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ANTROPOLOGIA E ECONOMIA: PROPOSTA DE DESENVOLVIMENTO
TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA CONTEXTOS BUROCRÁTICOS
ANTHROPOLOGY AND ECONOMICS: THEORETICAL AND METHODOLOG-
ICAL
D
EVELOPMENT
P
ROPOSAL TO
B
UREAUCRATIC
C
ONTEXTS
A
NALYSIS
Luciano D’Ascenzi
Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp,
técnico superior da Agência Estadual de Regulação dos
Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul
(AGERGS). luciano.dascenzi@gmail.com
Luciana Leite Lima
Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, docente do
Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e do
Departamento de Sociologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
lucianaleitelima@gmail.com
R
ESUMO
:
Identificamos e analisamos as razões para a introdução de inovações organizacionais em
contextos burocráticos. À parte as grandezas estruturais específicas e os processos de rotina consa-
grados pela análise econômica, sugerimos um enfoque transdisciplinar que permita a identificação
de padrões emergentes, tendências e/ ou transformações latentes, de abrangência mais ampla. Tra-
ta-se de proposta baseada em pesquisa empírica, na qual foram construídas as categorias de estudo
a partir de anseios explicitados pela própria direção local, tendo como pano de fundo a recorrente
ineficácia de programas de mudança frente a comportamentos locais recorrentes descritos como
indesejáveis. Tal trabalho ofereceu explicações inéditas da realidade pesquisada, à guisa de teorias
locais com implicação geral, consubstanciadas no mapeamento e descrição das categorias de pesqui-
sa e da forma como estão organizadas.
Palavras-chave:
Antropologia Econômica; Inovação; Mudança Social; Cultura;Transdisciplinaridade.
ABSTRACT: This article aims to identify and analyze the reasons for the introduction of organiza-
tional innovations in bureaucratic contexts. Apart from the specific structural elements and routine
processes focused by the economic analysis, we propose a transdisciplinary approach that allows
manufacturing analysis instruments which enable the identification of emerging patterns (trends
and/or latent transformations) with broader implications. This proposal is based on empirical re-
search, in which the study categories were constructed based upon local direction concerns and the
backdrop of its ineffective restructuring programs. Such work intended to offer new explanations
on the way of local theories with general implications embodied in the mapping and description of
the research categories and its organization.
K
EYWORDS
:
Economic Anthropology; Innovation; Social Change; Culture; Transdisciplinary.
http://doi.org/10.33027/2447-780X.2016.v2.n2.05.p65
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D’ASCENZI, L.; LIMA, L. L.
I
NTRODUÇÃO
Este artigo apresenta a inovação (SCHUMPETER, 1986) como uma
categoria de entendimento, apropriada relacional e diversamente entre atores do
campo econômico, que reserva tratamento teórico universal, mas práticas e dis-
cursos específicos. As Ciências Econômicas têm área própria, que fornece contra-
partida ao conjunto de enfoques, de neoclássicos a alternativos (KUPFER e HA-
SENCLEVER, 2002), que proveem legitimidade científica para as mais diversas
práticas. Todas, invariavelmente, exclusivamente funcionalistas, mas defendidas
como portadoras de racionalidade absoluta. Contudo, esse campo de disputas
transborda para o das práticas do mundo social e, principalmente, do trabalho,
por meio de reestruturações institucionais e políticas públicas subjetivamente ela-
boradas, implementadas e avaliadas a partir de pressupostos de que melhorariam
a realidade concreta.
No intuito de acompanhar algumas categorias ligadas aos ideais desse
tipo de mudança social, desenvolvemos método etnográfico específico, construí-
do a partir das representações sociais contextualizadas junto ao lugar (GEERTZ,
1999) da racionalidade econômica e política, mapeada a partir do confronto en- tre
práticas e teorias ativadas. Trata-se de esforço de problematização do conheci-
mento econômico, que busca evidenciar a heteroglossia vigente, embora embase
uma diversidade de explicações nativas.
Atendendo a essa ordem de necessidades, o item inicial resgata a cons-
trução teórica presente no desenvolvimento da etnografia customizada (D’AS-
CENZI, 2015). Trata-se de enfoque eminentemente empírico, pois trata de con-
textos específicos. A tese teórica e metodológica parte da crítica de Fraser (1987) à
segmentação social promovida pela teoria crítica de Habermas. Além disso, a obra
fornece elementos tendo em vista a atualização do processo de construção hegemô-
nica de Gramsci (1976 e 1978) e incorporação do conceito de cultura (GEERTZ,
1999). Enquanto o primeiro é relido a partir de construções pós-estruturalistas
[Turner (2007) e Foucault (1983)], bem como em teoria da identidade (RUBEN,
1988); o outro vem permitir a relativização da autoridade etnográfica e ensinar
que a cultura funciona limitando e condicionando as possibilidades da mudança
social, posto consubstanciar, ela mesma, estruturas e identidades sociais previa-
mente existentes e atuantes, cuja alteração liga-se indissociavelmente à própria re-
produção de suas categorias de significação. Desse modo, mudança e permanên-
cia das estruturas são tratadas contextualmente, como duas faces de uma mesma
moeda (SAHLINS, 2003). A relevância dessa definição prende-se ao fato de que,
nesses contextos, a definição de cultura é eminentemente behaviorista, ilustrando
perfeitamente as armadilhas do idioma (D’ASCENZI e LIMA, 2014).
O método promove adaptação contextual das dimensões etnográficas,
permitindo confrontar comparativamente teorias e práticas do lugar. Além disso,
o trabalho de campo parte dos elementos de funcionalidade presentes no ima-
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Artigos/Articles
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ginário e registros nativos, que consubstanciam o idioma e a racionalidade lo-
cais. Estes, então, são complementados analiticamente com elementos simbólicos
dos contextos de ação coletados, e assim organizados em redes sociais (BARNES,
2010). O produto final é um conjunto de significados da categoria de pesquisa,
desde a visão dos dirigentes até a dos outros. Todos igualmente válidos, inclusive
em termos econômicos.
T
EORIA E MUDANÇA SOCIAIS
:
UM MODELO GERAL PARA ECONOMIA E ESTADO
Nosso primeiro passo, quanto ao objetivo de perscrutar o significado
econômico da inovação, será o de inserir essa categoria de entendimento numa
categoria analítica mais geral, da mudança social, onde a “inovação econômica”
seja um dos enfoques possíveis. Do mesmo modo, em se tratando de contextos
econômicos, vamos partir de uma teoria que reserve tratamento específico.
Dados tais preâmbulos, retomamos a crítica elaborada em Fraser (1987)
a uma das principais construções que busca explicar a reprodução das estruturas
sociais a partir de sua subdivisão em diferentes (sub)sistemas. A autora desenvolve
seu
argumento a partir da decomposição analítica da realidade em elementos con-
ceituais presentes nos contextos de ação, quando alguma mudança social é uma
das possibilidades. Trata-se de artifício que acompanhará toda nossa proposta,
tendo em vista a classificação categorial dos contextos observáveis.
Fraser (1987) data a teoria crítica de Habermas em termos de lutas e de-
sejos contextualizados pelo século XIX. Indica que tal particularismo configuraria
impeditivo para “dar conta” daquilo que viesse a ocorrer na (pós-)modernidade. A
autora prossegue e analisa as explicações quanto aos mecanismos de dominação e
de subordinação sociais, à procura por elementos que questionem ou reproduzam
tais racionalizações ideológicas.
