ELEMENTOS DA BIOPOLÍTICA AGAMBENIANA NA PRÁTICA DOS DIREITOS
HUMANOS: complementaridades entre as perspecvas de Giorgio Agamben e
José Augusto Lindgren Alves
Patrik Ribeiro Barbosa
1
Alexandre de Castro
2
RESUMO: Destacamos neste argo a diculdade da reexão críca sobre o pensamento agambeniano
com referência àquilo que o próprio autor usou como objeto paradigmáco de exemplicação,
concrezação e conclusão de seus conceitos que desde muito vêm sendo construídos e que não
havia sido ainda emoldurados numa expressão práca e contemporânea em signicação. Assim, nosso
objevo consiste em oferecer elementos que integrem, sob a óca dos Direitos Humanos, a discussão
acerca da pernência, e principalmente da materialização do pensamento agambeniano. Dessa forma,
procedemos à revisão bibliográca das obras de Giorgio Agamben destacando seus principais
conceitos, ao mesmo tempo em que procuramos estabelecer, diante das argumentações de José
Augusto Lindgren Alves, presentes em seu argo O contrário dos direitos humanos (explicitando Zizek)
(2002), a correspondência entre tais conceitos e fatos históricos. Portanto, jusca-se na necessidade
da desmiscação de que a obra agambeniana é de dicil interpretação e, principalmente, não
margem à signicação práca dos seus próprios preceitos e ao demonstrar que, se tal cenário ocorre,
deve-se às chamadas leituras apressadas que procuram a todo custo essa materialização conceitual
nas incompabilidades com os próprios conceitos biopolícos de entender a materialização da
contradição da engrenagem dos Direitos Humanos. Tem-se, então, como resultado, a correspondência
entre as vericações prácas de José Augusto Lindgren Alves e o arcabouço teórico de Giorgio
Agamben na perspecva do oposto dos preceitos dos Direitos Humanos, justamente em nome – e na
sistemáca, ou no sistema destes mesmos direitos, principalmente a nível de Direito Internacional
dos Direitos Humanos, bem como nas perspecvas a nível domésco estatal.
Palavras-Chave: Direitos humanos. Giorgio Agamben. Biopolíca.
ELEMENTS OF AGAMBENIAN BIOPOLITICS IN THE PRACTICE OF HUMAN RIGHTS:
complementaries between the perspecves of Giorgio Agamben and José Augusto
Lindgren Alves
ABSTRACT: We highlight in this arcle the diculty of crical reecon on Agambenian thought with
reference to what the author himself used as a paradigmac object of exemplicaon, concrezaon
and conclusion of his concepts that have been constructed for a long me and that had not yet been
framed in a praccal and contemporary in meaning. Thus, our objecve is to oer elements that
integrate, from the perspecve of Human Rights, the discussion about the relevance, and mainly the
materializaon of Agambenian thought. In this way, we carried out a bibliographic review of Giorgio
1
Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, https://orcid.org/0000-
0001-8879-9598, ribeirobarbosa.patrik@gmail.com.
2
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Júlio de
Mesquita Filho-UNESP/SP, hps://orcid.org/0000-0002-3848-3285, xadrecas@gmail.com.
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RIPPMar, v. 10, 2024. Publicação Connua.
DOI: hps://doi.org/10.36311/2447-780X.2024.v10.e024003
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Agamben's works, highlighng his main concepts, at the same me that we sought to establish, in light
of José Augusto Lindgren Alves' arguments, present in his arcle The opposite of human rights
(explaining Zizek) (2002), the correspondence between such concepts and historical facts. Therefore,
it is jused by the need to demysfy that Agamben's work is dicult to interpret and, mainly, does
not give rise to the praccal signicance of its own precepts and by demonstrang that, if such a
scenario occurs, it is due to the so-called hasty readings that. They seek at all costs this conceptual
materializaon in incompabilies with the biopolical concepts themselves to understand the
materializaon of the contradicon of the Human Rights gear. The result, then, is the correspondence
between the praccal vericaons of José Augusto Lindgren Alves and the theorecal framework of
Giorgio Agamben from the perspecve of the opposite of the precepts of Human Rights, precisely in
the name and in the systemacs, or in the system of these same rights, mainly at the level of
Internaonal Human Rights Law, as well as at the domesc state level.
