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Violência contra a mulher: uma guerra dos sexos na arena
da luta de classes
Violence against women: a war of the sexes in the arena of the
class struggle.
Plínio A. B. Gentil
1
Luila Ferreira Eccheli
2
resumo: Este trabalho fala da violência do homem contra a mulher. Mas principalmente trata da
causa remota dessa violência. Considera que essa causa é histórica e encontra explicação naquilo em
que se transformou o papel da mulher numa sociedade de classes. De pessoa socialmente situada
no mesmo patamar dos homens, ela transita – na medida em que as forças produtivas impõem
novas relações de produção – para um lugar subalterno, porque não é agente produtora de riqueza
material. A subalternidade é ideológica, isto é, construída por um pensamento que apenas valoriza
aquilo que pode se tornar propriedade; a ideologia é uma invenção, que dissimula a desigualdade
entre as classes, mas isto não faz aquela subalternidade menos intensa nem menos dolorosa. A
sociedade de classes impõe o casamento monogâmico, a benefício do homem proprietário, e este
amor sexuado individual, associado a tal tipo de relação, justica, para eles, a resposta violenta a
qualquer suposta transgressão à regra. Assim é que, ao relegar à porção feminina da humanidade um
papel social e ideologicamente subalterno, a sociedade de classes condenou a mulher à posição de
vítima da violência masculina. Numa palavra, a sociedade de classes (edicadora da luta de classes)
é o pano de fundo e a arena natural da guerra dos sexos.
PalaVras-chaVe: Violência. Subalternidade da mulher. Casamento monogâmico. Luta de classes.
Guerra dos sexos.
abstract: is work talks about the violence of the man against the woman. But it mainly deals
with cause of this violence. It considers this cause to be historical and nds an explanation which
has transformed the role of women into a society of classes. Of socially situated person on the same
level as men, it transits - to the extent that the productive forces impose new relations of production
- to a subordinate place, because it is not a producer of wealth material. Subalternity is ideological,
that is, constructed by a thought that only values that which can become property; ideology is
an invention that masks inequality between classes, but this does not make that subalternity less
intense or less painful. e class society imposes monogamous marriage, for the benet of the owner
man, and this love, associated with such a relationship, justies, for them, the violent response to
any alleged breach of the rule. us, by relegating to the female portion of humanity a social and
ideologically subordinate role, class society condemned women to the position of victim of male
1
Doutor em Direito e em Educação. Professor concursado de Direitos Humanos na PUC-SP. Procurador de
Justiça (SP).
2
Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Padre Albino, Catanduva – SP.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2017.v3.n1.04.p35
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violence. In a word, class society (edicadora of the class struggle) is the backdrop and the natural
arena of the war of the sexes.
Keywords: Violence. Subalternity of the woman. Monogamous marriage. Class struggle. Battle of
the sexes.
introdução
Com impressionante regularidade sucedem-se casos de violência
praticada por homens contra mulheres, em razão de sua condição de esposas,
amantes, namoradas, companheiras - que são, foram ou serão. Ao invés de buscar
respostas na maldade do homem, na natureza humana, na inuência dos maus
espíritos, ou em outras categorias metafísicas, este trabalho procura investigar
o ambiente objetivo em que se desenvolve a agressividade do homem contra a
mulher, quando associada ao amor sexuado individual, próprio de uma sociedade
historicamente construída, na qual se impôs o modelo monogâmico de união
entre sexos.
A pesquisa situa-se propositadamente em momento anterior à
concretização da violência física. Faz a denúncia do casamento monogâmico
como artifício engendrado por uma sociedade de classes com objetivos claramente
econômicos e que acaba parecendo justicar, na consciência do agressor, o emprego
da violência quando a mulher, real ou supostamente, transgride o regramento que
congura o padrão da monogamia.
