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R
ECUPERAÇÃO DE APRENDIZAGEM
:
FATO OU MITO
?
LEARNING RECOVERY: FACT OR MYTH ?
Rosilene de Fatima Rocioli Messias
Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Planejamento e
Análise de Políticas Públicas - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
- Campus de Franca.
Genaro Alvarenga Fonseca
Doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2004) e
Doutorado em Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista -
Campus de Araraquara (2010).
1
R
ESUMO
:
Esta argumentação tem como objetivo analisar as políticas blicas de recuperação de
aprendizagem no que tange às normatizações, leis e algumas teorias pós-modernas existentes,
focando a qualidade em Educação como uma condição humana e um direito social. O texto
traz
o panorama histórico, pós-neoliberal, globalizado, capitalista e social no qual vivemos e as atividades
escolares, refletindo por meio da concepção histórico-crítica, a eficiência e eficácia dentro
do processo
de ensino e aprendizagem valendo-se da prática realizada nas Escolas Municipais
de Educação
Básica de Franca/SP. Para tanto, esse trabalho valeu-se da pesquisa bibliográfica e documental com
a abordagem qualitativa e com a concepção histórico-crítica. Observou-se, com os resultados, a
necessidade do tema voltar a ser discutido, ressurgindo na agenda e na pauta do poder público
municipal, na pessoa da secretaria de educação, como assunto principal da pasta a fim de melhor
reorganizar os instrumentos existentes bem como criar mecanismos e políticas públicas que
garantam
o sucesso dos alunos que são submetidos ao projeto da recuperação de aprendizagem escolar.
P
ALAVRAS
-C
HAVE
:
Políticas blicas. Recuperação de aprendizagem. Aprendizagem.
1
Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” e em Filosofia pelo Insti-
tuto Agostiniano de Filosofia (1986), Graduação em Pedagogia pela Universidade de Franca (2005), é professor
Assistente Doutor RDIDP da UNESP (Universidade Estadual Paulista) Campus de Franca nas disciplinas de:
Psicologia da Educação, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia e Metodologia da Pesquisa Científica. É
professor orientador do Programa de Pós-graduação em Análise e Planejamento em Políticas Públicas da FCHS-
UNESP-Franca. É líder do Grupo de Pesquisa CNPq: Núcleo de Estudos de Psicologia e Subjetividade e mem-
bro/pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq e pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq: Políticas blicas e
democratização do ensino no Brasil: a implementação das propostas educacionais: mudanças e permanências. É
coordenador do grupo de extensão NEACE (Núcleo de Estudos e Ações Educacionais) e do grupo de extensão
GINGA (Grupo de Incentivo a Educação e Esporte) e Professor Voluntário do Cursinho Popular Conexão. É
membro do Corpo Editorial da revista CAMINE e da revista Cadernos CIMEAC. Tem experiência na área de
Educação com ênfase em Psicologia, Ensino de História, Filosofia atuando principalmente nos seguintes temas:
Psicologia da Educação, Políticas Públicas Educacionais, Filosofia, História e Formação de professores.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2016.v2.n2.06.p87
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MESSIAS, R. F. R.; FONSECA, G. A.
A
BSTRACT
:
This paper aims to analyze public policies of recovery of learning related to rules, laws
and some existing post-modern theories, focusing on education quality as a human condition
and a social right. This text provides historical, post-neoliberal, globalized, capitalist and social
background in which we live, and school activities reflecting through the historical critical design
efficiency and effectiveness in teaching and learning process considering the practice held in
municipal schools of Basic Education in Franca/SP/Brazil. Thus, this research used bibliographic,
documentary and qualitative approaches together with historical-critical conception. We observed
the need of discussion related to the subject and the need of the subject be part of the schedule
of public administration, represented by the education secretary, as the main subject in order to
reorganize the existing instruments as well create mechanisms and public policies to ensure students
successful who are submitted to the project of recovery learning.
K
EYWORDS
:
Public policy. Recovery learning. Learnin
I
NTRODUÇÃO
No presente trabalho, discutir-sePolíticas Públicas de educação
acerca da recuperação de aprendizagem, após a década de noventa, devido aos
feitos políticos desta época, em uma sociedade submetida ao sistema capitalista,
neoliberal globalizante em meio à era tecnológica.
A Educação Brasileira, no que tange à universalização do acesso de
discentes à escola, obteve êxito nesses últimos tempos, contudo, não podemos dizer
o mesmo em relação à permanência e ao sucesso dos alunos. Nessa afirmativa está
o cerne, a importância desse artigo, pois a qualidade de educação, tão veiculada
nas mídias do país, de fato, não está acontecendo.
Observa-se a existência do discurso e do desejo de alcançar uma educação
de qualidade, democrática e emancipatória e, para tanto, criam-se programas
compensatórios contrários à retenção e à evasão, calcados em achar culpados
pelo fracasso escolar. Estes programas normalmente recaem sobre o aluno, que
supostamente é um indivíduo que não quer aprender, quiçá,sobre sua família que,
às vezes, omissa, não se preocupa com a aprendizagem do filho e, possivelmente,
sobre o professor que não sabe ensinar, segundo a lógica capitalista. Seria esta
toda
a verdade? Para Foucault (1988, pag. 38), “[...] as verdades são produções
construídas historicamente, efeitos das práticas dos chamados especialistas [...]” É
fato que o capitalismo, para se manter em expansão, necessita que os países em
desenvolvimento promovam a educação para se valer das tecnologias existentes
e para que possam cumprir os acordos firmados internacionalmente. É neste
contexto que a escola se submersa a várias ações e dentre elas, a recuperação de
aprendizagem.
