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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.3, n.1, p. 47-64, Jan./Jun., 2017
M
ULHERES E
G
ÊNERO NAS
R
ELAÇÕES
I
NTERNACIONAIS
:
PARA ALÉM
DAS PRISÕES COTIDIANAS E EPISTEMOLÓGICAS
W
OMEN AND
G
ENDER IN
I
NTERNATIONAL
R
ELATIONS
:
IN ADDITION TO
EVERYDAY PRISONS AND EPISTEMOLOGICAL.
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
1
1.
R
ESUMO
:
Como situar em linhas gerais a mulher e a temática de gênero em um campo disciplinar
altamente masculinizado as Relações Internacionais - e monopolizado pela Ciência Política, que
se associa às “prisões cotidianas” como aquelas referentes à distinção de gênero ligada ao público e
ao privado e à guerra e à paz? Esta é a questão que resume o foco deste texto. A hipótese que busca
responder ao problema em questão enuncia sumariamente que a abordagem de gênero neste campo
é pautada pelos parâmetros e limites da Ciência Política. De forma alternativa, uma perspectiva
inter-relacional coerente com as abordagens de gênero pode ser obtida em termos holistas, de
totalidade com a abordagem do desenvolvimento desigual e combinado, em termos da coexistência
de múltiplas sociedades, interações, relações e causalidades, sem a ênfase específica da Ciência
Política que permeia direta e indiretamente quase toda a abordagem das Relações Internacionais.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
:
Gênero, Teoria das Relações Internacionais, Ciência Política, desenvolvimento
desigual e combinado.
2.
A
BSTRACT
:
How is it possible to deal with women and gender in a highly masculinized disciplinary
field and monopolized by Political Science - International Relations -, which is associated with
“everyday prisons” such as to the gender-related distinction between public and private spheres, and
war and peace? This is the question that summarizes the focus of this text. The hypothesis provided
to answer this problem summarily states that the gender approach in this field is guided by the
parameters and limits of Political Science. Alternatively, an interrelational perspective coherent
with
the gender approaches can be obtained in holistic terms, of totality with the approach of the
uneven
and combined development, in terms of the coexistence of multiple societies, interactions, relations
and causalities, without the specific emphasis of Political Science that permeates directly
and
indirectly almost the whole International Relations approach.
KEY-WORDS: Gender, International Relations Theory, Political Science, uneven and combined
development.
1
Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp
de Marília. Pesquisador do Grupo Cultura e Gênero e do Grupo Marxismo, Estado, Política e Relações Inter-
nacionais, ambos da Unesp.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2017.v3.n1.05.p47
48
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.3, n.1, p. 47-64, Jan./Jun., 2017
PASSOS, R. D. F.
3.
I
NTRODUÇÃO
Como situar em linhas gerais a mulher e a temática de gênero
2
em
um campo disciplinar altamente masculinizado as Relações Internacionais - e
monopolizado pela Ciência Política, que se associa às “prisões cotidianas” como
aquelas referentes ao público e ao privado e à guerra e à paz?
Esta é a questão que resume o foco deste texto. A hipótese que buscará
responder ao problema em questão enuncia sumariamente que enuncia sumariamente
que a abordagem de gênero neste campo é pautada pelos parâmetros e limites da
Ciência Política. De forma alternativa, uma perspectiva inter-relacional coerente
com as abordagens de gênero pode ser obtida em termos holistas, de totalidade com
a abordagem do desenvolvimento desigual e combinado (TROTSKY, 1977), em
termos da coexistência de múltiplas sociedades, interações, relações e causalidades,
sem a ênfase específica da Ciência Política que permeia direta e indiretamente quase
toda a abordagem das Relações Internacionais. No sentido da “ênfase politicista”,
uma das conseqüências tem sido o estabelecimento de uma via de mão única em
termos disciplinares: diferentes campos de conhecimento contribuem com as
Relações Internacionais, visitam-na”, mas o o visitados por ela (ROSENBERG,
2016), entre eles a Geografia, a Teoria Literária, a Antropologia. O ponto específico
que interessa neste texto é de que tudo indica parecer ser a contribuição no âmbito
do Gênero, originária da Antropologia (RUBIN, 1975), é seguidora do mesmo
caminho. Ou seja, contribui com a abordagem internacionalista mas a recíproca
não se concretiza, não havendo um aporte específico das Relações Internacionais
nas outras áreas de conhecimento.
Tal hipótese ensejaria passar em revista uma enorme literatura que vai
muito além do escopo deste texto. Por isto, buscar-seuma análise sumária de
duas contribuições teóricas bastante relevantes no âmbito teórico das Relações
Internacionais no tocante às questões de gênero (SJOBERG, 2011; TICKNER,
1988) e da abordagem original (RUBIN, 1975) deste tema. Justifica-se a
delimitação proposta na medida em que as autoras são referência relevante na
literatura especializada, particularmente nas questões teóricas que relacionam
gênero e Relações Internacionais. Por sua vez, a abordagem original de gênero
é um recorte defendido em vista da enorme complexidade e literatura que os
debates, pesquisas e estudos sobre gênero assumiram desde a sua enunciação
original. Deve-se acrescentar que a contribuição original é um marco importante
para uma visão ampla e não tão especifica em vista das várias possibilidades
assumidas no tema em tela.
Reitera-se ser a hipótese apresentada ciosa de que a abordagem de gênero
original de um diálogo produtivo com o marxismo, embora não se apresente
2
Gênero é definido aqui em termos bem gerais em termos da produção social, histórica, cultural, material
etc dos papéis, imagens associados a homens e mulheres, nada se relacionando a priori aos cromossomos e/ou
hormônios sexuais.
