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ISSN: 2447780 X - https://doi.org/10.33027/2447-780X.2016.v2.n1.03.p38
POLÍTICAS PÚBLICAS E ORDENAMENTO JURÍDICO NO COMBATE AO
RACISMO NO BRASIL
Alexandre de Castro
1
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho - UNESP/ Câmpus de Marília SP (1995), é Bacharel em Direito pelo Centro
Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM (2002), Mestre em Teoria do Direito e do
Estado pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM (2005). Professor do
Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade
Universitária de Paranaíba. xadrecas@gmail.com
Ana Amélia Dias da Silva
Bacharel em Direito e Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba. Amelinhad2@hotmail.com
“A raça negra tem sofrido e ainda sofre, somente
em virtude de sua aparência física e sua respectiva
componente cultural, toda sorte de agressões. Não
apenas injuria física, mas também contínuos
ataques ao seu espírito e á sua inteligência. [...]
Fique registrado, entretanto, que a consciência
negra do negro não se rende; ela se constituiu, na
peripécia do seu sofrimento e nas vicissitudes
históricas, em armas e armaduras, em forças
espirituais que sustentam os passos e a vitalidade
de nossa raça.” (Abdias do Nascimento, 1980).
RESUMO
Apesar de o Brasil ser signatário de tratados internacionais com o compromisso de
combater o racismo em todas as suas formas de manifestação, a prática deste crime é
um problema atual a vitimizar, não etnias de vários matizes, mas em particular os
1
Atua como docente no Ensino Superior nas disciplinas de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado,
Ciência Política e Cidadania. Em 2014 vinculou-se ao Curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direitos
Humanos ministrando a disciplina de Fundamentos Sociológicos dos Direitos Humanos na mesma Unidade
Universitária. Membro integrante do Grupo de Pesquisa GP FORME Formação do Educador, e do Grupo
de pesquisa Direito, Cotidiano e Construção da Sociabilidade - linha de pesquisa: Direito e Cotidiano,
ambos da FFC-Unesp/Marília, cadastrados no CNPQ e certificados pela UNESP.
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negros. A história legislativa brasileira, na seara de políticas públicas no combate a este
crime, culminou na Lei 7.716/89 que, apesar da sua promulgação determinando punição
ao preconceito de raça e de cor, ainda presenciamos a violência decorrente do racismo
em desconformidade aos avanços e anseios da sociedade brasileira no sentido de
promover a inclusão, a igualdade racial, o desenvolvimento social, educacional e
econômico para todos. Mediante revisão bibliográfica a respeito da temática, numa
perspectiva histórica, buscamos a compreensão das causas dessa ineficácia legal e sua
impunidade, em especial no que diz respeito ao Instituto jurídico em questão.
Resultados apontam omissão do Estado com relação ao aprimoramento e aplicação
dos princípios e leis em defesa dos direitos da população negra brasileira, denunciando,
assim, a dificuldade em rompermos com passado escravista brasileiro opressor,
desembocando na falta de garantia da igualdade, do respeito e da dignidade para todos
os brasileiros.
Palavras-chave: Afro-brasileiros, Lei 7.716/89, Combate ao racismo, Políticas públicas.
PUBLIC AND LAW POLICIES IN THE FIGHT AGAINST RACISM IN BRAZIL
ABSTRACT
Although Brazil is a signatory to international treaties with commitment to fight racism
in all its manifestations, the practice of this crime is a current problem to victimize not
only ethnic groups of various sorts but especially blacks. The Brazilian legislative history,
the harvest of public policies to combat this crime, culminating in Law 7,716 / 89, despite
its enactment determining punishment to the prejudice of race and color, also
witnessed violence resulting from racism in disagreement to advances and desires of
Brazilian society to promote inclusion, racial equality, social, educational and economic
development for all. Through literature review on the theme, a historical perspective,
we seek the understanding of the causes of this legal inefficiency and impunity,
particularly with regard to the legal institute in question. Results indicate the State's
failure regarding the improvement and application of the principles and laws in defense
of the rights of black people, denouncing thus the difficulty we break with past oppressor
Brazilian slave, ending up in the absence of guarantee of equality, respect and dignity
for all Brazilians.
Keywords: Afro-Brazilian Law 7.716 / 89 Combating racism, Public Policies.
INTRODUÇÃO
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O Brasil é um país que possui em sua conformação social uma enorme gama de
etnias, constituindo-se num mosaico de grande diversidade cultural. Fato que nos
torna conhecido mundo afora pela esplêndida diversidade nos costumes.
Particularmente em relação a um componente deste xadrez cultural, falamos
da etnia negra, após a assinatura da Lei Áurea em 1888, acreditou-se num Brasil baseado
na democracia racial e muitos acreditaram que de fato todos os seus cidadãos eram
tratados de forma igual, de possuírem as mesmas oportunidades, exercerem os mesmos
direitos, podendo assim usufruir todas as riquezas e oportunidades desta terra. Porém,
na realidade isso não acontecia, pois os reflexos do sistema colonial explorador e
opressor de quinhentos e dezesseis anos ecoam até hoje, fazendo com que, não
negros, mas também índios e todos os seus descendentes ainda sejam explorados,
desprezados, segregados e tratados de forma diferente, muitas vezes desumana.
Ainda hoje, embora muitos neguem tratamentos diferenciados, negativos e
prejudiciais às pessoas negras, insistindo na ideologia da democracia racial, basta certa
dose de sensibilidade social ou analise de pesquisas realizadas recentemente sobre o
assunto, para comprovar a grande desigualdade existente entre brancos e negros.