Algumas reflexões inquietantes: É possível recuperar o que o se tem?
Como acontece a recuperação de aprendizagem escolar de um indivíduo? Isto é
hoje fato ou mito?
Pretende-se com essa pesquisa promover reflexões e provocações
Recuperação de aprendizagem
Artigos/Articles
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recorrendo às concepções histórico-crítica acerca do tema estudado a fim de
contribuir para a educação pública do país e em especial a do Município de
Franca/SP, por meio da revisão bibliográficae documental juntamente com a
abordagem qualitativa.
MÉTODO
A pesquisa buscou analisar como se realiza a recuperação de
aprendizagem do município de Franca. Para tanto, a princípio houve a delimitação
dos norteadores teóricos que são: autores interacionistas e histórico-críticos para
fundamentar a pesquisa. À luz do arcabouço teórico Foucaultiano, foram feitas as
análises; as políticas públicas de recuperação de aprendizagem existentes foram
lidas a fim de compreender o seu conceito e importância. E a pesquisa valeu-
se de documentos utilizados pela escola para normatizar a recuperação paralela,
contínua e o atendimento pedagógico: planejamento anual, plano de ação escolar
da recuperação paralela e atribuição do atendimento pedagógico.
Com relação à metodologia empregada, utilizou-se a abordagem
qualitativa que, segundo Chizzotti (2003, p. 79), traz a ideia de que uma
relação dinâmica entre o mundo real e o indivíduo, ou seja, entre o sujeito e
o objeto. Foi utilizada também a pesquisa documental que buscou identificar
informações do objeto de estudo em seu contexto (LUDKE, 1986, p. 9-11).
DISCUSSÃO E RESULTADOS
REMEMORANDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE RECUPERAÇÃO DE APRENDIZAGEM:
“AS VERDADES
2
Entendendo de maneira simplista e minimalista o conceito de políticas
públicas, pode-se dizer que são ingerências que podem ser planejadas pelo poder
público, devido ao apelo popular e/ou às necessidades políticas de cada época,
tendo como finalidade resolver situações sociais complexas; acreditamos que a
“vontade de verdade” (FOUCAULT, 2008, p. 20), leva ao fato e à certeza de
prontidão das demandas de necessidades sociais, que no caso estudado, é a
recuperação de aprendizagem. Afinal o que é recuperar o aprendizado? Segundo
o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, recuperar é “recobrar o perdido,
adquirir novamente.” E aprendizado como “ato ou efeito de aprender”. Ora,
à luz das pedagogias modernas, das filosofias pós-modernas e das descobertas
da neurociência, é lúcido refletir sobre o que de fato seria aprender para
podermos compreender o que seria a “não aprendizagem”. É possível recuperar a
2
As verdades segundo Foucault (2008) (Desejo de verdades) é uma produção histórica e cientifica que por
meio de um discurso defende uma ideia que julgam verdadeira. A verdade é um efeito de relações de poder.
MESSIAS, R. F. R.; FONSECA, G. A.
90
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aprendizagem que não aconteceu? Ousaremos tentar desvelar essas questões no
decorrer desse trabalho. Por hora, retomaremos a discussão sobre as “verdades”
evocando novamente Foucault que ao descrever sobre as mesmas, reflete sobre
a sua inexistência como fato absoluto e lógico, mas toma forma na produção
histórica, sendo dependente de um conjunto de forças. A “verdade é um efeito de
relações de poder”
3
. É verdade aquilo que as pessoas, em uma relação de poder,
impõem em um momento histórico. Pensando nos momentos históricos que
instituíram as políticas públicas de recuperação de aprendizagem no início da
década de noventa, destacaremos os seguintes atos:
No Brasil, após longo período ditatorial, em 1988 foi promulgada a
Constituição Federal, a Constituição Cidadã, que traz consigo a novidade dos
direitos e deveres do Estado e seus cidadãos. Ou seja, o Estado de direitos, o que
foi bastante significativo devido ao longo período de um sistema político repressor
e autoritário anteriormente vivido no país. Dois anos depois sucede o encontro
em Jomtien, na Tailândia, entre 150 países, em que foi adotada a Declaração
Mundial de Educação para todos, sendo este um grande marco para a Educação
que passa a atender aos desejos neoliberais. Nessa data, a Lei Federal de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional que vigorava era a 5692/71 que em seu caput (art.
11 § 2º) recomendava que fosse proporcionada a recuperação de aproveitamento
aos alunos que, por ventura, tivessem o rendimento insatisfatório. Portanto,
citava apenas a obrigatoriedadee com isso se tornava inviável a recuperação que
era feita, nos cinco últimos dias do ano letivo, e contemplava a matéria de todo o
ano. Esse foi o tempo destinado e reservado para recuperação final.
Ainda nos anos 90, foi sancionado o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), reforçando a garantia do direito à educação para todas as
crianças e adolescentes. Educação essa que se faz, em primeira instância, na
família e depois por meio das instituições e comunidades. O Brasil se torna
signatário das políticas internacionais para a Educação, que em sua redação tenta
proteger os menores; mas, sabe-se também que atende às exigências das agências
financiadoras da educação desse país como, por exemplo, o Banco Mundial
4
de Desenvolvimento que visa aos benefícios próprios de controle. Outra ação
foi a criação do SAEB
5
que, um tanto quanto disforme, em um primeiro
momento, teve e tem a função de avaliar o ensino básico brasileiro. Foi instituído
em resposta à exigência internacional, que agora roga por uma educação de
qualidade para todos, a fim de fortalecer o capitalismo que passa a depender
das ações e evoluções tecnológicas. Entretanto, este sistema de avaliação passou
a
vigorar na metade da década de noventa, sendo reestruturado e modernizado. A
educação passou a ser orientada pela noção de competência com ênfase na
3
Para Foucault (2008) - A verdade é um efeito de relações de poder.
