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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: MULHERES ENCARCERADAS E O USO DE
ALGEMAS
OBSTETRICAL VIOLENCE: INCARCERATED WOMEN AND HANDCUFFS USE
Josilene Hernandes Ortolan Di Pietro
1
Ana Cláudia dos Santos Rocha
2
RESUMO: O presente trabalho propõe uma reflexão sobre o art. do Decreto n. 8858/2016,
que proíbe o uso de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário
nacional durante o período de trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional
e a unidade hospitalar e também após o nascimento da criança, durante o período em que ela se
encontrar hospitalizada. O objetivo é demonstrar como o tema está regulamentado na legislação
brasileira e analisar se o desrespeito à esta regra caracteriza violência obstétrica, por implicar um
procedimento que confere tratamento desumano a mulher, imobilizando-a no momento de dar à
luz, sobretudo por se tratar de um grupo de mulheres que se encontram extremamente vulneráveis,
que o as mulheres recolhidas ao cárcere. A relevância e importância desta discussão respalda-se
também na aprovação da Lei n. 13434/2017, que acrescentou um parágrafo único ao art. 292
do Código de Processo Penal brasileiro, vedando o uso de algemas nas condições descritas. De
caráter descritivo, a partir do método de abordagem dedutivo, utilizar-se-ão estudos bibliográficos
existentes sobre o tema, além de leis e jurisprudência. Conclui-se que mesmo com o aparato
normativo existente, essa prática reiterada arbitrária e ilegal é recorrente, o que revela a necessidade
de adoção de políticas públicas que reconheçam o uso de algemas em mulheres presas durante o
estado puerperal como violência obstétrica e consequentemente violência de gênero.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
:
Violência Obstétrica; Uso de Algemas; Mulheres Encarceradas.
ABSTRACT: This paper proposes a reflection on art. 3 of Decree n. 8858/2016, which prohibits
the handcuffs use on women prisoners in any unit of the national penitentiary system during the
period of labor, on the parturient’s journey between the prison unit and the hospital unit, and also
after the birth of the child during During which she is hospitalized. The objective is to demonstrate
how the subject is regulated in the Brazilian legislation and to analyze if the disrespect to this rule
characterizes obstetric violence, since it implies a procedure that confers inhuman treatment to the
woman, immobilizing her at the moment of giving birth, mainly because it is A group of women
1
Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Doutora em Direito Político e Econômico
pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. email: lene_ortolan@hotmail.com
2
Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Doutoranda em Educação pela Universida-
de Federal da Grande Dourados (UFGD) membro da rede latino-americana e caribenha de educação em direitos
humanos. email: advaclaudia@gmail.com
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2017.v3.n1.03.p23
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DI PIETRO, J. H. O.; ROCHA, A. C. S.
who are extremely vulnerable, who are the women taken to jail. The relevance and importance of
this discussion is also supported by the approval of Law no. 13434/2017, which added a single
paragraph to Art. 292 of the Brazilian Criminal Procedure Code, prohibiting the use of handcuffs
under the conditions described. From a descriptive character, using the method of deductive
approach, will be used existing bibliographic studies on the subject, besides laws and jurisprudence.
It is concluded that even with the existing normative apparatus, this repeated and arbitrary practice
is recurrent, which reveals the need to adopt public policies that recognize the handcuffs use in
women prisoners during the puerperal state as obstetric violence and consequently genre violence.
K
EYWORDS
: Obstetric Violence; Handcuffs use; Incarcerated Women.
I
NTRODUÇÃO
Algemas são um instrumento composto de ferro, consistente em
duas argolas interligadas, para realizar a prisão de um indivíduo. O uso de
algemas é meio pelo qual o Estado, por meio de seus agentes legitimados,
visa
limitar a movimentação dos membros superiores (por vezes também os
inferiores)
do cidadão, em razão da realização de uma prisão (seja ela em flagrante ou
qualquer outra modalidade), com o objetivo de impedir uma reação inesperada
contra os agentes que realizam ou realizaram a medida.