Aponta-se como a mulher, tornada mercadoria, encarna a reprodução
das relações de troca próprias das sociedades de classes, sendo sempre oportuno
lembrar que o modelo capitalista de produção, que vige atualmente na maior parte
do mundo conhecido, engendra um arranjo social que se apresenta como uma
sociedade de classes. Assim, como esperado, é visível que nesse ambiente vigora
também uma guerra dos sexos, na verdade travada entre contendores desiguais,
já que apenas um deles tem a seu favor a propriedade da riqueza privada e o
reconhecimento social, fruto da ideologia dominante. Trata-se de uma guerra que
não parece ser outra coisa senão a reprodução da luta de classes, característica de
uma formação social em que há proprietários e não proprietários – que trabalham
para os primeiros.
Isto considerado, o problema do trabalho é a indagação sobre em que
patamar está situada a razão histórica para que a mulher seja a vítima recorrente
da violência masculina. Sua principal hipótese é que tal razão pode estar assentada
num processo histórico de evolução das forças produtivas, que gesta uma sociedade
de classes e que desenha, com apoio numa ideologia de dominação, um panorama
em que a mulher se vê articialmente atirada num papel de subalternidade que
facilita, para dizer o menos, sua condição de vítima da violência por parte do
homem.
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Violência contra a mulher Artigos/Articles
A investigação, que é bibliográca, caminha no sentido de explicar
a violência homicida contra a mulher como resultado lógico de um processo
histórico de degradação do papel feminino. O referencial teórico do trabalho é
o materialismo histórico dialético, especialmente útil na tentativa de encontrar
explicações fundadas na realidade concreta, representada pela produção da
existência material, considerado um processo histórico de eventos concatenados,
cuja marcha só é compreensível a partir de uma luta de forças contrárias, que enm
geram um novo fenômeno, sempre em movimento e sujeito a futuras rupturas
e transformações. Funda-se a metodologia da pesquisa na premissa segundo a
qual é a vida material que determina a consciência e não o contrário, como tão
conhecidamente exposto por Karl Marx e Friedrich Engels em suas obras.
1. a luta de classes engendra a guerra dos sexos
Já se vê que a evolução das forças produtivas vai alterando, primeiro,
as relações no interior do mesmo modelo produtivo; depois irá fazer romper o
próprio modelo produtivo. Para compreensão do que sejam forças produtivas, ou
forças de produção, tome-se a anotação de STALIN (1978, p. 13):
Os instrumentos de produção com a ajuda dos quais são produzidos os bens materiais,
os homens que manejam estes instrumentos de produção e produzem os bens materiais,
graças a uma certa experiência da produção e aos hábitos de trabalho, eis os elementos que,
tomados em conjunto, constituem as forças produtivas da sociedade.
Pois bem. A constante evolução de tais forças produtivas, no interior
da sociedade primitiva, culmina por provocar a ruptura do modelo de relações de
produção gestadas no seu interior e a imposição de um novo modelo, fundado na
possibilidade (criada pela evolução das forças produtivas) de o homem fazer guerras
e aprisionar escravos, que para ele trabalharão, sendo certo que a esse homem,
agora proprietário de escravos, sobra tempo excedente para vigiá-los, posto que
as forças produtivas chegaram ao ponto de viabilizar a produção do necessário
para o consumo em um tempo menor do que o utilizado anteriormente. Está
inventada a sociedade de classes. No escravagismo haverá o senhor e o escravo;
no feudalismo, o senhor e o servo; por m, no capitalismo, o proprietário e o
proletário.
A sociedade de classes é caracterizada pela existência de proprietários
e não proprietários – que alienam sua força de trabalho para aqueles. No
escravismo essa força de trabalho é arrancada pela brutalidade; no feudalismo
pela necessidade do servo e, no capitalismo, ela formalmente é comprada pelo
capitalista. Entre quem tem a propriedade e que efetivamente produz a riqueza há
uma luta constante, que pode ser surda ou explícita, porque é somente por meio
de algum tipo de força que o proprietário pode obrigar o não proprietário a lhe
entregar o produto do seu trabalho.