Segundo o IBGE em 2013 os trabalhadores negros ganharam apenas pouco mais da
metade dos rendimentos daqueles que exercem a mesma função e tem a pele branca.
Observa-se que os negros são maioria na população carcerária brasileira, vítimas do
racismo institucional, que diante da existência de um crime, automaticamente
estereotipam e colocam o indivíduo negro como o autor do crime.
Nota-se também que a população negra constitui nas maiores vítimas da
violência urbana. Nos casos de homicídios ocorridos nos estados, cidades, locais de
grande concentração de pessoas, de desigualdades sociais e econômicas, estudos
divulgados no fim de 2013 pelo instituto de pesquisa econômico aplicado IPEA
2
2
IPEA é uma fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
República. Suas atividades de pesquisa fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais
para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros.
Sua missão é “Aprimorar as políticas públicas essenciais ao
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morrem duas vezes mais negros assassinados do que brancos: “O negro é duplamente
discriminado e tem a probabilidade aumentada de sofrer homicídio em cerca de oito
pontos percentuais no Brasil, por sua situação socioeconômica e por sua cor da pele
(preta ou parda)” (CERQUEIRA, 2013, p. 48), observa o estudo.
1 RACISMO: DEFINIÇÃO E SEU SURGIMENTO
Para combater o racismo dirigido os negros no Brasil é necessário romper tabus,
discutir o assunto. É necessário também evocar a escravização africana em solo
brasileiro; relembrar e contar sua verdadeira história despojada de sua humanidade.
Explorados, desfavorecidos e submetidos a toda forma de opressão, miséria e ao quase
“esquecimento” de sua condição de seres humanos e detentores de direitos.
Começamos então com o questionamento sobre do termo racismo.
Racismo é a suposição de que raças e, em seguida, a caracterização
biogenética de fenômenos puramente sociais e culturais. E também
uma modalidade de dominação ou, antes, uma maneira de justificar a
dominação de um grupo sobre o outro, inspirada nas diferenças
fenotípicas da nossa espécie. Ignorância e interesses combinados,
como se vê.
(SANTOS, 2010, p. 12).
Racismo encontra sua base ideológica ao postular a existência de hierarquia
entre os grupos humanos (Programa Nacional de Direitos Humanos, 1998, p. 12). É
uma das formas de discriminação mais antiga da história da humanidade e se manifesta
pela intolerância das diferenças raciais, étnica, religiosas, cultural, de gêneros, de
nacionalidade e pela crença na superioridade de um povo sobre o outro.
Quando o racismo passa a ser enfrentado no Brasil pelos movimentos negros e
sociais, quando as autoridades são questionadas, depara-se com os desafios de se
reconhecer tanto a existência quanto a prática do crime, pois os que afirmam que
desenvolvimento brasileiro por meio da produção e disseminação de conhecimentos e da assessoria ao
Estado nas suas decisões estratégicas”.
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esse problema está superado, por outro lado os que não assumem praticar atos racistas.
O racismo tem como principal função o exercício de poder sobre a vida, a
liberdade de determinadas pessoas, no sentido de forjar diferenças biológicas entre os
homens, no intuito de submeter (seja na forma de escravidão, seja na participação
política e ainda culturalmente) os supostamente considerados diferentes e inferiores
(NASCIMENTO, 1980).
Atualmente o racismo praticado contra negros no Brasil, assume uma forma mais
ligada à discriminação, preconceito ao étnico, às características físicas, a negação da
origem africana, a cor da pele da pessoa, e neste caso os que possuem a cor de pele
negra são apresentados como inferiores e passíveis de exploração e sofrimento (SILVA,
1986). Ou seja, “[...] o racismo que o negro sofre passa pela cor de sua pele [...]”
(SANT’ANA, 2005, p. 59).
O uso do racismo e a ideia de raça, no sentido biológico, também foram
considerados inaceitáveis porque em nome dessa ideologia racista muitas injustiças
foram cometidas. Portanto, é absurda a ideia de raça, não superioridade entre
brancos e negros, porque por mais que existisse uma pureza biológica, por que ligá-la à
ideia de superioridade com base em traços étnicos? Nãocomo medir superioridade
biológica, em ligação com traços étnicos, pois não é possível demonstrar o
condicionamento dessa tal superioridade psicológica, nem cultural sobre as quais o
racismo insiste. Ainda que existissem diferenças biológicas que levassem a tal “raça
pura”, “sangue puro”, nada, nem mesmo em nome da evolução da espécie humana,
justifica a submissão e escravização dos outros seres humanos considerados opostos.
(MUNANGA b, 2004).
Sabe-se que o racismo é uma forma perversa de discriminação, maléfico e
necessita ser combatido, denunciado e eliminado. Conforme assegura Sant’Ana (2005),
quando qualquer pessoa no Brasil fala em racismo a imagem humana que geralmente
lhe vem logo à mente é a do negro. E isso acontece porque o negro é a maior vítima de
todas as formas de racismo praticado neste imenso país e porque o crime de racismo
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esta relacionado com o nosso passado histórico escravocrata; ou seja, relações
entre a escravidão imposta a eles e o racismo sofrido por eles. (SANT’ANA, 2005, p.
40).
O racismo é uma ideologia a serviço da dominação que até hoje tem contribuído
para manutenção do status quo, de forma a segregar, utilizando de diversos
mecanismos de perseguição, pregação do medo, disseminação do ódio, na manutenção
da ignorância, tais como a desconstrução da identidade, a criação de estereótipos
negativos para denegrir a imagem dos negros (MUNANGA, 1986; SANT’ANA, 2005).