Mulheres e Gênero nas Relações Internacionais
Artigos/Articles
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.3, n.1, p. 47-64, Jan./Jun., 2017
como um conjunto de formulações que se compatibilize completamente com a
abordagem do desenvolvimento desigual e combinado tampouco do materialismo
histórico. O aspecto central contemplado nesta ressalva é uma relação, uma
proximidade, um ponto em comum entre a abordagem original de Rubin e a
categoria de Trotsky, sem de forma alguma sugerir que sejam totalmente idênticas
ou mesmo parte da mesma formulação, teoria ou problema. Outra advertência
relevante é não ser a intenção justapor diferentes pressupostos e elementos
constitutivos e metodológicos distintos envolvendo as duas abordagens referidas.
O intento é mostrar pontos semelhantes, aproximáveis, relacionáveis. Não é a
pretensão confundir ou justapor aspectos teóricos e metodológicos distintos das
duas abordagens, de modo a buscar evitar a deficiência teórico-metodológica do
ecletismo (OLIVEIRA FILHO, 1995).
Buscar-sepercorrer as seguintes etapas nesta reflexão: uma primeira
apresentação geral e sumária do debate teórico internacionalista, o surgimento do
gênero como categoria, uma breve amostra sobre a teorização do campo do gênero
nas Relações Internacionais e finalmente os limites teóricos desta contribuição no
debate recente referido, considerando a proposta alternativa do desenvolvimento
desigual e combinado como algo relacionável ao referencial holista em tela. As
considerações finais abordarão a síntese dos argumentos e alguns dos pontos que
poderão ser retomados em reflexões futuras.
4.
UM QUADRO GERAL SUMÁRIO DO DEBATE TEÓRICO INTERNACIONALISTA
O debate teórico internacionalista silencia sobre a questão feminina
desde o seu início, sugerindo a introdução deste tema somente no que se
convencionou ser seu terceiro e último debate. Caracterizado na comunidade
cientifica da área de forma totalmente reducionista e anacrônica
3
, contabiliza
três grandes contendas. Explicado de forma bastante grosseira, envolveria uma
primeira controvérsia envolvendo realismo (CARR, 2002) e idealismo (ANGELL,
2001) uma segunda entre realismo (MORGENTHAU, 2003) e behaviorismo
(KAPLAN, 1990) e uma terceira e última envolvendo o realismo estrutural de
Waltz (1979) e seus críticos, dentre eles as abordagens de gênero
4
que são objeto
da presente elaboração.
Importa para os propósitos deste artigo que todos os diferentes enfoques
mencionados nos debates em tela se pautaram pelo predomínio de conceitos e
raciocínios cuja gênese se encontram na Ciência Política, longe de caracterizar
uma autonomia do campo disciplinar das Relações Internacionais. Resumindo
os argumentos de Rosenberg (2016) a respeito deste ponto, a abordagem de Carr
3
Ver a respeito MARIUTTI, 2013.
4
Não é o intuito deste texto explicar, abordar e aprofundar tais debates, sobre os quais vastíssima literatura
primária e secundária. Uma boa referência para situar-se em termos gerais pode ser encontrada em HALLIDAY,
1999.
PASSOS, R. D. F.
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(2002) foi de grande impacto neste ponto. Em sua contribuição fundante para
o campo disciplinar, Carr caracteriza as Relações Internacionais em termos da
infância enquanto desenvolvimento disciplinar, levando assim ao entendimento de
seu pertencimento à Ciência Política. Continuando tal linha de raciocínio neste
campo disciplinar, o Estado existiria como defensor da sociedade contra ameaças,
argumento inaplicável à política internacional na medida em que não haveria
uma autoridade superior ao ente estatal. Esta linha de raciocínio retoma também
uma linha de argumento mais ou menos comum na filosofia política clássica entre
os autores contratualistas e jusnaturalistas oitocentistas e novecentistas.
Tal ausência de autoridade foi consagrada na abordagem dominante
nas Relações Internacionais em suas diferentes variantes o realismo como
“anarquia”, a ausência de uma autoridade efetiva e violenta acima dos Estados.
No
dizer do principal teórico realista do terceiro debate (WALTZ, 1979) a
anarquia seria a causa permissiva da guerra ou da possibilidade de sua ocorrência
no âmbito da estrutura o sistema internacional em que importam os Estados
de
maior capacidade militar, ou na terminologia de outros autores realistas, de
maior poder nas diversas expressões, militar, econômica, dentre outras. Ainda
conforme Waltz, os Estados buscam sua sobrevivência em contexto que envolve
sua segurança em termos de um sistema internacional que os constrange a
buscarem equilibrar suas capacidades militares. Diferentemente dos outros autores
realistas, Waltz circunscreveu sua teorização específica aos aspectos políticos das
relações internacionais
5
, reforçando a linha de argumento do “politicismo” aqui
defendida. Não ao acaso, seu foco teórico é uma teoria da política internacional
6
.
Nestes dois últimos parágrafos, é possível verificar os principais
conceitos que caracterizaram as distintas narrativas e teorizações dominantes no
âmbito disciplinar das Relações Internacionais desde a sua institucionalização nas
universidades em 1919. Isto porque, ainda que divirjam um pouco, as abordagens
idealistas aceitam e incorporam as noções basilares de foco nos Estados e relações
políticas, suas respectivas capacidades ou quantificações de poder, além da
anarquia e do equilíbrio
7
, não se caracterizando como perspectivas totalmente
excludentes em relação ao realismo
8
. No mesmo diapasão, a abordagem de Waltz
(1979) buscou uma espécie de síntese teórica do realismo com as abordagens
quantitativistas e focadas nas ciências da natureza das perspectivas behavioristas,
de forma a dotar o referido realismo de uma roupagem mais “científica”, previsível
(tal como os modelos de poucas variáveis das ciências duras”) e menos vaga. Em
5
A expressão é grafada em iniciais minúsculas neste caso de forma deliberada. Neste caso, objetiva-se referir ao
conjunto de fenômenos ocorrentes no além-fronteiras e não ao campo disciplinar e científico internacionalista.