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A partir do instante em que surge a propriedade privada, ela é exclusiva
do homem, pois ele é quem sai para o trabalho gerador de riqueza, não a mulher.
Pré-existe, porém, à divisão da sociedade em classes, uma divisão sexual do trabalho:
a mulher, porque deve ser preservada da guerra e outras atividades perigosas (já
que é a maior responsável pela procriação, como visto) e porque biologicamente
é quem deve gerar, parir e amamentar a prole, atua mais no ambiente doméstico.
Até aí não há uma guerra dos sexos, pois o homem tampouco produz riqueza: o
que ele faz gera apenas o necessário para o consumo do grupo.
A divisão sexual do trabalho representará uma desigualdade entre
mulheres e homens somente quando a atividade destes produzir riqueza
da qual apenas eles se apropriarão, de forma privada. Aí sim, permanecer no
domus signicará muito mais do que uma repartição biológica de funções, antes
inofensiva, mas que agora carregará o sentido de verdadeira desigualdade social.
Daí ser viável sustentar que a guerra dos sexos surge intimamente associada
à luta de classes (à qual se assemelha), porque, como esta, é fruto da sociedade de
classes, situando-se a mulher, quase sempre, na posição de não proprietária, ou
menos proprietária. Observe-se por m que, mesmo quando a mulher gure nesse
arranjo na condição de proprietária, num patamar economicamente similar ao
homem, ainda assim será portadora de uma imagem de inferioridade historicamente
construída, por sua vez edicadora de discriminação, que a coloca numa posição
em que a violência contra ela parecerá legítima.
Mais oprimida a mulher ainda cará por conta do padrão
institucionalizado do casamento monogâmico, destinado a garantir a permanência
da propriedade com a descendência do homem e, ainda, a juntar propriedades
privadas de linhagens masculinas diversas, que, a seu turno, as transmitirão aos
seus descendentes.
Com a sociedade de classes, o casamento é um ato negocial, fruto de
um contrato: não se casa por atração entre macho e fêmea, mas sim pelo que é
economicamente interessante para as famílias dos nubentes no sentido de manter
e, se possível, multiplicar a propriedade. Nesse ambiente a virgindade da mulher
é enaltecida, porque representa a garantia de que seus lhos serão de seus maridos;
pela mesma razão a herança, primordialmente, cará em mãos do primogênito, já
que fruto da relação sexual de uma mulher até então virgem. O amor romântico,
sexualmente inspirado, como o vemos cantado e representado pelas artes, nada
tem a ver com o casamento. Este é um ajuste econômico, aquele uma coisa que
pode casualmente vicejar, mas que, sendo entre pessoas não casadas, ou casáveis,
está condenado aos domínios do impossível (como D. Quixote e Dulcinéia), ou
fadado à tragédia (como Romeu e Julieta).
A ideia de que a união monogâmica é a mais adequada para nossos
parâmetros sociais é tão forte, a ponto de esta ser exaltada como um dos deveres
do casamento civil; quando desrespeitada é motivadora de responsabilidade civil
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Violência contra a mulher Artigos/Articles
e, até a revogação do tipo legal do adultério, de responsabilidade criminal. Vale
anotar que, entretanto, subsiste o crime de bigamia (art. 235 do Código Penal).
Quanto à monogamia, aponta LESSA (2012, p. 9):
A ilusão de que nossa forma de organização da vida familiar é a a única possível leva a
uma concepção supercial e precária do que é a monogamia. Ela seria a obrigação moral
de pessoas não traírem seus amados. E esta traição tem sempre o mesmo conteúdo: amar
ou ter relações sexuais com outras pessoas. A monogamia se reduziria a um preceito a
ser seguido na relação “honesta” entre duas pessoas que se amam. Duas pessoas que se
amam, reza a moral, devem constituir um núcleo familiar ( por isso, família “nuclear”)
separado da vida comunitária comum. E a delidade mútua dos cônjuges é um elemento
indispensável para a sobrevivência desse núcleo familiar.