Infelizmente esses elementos negativos possuem uma força de mobilização muito
poderosa, capaz de aniquilar a razão, a solidariedade, a igualdade e a humanidade
contida nas pessoas. Pois, desde a infância em nossa socialização fatores
direcionados a segregar e oprimir os considerados fora do “padrão”, além da grande
maioria pertencente às classes inferiores, serem educadas a não aceitarem suas
próprias origens e a viver um verdadeiro conto de fadas troiano.
2 O RACISMO DISSIMULADO: OS ESTEREÓTIPOS, AS PALAVRAS OFENSIVAS E
OUTRAS ATITUDES DISCRIMINATÓRIAS
Saber conviver com o racismo dissimulado ainda nos dias de hoje é uma questão
de sobrevivência.
Tudo isso remonta a um processo de socialização racista conforme dito
anteriormente, marcadamente branco-eurocêntrico e etnocêntrico, que ao longo da
história enaltece imagens de indivíduos brancos, do continente europeu e dos Estados
Unidos como referências positivas em detrimento dos negros e do continente africano.
(SCHWARCZ, 2001; IANNI, 2004). Além disso, outros fatores favorecem a interiorização
e perpetuação de ideias preconceituosas, atitudes discriminatórias e racistas contra os
indivíduos negros. O uso de diversas palavras ofensivas, apelidos grotescos,
xingamentos, ironias, piadas racistas e tratamentos reiterados de opressão, segregação.
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Quando o negro é possuidor de diploma, um bom emprego que lhe propicie
ascensão social, diz-se ter “boa aparência” (usa roupas de marca, frequenta salões de
cabeleireiro, tem os atributos e padrões de beleza impostos), sua condição facilita sua
“aceitação” e respeito pela sociedade, porém com uma condição, ele não pode se
assumir um preto, nem negro e continuar ouvindo as pessoas dizerem que ele (a) “tem
a alma branca”, que é moreninho (a), um “negro (a) de alma branca”. Ou seja, a elite
branca não aceita e nega que os negros também possuem inteligência e muita
capacidade de crescer financeiramente e se destacar nos melhores empregos.
Nota-se que o racismo não se restringe apenas nas relações interpessoais. Pois
se observa no campo da educação que materiais didático-pedagógicos (livros, revistas,
jornais, etc.) apresentam apenas pessoas brancas com e como referências positivas,
tornando-se ingredientes de peso na discriminação dos negros. Raramente, os negros
aparecem nestes materiais e quando aparecem é apenas para ilustrar o período da
escravidão do Brasil - Colônia ou, então, para ilustrar situações de subserviência ou de
desprestígio social (COELHO, 2009).
Nestas ocasiões destaca-se a existência do racismo dissimulado e dos
tratamentos de inferiorização contra a população negra nas diversas relações
cotidianas.
Atualmente ainda poucos negros trabalhando nos órgãos públicos nas
funções de médicos, engenheiros, dentistas, advogados, analistas ou técnicos, juiz; na
posição de chefes; diretores nas empresas públicas ou privadas; são raros no mundo
da moda; não aparecem nas propagandas e nas telenovelas como pessoas bem
sucedidas e honestas, pois os poucos que existem nas telenovelas são os selecionados
pelo branqueamento (ainda não vimos um negro retinto em papéis principais, sempre
ocupam uma função de figurante, vilão, escravos, empregados domésticos, bandidos ou
personagens tolos).
Pessoas negras acabam sendo automaticamente autuadas injustamente pelos
policiais como suspeitas, são vistas como bandidos, não conseguem andar
tranquilamente e usufruírem o fruto de seu trabalho (como ter carro caro, roupas de
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marca, objetos de ouro, pois já imaginam que ele roubou de alguém) e em sua maioria
são humilhados diante da população, sem direito a defesa, tendo que provar
constantemente que não estão fazendo nada errado. Emblemático o caso de racismo
ocorrido no ano 2009, em Osasco SP, com um cliente negro no Supermercado
Carrefour, “confundido” com ladrão, considerado suspeito de roubar seu próprio carro
e brutalmente agredido para confessar o crime:
O segurança e técnico em eletrônica, Januário Alves de Santana, de 39
anos, foi agredido por seguranças do supermercado Carrefour, em
Osasco, na Grande São Paulo. Ele foi confundido com ladrões e
considerado suspeito de roubar seu próprio carro. O caso foi
registrado no Distrito Policial da cidade. Nos próximos dias, seu
advogado, Dojival Vieira, vai ajuizar uma ação de indenização por
danos morais contra o supermercado e o Estado. “Esse caso é
emblemático e precisa ser punido com vigor para que outras situações
de discriminação racial não venham a ocorrer.” Santana é negro. O
Carrefour afirmou que acompanha a investigação policial. Segundo o
cliente, enquanto a família fazia compras, na noite do dia 7, ele
esperava no carro com a filha de 2 anos. O alarme de uma moto
disparou e ele viu dois homens correndo. O dono da moto chegou em
seguida. Santana desceu do carro e achou que os bandidos tinham
voltado. Um desses homens sacou uma arma e Santana correu. No
chão, chegaram a lutar até que um terceiro homem, que se identificou
como segurança da loja, retirou a arma e pisou na cabeça de Santana.
Segundo ele, cinco homens, que não vestiam uniformes, o levaram até
um quartinho onde o espancaram. “Eles falaram que eu ia roubar o
EcoSport e a moto. Quando disse que o carro era meu, batiam mais.”
Quando três policiais militares chegaram ao local, Santana explicou
que seus documentos estavam no carro. “Eles riam e diziam: ‘Sua cara
não nega. Você deve ter pelo menos três passagens pela polícia’. De
tanto insistir, foram até o automóvel, onde sua família o esperava.
