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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.3, n.1, p. 79-96, Jan./Jun., 2017
E
LA É AMAPÔ DE CARNE
,
OSSO E PALAVRAS
:
PERSONAGENS TRAVESTIS
NO ROMANCE CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
S
HE IS AMAPÔ OF FLESH
,
BONES AND WORDS
:
TRANSVESTITE CHARACTERS
IN THE CONTEMPORARY BRAZILIAN NOVEL
Luiz Henrique Moreira Soares
1
Rosiney Aparecida Lopes do Vale
2
RESUMO: Nas palavras de Candido (2006), a literatura é um espaço onde há a possibilidade de
expressar e problematizar as dinâmicas sociais. Longe da neutralidade discursiva, a literatura pode
agir tanto na confirmação de consensos, quanto produzir novos sentidos para a realidade, construir
rupturas. A produção literária contemporânea, embora se apresente difusa e homogênea, com
novas formas de construção narrativa e novos atores sociais, que configuram o centro e as margens,
encontra dificuldade na configuração dos sujeitos que fogem das normas de gênero. Sendo assim,
presente artigo propôs a mapear, investigar e analisar as configurações de violência e subalternidade
de personagens travestis no romance brasileiro contemporâneo (2000-2016). Percebeu-se que o
discurso literário, aliado ao discurso das mídias e outros meios culturais, atravessa os corpos das
personagens travestis, de forma a inserir-lhes uma história única, que não representa um todo
subjetivo e ambíguo, produto de nossa época. Para isso, o artigo apoiou-se nos estudos de Judith
Butler (2003), Don Kulick (2008), Regina Dalcastagnè (2012), Beatriz Resende (2008) e outros(as)
teóricos(as) que foram utilizados(as) no decorrer da pesquisa.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
:
romance contemporâneo brasileiro; personagens travestis; representação;
ABSTRACT: In the words of Candido (2006), literature is a space where there is the possibility of
expressing and problematizing social dynamics. Far from discursive neutrality, literature can act
both
in the confirmation of consensuses and in producing new meanings for reality, to construct
ruptures. Contemporary literary production, although diffuse and homogeneous, with new forms
1
Graduando em Letras/Inglês pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) Campus de
Jacarezinho. luizhsoares83@gmail.com
Reside na cidade Jacarezinho-PR, na rua: Padre Melo, 1175, apto: 33, Centro, Cep: 84600-000.
2
Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Unesp/Marília (2015),
mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Unesp/Assis (2005) e Graduada
em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp/Assis (2000), rosineyvale@uenp.
edu.br
Atualmente é professora e coordenadora do curso de Letras do Centro de Letras, Comunicação e Artes da
Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus de Jacarezinho. É integrante dorum Permanente das
Licenciaturas da UENP, integrante dos grupos de pesquisa: Leitura e Ensino da UENP/CJ; Tecnologias,
Culturas e Linguagens da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e Organizações e Democracia da UNESP
de Marília.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2017.v3.n1.07.p79
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SOARES, L.H. M.; VALE, R. A. L.
of narrative construction and new social actors, which configure the center and the margins, find
difficulties in the configuration of the subjects who escape gender norms. Thus, this article proposes
to map, investigate and analyze the configurations of violence and subalternity of transvestite
characters in the contemporary Brazilian novel (2000-2016). It was noticed that the literary
discourse, allied to the discourse of the media and other cultural means, crosses the bodies of the
transvestite characters, in order to insert them a single history, that does not represent a subjective
and ambiguous whole, product of our time. For this, the article was based on the studies of Judith
Butler (2003), Don Kulick (2008), Regina Dalcastag(2012), Beatriz Resende (2008) and other
theoreticians who were used in The research.
K
EYWORDS
:
contemporary Brazilian novel; Transvestite characters; representation;
I
NTRODUÇÃO
O medo aqui o faz parte do seu vil vocabulário
Ela é tão singular
Só se contenta com plurais
Ela não quer pau
Ela quer paz.
(Linn da Quebrada, in Mulher, 2017)
Em abril de 2017, a cantora, performer e bailarix, Linn da Quebrada,
lança o projeto blasFêmea, um experimento audiovisual e documental que promove
uma mistura das diversas manifestações artísticas e estabelece a possibilidade de
conceituação de uma arte não hegemônica no Brasil, dando voz e potência a
corpos que rompem com as “normas” de gênero. Exibido durante o Festival
Internacional de Arte de São Paulo (SP-Arte), o projeto de Linn também é uma
tentativa de estabelecer novas narrativas e representações acorpos engendrados
por estereótipos e estabelecer processos de resistência por meio da arte.
Em entrevista recente, concedida ao Estadão, Linn da Quebrada afirma
que “algumas vezes é preciso agir aterrorizando a norma e seus efeitos”. Ao usar seu
corpo como arma, colocando em xeque um sistema que trabalha na invisibilidade
e na negação de corpos que não importam, relegados à abjeção
3
. A produção
artística de Linn da Quebrada é atravessada pela questão do corpo e da construção
de uma “estéticao-estática”, da construção de uma existência, de uma realidade
e verdade próprias, na qual fundamenta-se o “direito de viver, brilhar e arrasar”
.
Ao
se apontar esteticamente, Linn da Quebrada estabelece relações de representação e
legitimação de identidade(s) dentro de um determinado espaço. Considera-se, nos
meandros do poder simbólico, que todo espaço social é um espaço em constante
disputa, seja no trabalho, na rua, na igreja, na música, na TV, no cinema, ou em
qualquer outro modo de produção artística e/ou de capital.