Por se tratar de um ato que restringe a liberdade do indivíduo, afetando
diretamente direitos fundamentais do cidadão e a dignidade da pessoa humana,
o seu uso deve(ria) ser excepcional. Assim, necessário se faz analisar se o uso
de algemas respeita as normas que o regulamenta e se está de acordo com os
ditames constitucionais e princípios que o regem, notadamente quando a cidadã
em questão for a mulher, parturiente, no momento que inicia, durante e após o
período de trabalho de parto.
Independentemente dos motivos que ensejaram a prisão da mulher,
isto é, seja uma prisão cautelar ou prisão pena (decorrente de sentença penal
condenatória irrecorrível)
3
, o emprego das algemas não pode ser óbice a
direitos humanos e fundamentais. Assim, manter uma parturiente algemada é
desrespeitar a dignidade da pessoa humana.
Para elucidar o tema em debate, far-se-á, por meio de pesquisa
bibliográfica, uma análise da regulamentação do uso de algemas no ordenamento
jurídico brasileiro e nas normas internacionais, especificando-se a questão quanto
ao emprego em mulheres presas parturientes, com o objetivo de demonstrar
que esta prática configura violência obstétrica e consequentemente violência de
gênero.
3
“Prisão é a privação da liberdade, tolhendo-se o direito de ir e vir, por meio do recolhimento da pessoa humana
ao cárcere. A prisão-pena advém da imposição de sentença condenatória, com trânsito em julgado. A prisão
cautelar é fruto da necessidade de se obter uma investigação ou instrução criminal produtiva, eficiente e livre
de interferências. Embora ambas provoquem a segregação do indiciado ou acusado, a primeira constitui efetiva
sanção penal; a segunda o passa de uma medida de cautela, com o fim de assegurar algo. Não é um fim, mas
um meio” (NUCCI, 2016, p. 531).
Violência obstétrica
Artigos/Articlesw
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1
TRATAMENTO CONFERIDO AO USO DE ALGEMAS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
O uso de algemas no Brasil sempre foi uma questão polêmica e carente
de regulamentação jurídica, permitindo interpretações conforme conveniência e
oportunidade daqueles que dele se utilizam e gerando desrespeitos aos direitos e
garantias fundamentais daqueles que são subjugados a ele.
O documento normativo que primeiramente tratou do tema foi o
Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei 1.002/1969 CPPM) ao
determinar, em seu art. 234, que
o emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência,
resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser
usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus,
inclusive a prisão do ofensor (...).
Ainda, no §1
o
do mesmo artigo, o CPPM disciplinou a utilização de
algemas, prescrevendo que: “O emprego de algemas deve ser evitado, desde que
não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso(...)”.
Assim, tem-se que o diploma processual penal militar regulamentou
o uso de algemas em caráter excepcional, sendo autorizado apenas em situações
caracterizadas pela resistência, violência ou risco do preso se evadir.
Posteriormente, a Lei de Execuções Penais (Lei n. 7210/1984 LEP),
determinou em seu art. 199 que o emprego de algemas deveria ser disciplinado
por decreto federal, o que ocorreu somente trinta e dois anos após, com a edição
do Decreto n. 8858/16.
Antes da edição do decreto regulamentador, o tema foi disciplinado
pelo Código de Processo Penal, que após micro reformas tratou do uso de algemas
durante o julgamento em plenário do ri
4
. Além desta situação, extrai-se o caráter
excepcional do uso de algemas do art. 284 do CPP, ao determinar como regra a
não permissão do emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência
ou de tentativa de fuga do preso, durante a realização de prisão. E ainda, o art.
292 do mesmo diploma legal, que reitera a autorização do uso dos meios que se
fizerem necessários, inclusive o uso algemas quando houver resistência à prisão.
Todavia considerando o vasto período de lacuna, verificou-se abuso e
desvio de finalidade no uso de algemas, o que levou o Supremo Tribunal Federal
(STF) a editar a Súmula Vinculante
5
(SV) n. 11, disciplinando a matéria, nos
4
Conforme preo art. 474, §3
o
do CPP: Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em
que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das
testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.”