De resto, caberá à ideologia, versão fantasiosa da realidade conforme
um recorte de classe do observador (CHAUÍ), dar corpo ao padrão do arranjo
social institucionalizado e propagá-lo, no que contará com o auxílio das agências
de comunicação alinhadas com o mesmo ponto de vista.
2. a mulher, essa excluída
Durante o período em que as sociedades viviam em grupos e tudo era
produzido para a subsistência de todos, a mulher era preservada de riscos ante
a nalidade de garantir a prosperidade e continuidade da espécie: se houvesse
apenas uma mulher, independente do número de homens com que copulasse,
poderia ter apenas uma prole por vez; ao contrário, existindo muitas mulheres,
seria possível aumentar o número dos representantes garantindo sua existência.
Neste sentido diz LESSA (idem, p. 18):
Como a morte de um homem adulto não alterava a quantidade de bebês que o bando
poderia ter, a vida das mulheres era mais protegida e na divisão das tarefas não cabiam a
elas, na maior parte dos casos, as mais perigosas.
A partir do momento em que o homem começou a produzir mais
do que consumia, passou a utilizar seu tempo para escravizar e explorar outros
homens, surge a sociedade de classes. Após o escravismo ocorre o salto para o
feudalismo: senhores de terras agora permitiam que determinadas pessoas
(servos) produzissem em sua propriedade sob a condição de lhes entregar parte da
produção. O capitalismo completa o ciclo das sociedades classistas, ao impor-se
ao modelo feudal, num momento em que as forças produtivas tinham alcançado
um desenvolvimento que possibilitava a concentração de riqueza pelo indivíduo,
tornado assim o centro irradiador das novas relações de produção, as relações
capitalistas.
De tal sorte, as antigas relações igualitárias que vigiam na antiga
sociedade primitiva, de produção comunal, são substituídas por relações de poder,
próprias de uma sociedade de classes, baseadas na concentração da propriedade; a
partir daí as mulheres vão perdendo importância, já que a elas o que está destinado
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é o trabalho doméstico – no domus
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- e a criação da prole, ou seja, atividades que
não geram propriedade.
Como conseqüência, a mulher vê-se excluída da vida social, sendo sua
jornada restrita ao ambiente familiar. De novo observa LESSA (idem, p. 37):
Excluídas da participação na vida social, com sua existência reduzida ao estreito horizonte
do lar patriarcal, as mulheres vão se convertendo no feminino que predominou ao longo
de milênios: pessoas dependentes, débeis, frágeis, ignorantes, bonitas para os homens aos
quais devem servir, dóceis, compreensivas. Enm, pessoas moldadas para a vida submissa
e subalterna que lhes cabe na sociedade de classes.
No campo afetivo, as classes fazem-se representar por uma concepção
de gêneros; muitas vezes sem compreender a origem histórica de sua opressão,
as mulheres lutam por uma certa liberdade, mas deixam de lado a luta contra a
sociedade de classes, a superação da propriedade privada, a família monogâmica e
o patriarcalismo. Reivindicando igualdade no mercado de trabalho, na realidade
rearmam a legitimidade do modelo explorador. A respeito disso vale conferir o
quanto observa CHAUÍ (2001, p. 121):
Defender a igualdade no mercado de trabalho não é criticar a exploração capitalista do
trabalho, mas é mantê-la, fazendo com que as mulheres tenham igual direito de serem
exploradas e de realizarem trabalhos alienados. Seria preciso que as mulheres, como
movimento social, pudessem levar a cabo a crítica do próprio trabalho no modo de
produção capitalista, em vez de desejarem virar força de trabalho
.