3
Judith Butler (2000), no ensaio intitulado Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”,conceitua
“abjeção” como sendo “aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente
povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário
para
que o domínio do sujeito seja circunscrito” (BUTLER, 2000, p.112).
Ela é amapô de carne, osso e palavras
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Aliteratura, nesse sentido, pode ser entendida como um espaço em
disputa na construção de identidades e vivências subjetivas, no qual se cria a
possibilidade de problematizar e expressar as dinâmicas sociais, indagar sobre
consensos e cristalizações. Como já apontado por Mikhail Bakhtin (1995), o
indivíduo é construído na e pela linguagem, interpelado por inúmeros sistemas
simbólicos pelos quais a identidade pode ser representada. Nesse sentido, a
linguagem, segundo Monique Witting (apud Butler, 2003, p.162), exerce o poder
de projetar feixes de realidade sobre o social, ao mesmo tempo em que carimba,
molda e violenta os corpos. É a partir das práticas linguísticas e de significação
que são produzidas as identidades e as diferenças. Assim, entende-se a linguagem
também como um conjunto de atos, repetidos ao longo do tempo, que produzem
efeitos de realidade que acabam sendo percebidos como naturais e essenciais
(BUTLER, 2003, p.168).
Devido ao seu aspecto (trans) formador, a literatura também pode atuar
sob uma linha tênue, que separa a manutenção do preconceito e da discriminação,
da desconstrução de imagens estereotipadas e negativas. O discurso literário é
também um discurso político. Não se pode separar a literatura do seu momento
histórico de produção e nem da cultura à qual está inteiramente ligada, uma vez
que ela adquire o poder de dialogar com o pensamento social e proporciona a
possibilidade do choque de ideias e perspectivas em meio às constantes disputas
espaços e representações.
Julga-se necessário, porém, no âmbito desse artigo, mapear e analisar os
espaços de violência e subalternidade em que as personagens travestis são
configuradas nos romances contemporâneos, publicados entre 2000 e 2016,
como forma de evidenciar essas obras e (re)pensar as diversas configurações dessas
personagens no texto.
A LITERATURA CONTEMPORÂNEA E OS ESPAÇOS DE CONTESTAÇÃO
Inicialmente, pensar a figura do autor é como pensar em alguém que,
nas palavras de Barthes (1999, p.33), exerce a posição daquele que “fala no
lugar do outro”, e, por estar socialmente situado, possui o poder de julgar
e
excluir, sem levar em consideração a subjetividade e as possibilidades de fala.
Como um grafo complexo das pegadas de uma prática (Barthes, 2004), a arte
literária entra no debate como um instrumento de construção de uma identidade
que é do outro, constituído pela linguagem, nos fios do lençol discursivo. Para
Compagnon (2014, p.36), “a literatura confirma um consenso, mas produz
também à dissensão, o novo, a ruptura. Segundo o modelo militar da vanguarda,
ela precede o movimento, esclarece o povo”. A literatura contemporânea
brasileira
4
, longe de ser apenas uma mera representação da realidade, incorpora
4
Conforme aponta Schollhammer (2009, p. 9-10), a literatura contemporânea o será necessariamente aquela
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novas vozes, um constante experimentalismo linguístico e formal, novos
modos de representação do tempo e do espaço, além da maior subjetividade
na construção de enredos e personagens, além de dialogar diretamente com os
problemas enfrentados na contemporaneidade. Segundo Dalcastagnè (2012,
p.7), “é difícil pensar a literatura brasileira contemporânea sem movimentar um
conjunto de problemas, que pode parecer apaziguado, mas que se revelam em
toda a sua extensão cada vez que algo sai de seu lugar”. Por tratar dos assuntos
de nosso tempo e por estar inteiramente ligada à sociedade da era globalizada, a
literatura contemporânea torna-se um campo fértil para o entendimento sobre as
relações e jogos de poder, exclusões, hierarquias e violências no Brasil atual.
Beatriz Resende (2008), em seu ensaio A literatura brasileira na era
da
multiplicidade, pontua que, nessa produção literária recente, o “centro” e a
“margem” aparecem desfigurados, apresentam “olhares oblíquos, transversos,
deslocados que terminam por enxergar melhor” (RESENDE, 2008, p.20). É
justamente na obliquidade que as novas formas de criação literária se agrupam: o
aspecto irônico e debochado, a temática do trágico, a violência das grandes cidades,
o consumismo desenfreado, o cotidiano privado e o processo de (re)construção
da memória individual e coletiva, traumatizada. Assim, novas abordagens nos
estudos literários, dando destaque às obras que convergem na desconstrução
de ideias cristalizadas pelo discurso heterossexista, vêm colocando em cheque
visões essencialistas
5
e propondo discussões amplas sobre representações de raça,
classe, gênero e sexualidade nas produções culturais. O fato é que a crítica literária
contemporânea encontra-se impossibilitada de definir características gerais na
produção literária do nosso tempo. Embora seja possível notar a presença da
multiplicidade, tanto em relação às formas de produção e disseminação, quanto
às vozes que circundam nos textos literários, a literatura brasileira contemporânea
é, ainda, um território a ser contestado
6
.
que representa a atualidade. Citando Barthes e Agamben, o autor afirma que “o verdadeiro contemporâneo não
é aquele que se identifica com seu tempo, ou que com ele se sintoniza plenamente. O contemporâneo é aquele
que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxer-lo. Por
não se identificar, por sentir-se em desconexão com o presente, cria um ângulo do qual é possível expressá-lo”.