5
Trata-se da reunião de julgados sobre um tema específico, após reiteradas decisões em um mesmo sentido, que
é reduzida a um enunciado em forma de súmula, com o intuito de registrar qual o entendimento do tribunal
DI PIETRO, J. H. O.; ROCHA, A. C. S.
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termos seguintes:
é lícito o uso de algemas em casos de resistência e fundado receio de fuga ou de perigo
à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a
excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem
prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
Importante registrar um trecho dos argumentos utilizados pelo Ministro
Marco Aurélio de Mello durante o debate de aprovação da Súmula:
A regra é ter-se, com as cautelas próprias, a condução do cidadão, respeitando-se,
como requer a Constituição Federal, a respectiva integridade física e moral. Mencionei,
Presidente, como referências, em primeiro lugar, o diploma primário, o diploma
básico - a Constituição Federal-, aludindo ao artigo 1
o
, que versa os fundamentos da
República e revela, entre esses, o respeito à dignidade humana. Também fiz alusão, sob o
ângulo constitucional, a outra garantia: a garantia dos cidadãos em geral, dos brasileiros
e dos estrangeiros residentes no Brasil com respeito à integridade física e moral. Em
última análise, mencionei o inciso XLIX do artigo 5
o
a revelar que de se respeitar a
integridade física e moral do preso. Lastimavelmente, no Brasil, considerados os danos,
a
responsabilidade civil, administrativa e até a penal ainda engatinham. (...) Estamos
vivendo um período de perda de parâmetros, de abandono a princípios, princípios caros
em uma sociedade que se diga democrática. (2008, p. 14-15).
Observa-se que no centro da discussão da aprovão da súmula vinculante
estava o fundamento do respeito à dignidade humana (fundamento da república
federativa do Brasil art. 1
o
, III da Constituição Federal de 1988 CF/88) além
do direito ao respeito à integridade física e moral de tosas as pessoas, diga-se, de
todas, sem exceção, inclusive do preso (art. 5
o
, III e XLIX CF/88). Conclui-se,
assim, que súmula consagrou a tese da excepcionalidade do uso de algemas a partir
do exposto expressamente na CF/88, sobretudo quando determina que “ninguém
sesubmetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5
o
, III,
CF/88), sob pena de se violar preceitos constitucionais essenciais.
E para atender estes ditames, a súmula vinculante n. 11 fixa a regra da
total excepcionalidade do uso de algemas, com a finalidade de:
a)
para prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada
suspeita ou justificado receio de que isso ocorrerá; b) para evitar agressão do preso contra
os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo (MENDONÇA, 2011, p.
119).
Para assegurar o cumprimento desta regra, a súmula prevê
consequências para o descumprimento dessas formalidade e finalidades, que são
a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente; responsabilidade civil do
Estado e até mesmo a nulidade da prisão ou respectivo ato processual para o qual
foi utilizada.
sobre aquele tema, que deverá ser respeitado.
Violência obstétrica
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Registra-se que o Projeto de lei do Senado n. 156/2009 (que propõe o
Novo CPP) prevê regulamentar o tema no âmbito da legislação processual penal
ordinária, inserindo no art. 535, § 1
o
normas para o uso de algemas
6
.
Por fim, foi editado no direito pátrio, após mais de três décadas, o
Decreto n. 8858/2016, com o objetivo de regulamentar o art. 199 da LEP.
em seu primeiro artigo, o decreto traça as diretrizes para o emprego de algemas,
estabelecendo que seu uso deve se dar em observância ao que dispõe a Constituição
Federal de 1988 com relação a proteção e a promoção da dignidade da pessoa
humana (art. 1
o
, III) e ainda quanto à proibição de submissão ao tratamento
desumano e degradante (5
o
, III).
O decreto, portanto, reafirma o que era discutido na doutrina e
o entendimento jurisprudencial do STF. Tanto que em seu art. 2
o
determina
ser
permitido o emprego de algemas somente quando restarem caracterizados
resistência e fundado receio de fuga, ou ainda, “de perigo à integridade
física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua
excepcionalidade por escrito.