Keywords: Human rights. Giorgio Agamben. Biopolics.
ELEMENTOS DE LA BIOPOLÍTICA AGAMBENIANA EN LA PRÁCTICA DE LOS DERECHOS
HUMANOS: complementarias entre las perspecvas de Giorgio Agamben y José Augusto
Lindgren Alves
RESUMEN: Destacamos en este arculo la dicultad de la reexión críca sobre el pensamiento
agambeniano en referencia a lo que el propio autor ulizó como objeto paradigmáco de
ejemplicación, concreción y conclusión de sus conceptos que han sido construidos durante mucho
empo y que aún no habían sido enmarcados en un signicado prácco y contemporáneo. Así, nuestro
objevo es ofrecer elementos que integren, desde la perspecva de los Derechos Humanos, la
discusión sobre la relevancia, y principalmente la materialización del pensamiento agambeniano. De
esta manera, realizamos una revisión bibliográca de la obra de Giorgio Agamben, destacando sus
principales conceptos, al mismo empo que buscamos establecer, a la luz de los argumentos de José
Augusto Lindgren Alves, presentes en su arculo Lo contrario de los derechos humanos (explica Zizek)
(2002), la correspondencia entre tales conceptos y hechos históricos. Se jusca, por tanto, en la
necesidad de desmicar que la obra de Agamben es dicil de interpretar y, principalmente, no da
lugar a la signicación prácca de sus propios preceptos y en demostrar que, si tal escenario se
produce, se debe a la tan -llamadas lecturas apresuradas que buscan a toda costa esa materialización
conceptual en incompabilidades con los propios conceptos biopolícos para comprender la
materialización de la contradicción del engranaje de Derechos Humanos. El resultado, entonces, es la
correspondencia entre las comprobaciones práccas de JoAugusto Lindgren Alves y el marco trico
de Giorgio Agamben desde la perspecva de la contraposición de los preceptos de los Derechos
Humanos, precisamente en el nombre –y en la sistemáca, o en la sistema de estos mismos derechos,
principalmente a nivel del Derecho Internacional de los Derechos Humanos, así como a nivel estatal
interno.
Palabras-Clave: Derechos humanos. Giorgio Agamben. Biopolíca.
1 INTRODUÇÃO
As peculiares reexões de Giorgio Agamben sobre a relação entre a sua biopolíca e os
Direitos Humanos são construídas e apresentadas com alta e quase total carga teórica. Tal fato,
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apesar de dar margem, de um lado, a uma grande complexidade na pesquisa sobre o seu
pensamento, de outro a crícas que em maior ou menor medida se subsidiam em
interpretações “sobree não “conformeo conteúdo apresentado, o que se revela de grande
necessidade, porque oferece os meios cognivos no caminho da máxima apropriação do seu
discurso.
“Homo sacer”, vida nua”, “exceção” (excepo) e estado de exceçãosão alguns dos
conceitos sobre os quais burila exausvamente o juslósofo, conduzindo sua construção como
que à kaiana, isto é, mais abrindo que cerrando portas. Agamben tem ciência da
complexidade da problemáca em lato sensu, com a qual trabalha, e mesmo por e em
respeito a isso, somente oferece exemplos prácos à estrita medida em que lhe aguram
necessários.
O recente período pandêmico globalmente instalado demonstrou na práca a
diculdade da reexão críca sobre o pensamento agambeniano com referência àquilo que o
próprio autor usou como objeto paradigmáco de exemplicação, concrezação e conclusão
de seus conceitos (no caso, as medidas restrivas governamentais impostas em função do
SARS-Cov-2), os quais desde há muito vêm sendo construídos, embora ainda não emoldurados
numa expressão práca expressiva e contemporânea em signicação, simultaneamente.
Neste sendo, observa-se que, de um lado, o enquadramento do pensamento
agambeniano como ultrapassado para se debruçar sobre questões da atualidade, por conta
de sua aparente limitação binária e simplória que reduz os caracteres de uma complexidade à
exceção, controlada pelo soberano, e a “vida nua”, conceito exemplicado nos apontamentos
de Frateschi (2020) em Agamben sendo Agamben: o lósofo e a invenção da pandemia e em
Essencialismos losócos e “ditadura do corona”: sobre Giorgio Agamben, mais uma vez.