Após conferir a documentação, os policiais foram embora. “Já passei
outros constrangimentos com esse carro. Acho que vou vender”, diz
ele. (O ESTADO DE S. PAULO, 2009).
Essa ideia preconcebida de inferiorização do negro ainda não foi desconstruída,
na verdade ela foi reafirmada com o processo de branqueamento, de desafricanização
de vários elementos culturais da sociedade brasileira (IANNI, 2004).
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A população negra é cotidianamente exposta ao genocídio no Brasil. O "Mapa da
Violência 2013 - Homicídio e Juventude no Brasil" mostram que negros e pardos são
vítimas de 71,4% dos assassinatos no país, enquanto os homicídios entre os indivíduos
brancos foram reduzidos até 28,2%. Esses jovens assassinados em grande parte são
negros, do sexo masculino e com idade entre 14 e 25 anos (Mapa da violência, 2013).
Esse sistema perverso e seletivo de controle social tem se expressado também
nos altíssimos índices de encarceramento da população negra, que não para de crescer
no Brasil. Trata-se de um genocídio silencioso, uma guerra racista do sistema elitista e
capitalista branco contra pobres e pretos (lembrando que a maioria dos pretos são
pobres e é resultado da negação de vários direitos (educação, trabalho, moradia, saúde,
oportunidade, igualdade de tratamento), são frutos da exploração, da escravização dos
africanos e da não reparação do terrível dano, da não inserção dos ex-escravos na
sociedade pelo Estado desde o passado colonial, excluídos em um país que insiste na
não existência do racismo.
O reconhecimento social de brasileiros negros quase sempre se de maneira
etnocêntrica e estereotipada pelo branqueamento, sendo vistos como um ser
esforçado, trabalhador e do bem, que merecem um “voto de confiança” visão estúpida
do ideal de branqueamento onde negros são aceitos “só se comportarem como
brancos”. Ainda hoje se divulgam a ideia de que somente as populações de pele branca
possuem as qualidades de serem inteligentes, ricos, trabalhadores, de confiança e
portadoras de dignidade.
Em verdade, a população negra no Brasil continua sendo perseguida por um
passado escravista racista e opressor, convivem com o medo da violência cotidiana, com
as desigualdades sociais e continuam sendo vítimas do crime de racismo que ainda
insiste em inferiorizá-los, torná-los excluídos da sociedade, pelo simples fato de
possuírem a cor da pele escura, os traços fenótipos de origens africanas (rosto, cabelo,
aparência física considerada diferente, que são denominados como fora do padrão de
beleza). Vivencia-se uma “ditadura do senso comum” que naturalizou a proposição da
tal “democracia racial.” (COELHO, 2009).
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Mesmo com a existência de direitos e garantias resultantes de políticas públicas
no âmbito legal, trazidos aqui pela influência da legislação internacional, assegurados
pelas normas e pela Constituição Federal brasileira, os negros continuam sendo
expostos à contínua violação de seus direitos fundamentais, quando não, considerados
cidadãos de segunda classe.
3 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS COMO INSTRUMENTO DE
COMBATE AO RACISMO CONTRA OS NEGROS NO BRASIL
Todos os seres humanos possuem dignidade pelo simples fato de existir. Assim
sendo, a proteção da dignidade da pessoa humana é o fundamento dos Direitos
Humanos que foi criado para proteger todos os direitos indispensáveis à vida, a
integridade física, psíquica e social.
Neste sentido eis que surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), é um documento elaborado por representantes de diferentes origens jurídicas
e culturais de todas as regiões do mundo. Foi proclamada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III)
da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e
nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos e
algumas das características mais importantes dos direitos humanos:
Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade
e o valor de cada pessoa;
Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são
aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas;
Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado
de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em situações
específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser restringido se
uma pessoa é considerada culpada de um crime diante de um tribunal
e com o devido processo legal;
Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e
interdependentes, que é insuficiente respeitar alguns direitos
humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar
o respeito por muitos outros;
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Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de
igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e
o valor de cada pessoa. (DUDH, 2005).
No âmbito internacional, destaca-se como marco central do combate ao racismo
a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, na qual
restou consignado que "[...] todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento ou qualquer outra condição." (CALIXTO, 2015, p. 32).
Como resultado desse processo de lutas do movimento negro e do movimento
social, o Brasil reconheceu e incorporou os Direitos Humanos no seu ordenamento
jurídico, político e social, e assim se materializou na Constituição brasileira de 1988 na
garantia plena a proteção aos direitos fundamentais do homem para todos os seres
humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou
qualquer outra condição. (CARATILHA SOBRE DIREITOS HUMANOS, 2005).
E em que sentido os Direitos Humanos passaram a ser incorporados na legislação
brasileira e influenciaram o combate ao racismo no Brasil? Ao assumir o princípio do
respeito aos Direitos Humanos o ordenamento jurídico brasileiro se abre para o sistema
internacional de proteção aos Direitos Humanos e assim, a Carta de 1988 trouxe
significativas mudanças, no repúdio a discriminação e ao racismo e defendendo a
igualdade de direitos para todos independentes de cor, raça, gênero, etnia, religião,
idade, cultura, classe social, etc. (CARTILHA SOBRE DIREITOS HUMANOS, 2005).
A mobilização do movimento negro brasileiro passou, gradativamente, a
recorrer ao sistema de proteção endereçado a pessoas ou grupos particularmente
vulneráveis. A partir de 1988, com o país aberto ao sistema normativo internacional,
passa-se a reconhecer e tutelar direitos endereçados às pessoas vítimas de
discriminação racial, entre outros segmentos.