De fato. Paradoxalmente o feminismo, muito freqüentemente, deixa de
atirar no alvo adequado, de onde certamente advém a razão de muitos dos seus
problemas que, não raramente, levam a uma efetividade apenas razoável. Mas não
é objetivo deste trabalho ingressar em campo tão extenso e complexo.
2.1. inconsistência da diferença entre mulheres e homens
Já se verificou que a subalternidade da mulher não é uma
questão pré-estabelecida pela natureza, mas socialmente construída a
partir da sociedade de classes. A propósito, nem se pode falar de um perfil
naturalmente feminino, de maneirismos e aptidões decorrentes do gênero a
que uma pessoa pertença.
Vale, a esse respeito, atentar para conhecido trabalho da antropóloga
Margaret Mead, que, ao analisar a tribo Tchambuli, da Nova Guiné, pôde
perceber que existe ali uma inversão de papéis entre os sexos, pois as mulheres se
dedicam a cozinhar, a remendar redes de pescas, à produção de mosqueteiros e à
manufatura em geral, a pescar e a colher; em contrapartida os homens se dedicam
a artes como dança, escultura, trançado, pintura e outras.
3
Domus: no latim, casa.
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Violência contra a mulher Artigos/Articles
Os homens têm a permissão de realizar compras de alimentos no
mercado e a comercializar os mosqueteiros, mas, ainda assim, quem controla
os lucros são as mulheres, sendo necessário o consentimento da mulher para
que o marido possa gastar o que traz de volta das compras. Nítida se mostra
a inexistência de um papel estabelecido pelo sexo, pois ambos são capazes de
desempenhar as mesmas atividades.
Segundo a antropóloga (1969, p. 303),
historicamente, nossa própria cultura apoiou-se, para a criação de valores ricos e
contrastantes, em muitas distinções articiais das quais a mais impressionante é o sexo.
Não será pela mera abolição dessas distinções que a sociedade desenvolverá padrões em
que os dons individuais hão de receber o seu lugar, em vez de serem forçados a um molde
mal-ajustado. Se quisermos alcançar uma cultura mais rica em valores contrastantes,
cumpre reconhecer toda a gama das potencialidades humanas e tecer assim uma
estrutura social menos arbitrária, na qual cada dote humano diferente encontrará um
lugar adequado.
É usual a fala de que a superioridade masculina evidencia-se pela maior
força física e inteligência; anal, os grandes feitos, invenções e descobertas são
méritos do homem. Cuida-se de posturas que omitem as condições de histórica
opressão e afastamento do espaço público imposto à mulher.
Sobre este cerceamento manifesta-se LESSA (op. cit., p. 65):
A negação da participação na vida coletiva implica imediatamente horizontes muito
rebaixados das necessidades e possibilidades presentes na vida cotidiana, e isto conduz a
individuações muito pobres e carentes de substância social.
Conquanto se demonstre cienticamente a inconsistência de quaisquer
tentativas de xar uma subalternidade natural à mulher, o sistema de dominação entre
classes, que engendra a inferioridade social dela, impõe-se por meio de uma ideologia
capaz de contaminar até mesmo as próprias mulheres, tendentes a naturalizar a
desigualdade e explicá-la por meios ditos cientícos. É desnecessário dizer que
nenhuma explicação dessa espécie é capaz de sustentar-se ante uma crítica séria.
3. monogamia, mulher-objeto, ciúme e Violência
De seu turno, a adoção da monogamia como padrão de uniões entre
sexos contribui para fazer aorar sentimentos de posse e ciúme.