Ao observar que a grande dificuldade do escritor contemporâneo é lidar com o atual e capturar o presente, o
crítico afirma ainda que a escrita contemporânea se por uma “ambição de eficiência” e “pelo desejo de chegar a
alcançar uma determinada realidade” (SCHOLLHAMMER, 2009, p.11).
5
Segundo Reis (1992, p.72), a própria noção de literatura é abarcada por linhas ideológicas e jogos de força.
Para o autor, “o conceito de literatura seria entendido como uma prática discursiva, entre outras, dentro da
ordem do discurso”. Em outras palavras: quem tem o poder de escrever, publicar e ser resenhado pela crítica
literária no Brasil?
6
Na pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), intitulada “Personagens
do romance brasileiro contemporâneo”, na qual analisou o perfil das personagens e autores em romances
contemporâneos publicados entre 1990 e 2004 pelas três maiores editoras brasileiras, observa-se uma mapa de
ausências no que diz respeito à personagens e autores de grupos marginalizados. Para a autora, o perigo da não-
representação e/ou representação negativa, está no fato de que a literatura nos exprime “não apenas pelo que nos
diz, mas também por aquilo sobre o qual cala. Os silêncios da narrativa brasileira contemporânea, quando s
conseguimos percebê-los, são reveladores do que de mais injusto e opressivo em nossa estrutura social.”
(DALCASTAGNÈ, 2005, p.67)
Ela é amapô de carne, osso e palavras
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Segundo Regina Dalcastagnè (2012, p.49), a personagem da narrativa
contemporânea “sabe seu devido lugar”. A teórica afirma que a divisão de
classes, raças e gênero é muito bem demarcada na literatura brasileira: grupos
marginalizados historicamente, como pobres, negros, mulheres, homossexuais e
corpos que fogem às normas de gênero, são relegados de ocupar em comparação
aos espaços destinados ao homem branco, heterossexual, católico e de classe
média. O que resta para esas personagens é o espaço da subalternidade, o espaço
dos presídios, o espaço da favela, o espaço da exclusão, o espaço da prostituição,
o espaço da rua, o espaço da cozinha e o espaço da servidão.
Algumas produções literárias, especialmente as que se inserem na
contemporaneidade, alteram a “silhueta do sujeito”, (des) montam o indivíduo
essencial posto como referência e construído sob um modelo dominante que não
favorece as subjetividades e perspectivas de outros sujeitos. Algumas produções
propõem um novo olhar e novas significações sobre o indivíduo contemporâneo,
de identidade fragmentada, “composto não de uma, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p.12). Citando
Bourdieu (2007), Fernandes e Schneider (2016), afirmam que
entre as chamadas minorias segregadas, nenhuma, talvez, tenha experimentado tanto o
rechaço cultural e a violência simbólica (BOURDIEU, 2007), como também a violência
física, quanto aquela formada por homens e mulheres que perturbaram as fronteiras
de gênero travestindo-se, no intuito de construir uma identidade outra ou de viver
uma subjetividade diferente da considerada “normal” nos termos binários que regem
o campo da sexualidade na maior parte das sociedades ocidentais. (FERNANDES;
SCHNEIDER, 2016, p.157)
Pode-se observar que grupos não-hegemônicos muitas vezes são
representados em situações negativas dentro do contexto social. Essas
representações os colocam em posições de marginalidade e subalternidade.
Não obstante, configura-se como escorregadio e complexo o campo no qual se
inserem os estudos sobre identidades no contemporâneo, por acreditar em um
processo de construção identitária formada ao longo do tempo, não congênita.
Neste contexto, busca-se, com opresente artigo, evidenciar as produções literárias,
propor a ressignificação dos espaços e das vivências representados e, também,
criticamente, analisar os discursos que fazem valer a abjeção de corpos que nada
“importam”.
ENTRE ESPAÇOS VAZIOS
A pesquisa tratou de investigar teses, dissertações, artigos científicos,
catálogos de editoras, textos em jornais e revistas a fim de encontrar e evidenciar
romances que apresentassem personagens travestis, tanto como protagonistas e/
ou personagens secundárias. No processo de mapeamento, alguns critérios foram
necessários para que fosse possível reconhecer determinada obra como importante
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ao trabalho: 1) romances escritos originalmente em português; 2) autor (a) de
nacionalidade brasileira; 3) publicação após os anos 2000; 4) romances que
apresentam em sua composição personagens travestis, como protagonistas ou
mesmo personagens secundárias. A escolha romance, em detrimento de contos ou
peças de teatro, se pela razão da amplitude e complexidade que as personagens
alcançam na construção narrativa, além de o texto apresentar estruturas não
convencionais e ser um gênero literário em constante mutação. Em um primeiro
momento, os dados coletados foram distribuídos em uma planilha, organizados,
de forma a obedecer aos itens: título da obra, autor (a), editora, personagens
(protagonistas e secundárias) e ano de publicação.