6
O título de seu livro de 1979 evidencia isto de forma contundente.
7
Uma proposta alternativa à narrativa supostamente histórica das relações internacionais focada no equilíbrio de
poder é proposta em termos mais holistas por Rosenberg tomando por base um projeto de narração histórica
levando em conta o desenvolvimento desigual e combinado (ROSENBERG, 1996).
8
Ver a respeito MARIUTTI, 2013.
Mulheres e Gênero nas Relações Internacionais
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uma palavra, esta é uma caracterização geral e sumária do realismo estrutural de
Waltz.
Em resumo, nada que permita focalizar a questão feminina. E não se
trata de introduzir anacronicamente qualquer categoria como a de gênero,
enunciada originariamente somente em 1975. O estadocentrismo e o politicismo
presente no enfoque das Relações Internacionais sendo o Estado, este sim
introduzido anacronicamente nas narrativas e teorizações dominantes neste
campo disciplinar amesmo no que diz respeito a fatos ocorridos na Antiguidade
sufocam qualquer possibilidade de uma abordagem mais ampla, transformando
as possibilidades analíticas e teóricas como apêndices, epifenômenos da política.
Onde estão as mulheres? Nestas narrativas e análises, não bastasse “a prisão da
Ciência Política” - tema a ser mais desenvolvido mais adiante neste artigo -
confinadas às “prisões cotidianas” da esfera privada do lar ou mais reservada como
esposas e mães bondosas e caridosas ou como sujeitos “invisíveis” ou irrelevantes
na condição de médicas e enfermeiras, enquanto os homens aparecem na esfera
pública como militares, diplomatas, governantes e estadistas que participam
ativamente da política internacional. Por outras palavras, a associação viesada
pelo
nero do homem à guerra e da mulher à paz. Portanto, um entendimento
bastante identificado do campo disciplinar internacionalista com a perspectiva da
violência, da força e sua associação com a masculinidade.
Nenhuma alusão até mesmo aos momentos de gritante participação
feminina em um dos momentos mais relevantes de um Estado importante na
Segunda Guerra Mundial e hegemônico desde então, os Estados Unidos: aquele
em que as mulheres assumiram inúmeras posições nas linhas produtivas das
fábricas em vista da maioria dos homens estarem nos teatros de operações militares.
Evidentemente que os pressupostos teóricos de muitas abordagens realistas a do
próprio Waltz aí inclusa, consideram fatos desta natureza no âmbito das relações
internacionais e de outros momentos da teorização, mas não os como nevrálgicos
ou mais importantes no cerne do movimento de elaboração teorético. Tal processo
de teorização põe em evidência as variáveis mais relevantes para explicar e prever
o padrão de funcionamento da estrutura ou sistema internacional, que é foco
efetivo da teoria de Waltz. A perspectiva de Waltz classificaria as contribuições
de gênero, na melhor das hipóteses, como pertencentes ao campo das relações
internacionais de forma geral e, mais especificamente, àquilo que ele chamou
de primeira e segunda imagens, por oposição à terceira imagem. Grosso modo,
as imagens são “filtros”, recursos metodológicos em termos de níveis de análise
para separar inúmeros aspectos que fazem parte dos fenômenos internacionais
com o objetivo de entender efetivamente quais as causas da guerra no plano
internacional. A primeira imagem “filtraria” elementos para compreender tais
causas no âmbito do indivíduo, sua psicologia e natureza de forma geral. A
segunda “filtraria” elementos para compreender tais causas ao nível do aparato
interno dos Estados. A terceira imagem se constitui no dizer waltziano na única
PASSOS, R. D. F.
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efetivamente objetiva para compreender as causas da guerra na medida em que
trata a competitividade e a anarquia uma ausência de autoridade que constrange
os Estados à guerra e à competição - como dados constatáveis independentemente
de qualquer subjetividade de avaliação, diferentemente do que possa estar por trás
dos focos da primeira e segunda imagens. Afinal, juízos sobre o indivíduo e a
natureza dos governos e da sociedade dos Estados teriam uma enorme margem de
subjetividade (WALTZ, 2001). A temática de gênero se situaria entre estas duas
imagens na medida em que envolveria tais juízos subjetivos. Em uma palavra, a
abordagem de gênero não se coadunaria com o tratamento positivista imposto
por Waltz na sua teorização.
Tais escolhas em termos teóricos evidenciam também as “prisões
epistemológicas” que não enxergam os conflitos, as forças sociais que incluem as
mulheres, como pontos importantes. De forma geral nas teorizações dominantes,
o pressuposto do Estado coeso e monolítico, sem conflitos ou aspectos internos
a serem considerados, excetuados aqueles que se vinculam às suas características
básicas e elementos de poder. Neste sentido, todos os Estados seriam simbolizados
por
bolas de bilhar, a metáfora recorrente para exemplificar tal caracterização. Uma
enorme simplificação que remete mais uma vez à já mencionada “prisão da
Ciência Política”, como foi escrito.
Mas distintas abordagens de gênero aparecem no terceiro debate
endereçando críticas a Waltz. Duas delas serão tratadas mais adiante neste texto.
Feita esta sumaríssima e grosseira caracterização destes debates,
buscar-se-á introduzir o temário de gênero na sua abordagem original e
posteriormente abordar um pouco da incorporação ao terceiro debate teórico
internacionalista.
5.