4
Banco mundial - é uma instituição financeira internacional que fornece empréstimos para países em
desenvolvimento em programas de capital.
5
SAEB- Sistema de Avaliação Educacional Brasileiro.
Recuperação de aprendizagem
Artigos/Articles
91
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diversidade e no caráter transversal e interdisciplinar. A sociedade brasileira viu
ganhar centralidade o tema da qualidade do ensino como objeto de regulação
federal por meio de um sistema de avaliações externas. Foucault (1987, p. 10-
43), em sua obra “Vigiar e punir”, reflete sobre as normatizações dos corpos
tendo o “poder” por alvo a regulação da vida dos indivíduos (poder disciplinar
6
)
e da regulação da vida das populações (biopolítica
7
). Um controle não sobre
o resultado, mas sobre o desenvolvimento da ação. Uma vigilância constante,
uma perpétua pirâmide de olhares que garantam a disciplina. Nesse contexto,
vale citar os tempos de crise do “Estado e do Capital”, em que se tenta redefinir
e ressignificar o seu papel,minimizando assim as políticas sociais entregues aos
processos de descentralização, com a participação na gestão pública, “no controle
social”
8
, emergindo e expandindo o neoliberalismo de um mundo globalizado
em era tecnológica. Assim, não podemos negar que, de uma maneira ou de outra,
estamos interligados e submetidos às consequências dos sistemas econômicos
e sociais vigentes e, ainda, em consonância com as políticas educacionais
internacionais neoliberalistas. Um bom exemplo disso foramas contradições
entre centralização/descentralização dos PCNs
9
e as Avaliações Externas, que ao
mesmo tempo em que possuem um caráter centralizador e controlador, foram
terceirizados, portanto, descentralizados em sua aplicabilidade.
Retomando o tempo histórico, em vinte de dezembro de 1996, foi
promulgada a nova LDBEN 9394/96
10
brasileira, e esta sofreu influência das
normatizações supracitadas. Ela traz consigo o ideal de efetivação da universalização
da educação, a educação de qualidade para todos e a gestão democrática. Em
relação ao nosso objeto de estudo, a recuperação da aprendizagem, o Art. 12traz
redigido a incumbência dos sistemas de ensino de “(...) promover meios para a
recuperação dos alunos de menor rendimento”(BRASIL, 1996).
Em 1996, em âmbito Nacional, foi criada, por meio da Emenda
Constitucional 14/96, a Lei 9424/96 o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, como uma tentativa
de melhorar a educação, segundo a visão de quem implementou essa política
pública. O FUNDEF determinou que 15% do Fundo de participação do estado
e/ou do município, do Imposto sobre circulação de mercadoria e do Imposto
sobre produtos industrializados devem ser usados para o Ensino Fundamental,
sendo que 60%, no mínimo, deverá ser utilizado para o pagamento dos
profissionais do magistério, gerando um percentual mínimo por aluno que deve
garantir a qualidade na educação. O FUNDEF vigorou por dez anos e durante
6
Poder Disciplinar trata da atribuição pública de aplicação de sanções àqueles que estejam sujeitos à disciplina
do ente estatal
7 Biopolitica -
é o termo utilizado por Foucault para designar a forma na qual o poder tende a se modificar
8 Controle social- é empregada para designar os mecanismos que estabelecem a ordem social.
9 PCNs-Parâmetros Curricular Nacional.
10
Lei de Diretrizes e bases Nacional.
MESSIAS, R. F. R.; FONSECA, G. A.
92
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esse período muitas críticas foram feitas por especialistas, a principal delas é que
ele não atendia à necessidade educacional da educação básica sendo substituído
pelo FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico e
de Valorização do Magistério), que vigora ao presente momento, ampliando
os seus atendimentos a outros segmentos/níveis da educação/ensino. Mesmo com
esse investimento, ainda temos uma per capita, por aluno, inferior e difícil de ser
calculada com exatidão, para a promoção de uma educação de qualidade, sendo
que a valorização do magistério ainda está muito insatisfatória.
No âmbito Estadual, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
em parceria com o MEC reorganiza as escolas públicas estaduais (sendo escolas
de Ciclo I e de Ciclo II) para facilitar o processo de municipalização do Ensino,
conforme previsto em lei, devendo os municípios atuarem na Educação Infantil e
Educação Fundamental, e para tanto se fez necessário estabelecer parcerias entre
o Estado e o Município. “A municipalização da Educação aproxima as decisões,
sejam pedagógicas ou de destinação de recursos das verdadeiras necessidades
locais”. (BOTH, 1997, p.7). Não foram todas as cidades que aderiram à
municipalização do ensino em um primeiro momento, entretanto, os processos
continuaram para a efetivação desta política pública. Na Deliberação de 9, de
1997, o Estado de São Paulo adota a Progressão Continuada, fundamentada na
LDBEN, e junto desta organizar-se em Ciclo I (1º ao ano) e II (6º ao ano)
correspondentes ao Ensino Fundamental.