Consequentemente, do outro lado, pode-se notar que a defesa do método e dos
conceitos do autor é lançada na tentava de rearmar seus fundamentos e procurar
signicações e enquadramentos situacionais atuais sem lhes transgurar, mantendo-lhes na
sua adequação original. Tal defesa encontra respaldo na resposta à autora supramencionada
por Rodrigues (2020) em Agamben sendo Agamben: por que não? Tal texto diz respeito a uma
amostra da discussão estabelecida principalmente após a publicação por Agamben do texto A
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invenção de uma epidemia (2020), no qual tece crícas às instalações governamentais das
medidas sanitárias de restrição de locomoção e isolamento social e à aceitação dessas
medidas pelas populações dos países que as implementaram.
Para Agamben, esse cenário signica a materialização do estado de exceção e a sua
normalização pca e paradigmáca de técnicas de governo.
A parr dessa problemáca, Hillani (2021), como que intermediando o debate iniciado
por Agamben, explica a diculdade da interpretação dos pressupostos do juslósofo e tece
uma contundente defesa ao classicar como leituras apressadas e preguiçosas as que são
feitas sob a ânsia da materialização dos conceitos estabelecidos em alta carga teórica e de
forma exemplicava. Para Hillani, por exemplo, um dos mais expressivos equívocos ao se ler
Agamben é a confusão criada pelo intérprete entre “estado de exceção”, elemento
fundamental indissociável entre direito e violência, e “Estado de exceção (com “E
maiúsculo), como um regime de oposição direta ao Estado de Direito.
Neste sendo, diante da diculdade apresentada, cabe indagar, então, como
materializar o pensamento agambeniano. Na tentava de procurar e demonstrar uma forma
de adequação práca e pontual da teoria de Agamben é onde se encontra o desao da nossa
argumentação.
Ademais, observamos que a diculdade de realizar tal feito se coloca mais em relação
aos princípios e limites autorais que em relação à escassez de recursos. Ou seja, a diculdade
maior não aparenta ser a busca de signicantes, mas a de não o fazer fora da lógica que
caracteriza o método autoral.
Para tanto, o primeiro tópico apresenta e aborda, de maneira sumária, os principais
conceitos componentes do pensamento agambeniano, como “excepo, “vida nuae “estado
de exceção. Já o segundo tópico, visa a oferecer a concrezação, ora referida, a parr da obra
de José Augusto Lindgren Alves.
2 CONCEITOS DA BIOPOLÍTICA DE GIORGIO AGAMBEN
A gura central do pensamento Agambeniano, no que se refere à biopolíca, é, sem
dúvida, a excepo, isto é, a relação de exceção. Ela é a engrenagem primaz da biopolíca
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porquanto o uxo que lhe perpassa somente existe enquanto uxo propriamente. Nesse
sendo, “[...] o signicado emológico do termo exceção capturado fora incluído através da
sua própria exclusão(Agamben, 2007, p. 177). A relação de exceção é a que captura vida
natural e lei e as repulsam de si mesmas guardando-as em virtualidade, respecvamente,
como vida nua e estado de exceção.
Assim, “vida nua”, produto de seu uxo, não é simplesmente a vida biológica natural,
mas é esta mesma vida após a excepo, como um excedente (num critério mais funcional do
que cronológico). O “estado de exceção”, a seu turno, não se confunde com a própria excepo.
Ele é um estado (stare), um connuo de potencialidade de concrezação do inverso da lei,
enquanto, por sua vez, a excepo (relação) é o mecanismo próprio que o produz.
Consequentemente, a excepo não pode ser entendida como um estado, mas como um
móvel, de forma que nela “[...] o que era pressuposto como externo (estado de natureza)
ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder soberano é justamente esta
impossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceção, phýsis e nómos
(Agamben, 2007, p. 43).