Para tanto, faz duas distinções internas ao arcabouço categorial de Ha-
bermas. Ambas representariam lados complementares da reprodução social: um,
a reprodução simbólica, responsável por manter e transmitir as normas e padrões
linguisticamente elaborados de interpretação e suas correspondentes identidades
(socialização, solidariedade grupal, tradições culturais etc.); outro, a reprodução
material, que organiza as trocas metabólicas dos grupos de indivíduos por meio
do
trabalho social. Argumenta tratar-se de uma distinção funcional, no sentido
de
tarefas que deveriam ser cumpridas em decorrência de necessidades trazidas pelo
meio para que a sociedade sobreviva. Dessa forma, seriam utilizadas para
classificar a realidade, assim, dividida em instituições que atendam exclusiva (ou
principalmente) uma ou outra função, material ou simbólica.
Abre, então, a discussão para duas diferentes interpretações possíveis:
(1)
tais funções seriam entendidas como espécies naturais objetivamente distin-
tas, independente da sociedade em análise. Por esse caminho, não haveria que se
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falar em mudança social, posto tratar-se de visão conceitualmente inadequada e
potencialmente ideológica. Pede cautela com inferências que permitam imaginar
algum tipo de instituição que não produza identidades a partir de relações sociais
internas, culturalmente elaboradas por meio de significados mediados, formando,
mantendo e modificando essas mesmas identidades. Ao que descarta tal interpre-
tação, afirmando que as atividades sociais têm, necessariamente, os dois aspectos;
(2)
é possível inferir que tais funções seriam contextual-pragmáticas, de duplo as-
pecto. Assim, sob o império das circunstâncias e dos propósitos, as duas funções
poderiam ser vistas em quase todos os tipos de institucionalização, conservando
para um maior exame apenas este último caso.
Desta discussão, cabe-nos fixar que o contexto de ação é a principal
grandeza em nossa proposta, o que nos leva à empiria metodológica, tendo em
vista a necessidade de observar as estruturas sociais quando em reprodução. Mais
ainda, conforme veremos, o contexto relevante independeria da natureza institu-
cional, podendo a mudança social ocorrer em qualquer lugar em que haja estru-
turas sociais em funcionamento.
Extraídos a partir de Habermas, Fraser (1987) examina dois tipos de
contextos de ação: os socialmente integrados, onde os diferentes atores coordena-
riam ações mútuas e consensuais sobre normas, valores e fins; e os sistematicamente
integrados, no interior dos quais, as ações dos diferentes atores seriam coordenadas
num entrelaçamento funcional permeado por cálculos racionais maximizadores.
Alternativamente à simplificação Habermasiana, Fraser (1987) com-
plexifica a análise ao elaborar a decomposição da realidade visitada em seis ele-
mentos conceituais distintos aos contextos de ação: funcionalidade, intencionali-
dade, linguisticalidade, consensualidade, normatividade e estrategicidade. Porém,
a partir de objetivo distinto do nosso, concentra seu esforço de análise nos três
últimos, destacados como elementos de distinção entre os dois tipos de contexto
institucional:
[...] as consequências das ações podem ser funcionalmente entrelaçadas de modos
intencionais pelos agentes; que, ao mesmo tempo, em ambos os contextos os agentes
coordenam suas ações mútuas consciente e intencionalmente; e que, em ambos os
contextos, os agentes coordenam suas ações mútuas na linguagem e através dela
(FRASER, 1987, p. 42).
-se que os elementos conceituais não têm como ser institucional-
mente segregados, especialmente, a partir da identificação de diferenças absolutas
- que considerasse consensualidade e normatividade como exclusivos ao mundo
da vida e, inversamente, estrategicidade aos subsistemas economia oficial e Estado.
Mesmo a possível relativização desta divisão naturalizante apontaria para duas
possibilidades: ou a mudança nos subsistemas restaria impedida, ou a moderniza-
ção seria mero reflexo do que ocorresse no mundo da vida. Por fim, após discutir
algumas contradições dessas possibilidades, conclui pela existência de dimensões
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moral-culturais no sistema econômico capitalista, bem como econômico-estraté-
gicas nas instituições do mundo da vida.
Portanto, aponta que qualquer contexto de ação implica na potencial
presença e mistura de elementos conceituais em diferentes graus. Seja nos domí-
nios nominados por Habermas como subsistemas, de integração sistêmica, seja nas
ordens institucionais de seu mundo da vida. Interativamente, pode prevalecer
um
elemento ou outro, conforme o contexto específico. Este último sim, com
poder
de síntese e explicação. Portanto, ao contrário da naturalização entre repro- dução
simbólica e material, a transformação restaria inserida na reprodução das
estruturas sociais, bastando para tanto que existam, a ponto de serem observáveis
empiricamente.
À teoria não caberia trabalhar com distinções precisas quanto à ori-
gem das categorias institucionais, portadoras de materialidade e simbolismo,
bem como, possivelmente permeadas pelos seis elementos conceituais de análise.
Mesmo porque, a rigor, esse tipo de raciocínio impossibilitaria nosso objetivo de
entender a mudança social.
A análise inicial visou a fornecer uma base crítica, frente às limitações
da articulação entre estrutura e mudança sociais, seja por meio da teoria de Ha-
bermas, seja por intermédio de teorias estrutural funcionalistas em geral, como é
o caso da ciência econômica. Igualmente, restou em apontar pré-requisitos bási-
cos a modelos analíticos minimamente completos em mudança social. Por últi-
mo, municiou-nos com uma tipificação categorial geral, por meio de elementos
conceituais, aplicável em nível antropológico de análise, vindo a permitir, mais
que meras descrições, alguma problematização das relações de reprodução social,
com permanência ou com mudança estrutural.
Assim, o modelo teórico de nossa construção deve possibilitar a expli-
cação de ambos como faces contextuais de uma mesma realidade relacional. Além
disso, precisaria fornecer definições amplas e fluídas das grandezas empregadas, a
ponto de permitir decompor analiticamente a realidade em categorias de signifi-
cado passíveis de segmentação em elementos conceituais do contexto observável,
conforme sugestão de análise em Fraser (1987). Mas principalmente, que inde-
penda do tipo de instituição em análise. O conceito de construção hegemônica de
Gramsci (1976 e 1978) possui tais predicados.
A teoria social de Gramsci pode ser relida sem preconceitos e à luz
dos desenvolvimentos que embasam os estudos de gênero (TURNER, 2007;
FOUCAULT, 1983; FRASER, 1987) e da teoria da identidade (RUBEN, 1988).
Desse modo, mantemos a caracterização do fenômeno da mudança social como
um processo longo e gradual de (trans)formação de uma cultura. Nesse sentido,
parte de um primeiro momento de reprodução estrutural: da argumentação de
que todos os indivíduos têm uma concepção de mundo que os instrumentaliza
para a tomada das decisões cotidianas. Contudo, num processo mediado pela
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máxima gramsciana: “todos os homens são filósofos” (1978, p. 11). Com isso,
pondo quase que automaticamente um segundo momento: de crítica e consciência
que defronta, de um lado, a participação mecânica em uma concepção de mundo
dada pela estrutura vigente e, de outro, a elaboração de visão específica, cada qual,
com a consequente escolha nas esferas de ação.