Tanto a Constituição Federal, quanto a LDB 9394/96 definiram,
como ente federativo autônomo, o município, na questão da gestão de políticas
educacionais, como podendo criar o seu próprio sistema de ensino. O município
estudado ainda não tem sistema próprio de ensino, sendo subordinado ao Sistema
de Ensino Estadual ao qual pertence, contudo, dispõe de uma autonomia velada.
Também não aderiu à municipalização da educação optando por construir uma
rede de ensino paralela. Devido a essa opção o município passou a construir
várias escolas na periferia da cidade de acordo com as necessidades de demanda de
vagas. Até 1996, a rede contava com apenas quatro Escolas Municipais de Ensino
Fundamental e atualmente o montante é de 37 atendendo crianças da Educação
Infantil (pré escola - 4 a 5 anos e 11 meses), Ensino Fundamental I (do ao
ano dos 6 aos 10 anos mais ou menos).
A recuperação de aprendizagem, durante estas últimas décadas, foi
oferecida de diversas formas durante o processo de instituição das Escolas Públicas
Municipais de Educação Básica de Franca. A princípio, por meio das classes de
recuperação de ciclo, que proporcionaram a oportunidade para o aluno que não
conseguia se alfabetizar de permanecer por mais um ano para refazer todo o
processo. O docente deveria supostamente ter um perfil adequado para ministrar
aulas a essas classes. Ou seja, todos os alunos que por um motivo ou outro não
conseguiram êxito no ciclo, frequentavam a mesma sala de aula. Embora imbuído
de boas intenções, com formação mensal aos professores, o projeto excludente
Recuperação de aprendizagem
Artigos/Articles
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.2, n.2, p. 87-102, Jul./Dez., 2016
foi fadado ao fracasso. Ainda segundo Foucault (1996, p.203) “(...) todo saber
é político e interfere nas formações sociais construindo novas relações de poder,
tratando-se da inclusão da exclusão.” Ou seja, não estaria a solução “excluir
incluindo” todos os indivíduos com uma variedade de dificuldades na mesma
sala de aula.
A educação municipal francana, em atenção às leis vigentes, idealiza a
recuperação da aprendizagem da seguinte maneira:
1)
Recuperação Escolar Contínua que está prevista em lei, para ser mais
exato na LBEN 9394/96 Art. 13 inciso III - “Os docentes devem incumbir-se de
zelar pela aprendizagem do aluno”. Ou seja, é preciso que a docência promova
meios para que o indivíduo possa aprender a aprender, a ser, a fazer e a conviver
como tão bem descrito nos pilares da Educação. Na mesmaLei no art. 24 inciso
V “(...) a avaliação contínua do desenvolvimento do aluno, com prevalência dos
aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período
(...)”.É sinalizado que só se justificaria uma avaliação contínua do rendimento de
aprendizagem caso a intenção pedagógica fosse averiguar o que o aluno ainda não
sabe para auxiliá-lo no aproveitamento integral dos seus estudos com êxito.
Infelizmente, observando os documentos, tantos os registros de sala de
aula, quanto os conselhos escolares, é rara a presença de um indício de que foi
proporcionada de forma sistemática a recuperação contínua da aprendizagem.
Na recuperação contínua, caberia ao professor pensar em todos os seus
alunos, e em cada um, tanto nas dificuldades quanto nas potencialidades, para
que consiga avaliar e assim intervir. A recuperação contínua dever estar inserida
no trabalho cotidiano do professor sendo decorrente de uma avaliação diagnóstica
e processual. Vale destacar, ainda, que essa recuperação contínua tem como
objetivo reaver os conteúdos essenciais em sala de aula, não pensando apenas na
nota e/ou menções do sujeito, mas sim no processo de ensino para que ocorra a
aprendizagem.
2)
Recuperação Paralela como possibilidade de reforçar e assimilar
conteúdos mínimos para o ano em curso. O atendimento do aluno na Recuperação
Paralela é um direito previsto em lei, que tem como finalidade garantir horas a
mais de aula para sanar defasagens curriculares. -A Lei 9394/96 art._24 inciso V,
prevê “[...] obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao
período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar [...]”.A indicação CEE
nº 05/98 relata que: “[...] Dentro do ensino-aprendizagem Recuperar significa
voltar, tentar de novo, adquirir o que perdeu, e não pode ser entendido como um
processo unilateral[. ]”.
Essa recuperação também se justifica por ser mais uma oportunidade
oferecida ao aluno que apresenta defasagem curricular seja por motivos de
ensinagem e/ou metodologias inadequadas, transtornos, desordens, déficit etc,
MESSIAS, R. F. R.; FONSECA, G. A.
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sendo uma possibilidade de resgatar sua autoestima e confiança em seu potencial
de aprendizagem. A recuperação paralela oportuniza atender à diversidade de
características e ritmos de aprendizagem dos educandos. Neste atendimento, o
professor planeja suas ações a partir do conhecimento que o aluno domina para
alcançar os objetivos previstos, respeitando seu processo e ritmo de aprendizagem
e conduzindo-o a perceber sua capacidade de aprender e emancipar-se. É
destinada aos alunos que por algum motivo apresentam, durante o processo da
aprendizagem escolar, defasagem, déficit, desordem ou dificuldades específicas
não superadas no cotidiano escolar.