Dessa forma, resumidamente, tem-se: (1) excepo: relação de apropriação e exclusão
mútuas entre vida e lei, a qual produz vida nua e estado de exceção; (2) vida nua: resultado da
excepo, representando a vida connuamente excluída da lei; (3) estado de exceção: também
resultado da excepo, sendo a potencialidade do inverso da tutela da lei, o aorar de sua
violência constuva, porque apartada da proteção à vida; e (4) poder soberano: aquele que
decide sobre o funcionamento da excepo, sobre quão capturadas e excluídas estarão entre si
vida e lei e que, por isso, coloca-se fora da lei, pois não pode sujeitar-se sobre a qual tem poder
decisório.
Nesse ponto, vale ponderar a tulo ainda sumário, sobre a disnção entre vida nua e
homo sacer, a qual é, ao menos a priori, uma questão menos de gênero que de grau. O
funcionamento da excepo é iteravo e vai produzindo e se apropriando recursivamente da
vida nua, sem liberá-la em denivo. Quando ocorre tal liberação, isto é, quando a vida nua é
excluída da relação com a lei sem uma nova apropriação, surge o homo sacer, um indiferente
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jurídico, porquanto uma pura vida biológica animalesca destuída de todos os caracteres de
humanidade.
O homo sacer, portanto, é tratado no mesmo âmbito de atuação que o poder soberano,
porque é aquela vida exposta a qualquer po de violência e, em úlmo caso, exposta à morte,
sempre como indiferente jurídico; é uma vida deixada para morrer (Agamben, 2007; Giacoia
Júnior, 2008; Abdalla, 2010).
Agamben procura meios ilustravos para situar esses conceitos e os encontra ora na
religião, ora na literatura. Por esse movo, o autor volta sua atenção para a passagem bíblica
que narra a perda da graça divina por Adão e Eva, explicando que tal como o véu divino fora
separado dos corpos do casal, “revelando a nudez, assim também vida e lei teriam, no
princípio, sido um só, como corpo e graça divina na passagem de Gênesis, mas que, por algum
movo, foram desentranhados um do outro, fato que o autor chama de fratura:
[...] não existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia como
estado de natureza e, depois, sua implicação no direito por meio do estado de
exceção. Ao contrário, a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito,
anomia e nomos coincide com sua articulação na máquina biopolítica. A vida pura e
simples é um produto da máquina e não algo que preexiste a ela, assim como o
direito não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino. Vida e
direito, anomia e nomos, auctoritas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a
que não temos outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do
paciente trabalho que, desmarcando tal ficção, separa o que se tinha pretendido unir.
(Agamben, 2004, p. 132, grifo nosso).
Seguindo os pressupostos do autor, da excepo derivam direta e simultaneamente
“êxito e “fracasso (estabelecidos não por juízo valoravo/axiológico, mas estritamente
exemplicavo de seu funcionamento). Dada a natureza dessa relação, traduzida na exclusão
e na captura mútuas, recíprocas e interdependentes, ou seja, no capturar e excluir (e vice-
versa), mas capturar porque excluiu e excluir porque capturou, então o momento que tende à
encarnação da lei na vida signica o êxito da recuperação da fratura, e o momento
imediatamente e obrigatoriamente posterior, que é o da nova repulsão/exclusão,
signicando o fracasso que lhe reproduz e, por conseguinte, produzindo, de um lado, estado
de exceção e, de outro, vida nua.
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É esse o sendo do sacro em Agamben, o qual o compreende como a maximização da
vida nua como vida sacra, o homo sacer, cuja sacralidade implica na exposição à morte como
indiferente jurídico (sem a conguração de homicídio) e simultaneamente indigna de sacricio
(que apesar de estar fora da ordem material, não é sobre-humana):
[...] sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando
soberano, e a produção da via nua é, neste sentido, o préstimo original da soberania.
A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como
um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em
sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável
exposição na relação de abandono (Agamben, 2007, p. 91).
Assim, não somente o funcionamento da excepo é cíclico e iteravo, conforme
salientado, como também o são as suas resultantes, haja vista que a sacralidade (re)obda
com a fusão do que fora outrora separado implica obrigatoriamente na possibilidade da
matabilidade, no momento da união, e no momento seguinte da nova separação e nela
permanecendo.