Na tabela abaixo, pode-se observar os dados coletados:
AUTOR
EDITORA
PERSONAGENS
TRAVESTIS
ANO DE
PUBLICAÇÃO
Marcelo Mirisola
Editora 34
“o zelador
travesti”
2002
Francisco
Salgueiro
Oficina do Livro
Não identificada
2003
Fernando Pessoa
Ferreira
Conex
-Sheila Beatriz
-Rose
2005
Luiz Alfredo
Garcia- Roza
Companhia das
Letras
-Valéria
2005
Antonio Carlos
Teltamanzy
7 Letras
Não identificada
2006
Reginaldo Prandi
Companhia das
Letras
Não identificada
2006
Elvira Vigna
Companhia das
Letras
-Shirley Marlone
-Mamãeoutrinha
2006
Marcelo Pedreira
Editora Nova
Fronteira
Letícia
2006
Álvaro Cardoso
Gomes
A Girafa
Não identificada
2007
Del Candeias
Dix Editorial
Paula
2007
Arlindo Gonçalves
Editora Horizonte
Vladimir
2008
Reinaldo Moraes
Objetiva
LollaBertoludzy
2008
Álvaro Cardoso
Gomes
Ateliê Editorial
Não identificada
2008
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Maria Adelaide
Amaral
Editora Globo
Cíntia
2008
JocaTerronReiners
Companhia das
Letras
Wilson
2010
Luiz Biajoni
Língua Geral
Madona
2010
Braz Chediak
Mirabolante
Não identificada
2010
Márcio Paschoal
Record
Odara
2011
Christian Petrizi
Editora Baraúna
Barbara Taylor
2011
Ricardo Carlaccio
Editora do Autor
TinkyWinky
2011
Shirley Queiroz
Clube de Autores
Andréia de Maio
2011
Rosalvo Leal
Biblioteca 24
horas
Fulô
2011
MJ Macedo
Gutenberg
Não identificada
2012
Angélica Freitas/
Odyr
Quadrinhos na
Cia
Minerva
2012
Reynaldo Araújo
Metanoia
Scarlett
2012
Marcos Soares
Metanoia
Não identificada
2012
Nelson Baskerville
Nversos
Gabriela
2012
Marcelino Freire
Record
Estrela
2013
R.W Gomes
Clube de Autores
Elma
2013
Tony Bellotto
Companhia das
Letras
“O sogro travesti”
2013
Carlos Henrique
Schroeder
Record
Copi
2014
Mônica Candiani
Metanoia
Isabel
2014
Marcos Soares
Metanoia
Marjorie
2014
Evandro
Fernandes da Silva
Editora In House
Lady Lucy
2015
SOARES, L.H. M.; VALE, R. A. L.
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Karen
Schumacher
Biblioteca 24
horas
Felicity
2015
R.R Silva
Clube de Autores
Não identificada
2015
Marcelo Mirisola
Editora 34
Baronesa
2016
Mateus Gonçalves
Biblioteca 24
horas
Mirian Machadão
2016
Marcelo Bossler
Clube de Autores
Não identificada
2016
É importante ressaltar, antes da interpretação dos dados, que essa
pesquisa não almejou investigar, criticar ou “policiar” o trabalho dos escritores.
Por outro lado, em meio ao mapa de ausências de personagens travestis na
literatura brasileira, é necessário evidenciar essas obras e analisá-las sob o viés da
ressignificação, questionar o está representado e propor novos sentidos e imagens,
que não sejam conservadores e que provoquem ainda mais a invisibilidade
desses sujeitos na sociedade. As perguntas que nortearam nossas reflexões foram:
que histórias são contadas sobre as travestis? Como elas são representadas nas
narrativas? O olhar dessas personagens é levado em consideração? Que tipo de
espaço é reservado para elas?
Destarte, discutir literatura também seria discutir sobre jogos simbólicos
de poder, jogos que acabam por demonstrar que o discurso literário não está isento
de neutralidade. Desse modo, indagar sobre a representação de personagens
travestis na literatura brasileira é pensar sobre a sociedade contemporânea, os
discursos que rondam os corpos e seus espaços sociais de (não) ocupação.
No processo de mapeamento e análise dos dados coletados, foram
encontradas 39 obras, publicadas entre 2002 e 2016. Pode ser possível constatar
a presença majoritária de autores homens, que, conforme aponta Dalcastagnè
(2012, p.148), também monopolizam os lugares de fala no interior das narrativas.
O fato é que o cânone literário brasileiro tende a refletir um caráter excludente
no que se refere aos quesitos de classe, raça e gênero. Então, muitas obras que
propuseram torcer o olhar sobre os esquemas de dominação e exclusão presentes
na sociedade, foram banidas e omitidas das historiografias literárias “tornando-se
pouco lidas, estudadas e criticadas, e permanecendo, inclusive pela temática, à
margem do cânone oficial”, como aponta Fernandes (2016, p. 53).
Designado como um “conjunto de autores literários reconhecidos
como mestres da tradição” (PERRONE-MOISÉS, 2003 p.61), o cânone literário
significa a exatidão de textos autorizados e modelares, que agem como lei e regra
no mundo. Na visão de Reis (1992, p.72), o cânone literário se edificou a partir de
Ela é amapô de carne, osso e palavras
Artigos/Articles
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saberes ocidentais, engendrado por questões de “valor” e “qualidade”indisputáveis,
que, ligadas ao conservadorismo, promovem exclusões e rechaços. Nesse sentido,
a literatura vem se apresentando como uma instituição social, reforçando
fronteiras culturais e barreiras e construindo espaços de privilégios no interior
das sociedades.
Essas exclusões são evidentes quando observamos o número de
personagens travestis presentes nos romances mapeados: foi possível encontrar
aproximadamente 50 personagens, dentre protagonistas e personagens secundárias.
