TRANSPORTE COLETIVO, PANDEMIA E SEGREGAÇÃO: reexões em torno da
relação entre transporte colevo de ônibus e usuários no período pandêmico
em Belém, estado do Pará
Antonio Nacilio Sousa dos Santos
1
RESUMO: Diante do contexto da pandemia da covid-19 que assolou vários países, Belém, capital do
Pará, sofreu inúmeras consequências, entre elas, o uso restrito do transporte público de ônibus por
parte da população. Pesquisou-se as consequências da diminuição do número de ônibus em Belém, no
período da pandemia, a parr de medidas sanitárias advindas dos órgãos do governo. Antes desse
contexto, a capital vivenciava uma realidade onde a frota de ônibus era reduzida em relação ao número
de usuários, além da precariedade do serviço. Desse modo, o objevo da pesquisa visou estudar o
impacto desta medida na vida dos usuários deste transporte colevo. Para isso, zemos uso da
metodologia qualitava e bibliográca. Fez-se uso de quesonário para entrevistar usuários do
transporte colevo em três pontos especícos da cidade. Analicamente, usamos os conceitos de
espoliação urbana (Kowarick, 1993) e necropolíca (Mbembe, 2018) para entender as medidas
sanitárias aplicadas e as consequências que estas veram na vida dos que necessitam desse serviço.
Os resultados nos evidenciam que as deliberações colocadas em execução pelo governo, tanto da
esfera federal quanto estadual, no que diz respeito ao transporte colevo, potencializou a
disseminação e circulação do vírus, bem como aprofundou a precarização do serviço colocando em
risco a vida dos usuários do transporte colevo.
Palavras-Chave: Transporte colevo. Pandemia da Covid-19. Espoliação urbana. Necropolíca.
PUBLIC TRANSPORT, PANDEMIC AND SEGREGATION: reflections around the relationship
between public bus transport and users during the pandemic period in Belém, state of Pará
ABSTRACT: Given the context of the covid-19 pandemic that has devastated several countries, Belém,
capital of Pará, suered numerous consequences, including the restricted use of public bus transport
by the populaon. The consequences of reducing the number of buses in Belém during the pandemic
period were researched, based on sanitary measures received from government bodies. Before this
context, the capital experienced a reality where the bus eet was reduced in relaon to the number of
users, in addion to the precariousness of the service. Therefore, the objecve of the research is to
study the impact of this measure on the lives of users of this public transport. For this, we used
qualitave and bibliographic methodology. A quesonnaire was used to interview public transport
users in three specic points in the city. Analycally, we use the concepts of urban spoliaon (Kowarick,
1993) and necropolics (Mbembe, 2018) to understand the sanitary measures applied and the
consequences that are experienced in the lives of those who apply this service. The results show us
that the deliberaons put into eect by the government, both at the federal and state levels, with
1
Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais (PGCS) pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
6792-1806 - E-mail: naciliosantos1@hotmail.com.
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RIPPMar, v. 10, 2024. Publicação Connua.
DOI: hps://doi.org/10.36311/2447-780X.2024.v10.e024002
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regard to public transport, increased the spread and circulaon of the virus, as well as deepening the
precariousness of the service, pung the lives of users at risk of public transport.
Keywords: Public Policies. University. Scienc Journal. Arcle.
TRANSPORTE PÚBLICO, PANDEMIA Y SEGREGACIÓN: reflexiones sobre la relación entre el
transporte público de autobuses y los usuarios durante el período de pandemia en Belém,
estado de Pará
RESUMEN: Dado el contexto de la pandemia de Covid-19 que ha devastado varios países, Belém, capital
de Pará, sufrió numerosas consecuencias, incluida la restricción del uso del transporte público en
autobús por parte de la población. Se invesgaron las consecuencias de la reducción del número de
autobuses en Belém, durante el período de pandemia, a parr de medidas sanitarias adoptadas por
órganos gubernamentales. Ante este contexto, la capital vivió una realidad donde la ota de buses se
redujo en relación al número de usuarios, además de la precariedad del servicio. Por ello, el objevo
de la invesgación se centró en estudiar el impacto de esta medida en la vida de los usuarios de este
transporte público. Para ello ulizamos metodología cualitava y bibliográca. Se ulizó un
cuesonario para entrevistar a usuarios del transporte público en tres puntos especícos de la ciudad.
Analícamente ulizamos los conceptos de expoliación urbana (Kowarick, 1993) y necropolíca
(Mbembe, 2018) para comprender las medidas sanitarias aplicadas y las consecuencias que tuvieron
en la vida de quienes necesitan este servicio. Los resultados nos muestran que las deliberaciones
puestas en prácca por el gobierno, tanto a nivel federal como estatal, en materia de transporte
público, incrementaron la propagación y circulación del virus, además de profundizar la precariedad
del servicio, poniendo en riesgo la vida de usuarios en riesgo del transporte público.
Palabras-Clave: Transporte público. Pandemia de COVID-19. Expoliación urbana. Necropolíca.
1 INTRODUÇÃO
Dezembro de 2019
2
foi marcado pelo surgimento de uma das maiores tragédias
sanitárias dos últimos séculos. O surgimento da Covid-19
3
e, consequentemente, o seu
desenvolvimento para um estágio de pandemia, fez milhões de vítimas em todos os países.
Diante dessa situação, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
4
emitiu uma série de medidas
para que os países mitigassem a tragédia em curso, com o objetivo de prevenir e conter a
disseminação do vírus.