UMA SUMÁRIA APRESENTAÇÃO DA ABORDAGEM ORIGINÁRIA DE GÊNERO NA
ANTROPOLOGIA
A enunciação original de gênero na lavra da norte-americana Gayle
Rubin (1975) envolve uma complexa interpretação no âmbito da Antropologia e
da Psicanálise que, por motivos de espaço e foco deste artigo, não será retomada
aqui. Importa sinteticamente para os propósitos enunciados desta reflexão como
a autora parte da linha de raciocínio operante até então pautada pela distinção de
“sexo” passando pela transição do que ela chama de sistema “sexo/gênero” para
finalmente designar a categoria de gênero em sua formulação. O trecho abaixo
é altamente significativo da síntese do argumento, elucidando não somente as
diferentes culturas como também alguns dos termos das opressões que estão por
trás da distinção de gênero (RUBIN, 1975: p. 204, tradução própria)
9
:
Por fim, a exegese devi-Strauss e Freud sugere uma certa visão da política feminista e
9 Assim escrito no original, com destaques também na lavra primeva: Finally, the exegesis of vi-Strauss e
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da utopia feminista. Isso sugere que não devemos apontar para a eliminação dos homens,
mas para a eliminação do sistema social que cria o sexismo e o gênero. Pessoalmente,
eu entendo ser uma visão de um matriarcado das amazonas, no qual os homens são
reduzidos à servidão ou ao esquecimento (dependendo das possibilidades de reprodução
partenogenética), de mau gosto e inadequada. Essa visão mantém o gênero e a divisão
dos sexos. É uma visão que simplesmente inverte os argumentos daqueles que baseiam
sua causa para o inevitável domínio masculino sobre as inerradicáveis e significativas
diferenças biológicas entre os sexos. Mas não somos apenas oprimidas como mulheres,
ou homens, conforme possa ser o caso. Pessoalmente, sinto que o movimento feminista
deve sonhar ainda mais do que a eliminação da opressão da mulher. Deve sonhar com
a eliminação de sexualidades obrigatórias e papéis sexuais. O sonho que eu acho mais
atraente é uma sociedade andrógina e sem gênero (mas não desprovida de sexualidade),
na qual a anatomia sexual de alguém é irrelevante para quem é, ou o que faz, e com
quem faz amor.
Travando um diálogo com várias distintas concepções, inclusive a
de Marx e de Engels, Rubin reitera embora ressalvando a necessidade de tal
definição ser aprofundada e refinada - a importância assinalada pelos cânones do
materialismo histórico de compreender as relações de produção da vida em seu
caráter dual, referente aos meios de existência em um contexto histórico específico
bem como a própria propagação da espécie (ENGELS apud RUBIN, 1975).
Tal propagação traz à tona a discussão do caráter sexual para a compreensão do
patriarcado e da posição da mulher nas diferentes sociedades. Em sendo assim,
o
caráter social, cultural, histórico e a articulação de vários outros aspectos se
sobrepõem a uma mera classificação e caracterização pautada pelo sexo. Sua
proposição nesta linha é clara (RUBIN, 1975: p. 204): “um próximo passo na
agenda: uma análise marxiana dos sistemas gênero/sexo. Os sistemas gênero/sexo
não são emanações ahistóricas da mente humana: eles são produtos da atividade
histórica humana”. Em outras palavras, trata-se do que a autora chama de uma
verdadeira economia política do sexo. Neste momento da argumentação, o sexo
aparece dotado de uma ressignificação em termos dos papéis sociais, culturais
etc possibilitados pela categoria de gênero.
Rubin sustenta haver algumas práticas sociais e culturais de certas
sociedades que envolvem as mulheres onde não equivalente de troca para elas.
Esposas são trocadas por filhas, irmãs ou outras de outro grau de parentesco na
condição de doação. Dito de outra forma, a mulher é um equivalente para mulheres
Freud suggests a certain vision of feminist politics and the feminist utopia. It suggests that we should not aim for
the elimination of men, but for the elimination of social system which creates sexism and gender. I personally
find a vision of an Amazon matriarchate, in which men are reduced to servitude or oblivion (depending on
the possibilities for parthenogenetic reproduction), distasteful and inadquate. Such a vision mantains gender
and the division of the sexes. It is a vision which simply inverts the arguments of those who base their case for
inevitable male dominance on ineradicable an significant biological diferences between the sexes. But we are not
only opressed by having to be women, or men as the case may be. I personally feel that the feminist movement
must dream of even more than the elimination of the opression of women. It must dream of the elimination of
obligatory sexualties and sex roles. The dream I find most compelling is one of an androgynous and genderless
(though not sexless) society, in which one’s sexual anatomy is irrelevant to who one is, what one does, and with
whom makes love”.
PASSOS, R. D. F.
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na medida em que ela pode se tornar uma noiva e uma noiva pode se converter
em uma mulher. Não é o objetivo deste texto reproduzir os complexos sistemas
sociais de troca e parentesco descritos e exemplificados por Rubin. Importa,
isto sim, que eles não podem ser encarcerados numa prisão epistemológica,
retomando a metáfora que intitula esta reflexão. Eles devem ser entendidos em
uma perspectiva mais ampla, holista e inter-relacional. No dizer de Rubin, em
longa mas deveras relevante passagem (1975: p. 209-210, destaques no original e
tradução própria), ao referir-se às sociedades Kachin e das ilhas Trobriand, elas
10
[...] indicam que os sistemas sexuais não podem, em última análise, ser entendidos
em isolamento completo. Uma análise plena das mulheres em uma sociedade
específica, ou ao longo da história, deve levar em conta tudo: a evolução das formas
de mercadoria nas mulheres, os sistemas de posse da terra, os arranjos políticos, a
tecnologia de subsistência, etc. Igualmente importantes, as análises econômicas e
políticas o incompletas se o consideram as mulheres, o casamento e a sexualidade.