Organicamente, às concepções de mundo de um indivíduo implica-
ria o pertencimento correlato a grupos identitários, que compartilhem de visões
socialmente compatíveis. O mesmo ocorrendo quando da necessidade de (re)
elaboração para responder a problemas (originais ou não), colocados pelo dia a
dia. Assim, mantendo-nos focados na mudança, Gramsci parte do questiona-
mento da maneira com que se percebe quando nossas concepções são modernas e,
alternativamente, quando são atrasadas. Isso para demonstrar como o presente,
através de um novo problema, pode vir a questionar o passado, cujas concepções
nem sempre dão conta de uma nova questão. Como desdobramento, a superação
da própria concepção se daria através da crítica a ela, num movimento que visasse
dar-lhe, novamente, um formato suficientemente unitário e coerente em termos
individuais e coletivos.
Tal processo se iniciaria com uma nova consciência do que somos. Sig-
nificaria, também, criticar toda a filosofia prévia, base da estrutura a ser suplanta-
da. Portanto, tal superação seria possível, tão somente, pelo desenvolvimento de
algum nível de consciência da historicidade de nossas concepções. Estas relativas
a uma fase específica de desenvolvimento.
Num passo adiante, a reprodução estrutural abre a possibilidade de
socialização da nova visão, cujo iniciador, em caso de mudança, seria identificado
teoricamente com a denominação de intelectual orgânico. Mas vale esclarecer que,
segundo essa leitura pós-moderna, tal ator não existe a priori, sendo um papel
desenvolvido contextual e potencialmente por qualquer pessoa ou organização
social, isto é, todos os homens são filósofos.
Para isso, apenas uma concepção de política verdadeiramente ampla
poderia assegurar que o processo de mudança fosse dado pela relação entre o
novo modelo e o anterior
1
, este identificado no referencial teórico como de senso
comum. Ou seja, por meio da disputa, até que os agentes dessem, ou não, o res-
pectivo consentimento ativo ao projeto de renovação social, assim em formatação.
Em prosseguindo, pouco a pouco, e em número crescente, eles se revestiriam de
representantes da nova filosofia, articulando continuamente com a diversidade de
visões de mundo envolvidas na formação de uma ação política, relativamente,
unitária. Esta derivando, enfim, em mudança social subsequente. Contudo, é
bom que se diga, resultaria em formato imprevisto, que referenciada na com-
posição dos diversos interesses e indivíduos, mais ou menos heterogêneos.
1
Ou ainda, causada pela necessidade de um maior nível de detalhamento da interpretação anteriormente com-
partilhada pelo grupo, evidenciando discordâncias reveladas por um novo contexto, que as ative.
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No plano coletivo, mudar uma cultura, adicionando novos elementos
a ela, significa socializar criticamente algumas verdades individuais, transforman-
do-as em nova base de ação de um grupo: um novo elemento de coordenação e
de ordem moral e intelectual. Desse modo, a partir do diálogo entre as diversas
filosofias e concepções presentes, sempre seria feita uma escolha complexa e con-
traditória entre elas. Mesmo porque, em consonância ao até aqui exposto, algum
contraste seria revelado até mesmo entre o que é intelectualmente afirmado e o
resultante da ação real, revelando certa descontinuidade, definida conceitualmen-
te como contrastes de natureza histórico-social.
Acreditamos que a teoria acima permite a continuidade da construção
aqui pretendida, em direção a uma tipologia de categorias antropológicas que
ajudem a teorizar a modernização de estruturas sociais, com ou sem mudança.
Contudo, apesar de sua adequação aos nossos propósitos, ela não se preocupa em
continuar problematizando o processo de mudança consubstanciado pela cons-
trução hegemônica. Logo, ainda precisaríamos buscar um caminho para enten- der
e traduzir a ação modernizadora enquanto relação social classificatória, para
melhor entendermos como o outro age, se relaciona e pensa a ambiguidade, o
fluxo, o dia-a-dia. Tudo isso em meio à multiplicidade de vozes empiricamente
presentes.
A possibilidade de aproximação escolhida recaiu sobre o deslocamento
da análise em direção às estruturas de interpretação de significado. Elas prove-
riam nossa construção com elementos relacionais para a análise do processo de
transformação do senso comum. Este decomposto em categorias de entendimento,
então, classificadas por meio de elementos conceituais percebidos durante o pro-
cesso de observação dos contextos de ação pesquisados.
E
CONOMIA E ANTROPOLOGIA
:
LIMITES E COMPLEMENTARIDADES
A conjuntura inaugurada pela última grande crise econômica fez vis-
lumbrar a dúvida, senão a percepção de que falta alguma coisa às teorias econômi-
cas hegemônicas. Assim, mesmo tendo sido um dos homens mais bem informa-
dos e portador de recursos quase ilimitados, Alan Greenspan, o ex-presidente do
banco central dos Estados Unidos e um dos principais gestores da crise dos subpri-
mes, ratifica na obra The Map andtheTerritory: Risk, HumanNatureandthe Future-
ofthe World Economy: “‘É um trabalho difícil. Nós não conseguimos enxergar o
que está além do horizonte; mas como vivemos no futuro, não temos escolha a
não ser tentar fazer previsões com discernimento’. Prever o que vai acontecer, diz
ele ‘não é o mesmo que dizer o que vai acontecer’” (TRACHTENBERG, 2013,
p. C13). As consequências da crise de 2008 dispensam apresentações.
Mesmo antes de a globalização e a inovação alcançarem a importância
atual junto à ciência econômica, Herbert Simon ficara famoso por suas pesquisas
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sobre processos decisórios em organizações econômicas. Simon (1965) analisa o
trabalho da “escolha racional humana” em meio à estrutura e ao funcionamento
das empresas, caracterizado pelas informações disponíveis e capacidade cogniti-
va de processamento, ambas limitadas; constrói quadro em que as organizações
são sistemas de decisão, cabendo à direção escolher alternativas adequadas, entre
meios e fins, influenciando-as no sentido da estratégia planejada.
A obra cita ainda três etapas: reunião das possibilidades estratégicas (em
conjuntos de decisões); avaliação das consequências de cada estratégia; e escolha
de uma alternativa a partir da ponderação comparativa das consequências, a par-
tir de “valores específicos”. Porém, aponta para a impossibilidade da onisciência
seja em termos das alternativas, seja das consequências. Assim “escolhas racionais”
basear-se-iam, em última instância, em expectativas e valores. Algo que reduz a
teoria à intencionalidade (planejamento) do comportamento humano, sem meios
para otimizações, mas tão somente decisões satisfatórias em meio a crenças, con-
flitos e jogos de poder. Uma série de elementos invisíveis às análises funcionalis-
tas, incluídas as behavioristas, ambas hegemônicas no mundo corporativo.
A explicitação desses limites teóricos complica a realidade de renovação
constante do ambiente competitivo, exigindo movimentos adaptativos por parte
das firmas. Algo que, não raro, tem significado a transição para novos atributos de
competitividade, do produto e/ ou do processo de produção. Nesse sentido, a
inovação tem estado cada dia mais presente no campo da pesquisa, no ideário das
organizações e nas políticas públicas. O entendimento de sua gênese e desenvolvi-
mento passa por significados díspares, cuja análise pode contribuir para melhorar
o protagonismo dos agentes econômicos nas constantes mudanças de contexto.