Os protocolos da OMS incluíam desde procedimentos básicos, por exemplo: uso de
máscaras, limpeza frequente das mãos com água corrente e sabão, uso de álcool 70%, álcool
2
O primeiro caso de covid-19 foi reportado na cidade de Wuham, na China. Em março de 2020, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) declarou a covid-19 como pandemia.
3
Covi-19 é o nome que foi dado à doença infecciosa causada pelo coronavírus, cientificamente denominado de
SARS-CoV-2.
4
“Distanciamento social” foi uma das principais medidas utilizadas para que o vírus não se espalhasse. Esse
distanciamento era realizado entre as pessoas.
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em gel e distanciamento social
5
. Em fevereiro de 2020, o governo brasileiro
6
, por meio da lei
federal/número 13.979, afirmou a possibilidade de adotar os protocolos recomendados pela
OMS caso ocorressem aumento nos índices de casos de pessoas contaminadas pelo
coronavírus
7
nos estados.
Com o passar do tempo, e a dispersão da contaminação de milhares de pessoas no
país, diante da inobservância do governo federal em realizar medidas para conter o avanço da
transmissão da doença, a maioria dos estados federativos
8
começaram a realizar providências
para impedir a proliferação. Diante de um governo que minimizava os efeitos e consequências
da doença através de discursos e de paralisia quanto a atitudes objetivas do governo, a
população se viu diante de um cenário de mensagens públicas e ações que se contrapunham:
por um lado, tínhamos um governo Federal, na pessoa do ex-presidente Jair Bolsonaro
protelando e, muitas vezes, falseando pesquisas científicas e constatações sanitárias, usando
fake news
9
que iam de encontro com as atitudes que estavam sendo colocadas em ptica por
muitos países.
[...] o presidente da república Jair Bolsonaro (sem partido) fez críticas à CoronaVac,
vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto
Butantan. Os ataques, no entanto, são marcados por falsidades e contradizem
medidas do próprio governo durante a pandemia do novo coronavírus. [...] O
presidente disse ainda que "o povo brasileiro não será cobaia de ninguém". "Diante
do exposto, minha decisão é a de não adquirir a referida vacina", escreveu Bolsonaro
em suas redes sociais (Tajra, 2020).
Diante dessa situação, muitos estados empenharam-se para que houvesse menos
circulação de pessoas para a propagação do vírus. Dito isso, passaram a usar a lei 13.979 de
fevereiro de 2020 diante do aumento do número de casos de pessoas infectadas. O impacto
destas medidas na vida cotidiana das pessoas nas cidades, na convivência diária das famílias,
bem como em toda e qualquer atividade foi gigantesca. E, de imediato, provocou
5
Um conjunto de ações que visam limitar o convívio social de modo a parar ou controlar a propagação de
doenças contagiosas entre uma pessoa a outra.
6
Estava na Presidência da República exercendo o cargo no executivo o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro.
7
Covid-19, coronavírus ou SARS-CoV-2, todos se referem à doença infecciosa que causou a pandemia a partir de
2020.
8
O Brasil é formado por Estados federativos, ou seja, estados que possuem autonomia para poder aplicar seu
dinheiro em ações para o bem estar da população sem intervenção do executivo federal.
9
“Fake News” é um termo em inglês que significa “falsas notícias”. Popularizou-se nos últimos anos através da
internet, ganhando centralidade nas disputadas políticas partidárias.
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estranhamento e resistência, sobretudo, na livre mobilidade urbana que sofreu intervenção.
Neste sentido, atividades econômicas e de lazer sofreram controle, sendo permitido apenas o
funcionamento dos serviços considerados essenciais para a condução da sobrevivência da
população. Com efeito, mantiveram-se as atividades hospitalares, farmacêuticas,
supermercados, imprensa, segurança e limpeza pública, dentre os principais.
A rigor, um dos impactos destas medidas foi a redução do contingente de veículos dos
serviços de transporte coletivo urbano, por congregarem um fluxo diário de grande
contingente de pessoas confinadas no interior de veículos fechados como ônibus, trens
suburbanos, metrôs, BRTs, VLT’s, balsas, embarcações intermodais, vans, ou seja, os chamados
popularmente “transportes de massas”.
O transporte por ônibus de passageiros que é responsável por 50% dos transportes
motorizados (Lima, Schechtman, Brizon e Figueiredo, 2020) teve redução em até 60% da frota
de disponível para este serviço no período da pandemia. Como no caso da cidade de Belém,
capital do estado do Pará, onde ocorreu a redução do contingente da frota, supostamente com
o propósito de desestimular as pessoas a saírem de suas casas e, por conseguinte, com o
número reduzido de pessoas em circulação coletiva, contribuir para barrar a disseminação do
vírus nas grandes cidades e metrópoles do país.
O caso da cidade de Belém é o objeto desta pesquisa, de modo a analisar a partir da
observação direta e entrevistas, se a estratégia adotada pelo governo, empresários e sindicato
das empresas de ônibus, foi apropriada ou não, no sentido de reduzir a disseminação do vírus
na cidade e na região metropolitana. Neste sentido, também, apuramos as motivações pelos
quais os passageiros tiveram que sair de suas casas e utilizar o transporte coletivo de ônibus,
contrariando as recomendações de isolamento social expressa na campanha “#fica em casa”
10
.
Como contributo teórico e analítico em torno deste objeto de pesquisa, recorremos a
dois conceitos sociológicos: espoliação urbana cunhado por Lucio Kowarick (1993) e
necropolítica, criado por Achille Mbembe (2018). O primeiro, para explicitar as extorsões e
precariedades a que são submetidas à classe trabalhadora que necessitam dos serviços do
estado como é o serviço de transporte público. O segundo, por sua vez, foi imprescindível para
10
A expressão “#fica em casa” faz parte de ações que visavam o distanciamento social entre as pessoas.