As protagonistas somam 18 personagens, e as restantes são representadas como
“não identificadas”, seres sem nomeação e atuação no interior das narrativas. É
também pequena a presença de personagens travestis narradoras. Há registro
de apenas 4 personagens protagonistas que são, ao mesmo tempo, narradoras.
Em obras como O diário de Marjorie (2014), de Marcos Soares, Luís Antônio-
Gabriela (2012), de Nelson Baskerville, Deixei ele lá e vim (2006), de Elvira
Vigna, e Odara(2011), de rcio Paschoal, trazem construções narrativas com
teor memorialístico, que dão certa veracidade às palavras das personagens.Para
Dalcastagnè (2010),
O fundamental é perceber que não se trata apenas da possibilidade de falar que é
contemplada pelo preceito da liberdade de expressão, incorporado no ordenamento legal
de todos os países ocidentais , mas da possibilidade de “falar com autoridade”, isto é,
o reconhecimento social de que o discurso tem valor e, portanto, merece ser ouvido
(DALCASTAGNÈ, 2010, p.43)
É possível observar, contudo, que a possibilidade de “falar com
autoridade” é rechaçada a partir da ocupação de lugares desprestigiados. Nesse
sentido, a maioria das personagens travestis representadas na narrativa
contemporânea brasileira ocupa o espaço prostituição, da rua, da exclusão
social, da prisão e do entre-lugar. Embora os discursos conservadores definam
o espaço da prostituição de modo pejorativo e marginalizado, esse território
pode ser entendido como elemento de construção da pessoa travesti (PELÚCIO,
2005, p.221-222). É na convivência e (sobre)vivência nesse espaço que abre-se
a possibilidade das travestis incorporarem valores e noções de feminino. O que
deve ser evidenciado não é o julgamento dos espaços de representação. O que se
coloca em cheque, nesse artigo, é a capacidade da literatura em mistificar e criar
fronteiras entre esses espaços, construídas a partir de estereótipos e equívocos,
para o bem de narrativas com espaços “higienizados” e “comportados”.
Nas palavras de Maria Clara Araújo (2016), a vida de uma travesti
brasileira é construída a partir de ausências. Ausências que o múltiplas, mas que
sobressai a ausência do direito de viver:
(...) ouvi de uma travesti que o brasileiro parece acreditar que travestis não sangram. Ao
dizer isso, ela sintetizou, para mim, o que venho construindo por todo esse tempo que
tenho não só vivido enquanto uma travesti, como também estudado o que é ser travesti no
Brasil: somos vistas como sub-humanas aos olhos dos brasileiros. Nossas grimas
SOARES, L.H. M.; VALE, R. A. L.
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enquanto levamos facadas, nossos apelos enquanto somos carbonizadas, nossos gritos
enquanto estamos sendo espancadas nada disso os faz serem empáticos. Uma vez que
nossa vida, na visão de quem nos genocida, não importa. Ela não merece sua empatia.
(ARAÚJO, 2016)
Segundo pesquisa divulgada pelaTransgenderEurope (TGEU), rede
europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero, o
Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de
2008 e março de 2014, foram registradas mais de 604 mortes no país. Convém
lembrar também que, no Brasil, a expectativa de vida de travestis e transexuais
é de 35 anos, menos da metade da média nacional, que é de 75 anos. em
2016 foram registrados 127 casos de assassinatos, um a cada 3 dias. Um dos
últimos casos, fortemente divulgado pela mídia, é a história da travesti Dandara
dos Santos, que foi espancada e assassinada por um grupo de jovens em um bairro
da periferia de Fortaleza, no Ceará, no dia 15 de fevereiro, em plena luz do dia.
Logo depois, os vídeos das agressões sofridas por Dandara circularam e eram
compatilhados livremente pelas redes sociais.
Utilizo aqui, para explicitar a vulgarização da violência e a estruturação
da barbárie, um verso do poema “Eu existo”, escrito por Luan Bressanini e
publicado na Antologia Trans, obra que reúne textos de travestis, transexuais e
pessoas não-binárias: “Um passo no olho do furacão/em que a esperança é um
índice de 35 anos”. Os dados apresentados, de certa forma, refletem sobre a
realidade que as travestis brasileiras enfrentam historicamente
7
.
O que mais preocupa, de acordo com os dados levantados, é que a
literatura brasileira parece incorporar ou representar todo esse transfeminicídio.
Embora a tragicidade e o estranhamento sejam características comuns na literatura
contemporânea, como aponta Resende (2008), elesparecem ganhar destaque
principal quando analisamos os romances nos quais personagens travestis. É
possível observar nas pesquisas que, em 12 romances, as personagens travestis têm
final trágico. Em alguns textos, a configuração das travestis parece representar
um
tipo de arquétipo não questionável. Aproximadamente 80% das narrativas
mapeadas apresentam algum tipo de violência contra essas personagens, seja
violência física ou simbólica. No romance Desacelerada mecânica cotidiana(2008),
de Arlindo Gonçalves, por exemplo, a travesti Vladimir é espancada ao desembarcar
de uma estação de metrô com destino à zona leste de São Paulo:
Roberto coloca a cabeça de Vladimir no colo. Entrelaça os dedos no cabelo, sentindo
os calos.
Travesti filho da puta!
A voz amiga de antes transforma-se num urro grosseiro. O rapaz amável de pouco
7
No documentário Temporada de caça (1988), a cineasta Rita Moreira revela a presença do ódio e da violência
às minorias na sociedade e no imaginário brasileiro, frente a onda de crimes que ocorriam contra LGBTTs no
final da década de 80.