Reportando quadro mais recente, Pepin (1998) alerta para a crescente
incorporação do “ambiente” externo às organizações econômicas à análise, no
contexto dos anos 1980
2
, chamando a atenção para as obras precursoras dos estu-
dos em cultura organizacional. Estas apontam para a relevância de aspectos cultu-
rais no âmbito empresarial e apresentaram explicação para o sucesso econômico
japonês, então em evidência, num mundo que começava a perceber os efeitos
da aceleração do processo de globalização. Dentre elas, destacamos Organizatio-
nalCultureandLeadership (1985) de Edgar Schein, que busca discutir a dinâmica
cultural nas organizações, ressaltando o papel dos fundadores e líderes. Contudo,
entendemos que, desde então, nada digno de nota foi desenvolvido nesse sentido
naquele campo de conhecimento:
[Em encontros] foi unânime a constatação de que os atuais modelos estão esgotados e
ultrapassados. As mudanças que estão ocorrendo na sociedade precisam ser inseridas
dentro do contexto das empresas [...] [Os] sistemas de gestão de pessoas são os mesmos
décadas [...], sem levar em conta o novo cenário em que vivemos. [...] Surgiram novos
atores dentro da rede de stakeholders influenciando o universo corporativo [...] (BLOCH,
2013, p. D3).
2
Os modelos e teorias anteriores não consideravam essa necessidade.
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Dada essa contextualização inicial, retomaremos a origem desse esta-
do de coisas e formularemos um quadro teórico nativo, numa rápida descrição
dos enfoques sobre a inovação junto ao campo da teoria econômica. Pois, além
de consubstanciar a representação coletiva da mudança social, recaem sob essa
categoria os universais econômicos de ganhos de produtividade na atualidade.
Destacaremos a maneira com que as formas organizacionais vêm sendo abordada,
a reboque das mudanças tecnológicas, analisadas a partir de um único elemento
conceitual, sua funcionalidade.
Foi somente após a Segunda Guerra Mundial, numa época de recons-
trução e de mudança de paradigma econômico, que as ideias apresentadas por
Joseph Schumpeter passaram a encontrar terreno fértil. Desde então, trabalhos
em inovação não cessam de crescer em número e importância, em meio à diver-
sidade do pensamento social humano. Contudo, apesar das diferenças, que não
são pequenas, tentaremos agrupá-las a partir de similaridades, além de buscar
possibilidades de diálogo.
Passada a fase de consolidação da temática, o exame inicial de diferen-
tes contribuições aponta para a disseminação de trabalhos balizados em relações
funcionais - seja por meio de teorias causais, seja de estudos empíricos de corre-
lação entre a inovação e as mais diversas variáveis. Aproximação maior pode ser
realizada por meio da classificação dos trabalhos em dois enfoques metodológicos
distintos, em termos do destaque dado à relação de dependência da inovação:
ilustram, frente a alguma grandeza estrutural de mercado (características exter-
nas), Alchian (1950), Arrow (1962), Dasgupta e Stiglitz (1980), Kreps (1990);
ou, alternativamente, Penrose (1952),Ouchi (1981), Nelson e Winter (1982),
Porter (1989), Tidd, Bessant e Pavitt (2001), quando vinculada ao planejamento
estratégico (escolhas da direção). Assim, respectivamente, consubstanciam teorias
que pretendem explicar o processo de mudança realçando aspectos da estrutura ou
da ação sociais, antagonicamente. Mesmo porque, nenhuma tentativa formal
de
síntese foi encontrada.
Grosso modo, as abordagens que privilegiam as estruturas de mercado
comportam trabalhos que entendem o processo de mudança tecnológica como
resultante estrutural dos ciclos de inovação. Eles são passíveis de explicação para
cada indústria, em termos sequenciais: da invenção à inovação radical, e desta para
a inovação incremental. Tratar-se-ia de uma decorrência sistêmica do esforço
coordenado e sequencial para investir em atividades de pesquisa, básica e aplicada
(P&D), bem como para incorporar os resultados correspondentes, institucional-
mente, por meio do desenvolvimento de novos produtos, processos e/ ou formas
organizacionais. Além disso, as certezas pouco avançam, posto que os estudos
empíricos que buscaram estabelecer detalhes desta (co)relação, entre inovação e
características estruturais específicas de cada indústria, em termos das consequ-
ências da estrutura sobre conduta e resultado das empresas, apontaram para a
inconcludência senão para a divergência de resultados.
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Por seu turno, o segundo conjunto de enfoques centra suas análises na
relação entre as inovações e as estratégias dos agentes econômicos. Um movimen-
to que, em certa medida, inverte a relação causal anterior, defendida pelo grupo de
trabalhos precedente. Especialmente, quando foca as consequências dinâmicas
do
comportamento das empresas sobre a estrutura industrial no longo prazo.
Contudo, esse grupo também enfrenta uma série de limites: de um lado, em ter-
mos teóricos, devido à limitação conceitual, que possibilita, inclusive, analogias
escorregadias com o biologismo e a física social; e, de outro, às dificuldades para
uma maior análise, trazidas pela metodologia incipiente, senão inexistente.
Em comum, tanto as teorias da ação quanto da estrutura buscam ex-
plicar o processo de mudança social, consubstanciado em inovações, por meio da
utilização exclusiva de elementos conceituais funcionalistas. Contudo, longe de
apontar para um “beco-sem-saída”, a análise descreve o problema teórico-meto-
dológico e aponta para o aprofundamento da trajetória investigativa: da supera-
ção da dicotomia entre ação e estrutura, com a relativização de pressupostos e a
necessária ampliação da análise, esta por meio da inclusão de outros elementos
conceituais dos contextos de ação em que aquelas estruturas estão sendo analisa-
das. Desse modo, perceber-se-ia que o elemento funcional se presta perfeitamente
à previsão dos mais diversos contextos, desde que a estrutura em foco não apre-
sente mudança significativa.
Contudo, a mesma eficácia não tem como manter-se em face à mu-
dança estrutural, restando à funcionalidade o trabalho inicial de descrição do
fenômeno inédito e indagação. Em tal contexto, as análises funcionais podem
constituir fase de constatação e recorte do objeto de estudo, preliminar à expli-
cação da nova realidade. Propomos assim, à guisa de introdução à crítica de uma
espécie de microeconomia política, a realização de um movimento transdiscipli-
nar, a exemplo do realizado pelos ditos clássicos, fundadores das ciências sociais.
Substantivamente, nossa proposta interrompe o movimento em dire-
ção à biologia ou à física newtoniana, indo em direção às cncias sociais, posto
acreditarmos ser este o campo epistemológico mais apropriado. Afinal, distinta-
mente às ideias positivistas, não tratamos de uma (série de) ciência(s) natural(is)
subdesenvolvida(s), cujo objeto de conhecimento esteja sujeito a leis inderrogá-
veis. Conforme alertam os estudos em gênero, as pessoas têm livre arbítrio, sen-
do ao mesmo tempo “sujeitos em” e “sujeitados por” estruturas sociais que eles
mesmos criam, extinguem, multiplicam, reproduzem e/ ou modificam; e isso, ao
participarem ativa e concomitantemente de certo número de organizações sociais
por meio de papéis, potencialmente, de cunho identitário (RUBEN, 1988).