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analisarmos as ações dos governos e as medidas que levaram a disseminação do vírus no
contágio dos passageiros e, derivado dessa situação, a morte de milhares de pessoas na capital
do estado do Pará.
Dito isso, o artigo está disposto da seguinte maneira: a) na introdução delimitamos o
objeto expondo elementos basilares sobre a situação do transporte coletivo de ônibus na
capital Belém, estado do Pará, bem como a metodologia utilizada e o referencial teórico para
a análise da problemática pesquisada; b) posteriormente, desenvolvemos um panorama de
como se encontrava o transporte de passageiros antes da pandemia, demonstrando a
exacerbação dessa problemática no período pandêmico; c) prosseguimos trazendo dados das
entrevistas realizadas pelos usuários do transporte coletivo de ônibus, guiando o olhar deles
com relação as dificuldades enfrentadas na utilização desse modal frente a um contexto
pandêmico; d) analisamos a situação do transporte coletivo de ônibus a luz do conceito de
espoliação urbana (Kowarick, 1993) para entender as ações dos governos frente os desafios
do sistema coletivo de transporte e as consequências para a população usuária; e) para
aprofundar a discussão, nesta parte trabalhamos o conceito de necropolítica (Mbembe, 2018)
para elucidar a situação das pessoas que estiveram expostas a contaminação do vírus advindo
de atitudes dos governos locais e federal e, por fim, f) as considerações finais a respeito dos
achados da pesquisa, procurando tensionar reflexões aos leitores sobre uma problemática que
incidiu fortemente na vida de cada brasileiro na relação entre necessidade de uso do
transporte coletivo de ônibus e o contexto da pandemia.
2 O TRANSPORTE DE PASSAGEIROS POR ÔNIBUS EM BELÉM E REGIÃO METROPOLITANA
ANTES DA PANDEMIA.
A partir de meados do século XX, afirma Trindade Júnior (2016), com a construção da
rodovia Belém-Brasília, esse tipo de transporte passou a ser dominante na capital do Pará em
detrimento de outras modalidades de deslocamento coletivo como o fluvial e o transporte
ferroviário (trens e bondinhos). Dito isso, foi em 1947 que instituíram o transporte coletivo por
ônibus na capital paraense.
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Ainda segundo Trindade Júnior (2016), no início dos anos 60, a população da Região
Metropolitana de Belém (RMB) possuía cerca de 410 mil habitantes, concentrando cerca de
30% da população do estado do Pará neste período. Posterior a este período, proveniente das
atividades capitalistas de grandes empresas na região amazônica, teve um aumento das
ocupações comerciais e de serviços, onde muitas pessoas vieram de outros regiões e estados
na oportunidade de obter trabalho/emprego, gerando um grande crescimento populacional.
Ainda sobre a radiografia populacional de Belém, capital do Pará, na década de 90 o
censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
11
registrou que a RMB alcançou
a marca de 1,3 milhões de pessoas, o que corresponde a um aumento demográfico de 31%
comparado com o censo da década de 60 (Trindade Júnior, 2016). Em 2023, o censo do IBGE
nos trouxe o dado de que só a capital do Pará, Belém, possui cerca de 1.303.403 pessoas.
Assim exposto, com o aumento populacional tanto de Belém, quanto a região
metropolitana da capital do estado do Pará, nos deparamos com a necessidade da ampliação
dos serviços blicos, entre estes, o transporte coletivo por ônibus. De fato, como meio
principal de locomoção da população dessa região, a demanda por esta atividade foi uma das
que mais cresceram nas últimas décadas, gerando grande insatisfação entre os moradores da
periferia, conforme demonstram registros de denúncias em diversos jornais locais
12
. No
período da pandemia, a Procuradoria-Geral do Pará (PGE) e a Defensoria Pública do Estado
(DPE) fizeram recomendações para o aumento da frota do coletivo de ônibus e a melhoria na
qualidade deste serviço, como consta o enunciado: “Covid-19: PGE e Defensoria alertam para
o fim do prazo sobre recomendação para empresas do transporte coletivo(Brilhante, 2020).
A Procuradoria-Geral do Pará (PGE) e a Defensoria Pública do Estado (DPE) alertam
para o fim do prazo de retorno sobre a recomendação conjunta emitida em
novembro deste ano, referente ao cumprimento de medidas de prevenção à Covid-
19 por empresas de transporte coletivo que atuam no município de Belém. O prazo
encerra no próximo dia 31 de dezembro. Os documentos foram encaminhados entre
os dias 13 e 16 de novembro deste ano, para o Sindicato das Empresas de Transportes
de Passageiros de Belém (SETRANSBEL) e mais 16 empresas de transporte coletivo,
recomendando a adoção de providências para a implementação das obrigações
previstas no Decreto Nº 96.993/2020, da Prefeitura Municipal de Belém, que dispõe
11
Site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/belem/panorama
12
Inúmeros noticiários, em todos os anos até o momento, destacam a precarização e o mero pequeno de
transportes coletivos de ônibus em Belém e na região metropolitana da capital do Pará.