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4 A LEI 7.716/89: COMBATE AO RACISMO, INCLUSÃO E AMPARO AO NEGRO
BRASILEIRO
A partir do século XX surgiu e se fortaleceu em todo o mundo uma nova visão
positiva a respeito do valor da diversidade racial humana, da importância de defesa
das oportunidades iguais e dos direitos humanos para todos os indivíduos. O combate
ao racismo foi auferindo espaço e obteve maior relevância, sendo acolhido na
organização do Estado brasileiro e aos poucos foi incluído na política e em nossa
legislação.
Os movimentos negro e social concentraram suas reivindicações e luta para
que as práticas discriminatórias raciais e o racismo saíssem da condição de simples
contravenção penal, disciplinada pela Lei 1.390/51, Lei Afonso Arinos e fossem
classificadas como um crime punível com maior rigor. As pressões da luta antirracista
chegaram até o Senado Federal e culminou na determinação do artigo 5º, inciso XLII, da
Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a prática do racismo como um crime
inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei e assim, tal
preceito normativo passou a ser incluído entre as cláusulas pétreas de nossa
Constituição Federal.
Quando se diz que o crime é inafiançável significa que não é admitida a fiança,
ou seja, a autoridade policial não pode conceder diretamente a liberdade para o
acusando, que terá que responder todo trâmite do processual preso. Mas observa-se,
porém, que essa determinação legal não vem sendo cumprido a rigor. Talvez por se
tratar de uma imposição constitucional e a Lei 7.716/89 não fazer qualquer menção á
imprescritibilidade e a inafiançabilidade e por entenderem que de encontro ao
princípio da proporcionalidade e da humanização das penas (JESUS, 2011).
No que diz respeito á imprescritibilidade no crime de racismo, também se depara
com a dificuldade de sua interpretação e aplicação. Quando se diz que é imprescritível,
subentende-se que o crime não prescreve, ou seja, permite que o Estado a qualquer
tempo, independente de prazo resposta penal para a eventual
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prática criminosa (CAPEZ, 2014). Mas se é difícil para a vítima provar o crime no
calor do acontecimento, como provar depois de algum tempo?
É notório que o combate à discriminação racial insere-se no sistema
especial de proteção dos direitos humanos. A tutela do direito à
igualdade e à dignidade é aqui endereçada a um sujeito de direito
concreto, historicamente situado, visto em sua especificidade e na
concreticidade de suas diversas relações, distinto pela cor, sexo, classe
social, dentre outros fatores. Assim, pode-se dizer que o caráter
“especial” dessa proteção contra o racismo embasou a consagração
da imprescritibilidade.
(CALIXTO, 2015, p. 23).
Como se a finalidade maior da Lei 7.716/89, quando da sua criação foi
colocar o racismo como um crime de grande relevância social e humanitário e atender
a determinações descritas na Constituição Federal. Talvez essa ideia de inafiançável e
imprescritível fosse uma estratégia penalista: regulamentar tal comportamento
humano grave e pernicioso á coletividade e que coloca em risco valores fundamentais
a convivência social, evitar o arbítrio e o casuístico advindo da ausência de padrões,
solucionar o problema “pelo medo da punição”, ou seja, punir com as sanções e penas,
buscando, assim, uma justiça igualitária (CAPEZ, 2014), para que esta questão da
discriminação ficasse eternamente na memória das pessoas, alertando inclusive para a
gravidade e a amplitude que é uma discriminação, seja ela racial, cultural ou religiosa.
Além do artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal anteriormente analisado,
verifica-se também que o artigo 3º, inciso IV, também fundamenta a Lei 7.716/89, ao
preconizar como objetivo fundamental da república federativa do Brasil dentre outros
o seguinte: “[...] IV- promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 1988).
Ressalta-se também que nossa Constituição Federal de 1988 determinou em seu
art. 1º, incisos II e III, que a dignidade da pessoa humana e a cidadania são princípios
estruturais do Estado democrático de direito e assim sendo, que o país tem como
objetivo fundamental a promoção do bem de todos “[...] sem preconceito de
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origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL,
1988).
Assim, a partir desse prisma do fortalecimento da luta dos negros e da defesa de
seus interesses, eis que, um ano depois, para regulamentar o artigo 5º, inciso XLII foi
promulgada em 1989, a Lei 7.716/89, que formalmente colocou o racismo na
categoria de crime, apenando os “atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor”.
Adverte-se que a lei 7.716/89 quando da sua criação se referia a discriminação e
preconceito de raça ou de cor, mas posteriormente sofreu algumas modificações,
alterações e acréscimos pela Lei 9.459/97, passando a ter a seguinte descrição: Art.
Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Conforme Jesus (2011, p. 229):
A alteração legislativa foi motivada pelo fato de que réus acusados da
prática de crime descritos na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989
(preconceito de raça ou de cor), geralmente alegavam ter praticado
somente delitos de injuria, de menor gravidade, sendo beneficiados
pela desclassificação. Por isso, o legislador resolveu criar uma forma
típica qualificada envolvendo valores concernentes à raça, cor, etc.,
agravando a pena.
Então a Lei 9.459/97 alterou os artigos e 20º da Lei 7.716/89 e acrescentou-
se também novo parágrafo ao art. 140 do Código Penal a “injúria racial”, ou seja, a
ofensa à dignidade, dignidade traduzida pelo sentimento próprio que a pessoa possui
a respeito de seus próprios atributos morais (JESUS, 2011). A pena mínima prevista
para a injuria racial é a reclusão de um a três anos e multa.