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cede lugar a um bárbaro de golpes violentos. Vladimir cai na entrada do metrô. Seu
corpo se contorce. Recebe uma monte de chutes.
Isso, seu filho da puta! Toma e aprende a ser homem!
A peruca é arrancada. As roupas rasgadas. Ao alerta sonoro do metrô, alguns
seguranças correm até a pista de entrada da estação.
(GONÇALVES, 2008, p.154)
O trecho acima evidencia como a dor e rejeição são palavras-chave na
construção dessas personagens. Os espaços reservados para as personagens travestis
parecem ser sempre os mesmos. Elas são representadas nas ruas, no universo da
prostituição, no submundo do crime e do consumo de drogas, no entre-lugar do
ser ou não ser, indignas de qualquer bem que as humanize.
Pode-se observar, contudo, a partir das obras mapeadas, que as travestis
podem apresentar 4 representações problemáticas na literatura: a travesti pode
aparecer nas narrativas como um corpo morto, como assassinas perigosas,
como seres angustiados que encontram na morte seu único destino, ou como
personagens não identificadas, que exercem o papel de figurantes na narrativa. Na
tabela abaixo, podem ser destacadas as 4 representações possíveis de personagens
travestis nos romances mapeados:
Representações de personagens travestis
Representadas como um corpo morto nas
narrativas
É encontrada comumente no início das narrativas
policiais, a personagem travesti configura-se como
mais um número na estatística, sua voz não é ouvida;
Representadas como personagens assassinas e
perigosas, usuárias de drogas.
É encontrada comumente em romances policiais. A
personagem é indiciada por assassinatos, roubo e são
tidas como personagens traiçoeiras e vingativas;
Representadas como personagens que encontram
a morte ao final das narrativas
A personagem encontra a morte ao final da narrativa,
geralmente pelo suicídio. A morte é representada
como um destino traçado ou redenção possível. A
morte das personagens também está ligada à AIDS e
à repressão policial.
Personagens não-identificadas
A personagem não tem voz, não tem representação e
nem nome. É um corpo que transita anonimamente
pelo mundo, parte figurante da história, não possui
fala e nem narrativas próprias.
A primeira representação diz respeito à personagem travesti como um
corpo morto, um cadáver sem nenhuma importância. É encontrada no início de
narrativas policiais, como por exemplo, nos romances Berenice Procura (2005), de
Luiz Alfredo Garcia Roza, A boneca platinada (2007), de Álvaro Cardoso Gomes
e Os demônios morrem duas vezes (2005), de Fernando Pessoa Ferreira, para citar
alguns. Em Os demônios morrem duas vezes, o leitor se depara com uma narrativa
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policial clássica: um investigador Omar Fonseca tenta solucionar assassinatos em
série na Vila Madalena. Tudo começa quando encontram o corpo de uma travesti,
no alto da Rua Girassol. O corpo teria sido jogado de um barranco e estava com
o rosto todo desfigurado:
No momento em que chegaram ao distrito, o delegado correu ao banheiro para se aliviar,
e foi Gilberto quem satisfez a curiosidade do investigador-chefe:
Vocês conseguiram identificar a mulher? perguntou Omar.
Mulher? Que mulher? Era um traveco. Foi torturado e espancado até a morte. O rosto
está desfigurado.
Como sabe que ele foi torturado?
marcas de queimadura. Queimaram o coitado com brasa de cigarro. O assassino
deve ser um fumante.
Brilhante dedução ironizou Omar. quanto a identificação...
Achamos a bolsa dele, ou dela, perto do corpo. Estava aberta e vazia. Ou quase vazia.
Num bolsinho interno, bem apertado, achamos uma conta da Telesp Celular, que ainda
não foi paga. O vencimento é amanhã, quinta-feira. Está no nome de José Roberto
Cibelinni. O endereço é rua Aurora, no centro da cidade.
Na Boca do Lixo.
Isso aí. Na Zona. Acho que o pessoal da Homicídios não vai ter muito trabalho para
resolver o caso. (FERREIRA, 2005, p.23-24)
Outra travesti tamm é encontrada morta na narrativa. Rose, como
era chamada, estava caída de bruços, nua e com a cara na água poluída do Córrego
das Corujas, um riozinho que delimitava os bairros da Vila Beatriz e a Vila
Madalena. O que se percebe, de acordo com o trecho apresentado, que a questão
do estranhamento com o corpo travesti realoca essas personagens ao patamar de
seres estranhos, propiciando um entendimento de que suas vidas valem pouco
ou nada, e por isso merecem morrer, e por isso estão morrendo. De certa forma,
a representação da morte dessas personagens está ligada ao rompimento que
elas fazem para com as normas de gênero, o incômodo, não com o espaço da
prostituição propriamente dito.
A segunda representação que se pode ter da travesti nesses romances, é
a sua personalidade assassina e perigosa, muitas vezes indiciada pelo assassinato de
alguém, como no romance Crimes bárbaros(2011), de Christian Petrizi, no qual
a travesti Barbara Taylor é indiciada pelo suposto assassinato do médico pediatra,
Ricardo Lobato. Nesse ponto de representação, pode ser constatada a presença de
narrativas que apresentem personagens travestis sendo perseguidas e mortas pela
força policial, em meio ao espaço, por vezes perigoso da prostituição, como no
romance Me deixe morrer em Seattle (2015), de Karem Schumacher.