Ademais, se porque fora da ordem jurídica, o homo sacer é aquele com relação sobre
o qual todos agem como soberanos (Agamben, 2007), então, extrai-se daí que a soberania
signica a decisão sobre a morte com indiferença, bem como, e a contrassenso, que nesse
âmbito da violência fundamental ele também é aquele que a (re)produz sem que possa sofrer
sanção.
É neste sendo, e com as devidas ponderações de carga conceitual, que se observa ser
menos importante a compreensão de que sacra (sacer) é a vida exposta à morte sem a
conguração do homicídio. Antes, fundamental aperceber-se, que tal exposição se deve à
(con)fusão entre os elementos, de tal forma que também ela é a vida que, porque dentro e
fora da lei, produz e está vulnerável à violência que constrói a si mesma, livre de sanção:
[...] a decisão soberana sobre a exceção é, neste sentido, a estrutura político-jurídica
originária, a partir da qual somente aquilo que é incluído no ordenamento e aquilo
que é excluído dele adquirem seu sentido [...] quando nosso tempo procurou dar
uma localização visível permanente a este ilocalizável, o resultado foi o campo de
concentração. Não é o cárcere, mas o campo, na realidade, o espaço que
corresponde a esta estrutura originária no nómos (Agamben, 2007, p. 27).
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Neste ponto, o exemplo literário torna-se bem-vindo e encontra respaldo na análise
d’O processo, de Franz Kaa, feita por Agamben. Esse livro é especialmente interessante
porquanto além de ser escrito a parr de camadas de profundidade ancoradas em sua
metalinguagem, possui também em sua própria história recursos metalinguíscos e
metafóricos que funcionam como uma espécie de easter egg, essenciais para a compreensão
da narrava.
Não somente a abordagem, na qual o sistema de jusça, sem que proporcione as
condições necessárias à defesa a um bancário processado por fatos que desconhece, ou até
mesmo desconheça as razões de sua punição, a narrava é uma espécie de miniatura e de
tradução dos acontecimentos que envolvem o personagem, direcionados para ele mesmo, e
mais ainda sobre a sua conduta e sua responsabilidade sobre os próprios fatos e sua postura
diante deles, como também apresenta ao leitor o ponto nevrálgico para a interpretação de
toda a obra.
Assim, Agamben (2010) explica que as negavas do guarda para a entrada do bancário
na lei, sempre seguidas de singelas promessas da existência da possibilidade indeterminada
sobre quando poderá entrar, conguram um convite implícito à entrada nesta lei que visam a,
entretanto, somente lhe aprisionar (excepcionar) fora dela.
Envolto nesta contradição é que o camponês se aproxima dos portões da lei, e nela
quer entrar. Tal como Josef K. (kalumniator) acusa-se falsamente para pôr em causa um
processo sem que haja crime algum, exceto a própria falsa calúnia que o origina:
[...] o problema não é tanto, como crê K., quem engana (o guarda) e quem é
enganado (o camponês). Nem se as duas afirmações do guarda (“agora não podes
entrar e “esta entrada era-te destinada, a ti”) são ou não contraditórias.
Significam em todo o caso: “tu não és acusadoe “a acusação refere-se só a ti, só tu
podes acusar-te e ser acusado. São, portanto, um convite à auto-acusação, a que ele
se deixe capturar pelo processo (Agamben, 2010, p. 42).
Na argumentação de Agamben (2010) encontra-se a explicação do fato de que aquele
uma vez considerado inocente se autoincrimina, pondo em curso um processo sem objeto,
salvo se confesso da autoincriminação, momento em que, todavia, tornar-seculpado da falsa
acusação.
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Este movimento interavo e sem escapatória é, para o autor, o da engrenagem
biopolíca da excepo”, cujo funcionamento é um movimento inerte de aprisionamento,
expulsão e produção “vida nua”.
3 COMPLEMENTARIDADES SITUACIONAIS.
Gravitando em torno desse mesmo amplo problema dos Direitos Humanos, embora
por outro lado e fazendo uso de diversos métodos, mas em perspecva aproximada com a de
Agamben, o diplomata brasileiro José Augusto Lindgren Alves tece suas considerações com
relação ao pensamento do lósofo Slavoj Zizek.
