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SOBREVIVÊNCIAS E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO ESPAÇO: AVANÇOS ,
AMBIGUIDADES E PERSPECTIVAS
S
URVIVAL AND
G
ENDER
V
IOLENCE IN
S
PACE
:
ADVANCES
,
AMBIGUITIES
AND PERSPECTIVES
Lidia M V POSSAS
1
1.
RESUMO: A pesquisa emergiu no contexto das reflexões comemorativas dos 40 anos/ UNESP
(1976-2016) e assumiu como objeto de análise (re) tomar a trajetória histórica da universidade,
avaliar as “agencias”, as demandas estudantis existentes em uma perspectiva de gênero. Colocando-
se como parceira das metas assumidas, a investigação situa-se na urgência de garantir efetivamente
a inclusão social, denero e racial na vida acadêmica diante dos inúmeros enfrentamentos e os
conflitos que se fazem presentes no vivido dos campi universitários. A proposta parte de um olhar
epistemológico de modo a garantir uma revisão das imagens e representações que temos de nossa
realidade acadêmica no contexto latino americana. Não se trata de um estudo como denúncia, mas
de análise das praticas sociais e da violência de nero naturalizadas, em uma “cultura do estupro”
vivenciadas no ambiente universitário UNESP. Inserido no Tempo Presente e na perspectiva de
captar oralidades através das distintas narrativas e depoimentos de estudantes, consideradas(os)
vítimas/sobreviventes decorrente desse tipo de violência incluindo a análises dos comportamentos e
valores observados nas atividades estudantis como os trotes ( proibidos na UNESP, porém mantidos
com outras significações e práticas ), as festas e os relacionamentos “ relâmpagos”. Partimos de questões,
como: Por que persiste essa espécie de violência seja física ou psicológica e quais as razões em um
ambiente acadêmico e com uma população de formação superior? Que alternativas são possíveis de
observar? Como enfrentar a vulnerabilidade frente a frequente retaliação e a permanência de assédio
e até de agressões? Como a UNESP tem convivido e enfrentado as tensões e os conflitos de relação
denero, nesses 40 anos de uma trajetória?
P
ALAVRAS
C
HAVE
:
Gênero, Violência, Sobrevivência e Espaço Acadêmico
ABSTRACT. The present research project / CNPq emerged in the context of the commemorative
reflections of the 40 years / UNESP (1976-2016) and assumed as an object of
analysis (re) taking
the historical trajectory of the university, evaluating the “agencies”, the student demands existing in
a gender perspective. As a partner of the goals adopted, the research is based on the urgency of
effectively guaranteeing social, gender and racial inclusion in academic life in
the face of the
numerous confrontations and conflicts that are present in the life of university
campuses. The
proposal starts from an epistemological perspective in order to guarantee a review
of the images
and representations that we have of our academic reality in the Latin American
1 Livre-Docente em Historia da América latina, Cultura e nero, junto ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais Linha 2: Identidade, Cultura e Memoria e Coorda. Laboratório Interdisciplinar de Estudos
de Gênero/LIEG UNESP, campus de Marília www.culturaegenero.com.br
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2017.v3.n1.08.p97
98
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POSSAS, L. M. V.
context. It is not a study, but an analysis of social practices and gender - based violence in the “rape
culture” experienced in the university environment - UNESP. Inserted in Present Time and in
the perspective of capturing oralities through the different narratives and testimonies of students,
considered the victims / survivors resulting from this type of violence including the analysis of
the behaviors and values observed in the student activities as the trot (prohibited in UNESP but
maintained with other meanings and practices), the parties and the “lightning” relationships. We
start with questions such as: Why does this kind of physical or psychological violence persist and
what are the reasons in an academic environment with a population of higher education? Which
alternatives are possible to observe? How to deal with vulnerability to frequent retaliation and the
persistence of harassment and even aggression? How has UNESP coexisted and faced the tensions
and conflicts of gender relations in these 40 years of its trajectory?