Nas EMEBs francanas, este recurso de recuperação paralela foi instituído
em atendimento à lei LDBEN 9394/96 e acontece no contraturno do período
em que o discente está matriculado, duas vezes por semana, com duas horas de
duração. A recuperação paralela tem a quantidade mínima 10 e no máximo 20
alunos por turma para o seu funcionamento. O objetivo é favorecer todos os
alunos para a construção de competências e o desenvolvimento de habilidades até
então não conquistadas. Pretende-se também alcançar a efetivação da melhoria
da qualidade do ensino das escolas públicas municipais por meio dos trabalhos
realizados com os conteúdos que envolvem a alfabetização, a produção de texto e,
quando possibilidade de horários e dias, é contemplada também a matemática.
Encontramos um diferencial com os alunos advindos da zona rural,
que recebem recuperação paralela no mesmo turno de aula. Apenas uma escola
tem uma ação, criada pela Pedagoga Escolar da unidade, voltada ao atendimento
dos alunos da zona rural que necessitam da recuperação paralela a contraturno
e, dessa forma, as crianças permanecem na escola para usufruírem do reforço
escolar, fazendo refeições, higienização e sendo transportadas ao final para as suas
casas na zona rural.
3)
Um novo (velho) personagem com uma “roupagem” diferenciada
surge nesse contexto a partir de 2006, o Pedagogo Escolar que, fazendo parte da
equipe gestora da escola, tem como principal função atender individualmente,
em duplas e/ou em grupos crianças com problemas de aprendizagem a fim de
desenvolver as funções executivas superiores. Mas o que se entende por problemas
de aprendizagem? O que realmente esse indivíduo, o pedagogo, pode auxiliar o
aluno a recuperar a sua aprendizagem ou é mais um paliativo? Segundo Foucault
(1998, p. 13) “as verdades são produções histórico-sociais, efeitos da prática dos
chamados especialistas, que as constroem baseados nos estatutos da ciência, da
razão, da neutralidade, da objetividade, da universalidade [...]” A que veio o
Pedagogo escolar?
Mediante tantos investimentos e políticas que tentam normatizar e
viabilizar a escola, facilitando a promoção do conhecimento, fica a inquietação de
um saldo negativo apresentado nas mídias do Brasil sobre a educação em relação
ao ranking mundial. Ao analisar apenas as provas externas no que concerne em
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nível de Brasil, Franca esteve dentro das metas nacionais esperadas obtendo o
Índice Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) de 6,0. Mas, se são as provas
externas (Prova Brasil) que delimitam e proclamam a qualidade da educação, vale
destacar que em 2013 as escolas municipais de Franca obtiveram proficiência/
média (6,2) inferior às escolas estaduais (6,5), impossibilitando que houvesse
um avanço maior no índice da escala SAEB e, em consequência, interferiu no
IDEB da cidade. Contudo, ainda é a nona cidade de maior desempenho do
IDEB. Quem poderá nos defender? Na busca por respostas, encontramos novas
perguntas, mas,
do que valem as respostas se são as perguntas que movem os
saberes?(grifo nosso).
S
OMOS SERES LIMITADOS PARA ENSINAR E ILIMITADOS PARA APRENDER
: E
IS A QUESTÃO
NA ARQUEOLOGIA DO SABER.
11
Na exumação da Educação, no que tange aos processos de aprendizagem,
reside a grande questão, o nó, da pós-modernidade sobre o conhecimento. Por que
alguns indivíduos não conseguem aprender o essencial no que se refere aos saberes
escolares. O que seria o essencial? O que seria aprender? A cada dia somos lembrados
por diversas ciências, que investigam o homem e a sua forma de dominar e produzir
saberes, que aprendizagem é uma condição humana. Então se outrora dominamos
o fogo, cabe a nós o donio da aprendizagem. Tarefa árdua, que demanda reflexões
e ações para além das políticas públicas, estando mais próxima da vontade política.
Vontade essa que perpassa desde a gestão da sala de aula, a comunidade ao entorno
das escolas, até chegar a instâncias maiores e mais distantes do particular, como o
Munipio, o Estado, a Nação e as intenções internacionais neoliberais. É paradoxal
pensar que todos nós podemos aprender, mas nem todos compreendem o mínimo
dos conteúdos curriculares normatizados.
As ciências fragmentadas em “campos de saber” com suas “verdades
construídas”, discutidas no início desse trabalho, servem para nos alertar que
podemos nos valer de diversos subterfúgios ou teoria para explicar tais assertivas.
1)
As ideias pedagógicas/psicologizantes: Os construtivistas e interacionistas-
com os seus representantes, Piaget (1994), Wallon (2000), Vygostky
(2010), Ausebel (1980), Freire(1996),Fourestein (1983) e tantos
outros, que descrevem as suas teorias, mesmo com defesas díspares,
defendem que todos os seres humanos em condições ideais e adequadas
podem aprender. Entendendo aprendizagem como a interação entre o
sujeito com o objeto do conhecimento como uma capacidade mental
dinâmica de construir relações. Para eles, o aluno deve ser desafiado com
intervenções contextualizadas a fim de se desenvolver.
11
Arqueologia do saber “remete ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os conhecimentos discursivos
como se eles estivessem registrados em um arquivo.”
MESSIAS, R. F. R.; FONSECA, G. A.
96
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2)
A neurociência: reforça a ideia segundo o funcionamento cerebral, por
meio das sinapses, de que todos os indivíduos podem aprender, ainda
que, em tempos e ritmos diferentes. Para esta ciência, o homem possui
uma capacidade de aprendizagem inimaginável devido à plasticidade
cerebral.
