DOENÇA COMO EXPERIÊNCIA: SEUS EPISÓDIOS E SUAS
NARRATIVAS
Laércio Fidelis Dias
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais/ DSA UNESP-Marília.
RESUMO
Quando a vida não sorri da maneira exata como se gostaria, por exemplo, diante de
um episódio de doença, pegam-se alguns atalhos para resolver os problemas práticos e
aflições existenciais. As narrativas sobre esses episódios são o que de melhor a
humanidade inventou para orientar a resolução dos problemas práticos e
proporcionar algum sentido para uma realidade rasgada de sentido diante de um
grave problema de saúde. Esse é o fio condutor deste artigo.
Palavras-chave: Antropologia da Doença; Itinerário Terapêutico; Narrativa; Sentido.
EXPERIENCE AS A DISEASE: EPISODES AND YOUR NARRATIVE
ABSTRACT
When life does not smile the exact way you want, for example, on an episode of
illness, take up some shortcuts to solve practical problems and existential distress. The
narratives of these episodes are the best that humanity has ever invented to guide the
resolution of practical problems and provide some sense to a torn sense of reality before
a serious health problem. This will be the leitmotif of this article.
Keywords: Anthropology of disease. Therapeutic itinerary. Narrative. Sense.
78
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
https://doi.org/10.33027/2447-780X.2016.v2.n1.05.p78
79
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
INTRODUÇÃO
O uso das narrativas como um recurso metodológico no campo da antropologia
da saúde tem-se revelado adequado e satisfatório porque permite apreender a
trajetória percorrida por aqueles que se sentem e são reconhecidos como doentes
para restabelecer a saúde novamente, bem como as noções de saúde e doença
subjacentes às escolhas de tratamento. Os casos narrados pelos índios Karipuna, por
exemplo, sobre como identificam e procuram soluções para os seus problemas de saúde
expressam a lógica de operação daquilo que se pode chamar de “sistema médico”
(etiologia, nosologia e terapêutica).
São numerosos os autores que também se valem das narrativas como recurso
metodológico uma vez que nelas estão representadas diferentes formas de representar
a experiência da doença: (MATTINGLY; GARRO, 1994; GARRO, 1994; FARMER, 1994;
MATTINGLY, 1994; RABELO; MINAYO, 1994; GOOD; MUNAKATA; KOBAYASHI;
MATTINGLY; GOOD, 1994; MATHEWS; LANNIN; MITCHELL, 1994; HUNT, 1994; JACKSON,
1994; GOOD; GOOD, 1994; GOOD, 1994).
As narrativas expressam a forma de estruturação e interpretação dos eventos de
doença e infortúnio (GOOD, 1994), demonstram a dimensão experimental e cultural de
tais eventos, pois suas manifestações resultam da confluência de fatores de várias
ordens: biológica, cultural, psicológica e social (LANGDON, 1994b).
Good (1994, p. 139) destaca que a relação entre cultura e experiência foi,
primeiramente, apontada por antropólogos fenomenologicamente orientados, em
especial os de tradição boasiana, por exemplo Geertz (1989) entre outros. Segundo
esses autores, o acesso e a análise da experiência se dão através da linguagem, bem
como das relações sociais, institucionais e das atividades que fazem parte do universo
simbólico onde estamos inseridos.
80
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
A compreensão do antropólogo, ou de qualquer outra pessoa, da experiência dos
outros, passa pelas experiências que neles provocam as histórias que lhes são contadas
(GOOD 1994, p. 140). Conceber a doença como experiência significa pensá-la como um
processo individual e coletivo no qual a experiência corporal é mediada pela cultura
(LANGDON 1996a, p. 16), e as narrativas revelam o modo como a experiência constrói,
ordena e significa os eventos de doenças e infortúnios.
Rabelo (1994, p. 4) acrescenta que trabalhos desenvolvidos dentro de uma
orientação etnometodológica enfatizam a ideia de que o discurso e, em particular, as
narrativas, estão embebidos de uma dimensão da ação. Tratando narrativas, relatos e
discurso como instâncias de ação, atrela-se o significado ao contexto. E isto significa
conceber o discurso, as narrativas em especial, não como expressões de subjetividades,
mas, sobretudo, como tomada de posição num campo de possibilidades (RABELO,
1994).