Lindgren Alves foi um diplomata brasileiro que desempenhou seu trabalho a parr do
nal dos anos 1960 durante aproximadamente meio século, principalmente nos países mais
ao leste da Europa. Ele deixou vasta e relevante produção acadêmica sobre os temas de
relações internacionais e sobre Direitos Humanos.
No que se refere aos Direitos Humanos, sua obra traz fartas doses de recortes de
momentos históricos sobre conitos e sistema internacionais de Direitos Humanos.
Zizek, a seu turno, é um lósofo e professor esloveno, de formação marxista e
lacaniana, cuja produção, ava e atual, vai de livros a lmes. O lósofo também se ocupa em
tecer crícas à sociedade ocidental, à produção cultural, à cultura do espetáculo, ao
capitalismo neoliberal e à violência.
Considerando o exposto, o nome da obra ora analisada fala por si, trata-se de O
contrário dos direitos humanos (explicitando Zizek) (2002), na qual Alves burila a respeito da
questão fundamental de Zizek sobre os Direitos Humanos: a produção contrária aos direitos
por meio de todo o arcabouço sistêmico e sistemáco que deveria garanr a sua proteção.
Nessa obra, Alves dispensa tratamento apurado sobre a produção do oposto do preceito dos
Direitos Humanos justamente em nome e na sistemáca, ou no sistema destes mesmos
direitos, principalmente a nível de Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas também
com perspecvas a nível domésco estatal.
Com isto, a relação construída no presente argo beira o inedismo e é um tanto
inusitada, porque Alves (2002) parece traduzir e explicar em sendo práco o pensamento
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Agambeniano, mesmo sem ter tal intenção e sem precisar citá-lo (recorda de Agamben en
passant ao lado de Hannah Arendt, somente em É preciso salvar os Direitos Humanos (2018).
Por óbvio, não armamos que os autores abordam o mesmo objeto com palavras
diferentes, o que seria um reducionismo negligente e desatento. Em realidade, considera-se e
salienta-se, pois, as parcularidades dos trabalhos de cada um, bem como buscamos destacar
o fato de que em algum ponto, ainda que partam de propostas teóricas e prácas disntas,
seus pensamentos parecem convergir e seguir uma direção comum – fato que enriquece ainda
mais seus trabalhos.
Desta forma, como se viu com Agamben, estabelecido o modus operandi da violência
soberana como aquilo que determina a própria relação de exceção, isto é, que determina o
posicionamento e o relacionamento, é na excepo, entre lei e vida, que se vê que ela é o fato
primordial da biopolíca e produtora imediata do estado de exceção. O estado de exceção é a
forma originária do direito, a virtualidade do corpo abandonada diante de si mesmo, como o
reexo de um espelho diante do objeto. É nesse sendo que, como já visto, este “[...] soberano
é o ponto de indiferença entre violência e direito, o limiar em que a violência traspassa em
direito e o direito em violência(Agamben, 2007, p. 38).
Alves (2002), parece parr desse lugar e se aprofundar nos modos de expressão dessa
violência em nome dos e que (re)arma e (re)signica os Direitos Humanos. Para ele
um abismo, ou um limbo, por trás dos preceitos/enunciados desses direitos que “[...] adviria
do fato de que a forma não é mera forma. Implica uma dinâmica concreta, contrária à busca
de condições para a igualdade universal efeva, que deixa marcas profundas na materialidade
social(Alves, 2002, p. 93).
A parr de sua argumentação, Alves explicita os acontecimentos, principalmente
teórica e cronologicamente após o fadico onze de setembro estadunidense, os quais
compõem o que ele classica como direito de ingerência, que em seu émo é uma espécie de
juscava políca para o estabelecimento de um conito armado em nome da defesa dos
Direitos Humanos.
Assim, ele explica que em determinados momentos a Organização das Nações Unidas
- ONU e a Organização do Tratado do Atlânco Norte - OTAN:
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[...] fizeram-no ao avaliar a posteriori ou ao promover ab initio a intervenção de forças
armadas estatais em conflitos alheios, com objetivos humanitários – sem definir em
termos genéricos, universais e regulamentadores, como é da essência do Direito, as
características desse informalmente chamado “direito de ingerência(Alves, 2002,
p. 96).