Dessa maneira, conceitualmente, estruturas sociais não se prestam à
comparabilidade com tecidos celulares; tampouco suas organizações sociais guar-
dam qualquer possibilidade analógica a células. Na economia, o biologismo apa-
rece como uma aproximação grosseira da linha de produção fordista, seus movi-
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mentos repetitivos e inteligência bovina, mas não tem como explicar mudanças;
não tem como lidar com elementos de funcionalidade, intencionalidade, linguis-
ticalidade, consensualidade, normatividade e estrategicidade, formadores da rea-
lidade; mas tão somente com os aspectos da funcionalidade que não requeiram
motivação ou discricionariedade por parte dos agentes envolvidos. Assim, qual
seria a vantagem na troca de um irrealismo teórico por outro? E o que dizer das
projeções de equilíbrio, parcial e total? Mesmo a Física, origem da ideia, e a Ma-
temática, base metodológica, têm abandonado crescentemente as possibilidades
de
aplicação. Esse, o campo do abstrato.
Comparativamente ao campo das práticas, em D’Ascenzi (2015) en-
contramos um dado primário de pesquisa, quando um informante de uma em-
presa pesquisada responde à provocação de que a atividade de programação de
softwares fosse muito automática:
Teve, no passado [...] se falava muito como conceito, né, em “crise de software”, por quê?
Por que pra vofazer um prédio tão grande e você vai fazer um software grande e
tem tanta dor de cabeça? [...] então, isso, foi motivo de estudo de muita gente, empírico
ou não. Os caras chegaram a algumas conclusões, que hoje a gente tem, na verdade,
meio que um guarda-chuva, que tem várias denominações, mas basicamente, o pessoal
denomina Ágil, mas tem influência também do modelo Toyota [...] Na verdade, não
pra automatizar que nem uma linha de produção [...] Isso é uma falácia [...] assim,
grande parte dos problemas, na realidade, vem dos aspectos, assim, humanos [...] esse
tal de Ágil que eu estava falando, que é uma resposta [...] tem os princípios [...] Mas
quando você fala de automatizar, principalmente software, eu acho que tem de entender
bem o que é... tem que definir os termos. Você consegue delimitar um processo ali
ou algumas práticas [...] existem pessoas fazendo software e elas funcionam melhor em
certos ambientes [...] você para de tratar as pessoas como máquina,o negócio começa
a andar [...] por exemplo, uma das críticas severas à CMMI[
3
] é que ela simplesmente
esquece que tem gente que faz as coisas, parece que são um bando de robôs, entendeu?
Você passa pra pessoa uma certificação, [e diz:] “Esta certificação está certa, cara! Tem
que fazer”; e não funciona assim na prática, nunca funcionou, sabe? As vezes que deram
certo é porque teve alguém que deu o sangue em algum ponto (p. 200).
E ainda noutra situação:
É que, na verdade, não é a parte técnica, né? Tem a parte de processo também. Quer
dizer, como é que se desenvolve; como é que você coloca um bando de pessoas...? A
princípio... né? Como é que faz pra eles andarem pro mesmo lado e, no final, meio que
por mágica, sai um produto rodando né? E rodando, quer dizer, que eu nem precise
rever; o conceito de pronto, né? [...]. Mas, de qualquer forma, a gente sempre tem
interação muito grande com as pessoas do projeto, assim... às vezes, não é tão agradável,
né? Porque às vezes tem que... as outras pessoas não mudam.
Por definição, as pessoas
sempre seguem. a inércia, né? Sempre tem a inércia, as pessoas querem fazer: ah,
não, eu estou acostumado a fazer isso. Então, assim, a gente sempre tem que quebrar
um pouco ali o pau, vamos falar assim, mas é. , mas, assim, eu, pessoalmente, assim, eu
interajo com a pessoa que trabalha com a mesma gama de tecnologia, eu interajo muito,
assim, tipo, a tal ponto de eu chegar assim, meio do nada, chegar lá: o que que você está
3Em 2009, a softwarehouse em questão era certificada nível 2. Detalhes em www.cmmiinstitute.com.
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fazendo, sabe? É coisa meio incisivo mesmo, se não, não funciona, não é? Que é muito
fácil a entropia aumentar. A entropia, uma das leis da termodinâmica, ? Ela aumenta
facilmente, então... assim: você combina que vai fazer o negócio de um jeito e você deixa
o pessoal lá, tipo um projeto inteiro, fazendo. E, no final, sai tudo diferente; quando
você vai dar a manutenção, está tudo diferente do que as pessoas achavam, né? “Nossa,
agora está mais caro!” Então, a interação é grande, tá? (p. 201).
Descartando tão somente a “água suja”, perdemos um pouco da (pre-
tensa) exatidão, oriunda da possibilidade de aventar alguma sorte de equilíbrio
geral para as grandezas econômicas, mas encontramos uma série de teorias sociais
e metodologias que buscam compreender a mudança social enquanto categoria
mais ampla. Donde podemos, sem muito esforço ou artificialismos, reposicionar
a inovação como uma representação coletiva (disciplinar) da mudança social. Tra-
ta-se de mera ampliação do esforço de análise em direção a imenso universo de
tratamentos científicos independentes, e assim holísticos, com ganhos não apenas
para o realismo teórico, mas, sobretudo, às possibilidades metodológicas. Mais
ainda, descortina temática transdisciplinar vigorosa e urgente, quanto à neces-
sidade concreta de tratamentos analíticos adequados à sociedade em geral, lugar
único, das estruturas e dos agentes econômicos, junto à qual extraímos nossos
objetos de investigação e nossa especificidade.
Senão, empiricamente, o setor de softwares, até os anos 1990, teve o que
ficou conhecido como sua “fase cowboy”, quando a mesma pessoa executava todas
as funções operacionais. Era calcada na solidão e independência do progra-
mador,
bem como, na produção completamente customizada para cada cliente, que
tinha suas rotinas automatizadas. Esse knowhow não teve como manter-se
em
face à disseminação tecnológica (demanda) e aos imperativos da produtivida- de
(oferta) que se seguiram. Essa inconsistência deu margem a que, mais tarde, ficaria
caracterizada como “fase da fábrica de softwares”, idealizada a partir da produção
impessoal em série, onde entraria uma especificação de um lado, e sairia uma
caixinha com o software do outro. Os problemas advindos dessa concepção
indicam, muito mais que uma evolução ou uma solução ótima, que a gênese
da “novidade” estaria vinculada à construção de práticas opostas às queixas mais
comuns à indústria de softwares: aos problemas vinculados à operacionalidade
precedente, e, sobretudo, às possibilidades de solução oferecidas pelo mercado de
“especialistas” em reestruturações organizacionais à época (uma solução de conti-
nuidade contextualmente dada e assim implementada). Contudo, o receituário,
de fato, nunca passou de uma ideia, pois jamais chegou a funcionar plenamente.