K
EY
W
ORDS
:
Gender, Violence, Survival and Academic Space
2.
QUALIFICANDO A PROBLETICA;
O Projeto emerge do contexto das atividades de comemoração dos 40
anos/ UNESP _ Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1976-
2016)
2
que aproveita a data para (re) tomar a sua trajetória histórica, avaliar as
“agencias”
3
, as demandas existentes e a sua participação acadêmica no pais e
internacional.
Uma das metas que esta sendo debatida situa-se na urgência de garantir
efetivamente a inclusão social, de gênero e racial na vida acadêmica diante dos
inúmeros enfrentamentos e os conflitos que se fazem presentes no vivido dos
campi universitários. É evidente que uma gama de problemáticas sócio culturais,
econômicas e politicas da sociedade brasileira e do país foram transportadas para
o seu cotidiano criando outras exigências inclusive curriculares, conceituais e
explicativas. Diante das novas demandas, das tensões e conflitos gerados passei a
observar a necessidade de debruçar-me sobre essa realidade o espaço acadêmico
- como um campo de estudo, o que me exige rever as ferramentas existentes
realizando a critica necessária diante da produção do conhecimento cientifica que,
dado as realidades complexas e distintas vem debatendo uma maior autonomia
intelectual, localizada, hibrida que possibilitam introduzir novas perspectiva
analíticas, as categorias dissonantes libertando-a dos modelos e paradigmas
explicativos dominantes.
À exemplo das teóricas feministas contemporâneas em sua revisão
conceitual, a partir de um “sul”, que é mais que o geográfico, tem-se realizado
a desconstrução do olhar do ocidente hegemônico e das tendências monolíticas
2
A UNESP é distribuída do litoral ao interior do Estado de São Paulo. Possui a caraterística de ser multicampus
atuando em 24 cidades paulistas. Conta com 134 curso de Graduação ( 37.388 estudantes ), 13.200 cursos
de Pós Graduação ( 13.2006 estudantes). Atua com 3.880 docentes titulados e mais de 7 mil funcionários
distribuídos em suas 34 unidades . Jornal Estado de São Paulo de 30/01/2016.
3
Dentre as atividades propostas, salientando-se o trabalho do CEDEM /Centro de Memoria, participo de uma
Mesa Redonda intitulada Mulheres Intelectuais na UNESP, no dia 17/08 e, São Paulo, Reitoria .
Sobrevivências e Violência de Gênero no Espaço
Dossiê
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emanadas pelo “norte” (FRASER, 2007)
4
o que me aproximou da construção de
tradições acadêmicas feministas contra hegemônicas de percepção do mundo, da
atuação das mulheres e das relações de gênero em contraponto com as propostas
(monolíticas) ocidentais (MOHANTY, 2010, p. 75).
Portanto a presente investigação tem como ponto de partida uma revisão
do olhar epistemológico presente na prodão cientifica latino americana, de modo
a garantir que uma revisão das imagens e representões que temos de nossa realidade
latino americana, inclusive acadêmica, me possibilite sair da direcionalidade
de relações de poder convencionais produzidas pelas teorias existentes. Um dos
exemplos dessa postura intelectual está no conceito “do relativo subdesenvolvimento
do Terceiro Mundo” (que é nada menos do que injustificadamente o hibrido processo
de desenvolvimento com um caminho em separado tomado pelo Ocidente em seu
desenvolvimento do capitalismo”). Esse pensamento vem sendo refletido inclusive
sobre as mulheres terceiro mundistas, como um grupo ou categoria definida a
priori , que reforça estereótipos e as exclui:
...as religiosas (leia-se ‘não progressista’), orientadas para a família (leia-se ‘tradicional’),
menores legais (leia-se ‘elas-são ainda-não-conscientes-de-seus-direitos’), analfabetas
(leia-se ‘ignorantes’), domésticas (leia-se ‘atrasadas’) e, algumas vezes, revolucionárias ( ler
‘o seu país-está-em-um-estado-de-guerra-onde-- que-lutar!’). “Isso é como a ‘diferença
de terceiro mundo’ é produzida” (MOHANTY, 1984, p. 352)
A proposta é de caminhar na contra mão dessa perspectiva e observar os
conflitos existentes nas relações de gênero que o muitas vezes sutis, de varias
ordens e nuances. No espaço universitário, vivenciamos nas relações cotidianas
praticas essencialmente misóginas, conservadoras, elitistas contraditórias que
acabam sendo excludentes e não condizem com os discursos e a retorica de uma
autonomia endógena, um espaço de pessoas “esclarecidas”. As transformações do
mundo contemporâneo, os avanços políticos e sociais obtidos por aqueles que
durante muito tempo foram considerados os silenciados, agora, são sujeitos de
direito e de representatividade. As minorias
5
alçaram conquistas inéditas, embora
ainda enfrentem situações onde são consideradas como diferentes e, portanto
sem a devida legitimidade pelos saberes dominantes.