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sobre as medidas de distanciamento social controlado, visando a prevenção e o
enfrentamento à pandemia. [...] Dentre as orientações, es o aumento na
quantidade de ônibus circulando, principalmente nos horários de pico; limite de até
28 passageiros em pé nos veículos do BRT e de até 14 pessoas em pé nos ônibus que
operam nas linhas alimentadoras, convencionais e troncais. A recomendação
conjunta também indica a disponibilização de pias com água corrente, sabonete e
toalha descartável nos pontos finais de cada linha; de dispositivos com álcool 70%
para acesso de todos os passageiros; de scaras aos funcionários dos transportes
coletivos; além de higienização da estrutura dos coletivos, ao término de cada
viagem; e fiscalização do cumprimento do uso obrigatório de máscaras, dentro dos
veículos, por todos os passageiros. “Na recomendação, solicitamos que empresa e
sindicatos informem as medidas que vêm sendo adotadas para que estas obrigações
sejam cumpridas, conforme determinou o decreto municipal, tendo em vista a
preservação da saúde da população e o combate à pandemia”, complementou o
procurador-geral. De acordo com a recomendação, sindicato e empresas teriam até
cinco dias úteis para enviar respostas escritas e fundamentadas, assim como o
cronograma das medidas futuras a serem adotadas. No entanto, foi concedida a
dilação dos prazos para respostas, após solicitação das empresas citadas (Brilhante,
2020).
Para além da problemática do número reduzido da frota do coletivo de ônibus no
período da pandemia, situação que agravava a disseminação do vírus, tínhamos a situação da
precarização do serviço que era disponibilizada a população. Em tempo, o Plano Diretor de
Transporte Urbano (PDTU) que é um instrumento básico para o processo de planejamento
municipal na implantação da política para transportes urbanos, tem a função de orientar a
ação dos agentes públicos e privados, nos moldes do Estatuto das Cidades (Brasil, 2001 apud
Soares, 2017, p. 148). Desse modo, o PDTU constatou que a região não possui um sistema de
“ônibus que poderá ser convencional, articulado e/ou biarticulado(Soares, 2017, p. 204) e
que desde a verificação, nada foi modificado para minimizar este problema.
Sem levar em consideração o PDTU, em específico, a “articulação e/ou biarticulação
(Soares, 2017) do transporte coletivo, fazendo com que ônibus fiquem disputando o mesmo
usuário, oriundo da inexistência das chamadas “linhas de ônibus integradas”, faz com que o
mesmo passageiro pague por mais de passagem para transitar dentro da cidade. Soma-se a
isso o fato da tarifa local ser considerada pelos estudiosos da matéria como sendo uma das
mais altas do país (Ferreira, 2019).
De acordo com Ferreira (2019), o serviço de transporte por ônibus conta atualmente
com 20 empresas credenciadas junto à prefeitura da capital do Pará. No total, são 165 linhas
com 182 itinerários, dos quais 117 circulam apenas em Belém. As 65 linhas restantes estão em
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outros municípios da região metropolitana. Em tempo, a partir de Azevedo Filho e Silva (2013)
até o ano de 2012 existiam 40 empresas concessionárias atuando no transporte de ônibus na
região metropolitana de Belém, entre pequenas e grandes empresas. Todavia, em 2012 a
2015, o governo da capital, a partir da Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana de
Belém (SEMOB), executou a política denominada de operação coruja que levou ao
fechamento de 20 empresas que concediam o serviço de transporte coletivo de ônibus que já
contava com um numerário pequeno se comparada com a demanda da população. Azevedo
Filho e Silva (2013) ressaltam que os ônibus que foram “desligados das 20 empresas
prestadores deste serviço porque não se adequavam aos padrões exigidos para a prestação
desse encargo público coletivo foram comprados e maquiados pelas empresas em operação
regular e reincorporadas à frota.
Em verdade, diante de uma situação de pandemia, com um sistema de transporte
coletivo de ônibus que se mostra deficitário, o agravo das calamitosas condições sanitárias
deste setor só aumentava a contribuição para a disseminação do vírus.
3 O PROBLEMA DO TRANSPORTE COLETIVO POR ÔNIBUS NA PANDEMIA A PARTIR DA
PERSPECTIVA DOS USUÁRIOS
Para entender as situações, casos e algumas respostas dos usuários do transporte
coletivo de ônibus na capital Belém, no estado do Pará, é preciso, antes, incluir as ramificações
de ocupação e trabalho dos usuários. Dito isso, cerca de 46% da população que no período da
pandemia estava com trabalho, desempenhavam atividades informais. Estes, por sua vez,
consideravam o auxílio emergencial
13
insuficiente para prover as necessidades materiais
objetivas para a sobrevivência. Uma vez que entrevistamos cinquenta (50) pessoas/usuários
14
do transporte coletivo de ônibus.
Realizamos essas entrevistas com o objetivo de entender o impacto que as medidas de
diminuição do quantitativo de ônibus afetaram na saúde dos usuários: como contaminação no
13
O “auxílio emergencial” foi uma ajuda custeada pelo governo federal as pessoas de baixa renda para
permanecerem em casa no período da pandemia.
14
Entrevistamos o quantitativo de cinquenta (50) pessoas no período da pandemia, uma vez que tivemos
dificuldades de ampliação desse número por causa da aproximação diante de um contexto desafiador para
realizar pesquisa de campo em função do distanciamento social.
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RIPPMar, v. 10, 2024. Publicação Connua.
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uso do transporte coletivo de ônibus, transmissão da doença entre os passageiros e os
familiares no retorno para casa, bem como o consequente adoecimento dessas pessoas. Além
disso, buscamos evidenciar o quanto esses sujeitos necessitavam do transporte coletivo para
realizar suas atividades tendo que enfrentar os desafios e perigos em um contexto de grande
risco para a vida.