Atualmente, a crescente contestação empírica aponta para o “retrocesso” do cami-
nho escolhido, e mesmo, no sentido da retomada de alguns valores da fase cowboy
precedente. A observação do caminho tortuoso, cheio de especificidades, indi-
ca que não existem verdadeiros especialistas para isso. Ainda assim, essa mesma
pesquisa indicou que, a reflexão e superação dos problemas parecem manter-se
exclusivamente sob o cuidado de consultores “especialistas”, sem causar ques-
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tionamento quanto aos limites das análises funcionalistas empregadas. Também
conclui que os problemas de inadequação, apontados pela gestão, tiveram origem
em incongruências seguidamente ratificadas, em meio aos planejamentos estraté-
gicos por ela mesma elaborados (D’ASCENZI, 2015).
Ainda no campo das práticas, mas em outro lugar, os setores de te-
lecomunicações e de TV a cabo podem ser outro casepara pesquisa. Estudo
inédito da PriceWaterHouseCoopers abre nova oportunidade de reflexão quanto
à insuficiência do universo conceitual de investigação. Afinal, à perplexidade de
constatações concretas do tipo “se as empresas deixassem o dinheiro no mercado
financeiro teriam mais retorno”, 65% dos dirigentes consultados acusaram pos-
síveis peculiaridades do setor: investimentos seriam movidos por necessidades de
adequação tecnológica, não por planos de negócios (COLOMBO, 2012, p. B3).
E o que dizer do desenrolar da crise dos subprimes, quando os mesmos
executivos que levaram suas respectivas corporações, e alguns clientes, à insolvên-
cia
foram regiamente recompensados com bônus por resultados alcançados (sic).
Ainda assim, não fossem as pressões da opinião pública sobre os reguladores,
novas notícias parecem indicar que a sistemática restaria intocada.
Essa inabalável hegemonia pode ser explicada historicamente. Afinal,
o elemento funcional tem dado conta da relativa estabilidade, preponderante até
bem pouco tempo. Quando o ajuste se dava com a inclusão de doses adminis-
tráveis de violência, concentrada sobre as classes mais desfavorecidas. Contudo, o
mundo não parou seu processo de transformação para assistir ao conjunto das
ciências sociais em suas discussões sobre a importância explicativa da ação estra-
tégica dos atores ou da estrutura social. De roldão, mesmo as tentativas de síntese
explicativa, em ação e estrutura, não parecem mais tão elucidativas. As mudanças
parecem atingir tamanho patamar, em velocidade e onipresença, que tão somente
o próprio contexto de ação analisado, por conter todos os elementos conceituais
implicados, carregaria as possibilidades de esgotamento explicativo (SAHLINS,
2003). E se assim for, a teoria utilizada em análises de realidades específicas preci-
saria passar por seu crivo, sob o risco de tornar-se irrelevante, de resto, como toda
e qualquer teoria que se pretenda universal.
Parece cada dia mais distante a época em que subdividir e descrever a
realidade em estrutura e conjuntura fosse exercício suficiente de análise. Hoje,
faz mais sentido descrever a conjuntura da estrutura, e vice-versa, em busca de
conteúdo relevante, da tendência e da velocidade da mudança social. Ou talvez,
simplesmente, o contexto seja a síntese procurada, em permanência e mudan-
ça. De qualquer forma, trata-se de caminho, teórico e empírico, que merece ser
trabalhado, naquilo que nos diz respeito, como passo inicial na busca de formas
organizacionais mais humanas e democráticas.
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CUSTOMIZÃO METODOLÓGICA DAS DIMENSÕES TEMPO E ESPAÇO
A etnografia customizada (D’ASCENZI, 2015) foi desenvolvida, a par-
tir do principal método da antropologia, visando a adequação a lugares específi-
cos, cuja racionalidade hegemônica é embalada pela análise funcional e o idioma
marcadamente econômico. Originalmente, o método etnográfico suporia longos
períodos de permanência na cultura (GEERTZ, 1999) estudada, visando com-
preender a totalidade das estruturas nativas, holisticamente atravessadas. Contu-
do, mesmo frente ao argumento de possibilitar avaliação minuciosa, haveria se-
vero descompasso das dimensões tempo e espaço, locais e etnográficas, tendo em
vista os objetivos de pesquisa vis-à-vis a visão local instrumental. Essa dissonância
gerou a necessidade de ajuste.
Tal adequação pôde ser alcançada por meio do processo decustomização,
que promove certa “negociação” em relação à autoridade etnográfica. Resumi-
damente, trata-se de uma fase da pesquisa assemelhada a um pré-campo, cuja
importância prende-se à coleta dos significados “oficiais”, à segmentação do ob-
jeto de pesquisa, à escolha ou desenho da categoria de estudo e à adequação do
cronograma de pesquisa. Tudo em respeito às peculiaridades do lugar. Em suma,
o “acerto” com a autoridade racional-legal permite as condições de pesquisa, com
acesso real, normalmente limitado.
A coleta de dados primários é realizada por meio das duas técnicas et-
nográficas lógicas: a observação participante e a descrição densa (GEERTZ, 1999).
Ambas adaptadas aos objetivos de pesquisa, por seu turno, limitados à categoria
escolhida. Como se sabe, a primeira requer amplo acesso às diferentes dimensões
da realidade etnografada para obtenção de informações cujo critério de relevância
é definido pelo pesquisador, não sendo dado à priori. a descrição densa surge
como resultado analítico da sistematização dos dados assim coletados.
Superado o processo de customização, a coleta de dados significativos
tem início a partir da instalação do pesquisador junto aos sujeitos locais implica-
dos com a categoria de pesquisa definida na fase recém-terminada. Ali instalado,
criam-se as condições para a observação sistemática e metódica visando a obter e
analisar registros funcionais e, dialogicamente, simbólicos. Enquanto aqueles es-
tão fartamente disponíveis, dada à racionalidade vigente, os últimos relacionam-
-se à diversidade de entendimentos microssociais frente à categoria de análise e
sua correspondente inserção nas redes parciais (BARNES, 2010) de entendimento
da organização. A análise da ação social em termos de rede revela, principalmen-
te, os limites e a estrutura interna dos agrupamentos de significados estudados.
Subsidiariamente, teria ainda como subproduto o estabelecimento de algumas
das identidades presentes, bem como o sistema de subordinação e dominação
contextuais.
Segundo a formulação de Barnes (2010), primeiramente, seria necessá-
rio ter em mente que o mundo real seria formado por pessoas que se relacionam
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entre si e que, portanto, nesse processo de socialização, impingem e são impingi-
das em relação a outras, sendo esse o fato empírico crucial. Segundo essa técni-
ca, quando isso ocorre entre dois indivíduos, eles são definidos como adjacentes.
Logo, dado um conjunto de fatos sobre pessoas em relação umas às outras, tentar-
-se-ia compreender essa realidade por meio de um modelo que buscasse explicar
o que efetivamente acontece. Potencialmente, várias cadeias podem ser montadas
como resultado dessa construção de pessoas interligadas através de relações in-
terpessoais, consubstanciando-se em estrelas (figura 1). Estas seriam recortadas
da diversidade de dimensões relacionais existentes ao se focar uma determinada
categoria de entendimento. Dessa maneira, uma rede social nada mais é que uma
abstração da realidade. A figura 1 modela a relação de dezenove pessoas adjacentes
quanto a alguma categoria definida, mostrando assim, uma porção específica da
rede hipotética, uma rede parcial. Esta poderia ser, por exemplo, um departamen-
to de uma empresa, um grupo da empresa que costuma almoçar juntos, um clus-
ter ou outro critério arbitrariamente definido pelo pesquisador, que caracterizaria
uma análise sociocêntrica.