No passado, principalmente no que se refere ao período anterior à
fase pré-monogâmica (ENGELS), não havia disputas signicativas pela fêmea,
visto que as relações eram recíprocas; porém, a partir dessa fase, devido ao fato
de muitas vezes faltarem mulheres, elas passaram a ser literalmente compradas
pelos homens, o que de certa forma fazia com que estes as enxergassem e as
tratassem como mercadoria, já que a seus olhos tinham preço, assim como seus
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demais bens. Uma vez sendo adquirida, a mulher passava a ser um objeto, sem
vontade própria, dependente dos mandos e desmandos de seu senhor. Para além
dessa dinâmica interna da sociedade primitiva, está sendo gestada a sociedade de
classes, que traz a monogamia. Assim, estabelece-se, dentro desse novo modelo
de sociedade um outro confronto: entre homens e mulheres, engendrado pela
divisão sexual do trabalho.
Sobre a relação da monogamia com o rebaixamento feminino manifesta-
se outra vez LESSA (ibidem):
O casamento monogâmico tem um fortíssimo impacto sobre o desenvolvimento dos
processos femininos de individuação, acima de tudo porque relega às mulheres atividades
que foram reduzidas a serviços privados para os senhores do lar (ou do prostíbulo).
A noção de propriedade e posse evolui para a consideração da mulher
como verdadeiro objeto, que portanto perde sua humanidade. Coerentemente
com isso, já se positivou no direito brasileiro, até a revogação ocorrida em 1962
(pelo Estatuto da Mulher Casada), a incapacidade relativa da mulher casada: o
Código Civil de 1916
4
, não mais vigente, em seu artigo 6º, determinava que
elas eram relativamente incapazes, permanecendo nesta condição enquanto
subsistisse a sociedade conjugal; foram dessa maneira equiparadas aos maiores
de dezesseis e menores de vinte e um anos, aos pródigos e aos silvícolas. De
acordo com o mesmo código, o sobrenome do marido foi obrigatoriamente
usado pela mulher, até a vigência da chamada Lei do Divórcio, de 1977.
Assim é que a relação de propriedade parece dar ao homem o
direito de usar, fruir e dispor de sua mulher-objeto; portanto, quando esta
não corresponde ao padrão comportamental esperado, poderá ser tratada pelo
proprietário com o adequado rigor. Aí está o panorama em que ocorrem os
incontáveis casos de violência contra o sexo feminino.
Outro sentimento decorrente dessa relação de propriedade é o ciúme,
incompreensível no tempo das uniões não monogâmicas. Quando a mulher
passa a ter o dever de exclusividade em relação a um homem, a situação muda
em seu prejuízo: o adultério masculino é tradicionalmente tolerado, o que
não ocorre com o feminino.
Para HOBBES (2002, p. 50), “o ciúme é o amor junto com o receio de
que esse amor não seja recíproco.
Acerca do ciúme assim se coloca ELUF (2007, p. 160):
O sentimento de “posse sexual” está intimamente ligado ao ciúme. Há quem entenda
não existir amor sem ciúme, mas é preciso vericar que o amor afetuoso é diferente do
amor possessivo. Em ambas as categorias amorosas pode existir ciúme; amigos sentem
ciúme uns dos outros; irmãos sentem ciúme do amor dos pais; crianças demonstram,
sem rodeios, seus ciúme generalizado de tudo e de todos. Embora esses sentimentos
4
Lei nº 3.071, de 1º dejaneiro de 1916.
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Violência contra a mulher Artigos/Articles
tenham a mesma natureza do ciúme sexual, são diferentes na sua intensidade e nas
consequências que produzem na vida dos envolvidos. O amor-afeição não origina a idéia
de morte porque perdoa sempre, ainda que haja ciúme. Já o amor sexual-possessivo é
muito egoísta, podendo gerar ciúme violento que leva a graves equívocos , inclusive ao
homicídio.