Mas afinal de contas o que é uma narrativa?
Langdon (1988, p. 79) caracteriza uma narrativa como o ato de contar um fato
com uma sequência estruturada, na qual se identificam três partes bem delimitadas,
ao menos em narrativas mais simples: introdução, desenvolvimento e conclusão. No
caso das sociedades indígenas, as narrativas são uma categoria da tradição oral que
expressa e atualiza visões de mundo do grupo através de mitos, lendas, relatos
individual e pessoal, e apresenta um modelo de realidade que proporciona estruturas
e símbolos tanto para o entendimento dos fatos quanto para a ação (LANGDON, 1988,
p. 78).
De modo semelhante à Langdon, a definição de narrativa proposta por Good
(1994) acrescenta que, além de uma forma pela qual a experiência é apresentada,
contendo uma ordem coerente e significativa dos eventos e das atividades descritas,
as narrativas ultrapassam a descrição e a perspectiva limitada do tempo presente,
81
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
fazendo projeções de atividades e experiências, organizando desejos e estratégias
teologicamente, dirigindo-os a fins imaginados e formas de experiências com as quais
os narradores pretendem preencher suas vidas (LANGDON, p. 139). As narrativas são
histórias que utilizam formas culturais populares para descrever experiências
partilhadas por membros de uma família. Dialogicamente construídas e
frequentemente contadas em conversas com várias pessoas presentes, as narrativas
referem-se, com mais frequência, a experiências de terceiros que à do narrador
(LANGDON, p. 158).
Rabelo (1994, p. 13) também acrescenta que o narrar um problema como
doença, os indivíduos fazem mais do que apontar para fatos consumados: tecem em
torno de si os fios de uma realidade em que buscam habilmente envolver os outros.
“Transformando-se em personagens, falando através de outros autorizados e
mantendo-se no papel de narradores, negociam responsabilidade, definem identidades
e pleiteiam o direito a determinados tratamentos”.
1 EPISÓDIO DE DOENÇA
Essa história me foi contada pelo casal Francisco e sua esposa, moradores da
aldeia Kunanã, em janeiro de 2000. Os dois são os narradores da história. Ele começa,
e mais adiante, a condução da narrativa alterna-se entre ambos.
uns doze anos eu peguei malária e hepatite tipo A. Na época,
eu trabalhava no garimpo e fiquei três meses hospitalizado em
Oiapoque. Mesmo depois de ter saído do hospital, ainda estava
amarelo, tinha febre, diarréia e vomitava. Por isso, continuei a
tomar os remédios de farmácia que me tinham receitado no
hospital. Mas apesar de tomá-los não sentia melhora. Então, fui
para a cidade de Itaituba, no Pará. Lá fiquei um mês, comendo
e piorando. De Itaituba foi para Santarém, onde fiquei dois
meses hospitalizado sem que houvesse melhora. Decidi voltar
para o Oiapoque onde uma
82
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
senhora me ensinou a preparar um remédio do mato à base de
raiz e folha de abacate, grelo da goiaba, raiz do caju, casca de
mangueira, quebra-pedra, folha de boldo e raiz de vassourinha.
Eu deveria ferver os ingredientes em quatro litros d’água até
abaixar para dois litros. Em seguida, eu deveria adicionar mais
um e meio litros d’água e levar o preparado ao fogo até abaixar
para um litro e meio. Depois era para eu colocar um pouco de
sal, apenas para tirar o amargo, tomando cuidado para não
salgar o remédio. Após a adição de sal, o remédio deveria ser
coado e tomado com a dosagem de duas colheres de sopa, duas
vezes ao dia, até terminar. Fiquei bom quando o remédio
terminou. Desde então, não peguei nem leche.
1
2
Quando
comecei a tomar o remédio que me ensinaram em Oiapoque,
deixei de tomar os remédios de farmácia que vinha tomando.
Mesmo depois de bom, fui procurar um pajé crioulo Saramaká
de Tampac (vilarejo da cidade de Saint George de Oyapock).
Esse pajé recomendou-me que ficasse morando por uns três
meses para tomar banhos e pegar uma força de espírito.