Situando o lugar do discurso da pesquisa e da pesquisadora, pretendo
aproximar-me dessas complexidades e contradições com um estudo abordando
4
Estaria me aproximando de uma abordagem que se faz presente na academia , desde os anos 70, sendo de-
nominado de estudos pós coloniais na medida em que revê as especificidades das sociedades , das relações de
poder partir do lugar dos sujeitos, sem intermediações frente ao processo de globalização e da construção do
capitalismo pelo Ocidente. BALESTRINI, Luciana, 2013.
5
As minorias sociais são as coletividades que sofrem processos de estigmatização e discriminação, resultando em
diversas formas de desigualdade ou exclusão sociais,, apesar de constituírem a maioria numérica da população.
Nesse sentido incluem além das mulheres, os negros, indígenas, imigrantes, homossexuais, trabalhadores do sexo,
idosos, moradores de vilas (ou favelas), portadores de deficiências, obesos, pessoas com certas doenças,
moradores de rua, ex-presidiários.
POSSAS, L. M. V.
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as praticas sociais e a violência de gênero
6
vivenciadas no ambiente universitário
UNESP analisando, os conflitos gerados pela presença de comportamentos
sexistas, misóginos e naturalizados da cultura do estupro”
7
. As feministas norte
americanas pós-coloniais vem defendendo vários movimentos na perspectiva do
dismantle rape culture (GILMORE, 2011)
8
.
Em minha experiência docente como unespiana (1995-2015) tive a
oportunidade de ouvir falas de estudantes e as razões do(s) silêncio(s) que de
certa maneira “imobilizavam” aquelas que foram vitimas de violência, sendo
que o medo e a exposição publica levaram algumas delas a opção de abandonar
a
vida universitária. Nosso empenho é adentrar com mais profundidade nas
distintas narrativas e depoimentos das vítimas/sobreviventes da violência, com
atenção aos comportamentos gerados nas relações de gênero e valores observados
nas atividades estudantis como os trotes
9
(Proibição do Trote na UNESP), porém
mantidos com outras significações e práticas, as festas e os relacionamentos
relâmpagos” ( o ato de ficar com...). Por que persiste essa espécie de violência
seja física ou psicológica e quais as razões em um ambiente acadêmico e com
uma população de formação superior? Que alternativas são possíveis de observar?
Como enfrentam a vulnerabilidade frente a frequente retaliação e a permanência
de assédio e até de agressões? Como a UNESP tem convivido e enfrentado as
tensões e os conflitos de relação de gênero, nesses 40 anos de uma trajetória?
A concretude da questão problematizadora da proposta se coloca em
um levantamento inicial de noticias em distintos sites e revistas online que
divulgavam casos:
Como as universidades brasileiras abafam os casos de
6
Nessa proposta, constitui-se de um campo teórico-metodológico que se fundamenta nos estudos da opressão
e dos conflitos que marcam a vida das mulheres de classes, raças, religiões, culturas diferentes e para além de
uma visão binária e reducionista entre os sexos, em consonância os movimentos feministas pós coloniais
que levam em consideração as dimensões micropolíticas, de subjetividades e de lutas específicas, quanto aos
contextos macropolíticos dos sistemas políticos e econômicos globais sem descuidar de análises particulares,
singulares. MATOS, M., 2010.