Figura 1- Rede social parcial
Fonte: Barnes (2010)
Alternativamente, e dependendo dos objetivos de pesquisa, poder-se-
-ia especificar um Alfa tendo em vista o que Barnes (2010) denominou como
análise egocêntrica. Nesse caso, teríamos um conjunto de relações que podem ser
retratadas como radiando de Alfa ou convergindo para Alfa. A partir dessas possi-
bilidades, toda uma série de medidas e desenvolvimentos foi proposta por Barnes
e outros autores. Entretanto, temos material suficiente aos nossos propósitos
explicativos.
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Numa das diferenças mais marcantes ao que seria uma etnografia clás-
sica, a transposição do método organiza e confronta apenas as várias realidades
internas relativas à categoria construída junto ao processo de customização. As-
sim, a pesquisa trabalha apenas os significados correlatos à pergunta de pesquisa
e, desse modo, apresenta alternativa à confirmação de seus achados. Algo que, por
seu turno, é fornecido a posteriori, como um dos resultados da investigação.
Percebidas a partir de discursos, entendimentos e interações, as varia-
ções de significado são analisadas e tipificadas como um conjunto de represen-
tações de entendimento da categoria de pesquisa, ensejando sua organização em
redes parciais. Teríamos, assim, um conjunto limitado de representações de dada
grandeza relevante, que vem se reproduzindo em diferentes níveis de funciona-
lidade, intencionalidade, linguisticalidade, consensualidade, normatividade e es-
trategicidade, como resultado relacional a ser entendido a partir de sua visualiza-
ção em rede.
Cada elo de redepode ser então considerado e problematizado como
numa relação de gênero, entendida a partir de representações minimamente com-
partilhadas, que tem viabilizado a organização e manutenção de significação
particular, entre sujeitos que ora sujeitam, ora são sujeitados; ora ativam a es-
trutura, ora apenas respondem a ela. Os elos podem ser analisados em termos
de recorrência/ ausência de entrechoques de significado passíveis de observação,
cada vez que a categoria é ativada, em meio aos contextos de ação. Tal investi-
gação buscaria perceber: até que ponto a relação de adjacência da rede parcial se
mantém? A partir de quais necessidades de significação iniciaria o “conflito”,
4
e/
ou o remanejamento do elo da rede? Em que medida e como as diferentes redes
parciais se relacionam?
Investir numa metodologia que complemente o conjunto relacional
inaugurado pelo funcionalismo permite um nível de análise ainda inédito em
tais lugares. O desenvolvimento da etnografia customizada trilha esse caminho.
Nele, a partir das descrições funcionais encontradas no locusde pesquisa, podemos
recortar categorias de análise e organizá-las em redes sociais parciais, dando voz à
diversidade de significados encontrados. Para isso, outros elementos conceituais
explicativos são incorporados e modelados consciente e seletivamente, desde que
necessários ao entendimento da categoria de pesquisa selecionada. Dessa maneira,
além da funcionalidade presente no idioma e nas análises tradicionais junto às
quais se baseiam a instrumentalidade gerencial, linguisticalidade, intencionalida-
de, normatividade, consensualidade e estrategicidade podem ser conceitualmente
acionados, sempre que presentes e relevantes ao entendimento. Todos, potencial-
4
Medido em termos de consensualidade, colocamos o termo entre aspas para frisar o fato de que seu entendi-
mento está associado a uma escala de intensidade variável, que pode englobar, alternativamente, ou sua ausência,
ou um mero comentário de confirmação de significado, ou o antagonismo associado a claras disputas de con-
teúdo, ou outras mais. Afinal, conforme o modelo explanado, a ativação de uma estrutura social não implica em
mudança da mesma, apenas abre essa possibilidade.
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mente, formadores complementares dos contextos de ação das estruturas locais
5
.
Não vemos utilidade no tratamento ostensivo das diferentes correntes
comportamentais ou funcionalistas. Senão, exemplificar o tipo de conteúdo em-
piricamente observável. Isso porque, tais elementos conceituais revestem a racio-
nalidade oficial e o idioma local de lógica e organicidade. Substantivamente, no
conjunto das ciências sociais, ele tende a enfatizar a interdependência de padrões
e instituições com o modo como interagem na preservação material da unidade
social temporalmente, não sendo incomum o estabelecimento de relações mate-
máticas de dependência entre “variáveis” sociais. Chega mesmo a pregar a realiza-
ção direta do conjunto de exigências concretas que deveriam atender às necessi-
dades humanas, senão algumas leis que buscam universalizar comportamentos e
marginalizar desvios. Dessa maneira, configurar-se-iam em aspectos da realidade
de pronta apreensão e manipulação. Além de idioma local, o elemento funcional
tende a estar suprido por meio da seleção e estudo de fluxos de trabalho comuns
ao meio corporativo, apresentando farto material documental produzido no de-
senvolvimento cotidiano do mundo do trabalho contemporâneo.
Curiosamente, dentre os seis elementos destacados, esse é o que mais se
aproxima das leis da natureza, dando margem ao estabelecimento de dogmas e
ideais de equilíbrio científico. Na bibliografia utilizada, Fraser (1987) discorre
sobre funcionalidade através da distinção entre reprodução simbólica e material
das estruturas sociais. Ali, o trabalho social seria visto como a maneira pela qual
ocorreriam trocas metabólicas (interna e externa) com o ambiente físico e social:
ações explicadas do ponto de vista da coordenação mútua, pelo entrelaçamento
funcional e ação individual baseada em cálculos de maximização da utilidade (na-
quele caso, poder e dinheiro), desaguando empírica e dialogicamente no próximo
elemento classificatório. Na reprodução simbólica, por seu turno, dar-se-ia a ma-
nutenção e transmissão de normas e padrões linguísticos constitutivos das identi-
dades sociais: discurso, interpretação, socialização, solidariedade grupal, tradição
cultural, consenso sobre normas, valores e fins. Ocorre que tal distinção é mera
estratégia analítica, pois inexistem diferenças absolutas entre os dois contextos,
mas um entrelaçamento passível de ser percebido e analisado em termos relativos
(FRASER, 1987). Portanto, tal distinção seria muito mais complexa. Bem por
isso, mais que descrever, pretendemos entender; e ao invés de julgar, nossa classi-
ficação tende a realizar a qualificação relativa das descrições categoriais.
Retomando a contraposição material-simbólica, mas em contextos
institucionalizados, essa primeira aproximação, funcional, é facilitada pelas prá-
ticas locais. Porém, se defendemos que a pesquisa se inicie pelo aspecto funcio-
5
A despeito de discussões exclusivamente teóricas, estes trabalhos debruçaram-se sobre questões empíricas, no
que buscaram as origens das práticas encontradas nos loci de pesquisa: os fundamentos da instrumentalidade
gerencial local. O resultado foi umtodo de apropriação e complementaridade dos instrumentos de gestão
em uso. O produto da pesquisa de ser devidamente apropriado pela direção local por meio de laudo e, então,
utilizado em planos de reestruturação.
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nal da organização social pesquisada, não vemos por que definir a priori a etapa
subsequente de trabalho. Entendemos que o próximo elemento viria a reboque,
iniciando um movimento dialógico que pode ser interrompido arbitrariamente
pelo pesquisador, quando da recorrência de repetições que apontem para a sufici-
ência dos componentes conceituais explicativos restantes. No entanto, nada nos
impede de indicar algumas possibilidades de desdobramento, por meio de mero
exercício reflexivo.