Essa obscuridade interna dos Direitos Humanos tratada pelo autor, essa espécie de
mão invisível, não nos parece, diante do até aqui exposto, a materialização de outra
engrenagem senão a da excepo biopolíca Agambeniana.
Nela, a decisão soberana está escancarada. Corpo e lei frente a frente confundem-se
no justo momento da sua separação pela violência que consagra a lei como tão somente lei, e
o corpo como tão somente corpo, a vida nua matável e insacricável, a produção do homo
sacer a parr de um poder que decide a sua ocorrência, mas não se permite ser olhada de
perto. É, pois, necessária certa distância de observação para que mais elementos possam
compor o cenário observado.
Dentre esses elementos que estabelecem a decisão soberana, a dicotomia nós-eles,
ainda que não absoluta para explicá-la, é uma representante adequada. Nesse sendo, o autor
chega mesmo a lembrar do emprego práco do conceito de “mal necessáriomascarado nas
ondas da democracia de Hunngton (1994), na defesa dos “nossos interesses norte-
americanos/ocidentais como expressão da decisão soberana que instala sua violência contra
“eles”, quem quer que “elessejam, decidindo assim sobre a materialização da excepo e, por
conseguinte, concrezando e normalizando o estado de exceção (Agamben, 2007).
Tudo isto, sim, estabelecido pela outra face dos Direitos Humanos:
[...] se estes direitos se tornaram uma constante no discurso contemporâneo, além
de tema de monitoramento internacional autorizado por conferência mundial; se os
direitos humanos, na década de 1990, foram pela primeira vez erigidos em
justificativa ética para intervenções armadas ‘desinteressadas(como afirmavam os
líderes da OTAN durante os bombardeios da Iugoslávia na guerra do Kosovo), então
faz todo sentido indagar por que motivos tais direitos, reputados universais são ainda
– ou, mais precisamente, são de novo – desconsiderados ou repudiados sob o rótulo
legalmente anacrônico, mas culturalmente persistente, com força atual redobrada,
de que não passam de manifestação do imperialismo ocidental. Por que motivo, ao
mesmo tempo em que são citados com tanta frequência em quase todo o planeta,
os direitos humanos continuam objeto de tanta descrença (e tamanho
desconhecimento!) de parte daqueles que mais deveriam proteger? (Alves, 2002, p.
95).
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Além dos conitos que aviltam os Direitos Humanos em nome de sua defesa, outro
fator imprescindível para a razão da excepo é, na explanação de Alves (2002), e como
segundo exemplo, o modelo neoliberal. Nele, o desmantelamento programado, mas nem
tanto planejado (o que é ainda pior), do arcabouço jurídico-estatal pela razão da economia,
muito é evidenciado e produz a perda das garanas e dos direitos fundamentais, de um lado,
e promove o endurecimento repressivo, de outro (Faria, 1997).
O Estado perde signicava parcela da sua capacidade de organizar seu ordenamento
jurídico que não seja estritamente com vistas ao atendimento desses interesses econômicos
transnacionais (Faria, 2002; Lewandowski, 2004; Foucault, 2008) e os direitos, na práca,
passam a ser racionalizados como serviços (Chauí, 1999), de maneira que:
[...] o Estado pouco mais pode fazer do que tentar administrar o funcionamento da
sociedade para o sucesso das empresas, nacionais e internacionais. Destituído até
mesmo de meios fiscais para operar políticas pública adequadas, veem-se os
governos a cada dia menos capazes de zelar pelo bem-estar geral. Daí recorrem
crescentemente, conforme o modelo norte-americano, à filantropia privada e ao
chamado “terceiro setor”, das organizações não-governamentais, de direito privado
mas com objetivos públicos, para o atendimento paliativo aos indivíduos e
comunidades mais carentes [...] abandona a esfera do jurídico para entrar no
domínio da ética e da filantropia. Os direitos deixam, pois, de ser direitos (Alves,
2002, p. 108-109).
Alves (2002) nomeia o neoliberalismo como uma “gura emblemáca”, provocadora
de grandes crises econômico-nanceiras e produtora de excluídos do mercado e da sociedade.