Durante o tratamento comecei a piorar. Sentia dores, agonia e
uma coisa no estômago que parecia um bicho querendo sair. O
pajé dizia-me que eu não tinha força espiritual suficiente para
lidar com a coisa que tinham colocado dentro do meu estômago
para me matar. A doença era muito forte. Então, saí de Tampac
e vim para a Terra Indígena Juminã, aldeia Kuna. Nesta
aldeia, Dário cacique e pajé - me deu alguns banhos. Durante
os oito dias de tratamento sentia fortes dores e faltava
desmaiar. Foi a força de Deus e a boa vontade das pessoas que
se reuniam para me ajudar que me curaram. As pessoas
reuniam-se na minha casa para orar. Rezavam trechos da bíblia,
salmos.
A partir desse momento, sua esposa assume a narrativa da história. Francisco
afirma que não se lembra bem dos episódios que se seguem.
Nessa época, Francisco parecia possuído por um “espírito
forte”. Parecia querer me matar jogando-se contra o chão. Ele
1
Um tipo de ferida (Leishmaniose), em patois, piãbua.
83
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
procurava alguma coisa para tentar se ferir. Era preciso seis
homens para segurar. Esses espíritos falavam através de
Francisco para mim e minha mãe, que éramos as pessoas mais
próximas. Eu e minha mãe fomos nos afeiçoando pelo Francisco.
Os espíritos diziam-nos que foram pagos para atormentar o
Francisco, para matá-lo e levá-lo embora. Eram três espíritos
irmãos, que pareciam se divertir com o sofrimento de Francisco.
Os espíritos diziam que ele estava preso em uma gaiola e nunca
sairia de lá. Os espíritos diziam que se eu me casasse com eles,
espíritos, eu nunca precisaria trabalhar na vida. Diziam que
eram em três e dariam de tudo que eu precisasse. Eu lhes
respondia que eles tinham tido vez, que tinham vivido
neste mundo. Se Deus deu a vida para Francisco, ele deveria
vivê-la, pois o corpo era dele. Um dos espíritos era bastante
sorridente, mas quando eu dizia essas coisas, ficava muito bravo
e começava a se jogar, querendo matar Francisco. Os espíritos
diziam que tinham vindo de muito longe para me ver e eu não
queria -los. Isso era um pretexto dos espíritos para matar
Francisco. Além desses três espíritos irmãos, vinha uma cobra
sem cabeça, horrível, que costumava assustar as pessoas da
aldeia que tomavam banho no lago. As pessoas viam uma coisa,
mais não tinham certeza, não conseguiam fixar a vista. Sentiam
a presença da cobra, mais não a enxergavam. As pessoas da
aldeia ficavam com medo de Francisco e queriam que ele fosse
embora. Achavam que ele dava muito trabalho e que tinha
machucado pessoas através dos espíritos. Alguém na aldeia
descobriu uma oração que acalmava e tirava a força dos
espíritos, mas que não pôde ser identificada porque era em
francês. Entretanto, por causa de algumas palavras, supôs-se
que fosse de Saint Georges. A oração narrava a luta de São Jorge
contra o Dragão. Além dessa oração, o Pai-Nosso também era
rezado. A oração que acalmava Francisco estava escrita em um
pedaço de papel e embrulhada em um pano vermelho. Durante
as crises, eu colocava a oração, com a minha mão direita, sobre
o peito de Francisco e ele se acalmava. Não era preciso dizer
nada. Decorridos quatro dias da descoberta da oração, as
pessoas da aldeia queriam mandar Francisco para o
Oiapoque. Eu e minha mãe não deixamos que levassem
Francisco porque temíamos que o mandassem para um
hospício. Nós sabíamos que ele não era louco, apenas estava
possuído por espíritos. Num certo momento, os espíritos
disseram que depois de cinco dias levariam Francisco embora
de qualquer jeito. Disseram que não havia nada que poderia
ser feito. Por sua vez, as orações
84
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
do pastor Sílvio, da Igreja Batista Missionária, também não
resolviam. Durante as crises, eu sabia quem, em Kunanã, falava
mal de Francisco. Eu e minha mãe tomávamos cuidado para
falar com carinho sobre o Francisco, porque se alguém lhe
quisesse mal, seria pior para ele. Um dos três espíritos me disse
que deixaria o Francisco para ela porque, em suas andanças
para matar, nunca tinha encontrado pessoas com tanto amor e
carinho. A condição que o espírito impôs foi a de não abandoná-
lo, caso contrário voltaria para matá-lo. Neste momento, entrou
um espírito bravo e disse para o seu irmão: “seu frouxo, nunca
pensei que tivesse um irmão tão frouxo”. Esse espírito bravo
disse que o irmão apanharia muito por ter dito que deixaria
Francisco para mim, e que levaria Francisco embora no quinto
dia de qualquer maneira. Durante esses cinco dias, Francisco
não comia nada. Ele dizia: “já me trouxeram muita comida”.