Imaginemos que a pesquisa fosse iniciada com uma demanda de ava-
liação quanto à implementação de uma mudança institucional qualquer. Nesse
caso, teríamos a premência de outro elemento conceitual a ser utilizado em ter-
mos mais imediatos, embora posterior ao de cunho funcional, a intencionalidade.
Em seu aspecto moral, a intenção relaciona-se ao objetivo que deter-
mina um ato, considerado independentemente de sua efetiva realização; distin-
tamente, em sua ligação com a psicologia, encontramos esse termo vinculado ao
caráter do ato ou estado de consciência adaptado a uma intenção, a um projeto;
por outro lado, a fenomenologia frisa o caráter da consciência em tender para um
objeto, bem como lhe dar um sentido. A princípio, de modo geral, as acepções
acima revelam características semânticas e conceituais com claro posicionamento
explicativo quanto ao estudo de ações e ambientes continuamente planejados.
Desse modo, a princípio, imaginamos poder vincular o termo àquilo que se pre-
tende fazer, que se procura alcançar, no sentido de propósito, plano, ideia, desejo,
intento etc. Afinal, os agentes coordenam algumas de suas ações mútuas cons-
ciente e intencionalmente. Contudo, uma mesma intenção pode ser interpretada
diferentemente.
Mecanismo semelhante incide no elemento linguístico da categoria de
pesquisa, que, em sua forma substantiva pode ser entendida como “[...] qual-
quer sistema de signos simbólicos empregados na intercomunicação social para
expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da consciência”(BE-
CHARA, 2009, p. 28). Em termos práticos, uma nova dimensão para falhas de
execução ou, mais precisamente, um lugar privilegiado para as tão alegadas “fa-
lhas de comunicação” dos diagnósticos administrativos. Mesmo porque, dizer as
coisas como realmente são no nível da consciência íntima, traduz uma abstração,
um tipo ideal onde apenas num dos extremos a expressão dita e entendida seria
idêntica ao conteúdo originalmente imaginado. Ilustrativamente, uma emprei-
tada inglória se tomada a partir dos fluxos unidirecionais da burocracia clássica,
ainda em voga nas organizações contemporâneas.
São dimensões constituintes da linguisticalidade: criatividade, materia-
lidade, semanticidade, historicidade e alteridade. Destacamos o último elemento
como demandante de cuidados consideráveis: “[...] o significar é originariamente
e sempre um “ser com outros”, próprio da natureza político-social do homem
[...]; [...] traço distintivo do significar linguístico em relação aos outros tipos de
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“conteúdo” das formas de expressão [...]” (BECHARA, 2009, p. 29-30). Ou seja,
que o processo falante-ouvinte se fragmenta durante seu desenvolvimento, sen-
do
único para cada pessoa participante. Algo que apenas vem atestar a chance
de
dissonância interpretativa, tanto em termos absolutos quanto relativos. Além disso,
por fim, e no limite, ainda haveria de se levar em conta tudo quanto acom-
panhasse a linguagem, já que não falamos pela língua concreta, mas por meio
de gestos, tom, mídia, pausas etc.
Logicamente, a consensualidade resta como lugar do conflito e da co-
operação. Desafortunadamente, esse elemento é pouco ou nada utilizado em ter-
mos formais, enquanto instrumento de gestão. Num plano mais geral, da rede
local, sua consecução objetivaria construir níveis de concordância, passíveis de
teste e rearranjo a cada contexto de ação, por meio de experiências mais ou menos
intensas quanto ao lugar ocupado por cada sujeito. Como destaca Fraser (1987),
é mesmo difícil imaginar um contexto daão humana em que as ações sejam
coordenadas com total auncia de consenso. Especialmente quando se verifica
sua reprodução, e a estrutura social é ativada e observada repetidamente.
A normatividade parece ser o elemento conceitual mais utilizado pela
literatura em gestão, reconhecidamente de forte potencial inovador. Em geral, di-
retamente relacionada a um conjunto de regras explícitas sobre processos defini-
dos, abarcando, no limite, valores morais mais ou menos ocultos. Aqui, também,
é difícil imaginar um contexto de ação humana em que as ações sejam coordena-
das com total ausência de normas, mesmo que presentes apenas nas mentes das
pessoas que as compartilham.
Finalmente, temos a estrategicidade, dúbia como deve ser. Tendo em
vista uma escala micro classificatória, podemos caracterizá-la em pelo menos dois
sentidos: (1) voltada a ações calculadas maximizadoras de utilidade (recursos
como poder e dinheiro), em detrimento ou oposição às demais pessoas, também
sujeitos da relação intersubjetiva, visando à vitória e ao sucesso frente ao outro;
(2) pode ainda denotar a arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe
ou de explorar as condições favoráveis de que porventura se desfrute, visando ao
alcance de determinados objetivos (im)pessoais. Mas isso tudo em tese, porque
apenas a observação das práticas pode delimitar significados reais.
Caberia ainda reforçar a necessidade analítica de que cada elemento
contextual seja visto relacionalmente. Afinal, objetivamos uma construção em
rede a partir de base classificatória, cujos componentes devam ser evidenciados
pelo contraste na comparação. Mesmo porque, todos eles podem estar presentes
em diferentes graus e, nesse caso, suas fronteiras dependeriam da mera interpre-
tação do analista. Assim, as distinções entre os contextos de trabalho metodolo-
gicamente acompanhados precisariam ser baseadas em diferenças de nível, em
termos relativos, nunca absolutos. Qualquer tipo ideal, que viesse caracterizar
um caso extremo, mais pareceria uma abstração levada artificialmente às últimas
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consequências. Procuramos, então, proporções e interações contextuais esclarece-
doras, como que, estabelecendo limites à atenção junto a cada possível elemento
conceitual, exclusivamente, no sentido de explicar a ativação da(s) categoria(s)
analisada(s).
Dessa forma, tais “variáveis”, descritivas e explicativas, seriam estuda-
das como conjunto constitutivo de representações organizadas da realidade, em
acordo às visões de mundo disseminadas entre os atores locais. Por seu turno, a
tradução em termos dos seis elementos conceituais coletados por entre os contex-
tos de ação pesquisados garantiria a possibilidade de relativização e comparação
- entre padrões locais hegemônicos, marginais e emergentes. Ou seja, teríamos um
conjunto de representações da categoria social organizadas por conjuntos de atores
diversos. Essa é a realidade a ser modelada em redes sociais parciais (BAR-
NES,
2010).
O caminho apontado, de ampliação conceitual a partir do elemento
conceitual econômico, viria ainda permitir o desenvolvimento de tecnologias so-
ciais aplicáveis à formatação de novas ferramentas gerenciais específicas. Tratar-se-
-ia de movimento que buscasse aliar os demais elementos conceituais, presentes
na ação social, complementarmente às análises funcionalistas internas ao campo
das organizações. Com isso, a percepção dos contextos de ação organizacional
ganharia em objetividade e sustentabilidade, perdendo em violência. Senão, é
melhor ficar com o velho jargão que reza: a teoria na prática é outra.
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Submetido em: 02/02/2017
Aprovado em: 09/05/2017
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