3)
Os estudos sociais: denunciam que o conhecimento se tornou um valor
de troca e está subordinado a leis de mercado (JOSÉ PAULO, 2003).
As políticas públicas acabam por ditar o normal/anormal e
nessa lógica
acabam estigmatizando o indivíduo e reforçando as suas mazelas.
Funcionais ao capitalismo, as políticas sociais se transformam
em
benefícios sociais como o da Educação, na busca da realidade e do
controle e da passividade dos dominados e dominantes. Mas o direito à
educação é inviolável e necessário à manutenção do sistema capitalista.
Mediante as três maneiras de ver a mesma questão, a educação
e a aprendizagem, torna-se evidente que ainda muito por se fazer pelo ensino
municipal de Franca. Fizemos esta afirmão devido a um grande contingente
de alunos encaminhados para a recuperação paralela. Em 2014, salas de aulas
com 18 alunos, nove foram encaminhados para a recuperação paralela. Em 2015,
nessa mesma unidade escolar, salas com 23 alunos, 10 foram encaminhados.
Chegam ser atendidos cerca de 38, 16% de alunos com algum tipo de problema
de
aprendizagem.
A recuperação paralela atende um montante de 20 alunos no máximo,
número este que seria uma sala de aula regular/comum, com o diferencial que
cada turma tem duas horas de aula, portanto, esta professora terá em um dia,
caso tenha o número máximo de alunos frequentes, 40 alunos com dificuldades
específicas de aprendizagem. E em uma semana, atendendo duas vezes cada turma,
chega a ter 80 alunos. Uma quantidade desumana que inviabiliza os trabalhos. A
dependência dos professores de sala de aula comum é tanta que basta uma nova
criança se matricular na escola e essa será uma forte candidata a ser encaminhada
para a recuperação paralela e/ou para o atendimento pedagógico. Outro fator
agravanteé o baixo valor cultural que muitos pais despendem aos atendimentos
dos seus filhos com baixo rendimento escolar, quando precisam retornar à escola
no outro período de aula. É fato também a pouca assiduidade de alguns alunos
nesse projeto.
Refletindo sobre outro fator importante acerca dos aspectos
pedagógicos, a recuperação paralela se vale dos mesmos procedimentos e técnicas
metodológicas durante as aulas de reforços. Se realmente houvesse um problema
de aprendizagem instalado e se sempre usássemos os mesmos recursos e estratégias,
seria possível favorecer a aprendizagem apenas com a mudança do profissional,
mas com a mesma lógica didática pedagógica?
Por outro lado, como seria possível que este profissional fizesse um bom
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trabalho, tendo que pensar em 80, 60, 50 alunos com dificuldades específicas
de aprendizagem? Por que temos tantos alunos com defasagem curricular e/
ou dificuldade de aprendizagem? A espécie humana estaria em decadência e
regredindo? Estariam os conteúdos inadequados para serem ensinados? O que
estaria acontecendo com as famílias frente às questões de aprendizagem dos seus
filhos? O que está acontecendo com as salas de aulas mediante a não aprendizagem?
Seriam as políticas públicas que não estão garantindo o direito à qualidade na
aprendizagem?
Boas indagações que se ramificariam em tantas outras, que nos levariam
ao desejo de pesquisar mais e mais, mas, por hora, ousaremos tentar responder
algumas questões e iniciaremos afirmando que é fato que todas as crianças, jovens,
adultos e velhos aprendem desde que haja condições adequadas e que para essas
pessoas o interesse, a significação, a interação com o objeto do conhecimento de
forma contextualizada se fazem necessários no ambiente de aprendizagem.
O Pedagogo Escolar, sendo um técnico/especialista da educação
municipal, com o foco voltado às crianças com dificuldades de aprendizagem,
avalia o perfil pedagógico do aluno observando as suas potencialidades e
disfunções, desordem e déficit. O trabalho consiste em realizar atendimentos
pedagógicos semanais, preferencialmente a contraturno, anamnese e orientação
para os familiares dos alunos. O profissional também fornece encaminhamentos
médicos, faz parte da equipe gestora da escola, organiza e executa projetos e
programas correlatos à função e, por último, faz orientações para professores dos
alunos que estão em atendimento. Em escolas maiores do ensino fundamental, o
pedagogo escolar já chego a atender cerca de 50/60 crianças semanais. Em 2015,
o trabalho foi organizado de forma diferente com um número máximo de 20
crianças para o atendimento semanal, pois pretende prezar pela qualidade e não
pela quantidade.
Esse profissional realiza por último um trabalho preventivo com
crianças da Educação Infantil e de enriquecimento cognitivo, afetivo e estimulação
para os maiores, dentro das áreas defasadas e/ou inoperantes. Percebe-se que
esse profissional está construindo a sua identidade e seu modo de trabalho. É
preciso investimento cada vez maior para a qualificação deste, sendo um bom
diferenciador técnico que as outras redes de ensino não possuem.
Continuando a nossa ousadia de responder a algumas questões
supracitadas e lembrando um pouco do processo histórico no qual se deu a
redemocratização do ensino da escola pública, agora res pública
12
, fica evidente que
a Instituição não estava preparada para o contingente de alunos que recebeu. A
escola deixa de ser elitizada e passa atender as camadas populares desestabilizando- se.