As entrevistas ocorreram nos espaços denominados de “paradas de ônibus”, isto é,
locais onde os usuários do transporte coletivo desse modal ficam esperando a condução parar
para que possam usá-lo a fim de deslocar-se para os seus destinos de viagem. Como dito
acima, foram aplicados cinquenta (50) questionários em locais estratégicos da capital, a saber:
a) em um ponto de ônibus em um bairro central da cidade chamado de bairro Umarizal; b)
numa grande feira popular e turística chamado de Mercado Ver-o-Peso; e em três (3) avenidas
(Almirante Barroso; Augusto Montenegro e Avenida Nossa Senhora de Nazaré).
As entrevistas duraram três semanas no período da pandemia em dezembro de 2020.
Essa pesquisa de campo ocorreu nos denominados “horários de pico”, ou seja, às 12h e às 18h,
momento onde os usuários estão se deslocando por inúmeros motivos. No primeiro horário a
explicação mais comentada foi o intervalo para o almoço. Já o horário das 18h corresponde ao
momento onde as pessoas estavam saindo do trabalho em direção a sua residência ou outros
compromissos, por exemplo, ir à Igreja, se exercitar, entre outras.
Os entrevistados, com relação à faixa etária, compreendiam entre 18 a 59 anos. 80%
das pessoas que compuseram a pesquisa são trabalhadores com ocupação, ou seja, 40
usuários do transporte. foi dito que dessas 40 pessoas, cerca de 46% estava no trabalho
informal, isto é, 19 pessoas. Enquanto 21 pessoas exerciam atividades em empregos
15
. Além
disso, 96% eram pessoas que moravam em bairros afastados do centro da cidade. Dos 50
usuários do transporte coletivo de ônibus, 72% afirmaram que usavam este modal durante
toda a semana, desde o surgimento da pandemia até dezembro de 2020, momento de
15
É preciso diferenciar “trabalho” versus “emprego”. Segundo Antunes (2018) trabalho corresponde qualquer
atividade, sem que tenham os direitos trabalhistas: salário fixo mensal, FGTS, entre outros benefícios como um
emprego formal. Este, por sua vez, diz respeito à ocupação onde o trabalhador detêm todos os direitos
trabalhistas.
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Este trabalho está licenciado sob uma licença Creave Commons Aribuon 4.0 Internaonal License
realização desta pesquisa. O destino mais frequente dos entrevistados que pegaram o ônibus
era destinado ao emprego e trabalho.
Infere-se, incialmente, a relação direta entre trabalho e a necessidade do uso do
transporte coletivo de ônibus. Ao diminuir o número desse modal no período da pandemia,
fez com que essas pessoas ficassem altamente expostas a contaminação, uma vez que não
tinha como realizar o distanciamento social dentro de um pequeno número de ônibus
correlacionado a demanda de pessoas que necessitavam deste serviço. Apropriando-se
criticamente dessa situação, o que vamos ter é uma desobediênciaaos protocolos sanitários
de isolamento não por culpa dos usuários, mas sim, devido a política de diminuição do número
da frota do transporte coletivo.
Ferreira (2019) vai apontar que quanto mais distante é a moradia das pessoas do local
de trabalho e, espacialmente, do centro da cidade onde ficam a maioria dos trabalhos e
empregos dos entrevistados, mais rarefeito é a oferta de transporte coletivo por ônibus. Desse
modo, descrito acima, 96% das pessoas que moravam distante do seu local de labuta,
sofriam com a situação da superlotação proveniente da aproximação entre os usuários. Em
entrevista uma das pessoas sentenciou:
Não existe distanciamento social para pobre. Veja a quantidade pessoas que aqui
estão esperando o ônibus para ir pra casa! Tem como ter distanciamento dentro de
um ônibus que passa cerca de quase uma hora para poder voltar para casa? Não tem
como isso ocorrer [...] antes da pandemia ele demorava, demorava! Mas demorava
30 minutos, 35 minutos e não da maneira que está agora. Ou a gente enfrenta o vírus
para vim ao trabalho, ou morre de fome dentro de casa. Essas medidas valem para
quem é rico e tem seu próprio carro. Para os pobres só existe essa opção: trabalhar
e morrer da doença (referência aos sintomas da covid-19) ou ficar em casa e morrer
de fome. Das duas maneiras vamos morrer, infelizmente. Isso é muito triste!
A fala da entrevistada é uma radiografia afirmada pela maioria das pessoas que
concederam sua fala para a pesquisa. Atestando o que afirma Ferreira (2019), quanto maior o
tempo de espera e da viagem, menor é o número de ônibus (isso levando em consideração
um contexto sem pandemia). Contudo, com essa nova realidade, ou seja, no contexto
pandêmico, essa afirmação exacerbou-se porque foi retirada parte significativa de ônibus do
serviço público de transporte. Calcula-se que 50% da frota de ônibus de Belém, neste período,
foram retirados de circulação.
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Essa exposição ao vírus da covid-19 dentro do transporte público coletivo como é o
ônibus, colocava em risco a vida dos usuários. De fato, isso era comprovado a partir das
respostas que foram dadas nas entrevistas. Cerca de 80% destes declararam insegurança
contra o contágio durante o deslocamento: quer seja na vinda para o emprego/trabalho ou
para qualquer outra atividade e, principalmente, na volta para a casa.