2
USO DE ALGEMAS EM MULHERES PRESAS ANTES, DURANTE E APÓS O TRABALHO DE
PARTO
A permissão (como regra) ou vedação do uso de algemas na mulher
presa durante o trabalho de parto é tema que envolve interesses contrapostos: o
sistema prisional defende sua utilização como forma de se assegurar segurança
e integridade dos agentes e profissionais envolvidos enquanto por outro lado
argumenta-se o direito à dignidade, à integridade, ao respeito e conforto da
mulher durante e após a realização do parto.
O Decreto n. 8858/2016 ao regulamentar expressamente o art. 199
da LEP, trouxe grande e aplaudível novidade ao conferir tratamento específico
quanto ao uso de algemas em mulheres presas, sobretudo no que se refere à presa
durante o trabalho de parto. Conforme prevê o decreto:
Art. O emprego de algemas observará o disposto neste Decreto e terá como diretrizes:
(...)
a)
- a Resolução n
o
2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o
tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres
infratoras (Regras de Bangkok); e
6
Dispõe referido artigo: “Do mesmo modo, o emprego de algemas constitui medida excepcional, justificando- se
apenas em situações de resistência à prisão, fundado receio de fuga ou para preservar a integridade física do
executor, do preso ou de terceiros. § 2
o
expressamente vedado o emprego de algemas: I como forma de
castigo ou sanção disciplinar; II por tempo excessivo; III quando o investigado ou acusado se apre- sentar,
espontaneamente, ao juiz ou ao delegado de polícia. §3
o
Se, para execução da prisão, for necessário o emprego
de força ou de algemas, a autoridade fará registro do fato, com indicação de testemunhas.”
DI PIETRO, J. H. O.; ROCHA, A. C. S.
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b)
- o Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos
presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.
(...)
Art. 3º vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do
sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente
entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em
que se encontrar hospitalizada. (grifamos)
A importância desta conquista reflete na necessidade do tratamento
adequado às mulheres encarceradas. Ademais, o sistema carcerário brasileiro
hodierno revela números elevados de mulheres presas. De acordo com dados do
INFOPEN (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), entre os
anos 2000 e 2014, a população carcerária de mulheres no sistema penitenciário
cresceu 567%. Em 2014 eram 37.380 mulheres encarceradas. Em contrapartida,
o crescimento da população de homens presos foi de 220% neste mesmo período.
No ano 2000 as mulheres representavam 3,2% da população carcerária. No
ano de 2014 elas passaram a representar 6,4% deste total (MINISTRIO DA
JUSTIÇA, 2014).
Nestes ponto, com o objetivo de melhorar as necessidades das mulheres
no cárcere, destacam-se as chamadas “Regras de Bangkok” (Resolução 2010/16
do Conselho Econômico e Social), que se referem às Regras Mínimas para o
Tratamento de Mulheres Presas e foram aprovadas na 65
a
Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 2010. Trata-se de marco
teórico normativo internacional sobre o tema.
O inciso II do art. 1
o
do Decreto n. 8858/2016 adota como diretriz
as
Regras de Bangkok, que no tocante ao uso de algemas determina: “Regra 24:
Instrumentos de contenção jamais deverão ser usados em mulheres em trabalho
de
parto, durante o parto e nem no período imediatamente posterior.”
Ainda, no inciso III do art. 1
o
, o Decreto em comento estabelece que
o uso de algemas deve se orientar pelas regras do Pacto de São José da Costa Rica
(Decreto n. 678/94), pelo qual (art. 5. Item 2): “Ninguém deve ser submetido a
torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa
privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente
ao ser humano”.
Destarte, observa-se a existência de um aparato constitucional, legal e
até mesmo de normas previstas em tratados internacionais, dos quais o Brasil é
signatário. Ressalta-se que o decreto apenas reafirma direitos constitucionalmente
assegurados.
E ainda, no mês de abril de 2017 foi sancionada nova lei (n. 13434/17),
que acrescentou um parágrafo único ao art. 292 do CPP, prescrevendo a vedação
do para uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres
durante a fase de puerpério imediato, nos seguintes termos:
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vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares
preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em
mulheres durante o período de puerpério imediato.