Outra representação mapeada durante a pesquisa foi a da personagem
travesti que encontra a morte ao final da narrativa. Tal como um destino traçado
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ou redenção possível, podemos citar os romancesAs fantasias eletivas (2014),
de Carlos Henrique Schroeder, A inevitável história de Letícia Diniz (2006), de
Marcelo Pedreira, e Luís Antônio Gabriela (2012), de Nelson Baskerville.
Narrado em terceira pessoa, o romance As fantasias eletivas (2014)
conta a história de Renê, um frustrado e solitário recepcionista de hotel da cidade
de Balneário Camboriú, e também conta a história da travesti Copi, que, sem
família e sem destino, vai sobrevivendo da prostituição e escrevendo pequenos
textos tendo como referência ou “inspiração” fotos que realiza com uma câmera
Polaroid. Copi apresenta seu book à Renê e briga com ele pra que indique seu
trabalho no hotel. Renê nunca a chama para trabalho algum, que ela não era
uma “mulher”. Antes do final trágico de Copi, que cometeu suicídio cortando os
pulsos em seu quarto de hotel, o leitor tem acesso aos textos e fotografias tiradas
pela personagem.
Renê segurou a foto da menina no trilho e não conteve as lágrimas: lembrou daquela
tarde, havia duas semanas, em que estava sentado na cozinha de Copi, tomando um
Malbec que ela trouxera de Mendoza, e como ela parecia eufórica, feliz e radiante
naquela tarde. Era injusto que estivesse morta agora, mas o que é a justiça? É coisa de
homens, o de deuses, nem de travestis. (SCHROEDER, 2014, p.53)
Em A inevitável história de Letícia Diniz (2006), a personagem Letícia,
que também comete suicídio ao final da narrativa, jogando-se nua do oitavo
andar de um prédio, ouve atenta aos conselhos do Tio Cristina sobre a vida de
uma travesti:
Eu sempre te disse: travesti tem que ser dez vezes mais corajoso, dez vezes mais forte e dez
vezes mais persistente para vencer na vida. Fraqueza não é luxo permitido pra gente do
nosso tipo, tá me ouvindo? Não foi essa a tua escolha? Agora vai... Vai... Vai e não olha
mais pra trás. (PEDREIRA, 2006, p.16)
O romance de Pedreira narra a história de Letícia Diniz, uma travesti do
norte do Brasil que decide abandonar a vida em Porto Velho e tentar a sorte no Rio
de Janeiro, trabalhando na prostituição. Desde o início da narrativa, o leitor tem
acesso aos diários e escritos da personagem, contados por um narrador misterioso.
A vida da travesti Letícia é atravessada por inúmeras violências e exclusões: as
discriminações sofridas na escola o estupro cometido pelo próprio pai, o sonho
impossível de ser rica e famosa.Em uma passagem do romance, ao atender o seu
primeiro cliente um “homenzinho sem graça” Letícia é confrontada com a
realidade do abandono e o “cano” que levara de seu “príncipe encantando”: ainda
com “o esperma do estranho a escorrer pela sua virilha”,
Mas o salão de seu baile, compreendera enfim, seria sempre, madrugada após madrugada,
um quarto barato como aquele, onde uma barata gigante subia pela cortina rasgada
provocando arrepios
.“Então é isso... Os tubos de PVC da sociedade onde os calígulas
se aliviam... É pra isso que a gente serve... Pras famílias deles poderem viver na luz,
longe de toda essa podridão”
, registrou ali mesmo em seu diário, melancolicamente,
evocando as palavras de Tatiana. (PEDREIRA, 2006, p.81 grifos nossos)
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A última configuração que pode ser observada na pesquisa é a
representação da personagem travesti como seres não identificáveis
8
. Isso é o que
caracteriza a maior parte das obras mapeadas. Nelas, as personagens o nomeadas
como “criaturas”, seres anormais que transitam pelas ruas, de perfil “exótico” e
indecifrável. Como exemplo, podemos citar as obras Homens muitos (2003),
de Fernando Salgueiro, Concerto Amazônico (2008), de Álvaro Cardoso Gomes, e
Morte nos búzios (2006), de Reginaldo Prandi.
Pode-se observar que, segundo Kulick (2008, p.27), as travestis têm
esse poder de despertar a repulsa e o medo, ao mesmo tempo em que são seres
que transmitem uma atração eletrizante. Então, a identidade aqui estudada
refere-se a sujeitos caracterizados ao nascer, tradicionalmente, como sendo do
sexo masculino, mas que acabam por assumir “condensações de determinadas
ideias gerais, representações e práticas do masculino e feminino” (KULICK,
2008, p.26), ou seja, as travestis não estão em lugar propriamente subversivo,
pois elaboram “determinadas configurações de sexo, gênero e sexualidade que
sustentam e (re) significam as concepções de ‘homem’ e mulher’ no Brasil”. São
corpos abjetos no sentido da ausência de subjetividade, na colocação desses seres
como objetos de inúmeras violências física e simbólica , são corpos indizíveis,
(in) visíveis e ambíguos, consideradas sujeitos menos humanos. Nas palavras de
Márcia Tiburi (2016):
A cultura, em todas as suas formas de discurso, do jurídico ao científico, e dos meios de
comunicação, ajuda na produção do abjeto”, como um tipo de diferenciação na qual se
confina o excluído. O excluído é produzido no discurso: seu lugar é o silêncio que, em
termos sociais muito concretos, realiza-se na injustiça de não poder existir. (TIBURI,
2016, p.11)
ParaButler (2003 p.162), os corpos abjetos quase sempre estão
destinados a ocupar o entre - lugar, o lugar fronteiriço e inabitável do (não)
dizer-se, do não expressar-se como parte de um corpo social. Os sujeitos que
possuem “imagens corporais” que não se encaixam em nenhum desses gêneros
(masculino e feminino) ficam fora do humano, “constituem a rigor o domínio
do desumanizado e do abjeto, em contraposição ao qual o próprio humano se
estabelece”, logo, são corpos “dignos” de violência, à medida são vidas indignas
de importância.