As preocupações tradicionais da Antropologia e das Ciências Sociais - como a evolução
da estratificação social e a origem do Estado - devem ser reformuladas para incluir o
casamento matrilateral cruzado, o excedente extraído na forma de filhas, a conversão
do trabalho feminino em riqueza masculina, a contribuição do casamento com o poder
político e as transformações efetuadas de todos estes variados aspectos da sociedade ao
longo do tempo.
Este tipo de esforço é, em última análise, exatamente o que Engels tentou fazer em seu
esforço para tecer uma análise coerente de tantos dos diversos aspectos da vida social. Ele
tentou relacionar homens e mulheres, cidade e país, parentesco e Estado, formas de
propriedade, sistemas de posse da terra, convertibilidade de riqueza, formas de troca,
tecnologia de produção de alimentos e formas de comércio, para citar alguns, em uma
avaliação histórica sistemática. Finalmente, alguém terá que escrever uma nova
versão
de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, reconhecendo a
interdependência mútua da sexualidade, da economia e da política sem subestimar o
significado total de cada uma na sociedade humana.
A proposição da antropóloga é nítida: não deve haver o primado
da economia, da política, da cultura, da antropologia ou qualquer outra
instância. Não existe análise de uma sociedade em termos históricos de forma
10
No original assim escrito com destaques: “[...] indicate that sexual systems cannot, in the final analysis, be
understood in complete isolation. A full-bodied analysis of women in single society, or throughout history, must
take everything into account: the evolution of commodity forms in women, systems of land tenure, political
arrangements, subsistence technology, etc. Equally important, economic and political analyses are incomplete
if they do not consider women, marriage and sexuality. Traditional concerns of antropology and social science
such as the evolution of social stratification and the origin f the state must be reworked to incude the impli-
catons of matrilateral cross-cousin marriage, surplus extracted in the form of daughters, the conversion of female
labour into male wealth, the contribution of marriage to political power, and transformations which all of these
varied aspects of society have undergone in the course of time.
This sort of endeavor is, in the final analysis, exactly what Engels tried to do in his effort wo weave a coherent
analysis of so many of the diverse aspectos of social life. He tried to relate men and women, town and country,
kinship and state, forms of property, systems of land tenure, convertibility of wealth, forms of exchange, the
technology of food production and forms of trade, to name a few, into a systematic historical account. Even-
tually, someone will have to write a new version of The Origin of the Family, Private Property, and the State,
recognizing the mutual interdependence of sexuality, economics, and politics without underestimating the full
significance of each in human society”.
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isolada. Algo em consonância não somente com a libertação das amarras da
distinção de gênero em seus vários aspectos, mas também do foco ou ênfase
em uma única abordagem, tal como faz a Ciência Política em termos das
Relações Internacionais. Portanto, não um padrão único. A perspectiva de
gênero atenta para os processos de múltiplos aspectos causais e de inúmeras
diversidades. Em termos de uma conclusão parcial, algo relacionável à
hipótese enunciada neste texto: um enfoque de gênero sem o “politicismo”
peculiar ao enfoque tradicional das Relações Internacionais pode ser buscado
em termos de um desenvolvimento das inúmeras forças produtivas da vida em que
se constata o todo nas suas diferentes sociedades, dinâmicas, velocidades
e
temporalidades.
Uma vez resgatada a forma original da abordagem de gênero, passar-
seem revista uma pequena mas significativa amostra sobre o terceiro debate
teórico em Relações Internacionais. Como mencionado, tal controvérsia
envolveu o realismo como vertente teórica dominante, em particular o realismo
estrutural de Waltz (1979) e seus críticos. O foco recairá sinteticamente sobre
as críticas de Tickner (1988) e Sjoberg (2011).
6.
UMA PEQUENA AMOSTRA DO TERCEIRO DEBATE TEÓRICO INTERNACIONALISTA NA
INTERFACE COM GÊNERO
Duas linhas de argumento se colocam nesta etapa do texto. Uma
envolve uma crítica sob o viés de gênero a Morgenthau (2003) e outra, no mesmo
diapasão, remetida a Waltz (1979 e 2001).
Conforme reiterado acima, a primeira argumentação diz respeito a
um contraponto ao realismo de Hans Morgenthau (2003), um dos cânones do
realismo político na teoria internacionalista. A despeito deste autor ser situado no
segundo debate, ele continua sendo uma importante referência para as contendas
teóricas posteriores, particularmente no que se refere aos seus seis princípios do
realismo político. O contraponto em questão é de J. Ann Tickner (1988), talvez a
melhor autora no contexto das formulações referentes a gênero no âmbito teórico
internacionalista, que apresenta uma reformulação feminista dos princípios
mencionados.
A segunda refere à busca de uma reformulação da teoria sistêmica e
realista de Waltz (1979), de forma a incluir nela a temática de gênero, conforme
Laura Sjoberg (2011).
Descrever-se-ão sumariamente as elaborações postas por Morgenthau.
No que concerne aos seis princípios do realismo político, a centralidade dos
seus argumentos giram em torno dos temas do poder e do interesse, conceitos
universalmente válidos mas sem um significado permanente. Eles se inserem
em leis objetivas constatáveis de um ponto de vista distanciado, afastado de
PASSOS, R. D. F.
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preferências ou inclinações subjetivas ou ainda juízos de valor - da natureza
humana que guiam racionalmente as ações dos Estados. Tais argumentos possuem
uma conotação moral, ainda que com muitas ressalvas porque o êxito nas ações
políticas é incompatível com a referida moral vista em termos de uma aplicação
e alcance universal. A diferença entre o realismo e outras concepções passa pela
autonomia da política, sempre buscando o nexo de todas as questões com a
manutenção ou aumento do poder estatal (MORGENTHAU, 2003).
Tickner (1988) apresenta uma contra-argumentação destas formulações
em termos feministas. Todo o seu raciocínio passa pela ótica de gênero presente
nas formulações de Morgenthau
11
.