7
A expressão cultura do estupro é utilizada desde anos 70, para indicar a existência de um ambiente onde esse
tipo de crime, de violência em relação à mulher torna-se naturalizado, justificado pela presença de uma cultura
( valores e normas) que confirma a desigualdade social existente entre homens e mulheres, sendo estas vistas
como indivíduos inferiores e, muitas vezes, como objeto de desejo e de propriedade do homem -- o que autoriza,
banaliza ou alimenta diversos tipos de violência física e psicológica, entre as quais o estupro. “Ela provocou”, “ela
estava de saia curta”, “ela não deveria sair sozinha”, “ela não deveria estar na rua naquela hora”, “ela não deveria
ter bebido” ou “ela é uma mulher fácil” -- quando surge esse tipo de comentário que coloca em dúvida a denún-
cia da tima, estamos diante de um traço da famigerada cultura do estupro”. Cultura do estupro: Você sabe de
que se trata. Carolina Cunha em 6/06/2016 . http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/
discussao-o-brasil-vive-em-uma-cultura-do-estupro. Acesso em julho de 2016
8
GILMORE, Stephanie. On The Issues Magazine , Wednesday, 09 February 2011. http://truth-out.org/archi-
ve/component/k2/item/94414:disappearing-the-word-rape. Acesso em 2/07/2016
9 Resolução UNESP n. 86 de 4/11/99 que dispõe sobre a proibição de trote, de modo que a UNESP deva se
engajar nos movimentos para a redução de violência e do abuso pessoal nos meio sociais”
Sobrevivências e Violência de Gênero no Espaço
Dossiê
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assédio sexual
10
; Alunas da Rural relatam casos de estupro na universidade
11
;
O que está por trás da violência dentro das universidades?
12
. Fórum Fale sem
Medo: Violência contra mulheres no ambiente universitário.
13
Desde 2014, o documentário The Hutting Ground
14
chamou a atenção
do LIEG - Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero/ UNESP de
Marilia ao colocar em evidencia os casos de estupro nas principais universidades
americanas. As relações de gênero e de poder praticadas pela conhecidas
“fraternidades” (clubes esportivos e preferencialmente masculino) tinham um
caráter violento e machista . E o mais relevante foi o descaso frente às tentativas de
denuncia das vitimas ( geralmente moças) pelas autoridades locais e instituições de
ensino. Recentemente para enfrentar essa situação as estudantes (UNESP, campus
de Bauru e Botucatu) organizaram os “coletivos”
15
, grupos que se organizam para
dar visibilidade aos relatos e as experiências, algumas mais traumáticas vividas
pelos jovens e que ganham repercussão na imprensa e em vários campi, com a
adesão e ampliação de uma rede e contatos. Conforme nos sugeriu MELUCCI
(1999) são aquelas experiências do cotidiano, a relação e interlocução estabelecida
entre os outros grupos que darão a existência dos coletivos a relevância capaz de
enfrentar contexto em que se manifesta.
É evidente que reconheço as especificidades da realidade e a estrutura
das universidades situadas ao Norte, distintas de nossas universidades no
hemisfério Sul/Brasil. No entanto, nos últimos anos do sec. XXI, as denúncias
de estudantes brasileiras, em vários estados da federação, ganharam força
10
Revista
Galileu
-
http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2016/02/rompendo-o-silencio-vitimas-
-de-violencia-nas-universidades-brasileiras-contam-suas-experiencias.html. Acesso 3/2016
11
Ver http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-04/alunas-da-rural-relatam-casos-de-estupro-na-universi-
dade.html. Acesso 3/2016
12
A revista Veja com divulgou uma matéria com vários depoimentos . Uma estudante perante a Assembleia
Legislativa/ SP denunciou que tinha sido estuprada em 2011 e que, na ocasião, procurou a direção do curso.