4.1 AS DIFICULDADES NA DENÚNCIA DOS CRIMES DE RACISMO
Apesar de nossa Constituição Federal de 1988 ter inserido em seu bojo o texto
de lei dizendo que o racismo é um crime inafiançável e imprescritível e punível, as
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pessoas ao se socorrerem no judiciário se deparam com a dificuldade de provar que
realmente sofreram um crime de racismo e não uma “simples” ofensa pessoal.
casos em que a vítima, ou testemunha, faça prova por meio de câmera
celular, em contraposição a defesa alegue a ilegalidade da prova; em alguns casos
dificuldades também de se comprovar que houve o dolo, ou seja, a vontade livre e
consciente de praticar o crime; para verificar a existência do elemento subjetivo, seria
necessário o reexame de provas, o que em alguns casos é vedado pela Súmula 7 do
STJ.
As maiores expectativas sobre a legislação penal a respeito da condenação do
crime de racismo se referem à falta de aplicação das normas e à impressão de que o
criminoso não responde da forma como deveria. Com relação a essa afirmativa cita-se
um posicionamento (JESUS, 2011, p. 230) que ao criticar as penas do crime de racismo
e da injuria racial diz que:
A cominação exagerada ofende o principio constitucional da
proporcionalidade entre os delitos e suas respectivas penas.
Dificilmente um juiz irá condenar a um ano de reclusão quem chamou
alguém de “católico papa-hóstias”, ainda que tenha agido com
vontade de ofender e menosprezar. Se aplicado o novo tipo penal, de
ver-se que, além do dolo próprio da injuria, consistente na vontade de
ultrajar, o tipo requer a consciência de que o sujeito está ofendendo a
vítima por causa de sua origem, religião, raça, etc.
A persistência da prática do racismo no Brasil é percebida cotidianamente. Um
dos casos de maior repercussão registrado no mês de fevereiro de 2015, diz respeito
ao crime sofrido por um advogado baiano de trinta e quatro anos de idade, que queria
curtir a festa de Carnaval na Bahia, mas foi impedido por conta de um ato racista
que sofreu no camarote Planeta Band. Proibiram-lhe de entrar no tal camarote apesar
de portar o ingresso que dava acesso ao local do evento, provando ter pago por sua
diversão e estar vestindo a camiseta exigida para a ocasião: o motivo de sua recusa era
a cor de sua pele.
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Onde conseguiu essa camisa [que acesso ao camarote] seu negro?,
questionou o suposto chefe de produção, de prenome Marcos, ao
advogado, após barrá-lo na entrada do local. Após o episódio, Oliveira
foi empurrado e ameaçado, além de ter passado mal devido ao
aumento da pressão. “A gente se bate por e você vai ver!”, disse o
agressor. O caso foi protocolado no CDCN
3
, onde foi realizada uma
reunião ontem (16) à tarde com representantes da Defensoria Pública
(DP), Ordem dos Advogados do Brasil Bahia (OAB-BA), Sepromi e
Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social
(SJDHDS). (Fonte:
TV do Servidor público, 2015). [...]
A primeira
sessão que oficializou os trabalhos da Comissão de Direitos Humanos
e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) em 2015
debateu nesta terça-feira (24) o caso do advogado Leandro Oliveira,
vítima de racismo pela produção e segurança do camarote Planeta
Band, durante carnaval em Salvador. O fato aconteceu na sexta-feira
(13) quando Oliveira foi impedido de entrar nas dependências do
camarote, mesmo portando ingresso e camisa que garantiam o acesso
à festa. O colegiado, presidido pelo deputado Marcelino Galo (PT),
aprovou a realização de uma audiência pública conjunta com a
Comissão Especial de Promoção da Igualdade para debater o tema
racismo e violência no carnaval. Além disso, a comissão enviará um
expediente para solicitar esclarecimento das autoridades sobre a
apuração das denuncias apresentadas por Oliveira. Galo alerta para
que o caso não fique impune. “Salvador é a maior cidade negra fora
da África e os negros tem uma participação definitiva na cultura e na
construção do carnaval. Vamos dar encaminhamento a este caso e
combater de forma mais efetiva para que este ato não fique impune”,
ressalta o deputado petista. No depoimento de 22 minutos, Leandro
Oliveira relatou aos deputados que os seguranças do camarote lhe
abordaram de maneira seletiva e questionaram aonde ele teria
consigo a camisa. “Você conseguiu com quem essa camisa nego? Essa
camisa é para convidado”. O advogado, que é negro, afirmou ainda
que apenas ele fora abordado pelos seguranças. Ante o crime de
racismo, Oliveira procurou autoridades policiais no circuito Dodô para
registrar a ocorrência, mas não obteve êxito. “A omissão frente ao
racismo no Estado é explícita. Estou vindo nesta casa, pois acredito
nessa comissão e na justiça”, observou Leandro, que
também procurou entidades ligadas aos Direitos Humanos, como o
Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra, Observatório
Racial e a Comissão de Ética e Direitos Humanos da OAB. (BRASIL 247,
2015).
3
Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN).
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Conforme se observa na reportagem acima, essa vítima do racismo é um
conhecedor da lei e de seus direitos legais pela sua condição de advogado, porém
ainda deparou-se com diversas dificuldades na aplicação da lei 7.716/89 e necessitou
denunciar o caso na Assembleia Legislativa da Bahia, para uma melhor investigação de
seu caso e o ajudassem na reparação de seu direito, requisitando ainda o debate do
tema racismo e violência no carnaval.