Dentre os principais motivos da vulnerabilidade e o medo do contágio constatados na
pesquisa estão: 2% tinham medo do contágio por parte dos motoristas que não usavam
máscaras de proteção; 4% afirmavam a precariedade dos ônibus e do sistema de prevenção
contra a covid-19 em não possuir álcool em gel nos transportes; 13% declararam que os ônibus
eram “sujos”, não realizando as devidas precauções de higienização para evitar a
contaminação; 28% afirmavam que muitos passageiros não usavam máscaras de proteção; e
51% informaram que a lotação do ônibus, com pessoas em pé, próximas umas das outras, era
o principal risco em ser contaminado. Em tempo, os 2% dos entrevistados relataram que não
tinham medo do contágio, mesmo utilizando um serviço que não possuía nenhum dos
elementos protocolares de prevenção à contaminação da covid-19.
Das 50 pessoas que passaram pelo crivo da entrevista, 52% atestaram que contraíram
a doença. Deste percentual, 92% confirmaram que mais de uma pessoa na família contraíram
o vírus. E duas (2) pessoas disseram que um familiar faleceu em decorrência da doença. Destas,
apenas 14 pessoas realizaram, pelo menos uma única vez, o teste para o reconhecimento ou
não da doença.
Os passageiros pontuaram a identificação dos possíveis
16
locais onde os quais foram
contaminados: 5% responderam que foi no emprego/trabalho; 12,5% atestaram terem sido
contaminados em aglomerações nas ruas; 12,5% afirmaram terem contraído o vírus em
mercados e supermercados; 20% atestaram que adquiriram nas viagens de ônibus para o
16
Hipoteticamente porque não para ter certeza o local onde a pessoa foi contaminada, tendo em vista o
trânsito que cada sujeito percorre diariamente no emprego/trabalho. Contudo, não deixa de ser verdade que há
um grande risco disso ocorrer em um espaço pequeno, fechado, sem higienização, com muitas pessoas próximas
umas das outras e faltando todos os protocolos sanitários para a prevenção da covid-19 como o é o transporte
coletivo de ônibus exemplificado na sistema urbano da cidade de Belém, no estado do Pará.
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emprego/trabalho e 50% disseram que foram contaminados a partir do contato com os
membros familiares.
Desse modo, podemos confirmar que 70% dos entrevistados foram contaminados ou
no uso do transporte coletivo de ônibus, ou na transmissão familiar. Isso quer dizer que as
classes populares que necessitam desse serviço, diante do descaso na não observância dos
protocolos de prevenção e higienização desse modal, a partir das respostas dos sujeitos
pesquisados e do contexto da situação do transporte público de ônibus na capital do Pará,
estiveram expostas de maneira constante a contaminação no uso deste serviço.
4 ESPOLIAÇÃO URBANA: PRECARIEDADE DO TRANSPORTE COLETIVO DE ÔNIBUS EM
BELÉM
Diante do exposto sobre a situação da política de transporte coletivo de ônibus na
capital Belém/Pará, caracterizada por um conjunto de precariedades e equívocos que
prejudicam os usuários e que foi exacerbada no período da pandemia, podemos dizer que esse
modal de condução de pessoas tem sido uma das mazelas que expressam fortemente as
desigualdades socioeconômicas da cidade. Neste sentido, pode-se, com relativa facilidade,
afirmar que esse sistema se configura num processo de espoliação urbana, conforme definido
pelo sociólogo Lúcio Kowarick (1993):
O somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de
serviços de consumo coletivo, apresentados como socialmente necessários em
relação aos níveis de subsistência, e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada
no âmbito das relações de trabalho (Kowarick, 1973, p. 62, apud Ferreira, 2019, p.
66).
Antonio Penteado (1968), em seu livro “Estudos de geografia urbana, advertia para
as condições precárias do transporte público na cidade de Belém. Afirma que na época, cerca
de 200 empresas prestavam o serviço e os ônibus costumavam circular em alta velocidade no
sentido de competir por passageiros nas 49 ruas existentes na cidade. Além disso, o autor
relata a ausência de presteza e conforto nos coletivos, o que contrastava com os altos valores
tarifários. Desta maneira, pode-se inferir que este problema possui décadas e quase nada
se fez para tentar minimizá-lo.
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Apropriando-se criticamente da concepção de espoliação urbana de Kowarick (1993),
podemos confirmar que o transporte por ônibus na grande Belém, agudiza o sofrimento social
dos moradores da cidade que dependem deste sistema de transporte para os seus
deslocamentos cotidianos, seja para o trabalho, instituições de ensino e saúde, comércios e
demais logradouros e estabelecimentos prestadores de serviço. Para o teórico, essas mazelas
fazem com que os sujeitos vivam numa “subcidadania”, como um “processo político que
produz uma concepção de ordem estreita e excludente” (1993, p. 10).
Ao “negar benefícios básicos para a vida nas cidades(Kowarick, 1993, p. 10) como é o
transporte público de ônibus, o Estado coloca o indivíduo numa condição de “irregularidade,
ilegalidade ou clandestinidade em face de um ordenamento jurídico institucional(Ibidem).
Em outras palavras, em não efetivar um número de ônibus conforme a demanda da população,
deixando-a à mercê da própria sorte para o seu trânsito diário, o poder público recusa-se a
colocar em prática a efetivação de direitos básicos como o “ir e vir(Brasil, 1988)
17
.