Como estava muito fraco, eu decidi amarrá-lo. Mesmo
amarrado, os espíritos, através de Francisco, me chamavam e
diziam: “se você pensa que ele está amarrado, ele não está não”.
Eu olhava para as cordas e elas estavam frouxas, embora as
tivesse amarrado firmemente. Já sem opção, fui pedir ajuda um
velho branco, muito católico, e casado com uma índia. Fui a
remo com minha irmã trazer o velho para dar uma olhada no
Francisco. Antes mesmo de chegar à aldeia onde ele morava, eu
o encontrei em uma das curvas do rio remando em direção à
aldeia do Kunanã. Disse a ele que precisava da ajuda porque
havia uma pessoa muito doente na aldeia. Então, ele me disse
que sabia, e prosseguiu: “onde um irmão precisando eu vou
dar uma ajuda”. Na aldeia do Kunanã, o velho senhor se benzeu,
fez uma oração, entrou na casa de Francisco, pegou a Bíblia, e
disse a todos que estavam na casa para irem para suas casas. Ele
ficaria com o pastor e com Francisco. Com Francisco amarrado,
ele sentou-se à cabeceira da cama com a Bíblia. Eu e os familiares
tínhamos ido dormir em outra casa. Pela manhã do dia seguinte,
o velho senhor me chamou e disse a Francisco: Francisco, olhe
para Fátima, não quero que você nunca a esqueça, ela te ajudou
muito”. Mário mandou chamar também o meu padrasto para
ajudar a desamarrar Francisco. Desamarrado, ele levantou-se
bem. Então, foi levado pela aldeia para que todos vissem que
estava bem. À beira do lago, o velho senhor batizou Francisco
novamente. Deu-lhe um copo d’água para beber dizendo que
daquele dia em diante seria aceito ali, e ali seria o seu lugar.
Seria como se fosse o seu pai e
85
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
sua mãe.
Desse momento em diante, Francisco se lembra do ocorrido e começa, ele
mesmo, a contar a história.
Quando o velho senhor disse: “eu te batizo em nome de Deus”,
alguma coisa explodiu diante de minha vista. Depois disso, voltei
para casa. As dores tinham abrandado. Restava apenas um sono
pesado com delírios. Então, eu não era deixado sozinho nem
para trabalhar, nem para ir a lugar algum. Mesmo depois de ter
melhorado, eu ainda sentia que a coisa ruim estava por perto.
Sua esposa retoma a narrativa da história e conta:
A minha mãe achava que Francisco ainda não estava bom.
Assim, ela acabou indo ao Oiapoque, e lhe indicaram uma
mulher muito boa: uma mãe-de-santo. Francisco, ainda sem
saber que a sogra já tinha procurado a mãe-de-santo, lhe falou
que se ela procurasse a mãe-de-santo ele iria lá e acabaria com
a mulher. Em Oiapoque, antes que minha mãe dissesse
qualquer coisa, a mãe-de-santo lhe falou que sabia de seu
problema, e que era preciso trazer o Francisco até ela. Ela disse
para mãe-de-santo que não poderia trazê-lo porque ele estava
muito bravo. Então, a mãe-de-santo lhe pediu para trazer uma
camisa de Francisco. Ela disse a minha mãe para não se
preocupar porque o próprio Francisco lhe pediria para trazê-lo
até ela. Ao chegar na aldeia, Francisco perguntou a sogra se ela
tinha ido procurar a mãe-de-santo em Oiapoque. Temendo
represália, ela mentiu dizendo que não. Então,
surpreendentemente, Francisco lhe disse que gostaria que ela
o levasse à mãe-de-santo. Minha mãe levou Francisco até ela e
a mãe-de-santo lhe fez um trabalho. Nesse trabalho, ela colocou
três pires sobre uma mesa coberta por uma toalha branca. Num
dos pires havia uma vela vermelha, noutro, uma branca, e no
terceiro pires, uma roxa. A vela branca simbolizava a vida.
