entanto, são pressupostos do homem
ideal, consistem numa reorientação do espírito do povo, da filosofia e de seu
caráter educativo. Desse ponto de vista é possível perceber que no pensamento de
Kant Filosofia e Educação são indissociáveis, pois o esclarecimento consiste em
ver a filosofia como forma de ensino, de educação.
Em outras palavras, colocar
o esclarecimento apenas do ponto de vista empírico, do homem individual,
levaria ao individualismo total, comprometendo a sociabilidade e destino da
humanidade. Assim, Kant foca a questão principal do esclarecimento, o livre uso
da razão, para um campo teórico transcendental. É que funda sua filosofia: na
transcendentalidade das ideias.
O equilíbrio entre essas duas posições, a liberdade de uso da razão e a
obediência às regras instituídas, leva Kant a fazer distinção entre dois conceitos:
uso público e uso privado da própria razão. Uso público da própria razão é “aquele
em qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público letrado”,
enquanto o uso privado é “é aquele que o sábio pode fazer de sua razão em
certo cargo público ou função a ele confiado” (KANT, 1974, p.104). Para Kant,
existem certas profissões que, pela sua natureza pública, os profissionais devem,
em seu desempenho, colocar a ordem coletiva acima de seus pensamentos e
opiniões. Em sua vida particular, esses profissionais podem e devem fazer o pleno
e livre uso da razão para contestar, reformar, corrigir o que for necessário no
intuito de conduzir ao esclarecimento. O libertar-se da menoridade e pensar de
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forma independente não significa dizer fazê-lo em todas as circunstâncias da vida,
pois que se ter em mente o bem da coletividade, o bem público respeitando
as normas vigentes, a ordem civil e social. Nessas profissões, por sua finalidade
pública, o profissional, no desempenho de sua atividade deve sempre estar
consciente de que a obediência deve sobressair-se ao raciocinar. Um professor, no
uso particular de sua razão, diante de seus pares, poderia questionar os todos,
as leis, as estratégias da educação ou que o que bem quisesse. Criticar, reformar,
corrigir, sugerir. No entanto, no exercício de seu ofício, diante de seus alunos,
fazendo o uso público de sua razão, deveria obedecer às leis, estratégias, etc.
Embora no texto de Kant, o papel da educação como pressuposto para
a emancipação estar tratada de maneira subentendida, é possível depreender que
somente por meio da educação é que se pode superar o estado de menoridade,
vencer o medo e alcançar o esclarecimento.
Pensar a relação entre emancipação e educação, na ótica de Kant,
indica, sobretudo, compreender o papel do tutor, que tento vencido o estado de
menoridades, pode conduzir os seus alunos em igual caminho. Assim, os tutores
“[...] depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão
em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação
de cada homem em pensar por si mesmo.” (KANT, 1974, p. 102).
No entanto, para Kant (1974), [...] um público muito lentamente
pode chegar ao esclarecimento” (p. 104). O preconceito implantado e mesmo
a revolução, nem sempre podem produzir a verdadeira reforma do modo de
pensar. Pois,
[...] a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém
nunca conduzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos,
assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de
pensamento (KANT, 1974, p. 104).
De certo modo, Kant (1974) afirma que o Aufklãrung não era um
produto do seu tempo. Pois para ele ainda [...] Falta muito para que os homens,
nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam
ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro
e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem.” (p. 112).
Para o autor, no século XVIII não se vivia uma época esclarecida, mas uma época
de esclarecimento. “[...] somente temos claros indícios de que agora lhes foi
aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem
progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento (Aufklãrung) geral ou
à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados.” (p. 112).
Por volta de dois séculos depois das considerações de Kant sobre
emancipação, Theodor Adorno, profundo admirador da obra de Kant, estudou
e tornou-se professor da Universidade de Frankfurt. Adorno
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manteve contatos com Walter Benjamin e Max Horkheimer, seus parceiros
intelectuais. De origem judia, por ocasião do nazismo, Adorno precisou
mudar-se para Londres e posteriormente Estados Unidos, onde, juntamente
com Horkheimer, escreve Dialética do esclarecimento (1946), livro que os
projetou no cenário intelectual mundial. Adorno também é autor de uma
vasta obra sobre Filosofia, Sociologia e Artes.
No livro Educação e Emancipação (1995), publicado com resultados
de entrevistas/debates concedidas por Adorno entre as décadas de 1950 e 1960,
ele retoma as questões apontadas por Kant sobre emancipação e educação por
considerá-las atuais e propícias para se debater a democracia em sua época.
Assim como Kant, Adorno (1995) considera que para se alcançar
a emancipação é necessário haver coragem para utilizar-se do próprio
entendimento, da razão.