Nesta seara, a objetividade presente nas leis da natureza humana está
associada à masculinidade por oposição à subjetividade, vinculada à feminilidade. A
busca de poder pautada pelo interesse não pode ser vista de forma fixa, apegada às
queses másculas e de força e do poder. Da mesma forma, o se pode circunscrever
a discussão somente às questões de cunho militar. Devem-se considerar os aspectos
do desenvolvimento e da segurança humana em perspectiva mais ampla. Em uma
palavra, trata-se de uma queso muito mais dinâmica do que uma caracterização
única da natureza humana associada à masculinidade.
Em sendo um ponto muito mais dinâmico, o interesse não pode
assumir somente uma conotação relacionada ao poder militar em termos
competitivos. O dinamismo do ambiente internacional permite vislumbrar
uma agenda mais ampla em temas e possibilidades de cooperação do que
aquela restrita aos temas da segurança tradicional, da competição violenta ou
potencialmente violenta. Novamente, aparece a distinção de gênero: a feição
pública do Estado com o uso da força na manutenção interna da ordem ou na
competição com outras unidades políticas, por oposição à busca de uma solução
pacífica dos conflitos envolvendo crianças por suas mães na esfera doméstica,
o que obviamente não se aplica às crianças dos Estados inimigos ou rivais.
Aparece aqui a “prisão cotidiana” do lar que confina as mulheres ao âmbito
privado e libera os homens para o ambiente público nos conflitos e nas guerras,
devidamente apoiados pelas mesmas mulheres.
Conflitos e guerras ensejados pela busca de poder em termos de interesse
remetem a uma conotação masculina na medida em que enfatizam controle e
dominação. Por ser dotado de um caráter individualista e egoísta, jamais se cogita
a efetivação coletiva do poder que, se implementada seria associada à feminilidade.
Tal
caráter individualista e egoísta é associado ao homem. Não ao acaso, a feição do
Leviatã como um gigantesco e poderoso homem na forma de um rei com uma
espada conforme aparece na capa do livro homônimo de Hobbes em sua primeira
11
Não se pretende sugerir de forma alguma que feminismo e gênero sejam sinônimos. Define-se de forma geral
o feminismo como uma unidade orgânica teórico-prática em inúmeras possibilidades relacionadas à emancipa-
ção, lutas, conquistas e direitos das mulheres.
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edição em 1651 (HOBBES, 1985) para aludir ao Estado. A significação do
poder e do interesse em termos universais desconsidera a possibilidade dinâmica
de homens e mulheres buscarem construir coletivamente um poder com as
especificidades e os anseios de mudança em relação às estruturas de dominação e
direção existentes.
No que diz respeito à moral, à luz do feminismo não se concebe a
separação entre a moral e a ação política. Em vista do imperativo do bem-estar
coletivo concebido por tal referencial, não se pode conceber a limitação da moral
e negar o conteúdo normativo do feminismo. Portanto, não é viável aceitar outra
solução que não seja aquela a abranger homens e mulheres em termos de seu bem-
estar. Ademais, a moral, mesmo não sendo universal, pode ser um elemento para
a busca do consenso e não como um elemento do dissenso conforme sustenta o
realismo (TICKNER, 1988).
Por fim naquilo que toca à análise de Tickner, uma profunda divergência
em relação á premissa da autonomia do político, uma vez que não contempla uma
perspectiva pluralista e sim uma abordagem parcial da natureza humana, focada
em uma visão estreita da política que desconsidera a contribuição das mulheres
12
.
Por sua vez como segunda linha de argumento explicitada de forma
bastante resumida, a análise de Sjoberg (2011) tem como principal tese a relevância
e a presença de todos os aspectos relacionados ao gênero naquilo que Waltz chama
de estrutura internacional, ou seja, o sistema internacional. Dada a centralidade
da guerra para a caracterização deste conjunto de Estados mais relevantes, Sjoberg
credita ao temário de gênero uma enorme relevância para a explicação da eclosão
dos conflitos violentos e de vários outros aspectos do além-fronteiras.
É digna de destaque e bastante significativa para a continuação da
análise aqui pretendida uma passagem da autora que sintetiza suas formulações
(SJOBERG, 2011, p. 125)
13
:
Eu argumento que, levado a sério, o gênero não altera” os níveis waltzianos de análise
e seu impacto na teorização da guerra, mas transforma-os de forma que a vanguarda da
escola feminista nas RI está apenas começando a desabrochar.
Em poucas palavras, é importante reter que as duas contribuições
acima situadas formulam a crítica a partir dos referenciais do realismo, a vertente
teórica pautada sobretudo pela autonomia da política e todos os desdobramentos
metodológicos desta premissa que colocam o campo disciplinar das Relações
Internacionais na “prisão da Ciência Política”. Tal ponto é de enorme importância
12
Tive a oportunidade de aprofundar esta discussão envolvendo a elaboração de J. Ann Tickner, a temática do
gênero e do realismo com um foco um pouco diferente em outra oportunidade (PASSOS, 2008).
13
Assim lavrada originalmente: “I argue that, taken seriously, gender not only ‘alters’ the Waltzian levels of
analysis and their impact on theorizing war, but transforms them in ways that the cutting edge of feminist
scholarship in IR is only beginning to unpack”.
PASSOS, R. D. F.
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para uma avaliação crítica destas teorizações à luz do referencial do desenvolvimento
desigual e combinado, a ser empreendida a seguir.
7.
O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO E A CONTRIBUIÇÃO TEÓRICA
INTERNACIONALISTA DE GÊNERO NA PRISÃO DA CIÊNCIA POLÍTICA
Se as autoras referidas buscam uma alternativa à abordagem realista
dominante, por que entendê-las como situadas na “prisão da ciência política”,
assim como de resto a maior parte toda a abordagem tradicional internacionalista?