Se uma pessoa vítima do racismo, considerando as prerrogativas mencionadas
acima, enfrentou dificuldades até para registrar o boletim de ocorrência e ainda não
obteve êxito, imagine as dificuldades que um cidadão comum, sem nenhuma
“influência” e poder aquisitivo? Casos como esses de racismo acontecem a todo o
momento, toda hora e em vários lugares do Brasil. E as autoridades que atuam no
sistema judiciário, assim como nos diferentes órgãos institucionais públicos de
assistência aos cidadãos que não aplicam a lei 7.716/89; não se enxergam como racistas,
não reconhecem que suas atitudes omissas são além de improbidade administrativas,
também um crime de discriminação racial.
Ressalta-se aqui, que o encarceramento por si não é solução para nenhum
tipo de prática de crime. Primeiro porque nosso sistema prisional encontra-se falido,
não reeduca, e em segundo, porque o combate ao crime de racismo necessitaria de
um constante trabalho, com compromisso ético-político, antirracista, de transformação
da sociedade. Pois se tem a consciência de que para uma possível mudança é
necessário que o Estado realize outras medidas basilares de investimento em ações
educativas voltadas a igualdade racial e humanitária, em ações de investimentos social,
econômico e político no país, tais como uma melhor redistribuição de rendas, a reforma
agrária, o investimento e seriedade na aplicação dos recursos destinados a saúde,
educação, segurança, moradia, etc.
O direito Penal e Processual Penal brasileiro pode nos ajudar na questão de crime
de racismo, mas não é a solução eficiente para isso. É preciso que se deixe essa
percepção errônea que (da tal esperança de remédio na justiça penal) para encarar a
situação de frente, pois se trata de uma questão cultural.
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Os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. [...] E os juízes não
veem o crime de racismo porque não aceitam o fato de que racismo
no país. Muitas vezes as agressõeso entendidas como brincadeiras.
Não existe a menor sensibilidade da Justiça para o quanto isso é
doloroso para quem sofre o preconceito.
(ABADE, 2015, p. 35).
Surge, então, o questionamento: por que o Brasil ainda convive com essas
cenas? A suposição é de que o racismo ainda habita em nosso país de forma bem
arquitetada desde os tempos de colonização até a naturalização da escravização de
forma mencionada no decorrer do presente trabalho. Não é um problema brasileiro,
é um problema mundial. Este racismo dirigido à população negra está extremamente
enraizado em nosso cotidiano. A desigualdade de natureza racial e sua permanência no
cotidiano da sociedade brasileira é fruto da negação de direitos, ocultação do racismo,
propagação da falsa democracia racial e a reafirmação de uma hierarquia racial.
Para combater o racismo nos deparamos com outro grande desafio, talvez o
maior de todos, que é a questão de tratar a prática de racismo como uma brincadeira,
como um mal entendido, como algo natural. Mas ele não tem nada de brincadeira,
pois fere, machuca, oprime e mata. Frequentemente observam-se as seguintes frases:
“Não sou racista. Foi uma brincadeira”; “Eu tenho alguns amigos negros e a gente
normalmente brinca entre a gente”; “é só uma piada, um humor, não é racismo. Ele (a)
esta se fazendo de vítima, não sabe brincar”; “Ser politicamente correto é exagero”.
E o desafio maior encontra-se no sistema penal atual considerado como um
sistema racista onde prevalece uma leitura restritiva que faz com que muitos delitos
praticados por motivação racial não seja considerados tecnicamente como crime de
racismo. Em virtude disso o então deputado Paulo Paim em 1997 apresentou um projeto
de lei propondo a inclusão, em nosso ordenamento, do crime de injúria racista que
implica numa qualificadora, no que diz respeito à agressão contra a honra subjetiva do
indivíduo, praticada em virtude de elementos raciais.
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Segundo a lei 7.716 o crime de racismo contra negros ocorre quando em
decorrência da raça, impedimento ao livre exercício regular da liberdade de ir e vir.
O crime se caracteriza sempre que cerceamento ou impossibilidade do acesso, de
ingresso em algum lugar, ou estabelecimento.
Atualmente, com a modificação da legislação, incremento de políticas públicas
e possibilidade de ascensão social da etnia negra, ou seja, a empregos e salários
melhores (negros estudantes, advogados, promotores, juiz, médicos, funcionários
público federal e estadual, professores, publicitários, empresários, políticos, etc.); bem
como a rapidez da divulgação de acontecimentos nas redes sociais, a luta está mais
visível, sem fronteiras, as redes sociais auxiliam no processo de conscientização e de
compreensão das realidades do negro na sociedade brasileira.
relatos de pessoas que tentam registrar queixas de racismo ou mesmo de
injúria racial, mas não conseguem, não são ouvidos. Existem casos em que a ocorrência
é anotada, erroneamente, como injúria e difamação simples, crime que tem pena
menor, encaminhadas ao Juizado Especial e as vítimas são orientadas a contratar
advogados. Fato curioso, pois além dos crimes expostos pela Lei 7.716/89, desde 2009
mesmo a injúria racial é crime de ação pública ajuizada pelo Ministério Publico a partir
de representação da vítima.
Depara-se aqui com uma tensão relacionada à aplicação da lei. condenados
e presos pelo crime de racismo? Não. Se quer foram processados. O crime de racismo
é inafiançável, ou seja, determina prisão do criminoso sem direito a fiança, no entanto,
prevalece a ideia de que tal fato antijurídico é um crime de menor importância em
relação às outras tipificações.
Observa-se que há uma dificuldade na interpretação e aplicação da lei 7.716/89
em não mencionar ofensas e discriminação exteriorizadas verbalmente.
Invariavelmente, na dúvida enquadram como injúria ou ofensa pessoal e, em muitos
casos no final o processo é arquivado.