O contexto pandêmico trouxe vastas transformações no modo de enxergar a realidade,
tendo, desse modo, que ser traduzido a partir da sua nova configuração. Sentenciamos o que
afirma Eduardo Galeano (2019) de que a sociedade urbana de Belém, bem como todas as
demais cidades que estiveram sobre o manto do contexto da covid-19, tiveram “suas veias
abertase expostas. E é com esse outro olhar, a partir desse novo relevo social, que medidas
deveriam ter sido colocadas em prática. Por outro lado, não foi isso que ocorreu quanto a
posicionar-se frente os desafios do transporte urbano coletivo de ônibus por parte do poder
executivo da capital do Pará.
O panorama com relação ao transporte público coletivo de ônibus era de total
abandono por parte do executivo da cidade. Na medida em que diminuíam o número de rotas
e o quantitativo de ônibus em um contexto de distanciamento social, o que vamos ter é uma
política de adensamento da espoliação urbana no que diz respeito a este serviço. De modo
contrário, o que a população necessitava, afirma Kowarick (1993, p. 13) era a “tradução da
17
Argo 5º, disposto na Constuição Federal de 1988 (considerada a Carta Magna mais democráca que o país
já teve).
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realidade em novas abordagens metodológicas e teóricaspara compreender e intervir nesse
panorama que desafiava a todos no cotidiano.
A problemática do transporte coletivo vivenciada na pandemia demonstrou duas
perspectivas bastante distinta e distante: de um lado temos a população buscando remediar
a situação a partir das suas próprias forças e o poder público caminhando numa outra direção.
Essa conflitualidade de interesses deixaram expostas a intensa segregação e desigualdade da
cidade. Por um lado temos a classe rica da capital do Pará que faz uso do transporte particular
sem ter que sofrer com corpos humanos próximos um do outro. E, por outro lado, com a
decisão do poder público em diminuir o quantitativo do número de ônibus num período de
distanciamento social, a população mais carente, que faz uso desse serviço, tendo que
enfrentar o risco da contaminação, adoecimento e a morte proveniente da circulação de
pessoas cada vez mais próximas umas das outras.
Neste momento, entre outros olhares, tratava-se de entender o papel do poder público
quanto às medidas tomadas. Através desta, como ficou denotado, a produção do crescimento
da pobreza e o descaso com as medidas sanitárias, neste caso em específico, com a diminuição
da frota do transporte coletivo, colocava a vida dos usuários em eminência de risco constante
diante de uma doença que pouco se tinha conhecimento.
Para Kowarick (1993), quando o estado brasileiro (e ampliamos para todos os
governos) não cumpre seu papel de colocar em prática os direitos conquistados na década de
80, ele passa a ser um fator de “desdemocratização”, ou seja, uma função que vai
contrariamente à sua existência que é o de melhorar as condições de vida daqueles que mais
necessitam.
Considero um dos temas seminais da problemática urbana dos anos 1990 passou a
ser a questão da cidadania [...] várias investigações voltaram-se para os estudos dos
processos reais ou simbólicos que impedem a consolidação de direitos sociais e civis
básicos, entre os quais a própria integridade física das pessoas (Kowarick, 1993, p.
14).
O que Kowarick (1993) afirma é que se a integridade física das pessoas está colocada
em evidência, a própria noção de cidadania não existe. E é justamente isso que vimos no
período da pandemia com a diminuição do número de ônibus para a condução dessas pessoas
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para variados objetivos. Em verdade, o governo federal, na figura do ex-presidente Jair
Bolsonaro, tardou em colocar em atividade medidas de proteção da população contra a
disseminação do coronavírus. Com efeito, o país teve um dos maiores índices de mortalidade
no período da pandemia, justamente em consequência do descaso dos governos municipal e
federal.
5 NECROPOLÍTICA: POLÍTICA DO TRANSPORTE COLETIVO DE ÔNIBUS COMO POLÍTICA DE
MORTE.
Para Mbembe (2018), necropolítica é um conceito que advêm da perspectiva
foucaultina
18
que, entre outras coisas, significa “[...] a capacidade de ditar quem pode viver e
quem deve morrer (p. 5). Dito isso, no período da pandemia, onde governos federal e
estadual tardaram na tomada de medidas para conter o avanço do vírus, colocou em prática o
que podemos depreender
19
de política da morte. Em outras palavras, medidas sanitárias não
empregadas para conter o aumento de infectados fizeram com que muitas pessoas perdessem
a vida.
No caso de Belém, no estado do Pará, a situação não foi diferente, principalmente no
que diz respeito as decisões com relação ao transporte público coletivo de ônibus. Ao diminuir
a frota desse modal, passageiros tiveram que conviver com uma situação onde sua vida foi
colocada em xeque por não conseguirem operar o distanciamento social. Este, por sua vez, um
dos principais requisitos para prevenir o contágio da covid-19, era impossibilitado com a
diminuição da frota de ônibus.
Foucault afirma claramente que o discurso soberano de matar (droit de glaive) e os
mecanismos de biopoder estão inscritos na forma em que funciona todos os Estados
modernos; de fato, eles podem ser vistos como elementos constitutivos do poder do
Estado na modernidade. Segundo Foucault, o Estado nazista foi o mais completo
exemplo de um Estado exercendo o direito de matar. Esse Estado, ele afirma, tornou
a gestão, a proteção e o cultivo de vida coextensivos ao direito soberano de matar
(Mbembe, 2018, p. 19).
18
O conceito de necropolítica parte dos estudos que Achille Mbembe (2018) fez dos escritos de Michel Foucault,
principalmente através da concepção de biopoder.
19
Depreender como consequência dos escritos de Mbembe (2018).