Em resposta, membros da diretoria teriam tentado convencê-la a não denunciar o crime .
http://veja.abril.com.br/educacao/o-que-esta-por-tras-da-violencia-dentro-das-universidades/ Acesso em mar-
ço/2015
- http://veja.abril.com.br/educacao/o-que-esta-por-tras-da-violencia-dentro-das-universidades. Acesso
13
O Instituto Avon, contando com a parceria do Instituto Patrícia Galvão, Ministério Público de São Paulo,
Defensoria Pública de o Paulo e Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, promoveu
a
terceira edição do FÓRUM FALE SEM MEDO. São Paulo, 3 de dezembro de 2015.
http://www.compromissoeatitude.org.br/instituto-avon-promove-forum-fale-sem-medo-violencia-contra-a-
-mulher-no-ambiente-universitario-sao-paulo-03122015/
Acesso janeiro/2016.
14
Esse documentário tornou-se referência de estudo e, principalmente de denuncia frente os casos de abusos e
violência sexual nos campos e fraternidades norte americanas. Ver critica ao filme no Plano critico. http://www.
planocritico.com/critica-the-hunting-ground/. Acesso março de 2016.
15
São vários os coletivos que adquirem identidades próprias em cada campus. Os grupos de jovens estudantes
veteranos e ingressantes nas universidades se reúnem para chamar a atenção para problemas ainda não reco-
nhecidos nas agendas prioritárias, como o de dar visibilidade à luta das mulheres, dos homossexuais . Cria-se
uma empatia que rola dentro dos coletivos
faz com que cada participante se sinta amparada e empoderada.
http://capricho.abril.com.br/vida-real/tudo-voce-precisa-saber-coletivos-feministas-942780.shtml
. Acesso em
abril de 2016
POSSAS, L. M. V.
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e significado com a organização de resistências e o apoio de procuradoras e
advogadas das vitimas.
Um levantamento “inédito” do Instituto Avon ao Data Popular foi
realizado em cinco regiões do Brasil, sendo ouvidos 1,8 mil estudantes e chegou-
se a seguinte afirmação: “ Quase 70% das mulheres já sofreram violência em
universidades”
16
Foi justamente diante dos depoimentos de varias estudantes brasileiras,
em momentos diferentes que, como historiadora e feminista chamou a atenção
para o “fato histórico”. Para mim o fato quando sugere a presença de muitas
memórias, muitos testemunhos. Portanto, há provas/documentais que alguma
coisa aconteceu e vem se mantendo e que possui uma memória vivida, com
testemunhos oculares. Porém poderá ficar hibernando nos registros escritos,
iconogficos ou orais se olhares sensíveis aos ruídos e, ao próprio oficio não
enfrentarem a tarefa de criar o fato, investigando.( Ricoeur, 2007, p. 189).
O fato não está na simples narração. É sempre construído, a partir de
um lugar, por procedimento documental, epistemológico e proposicional visando
a qualificação veritativa da prova documental e não será encontrado nos níveis da
explicação, segundo Ricoeur (2007).
Ele se distingue sensivelmente do “acontecimento”. Novamente
a referência à Ricoeur ( 2007) quando nos lembra que a recuperação do
acontecimento é sempre bem vindo , pois ele é justamente sobre a coisa que se
fala, e principalmente a propósito de que”( POSSAS, 2014).
Na coordenação do LIEG/UNESP, campus de Marília essa tarefa de
pesquisa, investigação e construção histórica se colocam , pois um tema
recorrente e o mas importante: tem uma historia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Situações de violência com amplitudes e feitos dramáticos tem sido
divulgadas no âmbito da UNESP e vem se tornando cada vez mais visíveis,
principalmente devido a divulgação das mídias e das redes de enfrentamento. No
entanto a pergunta permanece : é possível contrapor o discurso naturalizado e
vigente das hierarquias de gênero?