As vítimas de racismo muitas vezes são forçadas a ficarem quietas e esquecerem
o que sofreram, por não terem como comprovar a ocorrência do crime. A
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luta pela alteração da legislação, pelo acesso à justiça, pelo reconhecimento formal do
racismo e da discriminação tem sido outra frente central de atuação de setores do
movimento negro, que não apenas lutam pelo aperfeiçoamento dos serviços de
atendimento jurídico como também pelo aprimoramento da legislação brasileira e
apoio as vítimas para requerem seus direitos na justiça.
Apesar de Lei 7.716/89 vigorar vinte e seis anos, e em conjunto com a
Constituição Federal considerar o racismo como um "crime inafiançável e
imprescritível", punível com prisão de até cinco anos e multa, é pouco aplicada. Mas isso
não quer dizer que o racismo deixou de existir.
Quais os efeitos dessa medida, ou melhor, dessa lei na redução e combate do
racismo? Seria apenas uma utopia que se arrasta desde 1951 ou seria mais um remédio
para tratar “uma doença” incurável? Para responder a esses questionamentos pondera-
se que infelizmente vivemos em um país onde o ordenamento jurídico e a realidade
social dizem coisas bem diferentes, ou seja, nem sempre encontramos na aplicação
prática dos fatos aquilo que a lei previu.
Vivemos e acostumamos com uma terrível tradição do “positivismo” em que a
sociedade enxerga a lei processual penal como um instrumento, um remédio capaz de
solucionar todos os nossos problemas por meio da punição.
Isto é uma ideia equivocada, afinal as pessoas se esquecem de que a punição por
meio de prisões ou até mesmo por penas pecuniárias, sem outras medidas preventivas
e socioeducativas, simplesmente não são capazes de extinguir no interior das pessoas o
sentimento dessa superioridade, intolerância e violência que é exteriorizada na prática
do racismo. Mas enquanto a mudança de mentalidade não acontece defendemos que
as leis continuam sendo instrumentos valiosos de ordem e mediação dos conflitos da
sociedade.
A negação do racismo institucional impossibilita o seu enfrentamento
e a sua erradicação. Consequentemente, impede o acesso de grande
parte da população a direitos e garantias constitucionais e restringe o
pleno exercício da cidadania. Cabe às instituições investir na
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mudança, abrindo espaço para a discussão do problema e a adoção
de ações educativas. (SANTOS, 2013, p. 3).
Mecanismos legais para a punição do crime de racismo existem, mas prová-lo
ainda é muito difícil. No entanto, a prova mais extraordinária da sua existência está na
condição de inferioridade a qual os negros ainda são colocados diariamente na
sociedade, que é comprovada por qualquer indicador social que se escolha.
Nossas leis de combate ao racismo tal qual se tem hoje por si não resolvem os
problemas. Além de denunciar as práticas racistas, também se deve reeducar nossa
sociedade, pois, o racismo não é uma doença incurável, ninguém nasce racista, não se
nasce odiando, pelo contrário, somos ensinados desde criança a ter essas atitudes.
Sendo assim, precisamos enfrentar e desconstruir no imaginário da população, valores
simbolizados pelos estereótipos negativos, combater toda forma de exibições do ódio
racial (piadas, xingamentos, ofensas gratuitas, disseminados contra a população negra).
Precisamos investir e disseminar uma nova educação e novos valores pautados na
educação estruturada e sedimentada nos Direitos Humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão do crime de racismo, hoje, se manifesta de forma complexa e múltipla.
Em todo esse contexto, observa-se que o negro está sempre na posição de discriminado,
excluído, pois todos sabem encontrar e apontar nas pessoas as características físicas de
afrodescendentes e as considerem como inferiores.
Os relatos de crimes de racismo e discriminação racial ocorridos na atualidade
abordados neste trabalho infelizmente demonstram a realidade do nosso país apesar da
existência da importante Lei 7.716/89. O racismo ainda está vivo e distante está sua
superação.
A inserção do negro na sociedade brasileira não é apenas caso de políticas
públicas do patrocínio da igualdade; é antes de tudo uma reparação histórica. Esta
inclusão será capaz de futuramente proporcionar uma sociedade mais igualitária,
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menos violenta, porque essa massa marginalizada representa metade da população
nacional e não ficará submissa, conformada com sua situação.
Nota-se que a Lei 7.719/89 é falha em sua aplicação, pois o racismo é visto como
um problema menor, irrelevante para o Poder Judiciário e a tipificação de tal crime em
nossa legislação é precário e enfrenta a dificuldade da vítima em comprovar e também
a propensão das autoridades em desqualificar o crime racial, reclassificando-o como
“injuria ou difamação” (JESUS, 2011).
Na reversão desse problema e promoção de um modelo de desenvolvimento que
tenha como ponto de sustentação a diversidade, a cultura da inclusão e da igualdade
conforme prega o artigo da Constituição Federal, faz-se necessário encarar o racismo
como um problema do Estado e de toda a sociedade.
A equidade e o respeito à diversidade são elementos basilares para que se
alcance uma convivência social solidária e para que os Direitos Humanos não sejam letra
morta da lei.
É preciso que a sociedade brasileira entenda o processo de sua formação,
sobretudo do ponto de vista humanista pautado no respeito ás diversidades (étnicas,
religiosas, gênero, cultura, nacionalidade, etc.), onde todas as pessoas sejam capazes de
enxergar as diferenças como algo valioso, algo normal da humanidade e que não retira
o valor, nem determine superioridade ou inferioridade entre pessoas. É dever de todos
assegurar que, não negros, mas independentemente da cor da pele, brasileiros
possam viver de acordo com suas próprias convicções e tenham todos,
indiscriminadamente, direito de construir a sua vida sem medo e sem ofensas.
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Submetido em: 16/09/2016
Aprovado em: 16/09/2016