8
No artigo intitulado Imagens da mulher na narrativa brasileira, Regina Dalcastag(2007), ao realizar um
mapeamento das representações de personagens femininas na narrativa contemporânea brasileira e encontrar
uma
parcela considerável de personagens sem indícios e/ou não identificáveis, pontua que a personagem do
romance contemporâneo é objeto bastante escorregadio. Citando a romancista francesa NathalieSarraute, ela
afirma que a personagem vem se tornando, desde o início do século XX, mais complexa e mais descarnada.
A professora acredita ainda, que o encontro de personagens não identificáveis é de extrema relevância, pois
colocam em discussão as razões para tantas ausências e temáticas, bem como determinadas descrições.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir, a partir das análises realizadas, que, embora a literatura
contemporânea brasileira esteja inteiramente ligada à multiplicidade de vozes, aos
problemas sociais de nosso tempo, encontrando suporte de produção artística nos
diversos meios de comunicação, a personagem travesti ainda é representada como
o “outro” nos discursos sociais. O corpo travesti, ambíguo e denunciador da
cristalização das normas de gênero, é criado a partir da (re)montagem de imagens
e discursos hegemônicos, quase sempre negativos e estruturados sob a ótica da
violência e da exclusão.
O que deve ser evidenciado são as perigosas naturalizações que o discurso
literário pode ter. Assim, segundo Dalcastagnè (2012, p.12), “não é simplesmente
o fato de que a literatura fornece determinadas representações da realidade, mas,
sim, que essas representações não são representativas do conjunto das perspectivas
sociais”. Em outras palavras, uma preocupação em observar a forma como se
materializam essas representações, se um reforço nos estereótipos ou propõem-
se debates acerca da construção de identidades e da problematização de discursos
dominantes.
É preciso observar que a (re)afirmação de alguns estereótipos, tal
como a travesti prostituta, doente e perigosa está ligada às configurações criadas
e (re)afirmadas constantemente (e historicamente) por diversas mídias e meios
de comunicação, como novelas, notícias de jornal, filmes e documentários,
músicas e programas de TV.Embora não haja a real intenção de representar
personagens travestis de forma negativa, as configurações estereotipadas
acabam por se naturalizar e negar a subjetividade e vivências dessas pessoas. O
problema, além de situar-se na configuração negativa dessas personagens no
romance contemporâneo, também encontra indagações sobre o tratamento
naturalizado que essas configurações recebem, promovendo algo como a morte
epistemológica de territórios e vivências banidas da História. Assim, por se tratar
de um instrumento de construção identitária, a literatura pode ser problematiza e
questionada sobre as cristalizações que cria e afirma. A problemática que é evocada
nesse artigo é justamente a questão da não-representação dessas personagens
nos espaços tidos como “higienizados”, a razão de não conseguirem enxergar as
personagens travestis de outra maneira mais subjetiva e particular.
Outrossim, as travestis ocupam um lugar na literatura brasileira.
Embora representada em uma parcela ínfima nas produções literárias e fílmicas,
não apenas as que se inserem na contemporaneidade, mas em um processo
histórico de repulsa, de exílio e do não-lugar, o papel das travestis na literatura
brasileira é (de) marcado pela subversão pela negação, pelo desconhecimento e
pelo nojo.
Apesar de tudo, vale destacar que as travestis e transexuais vêm
conquistando importantes espaços na sociedade. Não apenas como personagens
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de livros, filmes, ou novelas, mas como agentes culturais e sociais de resistência às
discriminações e violências: seja na música, comLinn da Quebrada, As Bahias e a
Cozinha Mineira, seja na internet, comRosa Luz, seja na academia e nas ciências,
com Maria Clara Araújo e Viviane Vergueiro, seja na literatura, com Amara Moira
ou no teatro, na TV e no cinema, com Silvero Pereira, por exemplo.
Portanto, o que fica evidente é a capacidade de luta política do corpo.
Longe de esgotar as discussões sobre representações de grupos marginalizados na
literatura brasileira, esse artigo encontra-se aberto às discussões sobre gênero e
produção literária. Enfim, além de propor novas formas de se ler e interpretar as
obras literárias, atento às ações e atuações da linguagem, é necessário desmistificar
os espaços e as narrativas com espaços higienizados, subverter os cânones da própria
linguagem e estabelecer possibilidades de construção de novas histórias, novas
imagens e representações. Conforme ressalta Butler (1998, p. 34), “desconstruir
não é negar ou descartar, mas pôr em questão”. É no questionamento sobre
essas formas de representações literárias que se poderá ressignificar personagens
travestis, a fim de trazer novos sentidos para as suas vivências. Sendo assim, não
se trabalha apenas na inclusão social física e simbólica , ou o acesso aos bens
culturais; trabalha-se na construção sociológica das travestis, na admissão de
suas identidades e vozes, e na destruição de discursos que forcem a exclusão e a
discriminação.
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Submetido em: 26/05/2017
Aprovado em: 30/08/2017