Durante a oração, a mãe-de-santo falou: “se o pires branco
estourar, Francisco não tem mais vida”. Durante a oração
estouraram os pires com as velas vermelha e roxa. Ela disse:
“Francisco tem vida”. A mãe-de-santo receitou banhos para
Francisco e o aconselhou a não voltar para o garimpo porque
ele trabalhava mergulhando, e a Cobra
86
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
poderia matá-lo no Fundo d’água. Francisco precisava de dois
trabalhos, mas fez apenas um porque teve de viajar a Belém.
Apesar de bom, eu continuou a tomar banhos e fazer orações
durante três anos. Eu ainda estava receosa. Durante os banhos
e as orações, a mãe-de-santo recomendou que Francisco se
afastasse de festas e aglomerações. Eu e Francisco seguimos
todas as recomendações, e graças a Deus, dez anos que
moramos na aldeia do Kunanã, nunca discutimos com ninguém,
nem pegamos faxina por causa de desavenças. Minha mãe
conta que ae-de-santo pediu para me alertar que eu teria de
ter paciência porque surgiriam muitas conversas a respeito de
Francisco para tentar afastá-lo da aldeia: acusações de
adultério, brigas e discussões. A mãe-de- santo disse que
Francisco poderia viver no Kunanã ou perto da família dele
(no Ceará), porque ele precisaria de muito carinho. Ela disse,
também, que Francisco era uma boa pessoa e um bom
trabalhador. Depois de tudo resolvido, nós nos casamos,
tivemos filhos, somos felizes, temos saúde e voltamos a
participar das festas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da história apresentada anteriormente, pode-se observar que o conjunto
de práticas terapêuticas de que se servem os Karipuna, para tornar cognoscíveis e
superáveis as doenças e os infortúnios, é exercido, fundamentalmente, por: 1) aqueles
que conhecem os remédios caseiros preparados, principalmente, à base de ervas; 2)
os benzedores; 3) os pajés que controlam o mundo sobrenatural; 4) os médicos dos
hospitais das cidades vizinhas; 5) os pais e mães-de-santo da Umbanda aos quais têm
acesso nas cidades vizinhas.
O uso de remédios preparados à base de ervas é o recurso terapêutico
disponível. As ervas são utilizadas nas mais diversas ocasiões. Abrangem um vasto
universo de significados que pode variar da promoção da cura ao fortalecimento da
saúde. Estão presentes nos remédios caseiros destinados a tratar as doenças mais
simples, do mesmo modo que são utilizadas para os casos mais complicados. O uso dos
87
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
remédios das enfermarias das aldeias e dos serviços médicos disponíveis nas cidades
vizinhas constitui uma opção de tratamento a mais.
Em relação à opção pelos recursos terapêuticos, não existem indícios de que a
escolha de um resulte no abandono de outro ou em alguma contradição. Vários autores,
no contexto etnográfico das terras baixas sul-americanas, verificaram que a
incorporação da biomedicina, através da criação de postos de atendimento dentro das
aldeias e do uso dos serviços públicos das cidades vizinhas, atua como alternativa
terapêutica complementar. Os esquemas interpretativos indígenas mobilizados para
explicar as causas das doenças tendem a permanecer vivos e atuantes, mesmo com a
presença da biomedicina.
O episódio concreto de doença e infortúnio é um momento de produção de
canais de transmissão de saberes. Saberes que informam sobre o modo específico como
os diferentes sistemas ideológicos que compõem o universo de representações
Karipuna articulam-se entre si. Assim como, os motivos variados que conduzem à
procura das diferentes instituições ligadas à cura e ao restabelecimento da saúde.