16
A reportagem que veiculou o resultado da pesquisa dizia ainda mais: “violência contra as mulheres ainda não
exorcizou o fantasma da desigualdade de gênero”.
h.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/12/quase-70-das-mulheres-ja-sofreram-violencia-em-universida-
des-mostra-pesquisa-4921846.html . Acesso em janeiro/2016.
O III Fórum
Fale Sem Medo
realizado em São Paulo, pelo
Instituto
Avon
-
dezembro/2015 evidenciou
um panorama critico e de violências com as narrativas das jovens presentes. Contou com a participação de
varias autoridades, promotoras, feministas e movimentos de direitos humanos. Ver https://www.youtube.
com/user/falesemmedo
Sobrevivências e Violência de Gênero no Espaço
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Os ativismos dos “coletivos”
17
emergem com medidas e alternativas
para enfrentar e todo tipo de exclusão de minorias e estereótipos de desigualdade.
A Universidade e comunidade acadêmica estão sensíveis aos conflitos e tensões
que se colocam em nosso cotidiano.
Porem ao presente momento sentimos que a urgência de rever o
colonialismo jurídico presente em nossas instituições e que recentemente vem sido
denunciado pelas tendências do feminismo acadêmico e contemporâneo frente aos
estudos pós-coloniais (ADELMAN, 2009; PISCITELLI, 2002), principalmente
as
narrativas femininas de subalternização (BIDASSECA, 2011)
18
.
A nossa proposta é atentar para os sujeitos racializados, sexualizados
e
colonizados e os espaços desses sujeitos em diferentes discursos. É evidente que
uma
historicidade a ser buscada e analisada. Situações de agressões, estupro não
nasceram de uma tabula rasa, mas evidenciam uma longa permanência de
práticas de abuso, de violência de gênero, como do descaso e, principalmente a
impunidade dos agressores, mesmo com a Lei Maria da Penha(2006) que tornou
crime todo ato de violência contra as mulheres.
Superamos os anos 50 , onde o crime sexual era conhecido por
“curra”
19
, quando praticado por mais de um agressor,? Esse topo de noticia eram
populares dos jornais do Rio de Janeiro
20
, que exploravam aqueles casos com
manchetes sensacionalistas.
Sendo carioca e estudante do curso ginasial na época, vivenciei um
dos casos emblemáticos de minha juventude: o assassinato de Aída Curi
21
,
17
Identificamos nos campus da UNESP ( Bauru, Botucatu e Marília) os seguintes coletivos: Abre Alas ( criado
em 2014; Coletivo Prisma, espaço para a população LGBT; Coletivo Negro KIMPA “ todos os negros e negras,
não brancas/branco”; FEB PRIDE , luta em prol da causa LGBT na Engenharia- Bauru) ; Genis ( em 2013
em Botucatu)
18
BIDASSECA, Karina “Mujeres blancas buscando salvar a mujeres color café”: desigualdad, colonialismo jurí-
dico y feminismo postcolonial. Andamios. Revista de Investigación Social, vol. 8, núm. 17, sep-dic., 2011, pp.
61-89. Nesse artigo autora investe na teoria das vozes . Ressalta um aspecto que continuos intentos de algunas
voces feministas de silenciar a las mujeres de color/no blancas o bien, de hablar por ellas.
19
S
egundo a interpretação de juristas
:
“A questão mais complicada e diz respeito à situação da ‘curra’, na qual
dois (ou mais) agentes revezam-se na prática da conjunção carnal ou de outro ato libidinoso contra a mesma
vítima. Exemplificadamente, enquanto um homem segura a mulher o outro com ela mantém conjunção car-
nal, e vice-versa. Nesse caso, cada um dos sujeitos deve ser responsabilizado por dois crimes de estupro, pois
são
autores diretos das penetrações próprias e coautores das penetrações alheias. http://leonardocastro2.jus-
brasil.com.br/artigos/121943503/legislacao-comentada-artigo-213-do-cp-estupro. Acesso em mao de 2015
20
A Noite , jornal que agitava o cotidiano carioca (1911- 1957). Diário da Noite, que chegou a ter 200 mil
exemplares, de cater sensacionalista de crimes, roubos , assassinatos dos subúrbios do Rio de Janeiro. Perten-
cia a Assis Chautebriand ( 1929-1964).