A Rede Justiça Criminal
7
, quando da aprovação do, à época, projeto
de lei para inserir referido parágrafo único no art. 292 do CPP, emitiu nota
reconhecendo como positiva esta ação, expondo que:
No Brasil, o ambiente carcerário, em sua absoluta inadequação às necessidades da
população prisional feminina, desrespeita seu direito à saúde, seus direitos sexuais
e reprodutivos, a preservação do núcleo familiar, a maternidade e impõe às mulheres
condições de cumprimento da pena significativamente mais severas do que as previstas
na lei, violando a proporcionalidade e humanidade da sanção. Neste sentido, a aprovação
de referido projeto presta-se sobretudo a dar concretude à lei penal e constitucional, por
meio das quais está resguardado o respeito à integridade física e moral de pessoas privadas
de liberdade. Representa, por isso, um tímido, mas necessário passo para a garantia de
um tratamento humanitário, livre de constrangimento e violência, às mulheres presas.
(2016, p.01)
Isso porque, no Brasil, mesmo diante de toda regulamentação, a
utilização de algemas durante todo o trabalho de parto de mulheres encarceradas é
aplicada, ainda que não reste configurada qualquer das hipóteses autorizadoras de
seu uso nos termos legais. A edição do decreto e posteriormente da lei acima citada
refletem a luta em busca da abolição do uso desse instrumento durante este
período
de grande vulnerabilidade da mulher presa.
3
M
ULHERES PRESAS E O USO DE ALGEMAS
:
PRÁTICA DE VIOLÊNCIA OBSTRICA
A violência obstétrica
8
configura-se quando a mulher gestante é vítima
de ofensas, desrespeito, descaso, tanto no momento que antecede o parto, como
durante sua realização e no período pós-parto.
Diversas condutas podem caracterizar a prática de violência obstétrica.
No Brasil, está em trâmite junto à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL)
n. 7633/2014 que versa sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato
durante o ciclo gravídico-puerperal, cujo art. 13 prescreve:
Caracteriza-se a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos
reprodutivos das mulheres pelos(as) profissionais de saúde, através do tratamento
desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause
a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos
e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.
Parágrafo único. Para efeitos da presente Lei, considera-se violência obstétrica todo ato
7
Trata-se de uma rede formada por oito organizações não governamentais que busca promover práticas de
advocacy.
8
O tema começou a ser discutido em países como Venezuela e Argentina, onde a prática é tipificada como crime
praticado contra as mulheres, razão pela qual demanda prevenção, punição e erradicação.
DI PIETRO, J. H. O.; ROCHA, A. C. S.
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praticado pelo(a) profissional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física,
as mulheres gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento e no s-parto/
puerpério.
E, no art. 14, prevê que a conduta de manter a mulher algemada
durante o período de trabalho de parto e no pós-parto é considerada prática de
violência obstétrica, nos seguintes termos:
Art. 14. Consideram-se ofensas verbais ou físicas, dentre outras, as seguintes condutas:
(...)
XVII - Manter algemadas, durante o trabalho de parto, parto e puerpério, as mulheres
que cumprem pena privativa de liberdade; (grifamos)
A violência obstétrica corresponde a uma forma da prática de violência
de gênero. Isso porque “a assistência desrespeitosa e insegura ao nascimento vai
além de ser uma prática: representa uma forma de violência de gênero e de
desrespeito aos direitos humanos” (SENA e TESSER, 2016, p.211 e 212). São
expressões da violência obstétrica:
a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal (tratamento grosseiro,
ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional) e violência física (incluindo o
utilização de medicação analgésica quando tecnicamente indicada), até o abuso sexual.
Também o uso inadequado de tecnologias, intervenções e procedimentos desnecessários
frente às evidências científicas, resultando numa cascata de intervenções com potenciais
riscos e sequelas, pode ser considerado como práticas violentas. (SENA e TESSER,
2016,
p. 211).