Por assim ser, no que se refere à sua relação com os Direitos Humanos:
[...] por mais que esses direitos "inalienáveis" existam no papel e na intenção de
regimes democráticos, não dúvida de que tais direitos civis e políticos se
relativizam. Além de os primeiros serem facilmente deturpáveis, os segundos
perdem substancialmente a capacidade de promover transformações efetivas, onde
as disparidades de sempre e o neoliberalismo atual não permitem a realização dos
direitos econômicos e sociais (Alves, 2002, p. 103).
Assim, o desmantelamento do ordenamento jurídico em razão da economia em práca
no neoliberalismo não afeta apenas as razões da soberania estatal com as
desconstucionalizações e deslegalizações programadas (Faria, 1997), como também faz
perder o sendo mais fundamental dos documentos internacionais de Direitos Humanos e sua
aplicação (Alves, 2002).
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Revela-se, pois, duas faces de uma mesma moeda à medida que os problemas que
acontecem em termos de Direitos Humanos, a nível internacional, são lógica e
obrigatoriamente os mesmos problemas que, por outra perspecva, se materializam no
âmbito nacional para alguém em outro lugar, ao nal das contas.
Ora, se o homo sacer é produzido preferencialmente nos países ou regiões menos
ocidentalizados, ou seja, com menos inuência europeia e norte-americana, o que faz com
que “nós dicilmente tomemos conhecimento de sua existência (que signica, por
conseguinte, morte), “nós”, por outro lado e em alguma medida, também somos “eles”,
principalmente quando “nós”, ainda que ocidentais e capitalistas, o somos em menor
importância e não exercemos inuência como os Estados Unidos ou a Inglaterra, por exemplo,
uma vez que somos lano-americanos, vivendo em países com pouca ou nenhuma vantagem
econômica, ou até mesmo os europeus mais ao oriente. Trata-se de uma questão de escala.
É como se houvesse um meio-homo sacer, aquele cuja matabilidade não é imediata
por meio de um projél, mas programada dentro de um território com cada vez menos
presença do Estado. Por conseguinte, um território cujo sistema de produção fabril se insere
com – cada vez mais – reduzidos direitos trabalhistas e previdenciários, sem segurança e sem
educação, e se desenvolve numa sociedade consumista e alienada.
E é nesse sendo que Alves conclui ser verdadeira a armação do contrário dos Direitos
Humanos, na medida em que “[...] os Estados democrácos aceitam, sem buscarem
alternavas, deixar ao mercado a regulação do social, e à lantropia a atenuação da falta de
direitos econômicos, a frase impactante de Zizek soa mais do que pernente: ela se torna
factual e descriva(Alves, 2002, p. 110).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A materialização e a exemplicação dos conceitos componentes do pensamento
Agambeniano não caracterizam empreita demasiado simples, mais ainda quando se pretende
realizá-las conforme observação el da própria perspecva autoral, e não as interpretando à
luz do que se agura de mais práco feio.
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Nesse sendo, a excepo, o estado de exceção, a vida nua e o homo sacer são peças
basilares para a teoria desse juslósofo, e parecem se perfazerem naquilo que descreve em
seu texto José Augusto Lindgren Alves, ao pensar a parr de Slavoj Zizek.
Para Alves (2002), os organismos internacionais componentes da sistemáca
internacional dos Direitos Humanos, por vezes subsidiados pela vontade políca do
protecionismo cultural e territorial, ainda que de Estados alheios, atacam outras soberanias e
outros povos, violando eles mesmos esses direitos em nome desses mesmos direitos,
produzindo o oposto do seu preceito.
Assim agindo, guardam o poder soberano de decidir sobre a excepo, a violência
constuinte do direito e que se revela no seu fazer, produzindo um excesso chamado vida
nua, a vida que (re)desunicada da lei e exposta à morte indiferente ao ordenamento jurídico,
ou seja, que não congura homicídio.
O mesmo ocorre também no âmbito domésco estatal, pela fragilização do seu poderio
jurídico-políco diante de uma economia transnacional e neoliberal predatória, que tende a
abandonar as populações ao mínimo de direito e ao máximo de repressão.
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Submetido em: 13/10/2024
Aprovado em: 04/03/2024