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A maneira como o governo federal, tendo na função do executivo o ex-presidente Jair
Messias Bolsonaro, conduziu os trabalhos voltados para a prevenção do aumento de casos de
covid-19, levaram centenas de pessoas à morte. Além disso, as medidas do governo estadual
e municipal, em específico, do governo da capital do estado do Pará, Belém, de diminuir o
número da frota de ônibus para os usuários deve ser evidenciada como uma determinação
que fortaleceu a disseminação do vírus e enfraqueceu, consequentemente, as medidas
sanitárias. Dito isso, com relação ao objetivo central dessa pesquisa que é uso do transporte
coletivo de ônibus no contexto da pandemia, afirmamos que a capital do estado do Pará,
referenciados pelos teóricos Kowarick (1993) e Mbembe (2018) coadunou com as medidas
anti-sanitárias adotadas pelo governo federal.
Teoricamente, cabe destacar que o conceito de espoliação urbana de Kowarick (1993)
tem relação direta com o conceito de necropolítica de Mbembe (2018), principalmente porque
os problemas nos serviços de transporte público de ônibus, que, como vimos, existe mais
de décadas na cidade de Belém, foi exacerbada no período da pandemia. Desse modo, o
serviço precarizado do sistema de transporte urbano impulsionou, ainda mais, o potencial de
contaminação dos usuários.
A fim de evitar aglomerações dentro dos coletivos de ônibus, a prefeitura de Belém,
seguindo as medidas das demais prefeituras da Região Metropolitana de Belém (RMB)
determinou que houvesse redução de 60% no efetivo da frota de ônibus em circulação na
região (Marques, 2020). Em números, isso significa que, dos 300 veículos que circulavam na
área metropolitana, apenas 120 coletivos estavam à disposição de quem precisou se deslocar
através do transporte coletivo por ônibus na região. Essa política, ao invés de ajudar na
prevenção da covid-19 fez com que os passageiros ficassem cada vez mais expostos ao
coronavírus.
Sabendo que, a maioria dos usuários que utilizam o transporte público de ônibus são
pessoas das classes menos favorecidas, o que temos é uma política seletiva de “classificação
das pessoas de acordo com diferentes categorias(Mbembe, 2018, p. 39), isto é, ao realizar
essa política de diminuição do número da frota desse modal, o que temos é uma medida que
veio afetar, principalmente, determinada categoria de pessoas, ou seja, pobres, periféricas, de
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pouca escolaridade e, na sua maioria, que estavam trabalhando em serviços informais no
período pandêmico.
Mbembe (2018) citando Bozzoli (2000) vai afirmar que “opressão e pobreza severas
foram experimentadas com base na raça e classe social(p. 40). Não muito diferente com o
que ocorreu como consequência na tomada de medidas com a diminuição do número de
ônibus no serviço de transporte coletivo na cidade de Belém, no estado do Pará. Uma vez que
somos cônscios de que no Brasil, a relação entre raça e classe social se interconecta. Dito de
outra forma, várias pesquisas apontam que as pessoas mais desfavorecidas, em sua grande
maioria possui cor, ou seja, são negros e pardos. Desse modo, ao instituir esta política de
transporte coletivo vamos ter uma sociedade “planejada para fins de controle(2018, p. 40),
isto é, “pessoas que podem viver e morrer” (2018, p. 5).
6 CONSIDERAÇÕES
O objetivo da pesquisa foi de analisar as consequências da política pública de
transporte coletivo de ônibus e as medidas tomadas no período da pandemia na cidade de
Belém, no Estado do Pará, e as consequências para os sujeitos que dependem desse modal
para as suas atividades.
Dados nos mostram que esse serviço possui pouco olhar do Estado antes mesmo da
pandemia, uma vez que as pessoas sofrem pelo número reduzido de ônibus para se
locomoverem. Além disso, as informações nos mostram que o sistema de transporte coletivo
de ônibus é muito precário, não possuindo “linhasque se interligam. Esse fato faz com que o
usuário do sistema pague uma, duas ou até três vezes para chegar ao destino almejado.
O conceito de espoliação urbana de Kowarick (1993) tem relação direta com o conceito
de necropolítica de Mbembe (2018), uma vez que o primeiro diz respeito ao conjunto de a um
conjunto de expropriação de bens coletivos por parte da população menos favorecida. O
segundo, por sua vez, faz parte de uma política onde o governo escolhe, através de práticas
cotidianas do Estado, quem deve viver e quem deve morrer. Desse modo, no período da
pandemia, quando da política de redução de ônibus, o que temos são ações que exacerbam a
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precarização desse modal deixando as pessoas expostas ao risco iminente de contaminação e,
consequentemente, a morte.
Também vimos, através das entrevistas, que as pessoas usuárias do transporte coletivo
não possuíam alternativas a não ser sair de casa, uma vez que careceram da ajuda do Estado
no contexto da pandemia. Soma-se a isso o fato da maioria delas estarem ocupadas em
empregos informais, fato que impossibilitava ficar em casa porque não possuíam garantias
trabalhistas.
Diante desse cenário, o que vimos foi uma população que esteve exposta ao vírus e
muitas adoeceram e até faleceram oriunda de uma política de estado que não levou em
consideração as necessidades desses usuários. A política do transporte coletivo de ônibus na
cidade de Belém, no Estado do Pará, foi evidenciada como uma política que menosprezou a
vida da população que mais necessitava do olhar do Estado, como políticas de prevenção e
proteção ao vírus da covid-19.
Dito isso, se medidas sanitárias tivessem sido colocadas em prática no transporte
público de ônibus na cidade de Belém, Estado do Pará, através dos governos federal e
municipal, desde os primeiros casos de covid-19, muitas mortes teriam sidas evitadas.
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