Conforme dispositivos legais ora analisados, o emprego de algemas
durante e após o parto de mulheres encarceradas é medida excepcional, cuja
inobservância viola a dignidade da pessoa humana. A violação destas regras
caracteriza violência obstétrica, por implicar um procedimento que imobiliza e
confere tratamento desumano a mulher, sobretudo por se tratar de um grupo de
mulheres que se encontram extremamente vulneráveis.
Para ilustrar o tema abordado, destaca-se dados obtidos pela pesquisa
“Nascer no Brasil” realizada em 2016, que traçou as condições e as práticas relativas
à atenção conferida às mulheres à gestação e ao parto durante o encarceramento
9
.
No tocante ao uso de algemas na internação em razão de trabalho de parto, das
241 (duzentas e quarenta e uma) mulheres analisadas, 86 (oitenta e seis) disseram
terem sido algemadas, sendo 53 (cinquenta e três) no pré-parto, 07 (sete) durante
o parto e 79 (setenta e nove) no pós-parto.
9
O estudo fez uma análise de série de casos a partir de um censo nacional realizado entre o mês de agosto de
2012 e janeiro de 2014. Foram ouvidas 241 es encarceradas em capitais e regiões metropolitanas brasileiras.
(LEAL ET AL, 2016).
Violência obstétrica
Artigos/Articlesw
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Portanto, dados revelam que mesmo diante da existência de
instrumentos normativos nacionais e internacionais coibindo esta prática,
35,7% dessas mulheres encarceradas foram vítimas de violência obstétrica face à
utilização de algemas nessas condições.
O que a legislação fez e ainda visa é reiterar a observância de direitos
humanos das mulheres durante todo o período de trabalho de parto, do parto
e de pós-parto, notadamente o direito à integridade física e psicológica, em um
momento no qual a mulher encontra-se diante de alterações orgânicas, fisiológicas,
corporais.
Fazer uso de algemas neste momento é algo totalmente desnecessário,
arbitrário e abusivo, pois diante do estado físico e psíquico da mulher, não há
qualquer possibilidade fática de se verificar resistência ou risco de fuga. Ademais,
nestas hipóteses, o uso está legalmente autorizado. Porém é surreal pensar nestas
situações diante da complexidade do período pré, durante e pós-parto.
C
ONCLUSõES
A discussão quanto à regulamentação do uso de algemas no Brasil
sempre revelou tema controvertido, sobretudo por carecer por muitos anos
de regulamentação específica, possibilitando violação a direitos e garantias
fundamentais, sobretudo de cidadãos em situações de vulnerabilidade, como são
as mulheres presas.
E a prisão, seja ela qual for a modalidade, se provisória ou definitiva,
não pode obstar ser óbice a direitos humanos e fundamentais. Impedir o uso de
algemas nas gestantes encarceradas antes, durante e após o trabalho de parto é
respeitar a dignidade da pessoa humana.
Trata-se, acima de tudo, de direito humano fundamental, que impede
qualquer prática de violência, resguardando sua dignidade. O uso de algemas
durante o parto caracteriza violência obstétrica, prática ilegal, arbitrária, desumana
e degradante que implica sensações de constrangimento e humilhação na mulher,
gerando danos de ordem física, psíquica e moral.
O ordenamento jurídico muito avançou na última década quanto
à regulamentação legal do tema. Porém, pesquisas revelam que mesmo com o
aparato normativo existente, essa prática reiterada arbitrária e ilegal é recorrente,
atingindo em média 1/3 da população carcerária de mulheres gestantes, o que revela
a necessidade de adoção de políticas públicas para mulheres privadas de liberdade,
reconhecendo-a enquanto forma específica de violência de gênero e direcionadas ao
atendimento das vítimas.
DI PIETRO, J. H. O.; ROCHA, A. C. S.
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REFERÊNCIAS
BARICHELLO, Tito Livio. O uso de algemas e a dignidade humana. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/anais/36/10_1132.pdf. Acesso em 03.06.2017.
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decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em 05.05.2017.
. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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. Decreto n. 8858/2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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. Lei n. 13434/2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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