Seria preciso reinventar a escola? É preciso ter paciência histórica e cada vez mais
a
escola está atuando como um local democrático, autônomo, contextualizado
12
res publica Coisa publica
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com a realidade na qual pertence, promovendo a construção do conhecimento
ao mesmo tempo em que se torna guardiã do saber. Deve também estar atenta à
gestão dos processos, à gestão do desenvolvimento profissional, ao planejamento
Institucional e à gestão de resultados, não como um “panóptico”
13
que a tudo
tenta ver e controlar, mas sim como um processo histórico da construção, tanto
do ensino quanto da aprendizagem.
A boa notícia, ainda respondendo a mais uma das indagações, é que
a espécie humana não está menos inteligente, afirma a neurociência; o que
precisamos entender é que cada ser humano aprende de uma forma, e precisamos
saber trabalhar com as inteligências múltiplas (como tão bem defende Gardner
(ano) em sua obra) dentro das nossas realidades, por isso, é de suma importância
a participação efetiva da comunidade na escola. Não para ditar normas, mas
para auxiliar no entendimento de como é a realidade local para poder atuar. E
em relação às famílias, cuja tendência é a terceirização da educação dos filhos,
instala-se um problema social, pois a escola vai cumprir o seu papel de instituição
que informa pensando no mundo capitalista do trabalho e do consumo, e a
formação humana? A quem ficará a incumbência de formar para ser “mais
humanizado”? Existiria uma recuperação paralela ou contínua que daria “conta”
de tais feitos? O nosso problema é tanto cultural quanto econômico. E não
dependerá somente da instituição e de mais políticas públicas para a resolução
dos problemas atribuídos à recuperação da aprendizagem. Ousaremos afirmar
que as políticas públicas estão cumprindo, ainda que não de forma adequada, a
determinação legal, oferecendo a recuperação paralela. Os conteúdos/currículos
são estabelecidos por lei, portanto não se discute, cumpre-se. Mas é preciso que
todos se responsabilizem por uma educação de qualidade a começar pelo principal
ator desse processo, o professor da sala comum do ensino regular, que não deve
ver os outros profissionais (professor da recuperação paralela e pedagoga) como os
verdadeiros responsáveispor solucionar a dificuldade de aprendizagem dos alunos,
mas sim, como um suporte que viabilizará uma ação mais efetiva e pontual. Cabe
ao professor aquilo que lhe é próprio, ensinar a todos com intervenções criativas e
significativas. Poderíamos entrar em um campo minado elencando a formação
e remuneração dos professores como a causa do problema, mas não faremos o
jogo capitalista. Mas vale ressaltar que o docente “conhece” tanto o conteúdo, que
entra para a sala e ministra aula para si próprio. Sem contar que poucos docentes
se valem do instrumento riquíssimo, que pode auxiliar os discentes a avançar,
que é a recuperação contínua. Esta, quando sistematicamente planejada com a
intenção pedagógica, promove efetivamente a aprendizagem de todos os alunos
desenvolvendo-os integralmente.
Por último, refletindo um pouco mais sobre a professora da recuperação
paralela, seria bom questionar: Quem é essa profissional na escola? Como escolheu
essa tarefa de recuperar a aprendizagem dos alunos? Saberia como se valer de
13
Modelo panóptico prega o poder por meio da vigilância total do homem.
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outras estratégias para promover a aprendizagem, ainda não conquistada pelos
alunos? É especialista em dificuldades de aprendizagem? Tem cursos ou formações
específicas?
Normalmente essas salas são escolhidas nas atribuições de aulas
por vários motivos pessoais do profissional, mas, raramente, por gosto, por
interesse, devido à aptidão técnica e a sensibilidade investigadora do profissional.
Infelizmente não é preciso ter nenhuma especialização para atuar com essas
classes, e também não há até o presente momento nenhuma formação específica
para os professores da recuperação paralela. Frequentam normalmente as reuniões
pedagógicas (Reps) como todos os professores. E quando necessário substitui os
professores que faltam inesperadamente.
E quanto aos alunos, a sua maioria tem buscado a escola como um local
seguro para ficar enquanto a mãe trabalha. E quando um pouco maiores, por
questões sociais como amizade, alimento, para não ter problemas com o conselho
tutelar, para a mãe não perder os programas sociais do governo como bolsa família
e até mesmo por namoricos. Onde estaria o encantamento por estudar? Os alunos
devem vislumbrar sentido na escola e querer aprender a aprender, pois como diria
Cortella (2007, p. 26) “Não nascemos prontos vamos nos fazendo”. Aprender
demanda esforço, lançar-se ao desafio, é preciso resgatar o pensar reflexivo
afetuosamente. Os alunos precisam ser incentivados a buscar o conhecimento
com paixão, mesmo que necessite para isto um esforço, uma dedicação maior.
Paira sobre a sociedade/família atual em que vivemos um momento de incertezas,
de inseguranças, de busca pelo prazer momentâneo em concomitância com uma
lógica capitalista e consumista, em que, ao mesmo tempo em que se avança tanto
em tecnologias e em vários outros sentidos, a sociedade torna-se questionável em
suas atitudes, pois, prega-se o menor esforço e os “bons amores instantâneos” sem
compromisso com a humanização da afetividade. As telas em movimento da TV,
dos computadores etc. são mais interessantes e melhores que os livros estáticos
com letras sem graças. Basta um click e toda a informação está à disposição, é a
velocidade da informação sobrepondo-se à formação, é preciso estar conectado
com tudo ao mesmo tempo em que não se tem atenção em nada. Aquele que não
tem acesso a era digital está fora do planeta.