A compreensão dos processos empregados para solucionar os eventos de
doença e infortúnio revela bastante a respeito dos tipos de “pessoas socioculturais” que
os Karipuna desejam construir. A análise das maneiras como os episódios concretos de
doenças e infortúnio são resolvidos possibilita observar as estratégias Karipuna de
construção de sua identidade e autonomia no contexto mais amplo das relações
interétnicas.
A história de doença relatada representa uma tentativa de mostrar como as
narrativas explicitam as diferentes trajetórias percorridas pelas famílias, da percepção
e compreensão de alguma desordem na saúde, até a escolha de um ou vários recursos
terapêuticos. Essa trajetória, designada pela literatura antropológica de “itinerário
terapêutico”, expressa o modo específico de o “sistema médico” em questão constrói
e interpreta a doença como uma experiência cultural.
88
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
Cabe notar, também, que o caso de doença e infortúnio apresentado revela
como, concomitantemente às práticas terapêuticas, ocorre um processo de
incorporação do enfermo à comunidade através dos cuidados e tratamentos específicos
e contextualizados que ele recebe. Explicita, outrossim, tanto a maneira como a
dimensão crônica da doença vai mobilizando esquemas interpretativos de naturezas
diferentes, quanto os usos hierarquizados que são feitos desses esquemas.
REFERÊNCIAS
ALVES, Paulo Cesar; MINAYO, Maria Cecília de Souza (Orgs.). Saúde e doença: um olhar
antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1994.
FARMER, Paul. “AIDS-talk and the constituition of cultural models”. In: Social, science
& medicine, 1994, v. 38. n. 6, p. 801-809.
GARRO, Linda. Narrative representations of chronic illness experience: cultural models
of illness, mind, and body in stories concerning the temporomandibular joint (JMT),
Social Science & Medicine, 1994, v. 38, n. 6, p. 775-788.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara. 1989.
GOOD, Bryon J. Medicine, rationality, and experience. Cambridge: Cambridge
University Press. 1994.
GOOD, Bryon J.; GOOD, Mary-Jo Del Vecchio. In the subjunctive mode: epilepsy
narratives in Turkey, Social, science & medicine, 1994, v. 38, n. 6, p. 835-842.
HUNT, Linda M. Practicing oncology in providencial Mexico: a narrative analisis. Social,
science & medicine, 1994. v. 38, n. 6, p. 843-853.
89
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília,
v.2, n.1, p. 78-89, jan./jun. 2016. ISSN: 2447 780 X
LANGDON, E. Jean. Saúde indígena: a lógica do processo de tratamento, In: Revista de
Saúde em Debate. São Paulo: Centro Bras. de Estudos de Saúde, p l988, p. 12-15.
LANGDON, Esther Jean Matteson. Representações de doença e itinerário terapêutico
dos siona da Colômbia, In: SANTOS, Ricardo V. & COIMBRA JR, Carlos E. A. (Orgs.).
Saúde & povos indígenas, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994b p. 115-141.
LANGDON, Esther Jean Matteson. A doença como experiência: a construção da doença
e seu desafio para a prática médica, In: LANGDON, Esther Jean Matteson (Org.).
Antropologia em primeira mão. Florianópolis: Programa de pós-graduação em
Antropologia Social da UFSC. 1996a.
MATHEWS, Holly F.; LANNIN, Donald R.; MTCHELL, James P. Coming to terms with
advanced breast cancer: black women’s narratives from eastern North Carolina,
Social, science & medicine, 1994, v. 38, n. 6, p. 789-800.
MATTINGLY, Cheryl. The concept of therapeutic ‘emplotment’ ”, In: Social, science &
medicine, v. 38, 1994, n. 6, p. 811-822.
MATTINGLY, Cheryl; GARRO, Linda. Introduction. Social, science & medicine, 1994, v.
38, n. 6, p. 771-774.
RABELO, Miriam Cristina 1994. A Construção narrativa da doença. Trabalho
apresentado na XVIII Reunião da ANPOCS.
Submetido em: 12/08/2016
Aprovado em: 10/08/2016