Nesse tema interessa observar que a pena, normalmente denida
como “a resposta ao crime cometido pelo imputável e [que] possui, segundo a
doutrina, nalidade retributiva e preventiva” (GENTIL, 2009, p. 85), parece não
produzir qualquer estímulo aversivo no agressor. De outro lado, o trânsito da
objeticação da mulher para o ciúme possessivo e daí à violência é compreensível:
a propriedade há de ser mantida contra qualquer turbação, se preciso for, com
recurso ao desforço imediato (Código Civil Brasileiro, art. 1210, § 1º: O possuidor
turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força).
considerações finais
Embora o sexo feminino tenha alcançado inúmeras conquistas, não
chegou ainda a lograr uma igualdade de fato, estando ainda numa condição que
o predispõe a sofrer variados tipos de violência, especialmente aquela praticada
por seus parceiros homens.
As mulheres não diferem dos homens, social ou intelectualmente,
carecendo de amparo cientíco qualquer pretensão neste sentido. A sociedade,
porém, dá tratamento diferente a cada um desses dois exemplares da humanidade;
sendo assim, o humano do sexo feminino é vítima de uma sociedade na qual o
seu correspondente masculino detém prerrogativas e direitos, além de praticar a
injustiça no dia-a-dia, decorrente do preconceito e da discriminação de gênero
existentes.
Que tal injustiça chega às raias da violência criminosa o atesta o
conhecimento empírico de todos, ante a frequência com que se sucedem casos
de espancamentos, torturas, físicas e psíquicas, lesões e mortes de mulheres
por homens, legitimados por uma posição de superioridade em relação a
elas, que é resultado de uma desigualdade construída no contexto de uma
sociedade de classes. O homem proprietário também o é da mulher, que com
ele tem a obrigação de um amor exclusivo e alienado.
O que se procurou fazer nesta pesquisa foi analisar o processo por
meio do qual se torna explicável – embora injusticável – o surgimento de tal
sentimento de propriedade, dessa relação senhor-objeto, dominante-dominado,
que está na raiz da violência a que este último está sujeito.
O sentimento de propriedade do qual se fala aparece historicamente,
sendo produto lógico de um processo dialético que se põe em marcha a partir
da evolução das forças produtivas e das consequentes adequações dos modelos
produtivos (e suas relações de produção). Tal processo explica porque, a um
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tempo, a mulher, cuja atividade principal acontece no ambiente doméstico, se
vê atirada num cenário de desigualdade com o homem, que passa a acumular
riqueza excedente e impõe a união monogâmica como garantia da paternidade dos
lhos que gera, aos quais pretende transmitir, com exclusividade, a propriedade
da riqueza acumulada por seu trabalho, apropriada somente por ele, de forma
privada.
O tratamento desigual (porque não produz patrimônio), o rebaixamento
de seus horizontes afetivos (porque lhe está interditada a possibilidade de amar
espontaneamente), a clausura intelectual (porque se vê impedida de atuar fora do
cenário doméstico), impõem à mulher uma condição objetiva de subalternidade,
que a conduz ao desempenho de um papel ideologicamente visto como inferior,
tornando-se, portanto, presa fácil de uma relação de dominação na qual atua
como a parte dominada, sem dignidade, feita objeto de um proprietário.
Daí à violência, que não raramente descamba para a agressão física,
é um passo, ao qual o seu algoz – ele também alienado pelo mesmo processo
histórico – considera, com honesta sinceridade, ter direito. Como senhora apenas
do território doméstico e objeto de propriedade masculina, ser de horizontes
apequenados, incapaz de impor-se, resta à mulher o triste papel de vítima da
violência do homem, seu senhor, frente à qual a sociedade ainda apresenta
razoável tolerância.
Em suma e ao cabo, a luta de classes, que está no eixo do modelo
produtivo atual, como esteve no de modelos anteriores, constitui o ambiente,
ou melhor, a arena em que se desenrola a guerra dos sexos, ambas frutos de uma
sociedade de classes, desigual, excludente, injusta e intolerante e que, naquilo que
interessa ao tema do trabalho, faz da metade feminina da humanidade uma de
suas vítimas preferenciais.
referências
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46 Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.3, n.1, p. 35-46, Jan./Jun., 2017
GENTIL, P. A. B.; ECCHELI, L. F.