De fato a evolução da tecnologia é bastante importante e frutífera,
mas, faz-se necessário que a evolução humana a acompanhe, ao contrário,
estaríamos gerando pessoas com dificuldades de aprendizagem. As dificuldades
de aprendizagem não advêm apenas da falta de acesso tecnológico, mas também
por dificuldades em torno das famílias em grupo de risco, por fatores orgânicos,
psiquiátricos, psicológicos, por problemas com a “ensinagem”, por um sistema/
rede de ensino inadequado e, por fim, por políticas públicas preocupadas mais
com a normatização, com estatísticas, com resultados do que com os processos
de ensino e aprendizagem. E, portanto, pouco a recuperação paralela e/ou
atendimento pedagógico podem fazer isoladamente para a aquisição efetiva do
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conhecimento.
Não se quer dar a impressão de que somos contráriosà recuperação de
aprendizagem, este espaço tem a sua importância, mas o podemos fazer dela
uma muleta, o “salvador da pátria”, um fim educativo, mas talvez um meio, até
que possamos aprender a ensinar a todos. Em concordância com Foucault
Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo
indivíduo em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso,
segue em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas
pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com saberes e os poderes
que eles trazem consigo. (FOUCAULT, 1996. p. 44-45)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo ser humano nasce para o sucesso. Ninguém gosta de errar ainda
que o erro seja construtivo. O fracasso “dói”, traz escuridão de pensamento e de
alma, principalmente quando se trata do fracasso escolar, no qual, anos a fio,
somos “vigiados e moldados”, encarcerados em “desejos de verdades” prontas e
acabadas, cabendo a nós, “ruminar” sobre os saberes escolares. Afinal, prepararam-
nos para o mundo capitalista, neoliberal e consumista em que se vive. Estaríamos
vivendo em nossas escolas o desejo do “fato” ou a realidade do “mito”. Assim
como em uma “Matrix educacional”
14
, tem-se a impressão de que se aprende,
de que serecupera, de que as leis são perfeitamente aplicadas, vivenciadas em
nos sistemas e estabelecimentos de ensino, de que se está preparado, de que se
consegue o sucesso líquido e certo e, assim, de que a educação funciona como um
organismo humano em pleno vigor e harmonia. Não obstante, a real condição
despertadora indica para uma deficiente proposta de aprendizagem, cujo ônus
cabe àdeficiência crônica durante a gestação, crescimento, formação humana,
as utópicas políticas públicas voltadas ao ensino e recuperação, a cultura luso
cristã escolástica, à desvalorização dos profissionais do ensino e a indolência
sedimentada pelo vício em receber do estado as ‘esmolas’ pela incapacidade do
exercício da cidadania.
A Educação é a ação, cujo êxito é o entendimento à condição humana,
que deveria levar à liberdade, emancipação e transformação social. Mas enquanto
isso não é possível, ainda se tem que garantir, por meio das políticas públicas
e sociais, o direito às aprendizagens escolares mínimas por meio de conteúdos
essenciais, voltados muito mais aos desejos neoliberais internacionais capitalistas
do que para o desenvolvimento humano.
Seria preciso fazer valer as políticas públicas existentes e implementar
outras que de fato auxiliem de forma qualitativa e quantitativa a Educação,
evitando impactos negativos. Ou seja, cabe a nós enquanto sociedade francana,
14
Matrix educacional - ilusão educacional
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ou não, no que tange à maneira de fazer política, manter ou modificar a realidade
existente.
Carece entender que cabe a todos: Ministério da Educação, conselhos,
secretarias de educação etc., até a cada docente em sua sala de aula comum,
ensinar os saberes escolares a todos, de forma crítica e criativa, não dependendo
de forma perpétua da recuperação paralela e do pedagogo escolar. O professor
precisa se perceber construtor da sua história de sucesso, organizando os processos
de aprendizagem e avanços de seus alunos, envolvendo-os. Precisa confiar na
competência de seu trabalho, sendo humilde para compreender que é preciso
aprender sempre mais, pesquisando, fazendo da sua sala de aula um laboratório
vivo e sendo valorizado conforme merece. Precisa acatar sugestões inovadoras e
entender que, por trabalhar em uma escola Pública, deve atender a todos sem
discriminação e exclusão, focando em suas potencialidades e favorecendo a
emancipação. Dessa forma, o profissional deixaria de trabalhar para o mínimo
e passaria a trabalhar para o aprimoramento da aprendizagem, e não para a
recuperação, o que elevaria o patamar de eficiência e eficácia da Escola Pública
Municipal conquistando a tão sonhada educação de qualidade transformadora
social. Evitaria o excesso de crianças encaminhadas para a recuperação paralela,
que com menor número de alunos poderia fazer um melhor trabalho.
O professor da recuperação paralela e o Pedagogo Escolar devem
aprimorar os seus conhecimentos, pesquisando, fazendo cursos e trabalhando
em parceria. Esses dois profissionais devem estar alinhados, pois conhecem a
necessidade dos alunos e podem mediar situações ricas de aprendizagem. Podem,
também, compreender juntos que cada indivíduo aprende e, por isso, devem
se valer do maior número possível de metodologias disponíveis, planejando
intervenções pontuais para cada um.
Por derradeiro, esse artigo atinge seu ápice em desvelar a problemática
educacional pertinente à recuperação de aprendizagem sem, no entanto, exaurir a
trama; ficam os lastros para a exploração e complementos futuros pelos educadores
e pesquisadores.
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Submetido em: 30/03/2017
Aprovado em: 29/09/2017