Demonstrar minimamente tal argumento demanda uma breve
digressão no sentido de caracterizar rapidamente a categoria do desenvolvimento
desigual e combinado de Trotsky (1977) com o auxílio da análise de Rosenberg
(2016) que vislumbra as consequências teóricas desta categoria para as Relações
Internacionais - para depois analisar criticamente as contribuições referidas.
A formulação original desta noção pelo fundador do Exército Vermelho
se insere em sua narrativa de totalidade sobre o processo revolucionário que levou
ao ponto culminante em Outubro de 1917. A Rússia é analisada em termos de
suas diferentes temporalidades de desenvolvimento da vida e sua inserção no todo
do plano internacional em perspectiva ampla. Tudo isto constitui um todo, mas
não simétrico e homogêneo.
Do início do século XX até 1917, a Rússia aumentou de forma
significativa sua industrialização e seu operariado, mas não o suficiente para sua
caracterização majoritariamente agrária e bastante atrasada, com um enorme
campesinato. Altos contrastes envolvendo os centros urbanos mais desenvolvidos
e industrializados Moscou e Petrogrado e o restante do país. Um aumento
importante de sua industrialização como elo fraco, potência menor, da cadeia
imperialista mas com enorme presença e aumento do capital financeiro. Um país
que sofre as pressões externas de países mais avançados, suas conquistas materiais
e ideológicas mas que não as implementa de forma idêntica.
Como bem sistematizou Rosenberg (2016), as conseqüências teóricas
da perspectiva do desenvolvimento desigual e combinado para as Relações
Internacionais implicam em entender quais são as abordagens normalmente
encontradas sob o viés da “prisão da Ciência Política” e suas respectivas alternativas.
Indubitavelmente, a narrativa
hegemônica
internacionalista
envolve
os
conceitos de anarquia internacional e equilíbrio de poder. Dissecando tais
diretrizes, teríamos um padrão único das relações interestatais marcado por
competição, violência efetiva ou em potencial em virtude da ausência de uma
autoridade internacional efetiva e uma perspectiva mecânica, repetitiva, cíclica
de períodos marcados por uma precária paz amparada por um equilíbrio de
poder entre as unidades políticas e a subseqüente ruptura de tal equilíbrio na
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forma de guerras. Aqui, não dúvidas quanto ao padrão em que preponderam
conceitos políticos e a própria perspectiva da autonomia da política. Também não
dúvidas quanto a um único padrão das relações internacionais em perspectiva
que divorcia a narrativa de qualquer singularidade. Escrito de outra forma, desde
a Antiguidade até os dias atuais, tal padrão de anarquia internacional e equilíbrio
de poder se manteve essencialmente inalterado.
Sob a ótica do desenvolvimento desigual e combinado, coloca-se de
modo alternativo a ausência de uma única dinâmica, com a existência simultânea
de múltiplos fenômenos e sociedades. Lembrando que Rubin (1975) reiterava
a necessidade na perspectiva de gênero de jamais se estudar uma sociedade de
forma isolada.
A aludida simplificação da bola de bilhar como um dos recursos de
linguagem mais repetidos para caracterizar o realismo enseja a existência de uma
única temporalidade nas narrativas e análises tradicionais realistas e liberais das
Relações Internacionais. Sendo os Estados alheios aos seus dissensos e conflitos
internos, sendo eles reificados, coisificados na medida em que as forças sociais
e seus componentes de carne e osso são irrelevantes para a descrição e análise
dos fenômenos, existe uma única temporalidade nesta redução: aquela do poder
estatal e suas diferentes dimensões na relação com seus homônimos.
Sob um olhar alternativo do desenvolvimento desigual e combinado,
não se pode caracterizar os Estados de uma única forma. Jamais podem ser
equalizados de forma a exemplificá-los como bolas de bilhar. Os Estados possuem
diferentes tempos no desenvolvimento das forças da vida em seu interior. Os
Estados precisam ser avaliados em vista dos conflitos entre grupos, classes, elites,
em termos das questões de gênero, das diferentes feições que caracterizam suas
sociedades em nível interno e todos estes aspectos além de outros - envolvendo
todos os outros Estados. Nenhum Estado possui, a rigor, uma caracterização
homogênea, única, uniforme. Todos estes aspectos ensejam considerar diferentes
tempos de produção da vida, diferentes velocidades do desenrolar dos seus vários
componentes históricos, ponto que jamais pode ser caracterizado adequadamente
pela bola de bilhar. Na perspectiva de um contraponto liberal ao realismo sob
a ótica de uma interdependência simétrica entre as nações ou mesmo o caráter
global de fenômenos e outras manifestações de diferentes tipos no plano
internacional na roupagem da “globalização”, sustenta-se a mesma objeção: não
se pode fazer uma abordagem de homogeneização ignorando os diferentes ritmos
da vida nos planos interno e internacional. As questões de gênero e atinentes às
mulheres certamente devem ser objeto de uma análise específica destas diferenças
de tempos e linearidades pertinentes a uma análise e teorização tendo como base
o desenvolvimento desigual e combinado.
O primado da política permeia a abordagem internacionalista
tradicional, muitas vezes enfatizando na abordagem de gênero as discussões
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referentes à mulher nas Forças Armadas. Privilegiar a Geopolítica no âmbito da
Geografia e os temas com interface com a Ciência Política podem criar a falsa ilusão
de que as Relações Internacionais possuem em alguma medida um componente
inter-relacional porque contemplam uma perspectiva interdisciplinar. Em seguida,
pode-se usar este argumento para objetar a critica aqui sustentada da prisão da
Ciência Política”. Este fetiche oculta uma característica comum a vários campos
disciplinares: é praticamente impossível um campo de conhecimento fazer uma
abordagem pura, sem recorrer a outros ramos da ciência na divisão disciplinar
tradicional contemporânea e isto não é uma garantia de uma abordagem inter-
relacional, dinâmica, atenta a rias possibilidades, a múltiplas interações e causas
que devem ser contempladas na teorização e análise das Relações Internacionais,
inclusive para fazer jus à abordagem de gênero.