Emancipação, segundo Adorno (1995) consiste, de certa forma num
problema, uma vez que a literatura pedagógica, de sua época, não
problematiza a educação como forma de emancipação. Para ele, preocupam-
se de uma “[...] ontologia existencial de autoridade, de compromisso, ou outras
abominações que sabotam o conceito de emancipação atuando assim não
de modo implícito, mas explicitamente contra os pressupostos de
democracia.” (ADORNO, 1995, p.172).
A questão da autoridade tem seu papel, segundo o autor, a autoridade
torna-se indispensável no desenvolvimento da emancipação, no entanto, “[...]
possibilitar o mal uso de glorificar e conservar esta etapa [da autoridade], e
quando isso ocorre, os resultados não serão apenas mutilações psicológicas, mas
justamente aqueles fenômenos do estado de menoridade, no sentido da idiotia
sintética que hoje constatamos em todos os cantos e paragens.” (ADORNO,
1995, p.177).
Adorno adota concepções da psicanálise no desenvolvimento de sua
perspectiva, especialmente quando contrapõe a questão da autoridade com a
figura paterna, internalizada pelo sujeito e a forma como ele lida com essa relação
de autoridade.
Para Adorno (1995) a questão da emancipação está vinculada a uma
questão de educação para a contradição e resistência, assim,
[...] diria que a figura em que a emancipação se concretiza hoje em dia, e que não pode
ser pressuposta sem mais nem menos, uma vez que ainda precisa ser elaborada em todos,
mas realmente em todos os planos de nossa vida, e que, portanto, a única concretização
efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção
orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição
e para a resistência. (p. 183).
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O despertar de uma consciência, segundo Adorno (1995) consiste em
um dos meios para a emancipação. Despertar nas pessoas a consciência de que
estão sendo enganadas “[...] poderia resultar dos termos de uma crítica imanente
[...]” (p. 183).
A educação emancipadora, segundo compreende Adorno, “[...] tem
sentido unicamente como educação dirigida à auto-reflexão crítica.” (1995, p.
121). Dessa forma, a educação crítica e questionadora, deve levar à emancipação.
Uma educação que não mais tolere atrocidades como as cometidas nos campos
de concentração.
No entanto, quando Adorno questiona a concepção de esclarecimento
em pleno século XX, considera o caráter dialético da formação, uma vez que os
pressupostos para a emancipação e formação do sujeito, fundamentados na razão,
estão mais voltados a atender interesses que não são necessariamente da cultura
do espírito ou de sua práxis. Adorno remete a uma organização de mundo e
sociedade que consiste efetivamente em [...] enormes dificuldades que se opõem
à emancipação [...]” (ADORNO, 1995, p. 181).
Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985) criticam
substancialmente aspectos negativos que surgiram a partir do Iluminismo,
dentre eles, a “razão instrumental”, que é a utilização da razão a serviço de certos
interesses (geralmente capitalistas), a civilização técnica” em favor do sistema
capitalista e de suas necessidades e a “indústria cultural” que, trazendo em suas
bases a ideologia dominante, utiliza-se dos mecanismos do mundo industrial para
impor sua regras, determinar, de maneira arbitrária a utilização e o consumo de
seus produtos, mesmo que sob o pretexto de uma cultura emancipadora. Para os
autores, a “indústria cultural” permeia uma “falsa” relação entre os homens e a
natureza pautada em pressupostos ideológicos que constituem uma certa negação
aos princípios iluministas. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Como crítico de sua sociedade, do modelo de formação humana,
Adorno (1996) também e em xeque a questão da formação cultural, mais
precisamente com o que evidencia como “teoria da semicultura” (ADORNO,
1996). “Os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar
por toda parte, mesmo nos estratos das pessoas cultas, não esgotam com as
insuficiências do sistema e dos métodos da educação, sob a crítica de sucessivas
gerações”. (p. 388).
Compreender o que Adorno denomina como crise da formação cultural
perpassa não apenas por investigações no âmbito da Pedagogia, mas da compreensão
de fatores sociais que a determinam ou favorecem. Implica ir além, consiste em
perceber as transformações que o conceito de formação cultural assume, ao longo
das emergências sociais e políticas, implica também em compreender a gênese
do problema que pode estar relacionado com o próprio conceito de formação
cultural sedimentado culturalmente. “A formação cultural agora se converte em
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semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua
gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede.” (p. 389).
Nesse sentido, Adorno (1996) considera que “[...] apesar de toda a
ilustração e de toda informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda) a
semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual” [...] (p. 389).
Para Adorno, “Os dominantes monopolizaram a formação cultural
numa sociedade formativa vazia. A desumanização implantada pelo processo
capitalista de produção negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a
formação e, acima de tudo, o ócio.” (p. 393).