21
Aida Curi , filha de família de sírios, foi assassinada em 14 de Julho de 1958 , por dois jovens ao ser
conduzida ao Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica, 3.888, no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro.
Um deles Ronaldo Guilherme de Souza Castro, natural do Espírito Santo, era estudando no Rio de Janeiro, de 19
anos, com pinta de galã de cinema francês o outro ssio Murilo Ferreira, menor de idade (17 anos), entea- do de
um coronel do DOPS e síndico do prédio. Tinha sido expulso do Ginásio do Alferes por comportamento
indigno.
Havia um terceiro . o porteiro do prédio que assistiu o ato de violação da vitima. O CRUZEIRO. O
POSSAS, L. M. V.
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estudante de 18 anos, secundarista que foi currada por dois jovens estudantes
em Copacabana.
O crime além de ter ampla repercussão nacional devido a sua natureza
“contra a honra e a moral”, deu visibilidade para mudanças culturais e de
comportamentos que estavam em curso.
Naquele aquele o caso abriu caminho para os que desejam o pior: “a
pena de morte, para que no Brasil a vida não continuasse ser um objeto tratado com
tanto desdém pelos Cácios e Ronaldos.” ( Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
15/03/1960)
Houve polarizações na sociedade e na mídia que levantaram questões
em outros patamares frente os casos de curra/ estupro: a vulnerabilidade de uma
jovem e sua autonomia no espaço público, bem como o consentimento, decisão
individual de aceitar o convite dos rapazes para ir ao apartamento.
A discussão da vulnerabilidade/consentimento nas relações entre os
sexos , permanece no século XXI e vem recebendo atenção por parte de uma
jurisprudência que regulamenta os
instrumentos jurídicos, superando a questão da
imoralidade ou como ofensa contra os valores da família, mas entendido como
violência” contra a pessoa ofendida e uma grave violação de direitos humanos (
LOWENKRON, 2015, p.228).
As praticas e as relações estudantis, de docentes e funcionários
vivenciadas no âmbito da Universidade, sem que ela enfrente de maneira mais
assertiva, tem um caráter de manutenção das oposições binárias e hierárquica do
masculino e feminino, de confronto das identidades múltiplas que no cotidiano
acabam por aprofundar as desigualdades provenientes de vários marcadores
sociais como de gênero, classe, de raça, de sexualidade, de confissão religiosa e
partidária.
Apesar de o projeto ter um “lugar”, a partir do qual se fala, pretende
envolver pesquisadoras(es) dos campi da UNESP e de outras UES, com as suas
respectivas equipes composta de alun@s de IC, doutorandas e mestrandas
investindo em uma perspectiva de interlocução e diálogos interdisciplinares
e interseccionais para entender as suas incidências sejam do coletivo como
individual.
O LIEG/ UNESP está em sintonia com os debates e teorias feministas
que se colocam no tempo presente e também sensível para as mudanças
epistemológicas com um olhar onde as comparações sócio históricas entre
pesquisadores/as de diferentes estados da federação e latino americanos em torno
da análise da violência de gênero ontem e hoje, seja possível.
júri oficializou a curra
. Publicado em 02 de Abril de 1960. Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/
ocruzeiro/02041960/020460_1.htm. Acesso em março 2015.
Sobrevivências e Violência de Gênero no Espaço
Dossiê
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Em outros tempos poderia ser assim! Porém a pergunta permanece:
aprendemos a lição?
R
EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Submetido em: 15/05/2017
Aprovado em: 28/08/2017