Por fim, constata-se na abordagem tradicional das Relações
Internacionais o primado do externo em sua feição anárquica, competitiva e por
isto, afeita à manifestação da guerra e da violência em função de não haver uma
autoridade efetiva acima de todo e qualquer Estado para coibi-los. Tal ênfase nas
distintas abordagens realistas se configuraria na única constatação efetivamente
objetiva sobre o plano internacional segundo a ótica hegemônica. Ora, uma
perspectiva de isolamento analítico e de uma única sociedade foi assinalada
como inadequada conforme Rubin (1975). No esteio de uma afinidade disto com
o desenvolvimento desigual e combinado, deve-se considerar um caráter dialético
de interação entre interno e externo, bem como da multiplicidade societal a ser
considerada e não somente o plano internacional. Em termos bem específicos e
se direcionando para a análise final das autoras mencionadas no terceiro debate
teórico internacionalista, dever-se-ia visitar as Relações Internacionais no seu lócus
com a contribuição de gênero e seu caráter inter-relacional e que este pudesse
ser também visitado, o que de fato não ocorre. As contribuições de Tickner
(1988) e Sjoberg (2011) possuem enorme relevância e merecem enorme respeito,
mas infelizmente incorporam a lógica de que a contribuição de gênero visita as
Relações Internacionais, mas estas não são visitadas, caracterizando novamente a
prisão da “Ciência Política”. Por que?
Sjoberg (2011) insiste em buscar situar a temática de gênero na estreita
e diminuta categoria de estrutura de Waltz, desenhada justamente para não
comportar qualquer outro aporte considerado não objetivo ou não positivista. A
autora não somente se equivoca ao não compreender que a especificidade teórica
de Waltz ignora por princípio qualquer outro aspecto no seu modelo teórico
simplificado que não tem a pretensão de abordar toda a realidade ou todo o
conjunto dos fenômenos internacionais à imagem e semelhança dos modelos
de pouquíssimas variáveis que melhor expressam, reproduzem ou simulam a
realidade, conforme a abordagem das “ciências duras” – como faz questão de
debater dentro da “paróquia prisional” da Ciência Política do expoente do realismo
estrutural. Por que não debater fora de tal paróquia? Por que seria necessário
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argumentar a relevância do gênero no interior da estrutura em conformidade
com a formulação de Waltz? Por que não se propõe uma abordagem teórica
alternativa no âmbito de uma perspectiva de gênero em que se desconsidere o
modelo de Waltz como parâmetro e como ponto de partida? “Fugir do presídio
da Ciência Política” implicaria em enfrentar tais indagações, ausentes no escopo
de preocupações da autora.
no que diz respeito aos argumentos de J. Ann Tickner (1988), limites
semelhante se colocam. Afinal, por que entrar na paróquia de Morgenthau (2003)
para fazer uma reformulação feminista de seus princípios do realismo político? Por
que tomar tais referenciais como ponto de partida? Por que não uma elaboração
em que se privilegie o fim do referencial de ênfase política que permeia a maior
parte da contribuição inclusive das abordagens de gênero no campo disciplinar das
Relações Internacionais? Em outras palavras, por que não fazer jus ao caráter inter-
relacional de múltiplas causalidades, sociedades, temporalidades e buscar
desconsiderar o parâmetro realista?
Tudo parece apontar para corroborar a afirmativa de Rosenberg (2016)
segundo a qual todo o terceiro debate teórico em Relações Internacionais, no que
tange às críticas ao realismo estrutural, não passou de uma nota de rodapé à teoria
e aos referenciais de Waltz (1979, 2001). Lamentavelmente, as contribuições aqui
sumariamente analisadas padecem desta mesma limitação.
Feitos tal apontamentos, passar-seàs considerações finais.
8.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se mostrar de forma embrionária ao longo deste texto como
existem afinidades, aproximações e relações entre o enfoque original referente
à categoria de gênero e a noção de desenvolvimento desigual e combinado e
como esta pode servir de contraponto ao enfoque excessivamente concentrado na
Ciência Política na abordagem tradicional das Relações Internacionais, inclusive
no que diz respeito a duas relevantes contribuições teóricas críticas que buscam
incorporar a referida categoria de gênero a tal controvérsia.
A tulo de palavras finalizadoras, entende-se que a reflexão aqui
apontada demanda uma análise mais abrangente de outras contribuições teóricas
tanto no âmbito da temática de gênero como na de teorização das Relações
Internacionais.
Algumas perguntas merecem uma reflexão futura: como especificamente
poderia a abordagem das Relações Internacionais “visitar” e contribuir para a
discussão de gênero? A pista foi deixada na própria elaboração de Rubin (1975)
indicando a necessidade de incluir a ampliação da discussão como agenda de
pesquisa, embora não colocada exatamente nestes termos.
PASSOS, R. D. F.
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Outra pergunta: como buscar uma teorização alternativa sem os
referenciais da abordagem internacionalista tradicional que faça jus aos pontos
que
caracterizariam uma perspectiva de gênero? Como sair da penitenciária
epistemológica da Política?
Os aspectos teóricos de tal formulação alternativa deveriam atentar
mais para as questões práticas como unidade orgânica que pauta o fazer prático
e o fazer teórico-, do cotidiano de carne e osso de homens e mulheres ao invés de
sempre tomar por base o referencial abstrato das bolas de bilhar. Ir para além das
“prisões cotidianas que marcam as distinções de gênero está organicamente atado
ao movimento de ir para além das prisões epistemológicas dentro desta temática.
9.
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