A semiformação cultural tão impregnada em nossa sociedade tem
pouco a pouco domesticado o homem e está a serviço de certas urgências
e emergências da sociedade capitalista que investe nessa chamada indústria
cultural, massificadora, acrítica e ao mesmo tempo deformadora. É nesse sentido
que pensar a semiformação é pensar também nos processo de desumanização, de
subtração da sensibilidade e subjetividade.
Por essa semiformação é que se constitui o sujeito modelado e ao
mesmo tempo deformado, incapaz de, na tentativa de vivenciar uma condição de
esclarecimento, vencer seu estado de menoridade e transcender para um estado de
autonomia, reflexão e racionalidade.
Não obstante, pensar na semiformação e na formação de professores é
ao mesmo tempo contraditório e discrepante, quando se gostaria de pensar em
profissionais bem formados, emancipados, autônomos, capazes de conduzir seus
alunos no caminho do esclarecimento e da superação de seu estado de menoridade.
CONSIDERAÇÕES
Pensar a relação entre esclarecimento, emancipação, formação e
semiformação com a formação de professores nos dias atuais é, no mínimo, uma
tarefa das mais difíceis. Tomando-se por referência que essas questões vêm sendo
discutidas a mais de dois séculos e até hoje continuam sem resposta, leva-nos a
refletir sobre o que realmente a nossa sociedade compreende por emancipação.
Será que na atualidade o conceito de emancipação, segundo os princípios da
filosofia de Kant e Adorno é levado em conta quando se propõe um modelo de
educação e um modelo de formação de professores?
Embora Kant e Adorno tenham construídos seus conceitos em
momentos históricos bastante diferentes, considero que as suas teoria se aproximam
e dialogam substancialmente, embora cada autor preserve sua especificidade e
analise a relação entre educação e emancipação por perspectivas diferentes e com
objetivos tamm diferentes.
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Tanto Kant quanto Adorno compreendem que a chave para se alcançar
o esclarecimento é a saída do homem de seu estado de menoridade, e para
isso
necessita de coragem, de vencer o medo e a submissão e partir em busca de
autonomia, agindo a partir do uso de sua própria razão.
Assim, pensar a emancipação nas perspectivas kantiana e adorniana
demanda compreender o papel fundamental da educação, como formadora
de sujeitos esclarecidos e autônomos, que sejam capazes de fazer uso de sua
racionalidade.
Dessa forma, ouso mencionar que o modelo de formação de professores
atualmente não contempla esse ideal de esclarecimento e emancipação.
Infelizmente, a formação que se tem nos dias de hoje se converteu em semiformação
e está subordinada às demandas da sociedade da informação, da rápida formação
e
da -formação.
O que se pode perceber é que o discurso da emancipação e da formação
está praticamente vazio e geralmente correspondem a apropriações superficiais de
um modelo de formação, que antes de mais nada, é resultado dessa semiformação
produzida na sociedade atual. A educação para a emancipação e para a formação
humana está muito distante da realidade educacional praticada, especialmente
no Brasil. A maioria dos professores formados, desconhece sequer o que
realmente constitui o conceito de emancipação, de formação, de autonomia e
de racionalidade. Vivendo sob as regras da indústria cultural e de semiformação
produzida por ela, contentam-se apenas em saber utilizar as novas e modernas
metodologias a serviço do ensino, a aplicação e utilização de recursos, as
tecnologias, os programas e todo o aparato de recursos didáticos ou educacionais
à disposição.
A partir dessas reflexões, podemos pensar que o que mais necessitamos na
atualidade é transformar o nosso modelo de educação que priorize a emancipação
dos sujeitos, desde a infância até a fase adulta. Uma educação emancipadora que
leve os professores a agirem com responsabilidade e consciência, capazes de levar
os seus alunos à busca da autonomia, do espírito crítico e do uso da razão. Que
sejam formados, no sentido pleno do seu termo.
REFERÊNCIAS
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Educação e emancipação
. São Paulo: Paz e Terra, 1995
ADORNO, T.
Dialética do esclarecimento
: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. 1985
GELAMO, R. P.
O ensino da filosofia no limiar da contemporaneidade:
o que faz o filósofo
quando seu ofício é ser professor de Filosofia? Marília. Tese (Doutorado em Educação) UNESP
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências
FFC Programa de Pós-Graduação em Educação, Marília, 2009.
SALES, G. G. P.
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KANT, I. Resposta à pergunta: que é esclarecimento (Auflärung)? In:
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PAGNI, P. A. Crítica, Aufklärung e educação: considerações a partir de Foucault e Adorno. In:
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Submetido em: 14/02/2018
Aprovado em: 25/02/2018