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RIPPMar, v. 9, 2023. Publicação Contínua.
DOI: https://doi.org/10.36311/2447-780X.2023.v9.e023002
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Capacidades estatais e capacidades dinâmicas para o enfrentamento de
crises:
o sucesso do Vietnã contra a COVID-19
State capacities and dynamic capabilities for coping with crises: Vietnam's
success against COVID-19
Mario Henrique de Oliveira Castro
1
Arnaldo Provasi Lanzara
2
RESUMO: O estudo, primeiramente, apresenta os fundamentos sobre capacidades estatais a partir da
exposição de seus vários aspectos e de suas dificuldades de conceitualização. Em seguida, o abordadas
as capacidades dinâmicas do setor público, sua definição, aplicação e como análises a partir da
perspectiva de capacidades dinâmicas se relacionam e se diferem de capacidades estatais em geral. Após
a argumentação teórica, é feito um estudo de caso com o objetivo de identificar a presença e a influência
de capacidades estatais e capacidades dinâmicas para lidar com crises. A estratégia adotada pelo Vietnã
para combater a pandemia de COVID-19 foi escolhida por ser considerada um exemplo de sucesso na
contenção das primeiras ondas, podendo assim, destacar as capacidades envolvidas. O estudo de caso
se baseou em artigos, notícias e relatórios sobre a pandemia no Vietnã, sendo bem sucedido na
identificação de capacidades que, nessa abordagem inicial, aparentam ter influenciado a resposta
promovida no país. Outros fatores de influência, como aspectos culturais, também foram observados.
Palavras-chave: capacidades estatais, capacidades dinâmicas, covid-19, Vietnã, enfrentamento de
crises, governo.
ABSTRACT: Firstly, this research presents the fundamentals of state capacity through the exposition
of its various aspects and conceptualization difficulties. Then, the dynamic capabilities of the public
sector are addressed, their definition, application and how analyses from the perspective of dynamic
capabilities relate to and differ from state capacities in general. After the theoretical exposition, a case
study is carried out in order to identify the presence and influence of state capacities and dynamic
capabilities to deal with crises. The strategy adopted by Vietnam to combat the COVID-19 pandemic
was chosen because it is considered an example of success in containing the first waves, thus being able
to highlight the capacities/capabilities involved. The case study was based on articles, news and reports
about the pandemic in Vietnam, being successful in identifying capacities and capabilities that, in this
initial approach, appear to have influenced the response promoted in the country. Other influencing
factors, such as cultural aspects, were also observed.
1
Mestrando em Políticas Públicas pelo Mestrado Profissional em Políticas Públicas PROFIAP/ UFF.
Bibliotecário na Universidade Federal Fluminense (RJ). Endereço postal: Rua Noronha Torrezão, 659 Santa
Rosa Niterói-RJ, CEP: 24.240-181. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-5964-4251 - E-mail:
mhocastro@id.uff.br
2
Doutor em Ciência Política (IESP-UERJ). Docente no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal Fluminense (ICHS-UFF). Endereço postal: Rua Nossa Senhora Auxiliadora, n.34/801,
Santa Rosa, Niterói-RJ, CEP: 24.240-680. - ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7809-4719 - E-mail:
arnaldolanzara@id.uff.br
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Keywords: state capacities, dynamic capabilities, covid-19, Vietnam, crisis coping, government.
INTRODUÇÃO
Capacidades estatais e, mais recentemente, capacidades dinâmicas podem oferecer
valiosos elementos para a análise de crises. Característica que teve sua relevância ressaltada a
partir de 2019, quando o mundo foi absorvido por uma crise sem precedentes, causada pela
pandemia de COVID-19. Os países tiveram que se adaptar rapidamente para a contenção do
vírus e imunização da população, enquanto tentavam evitar o impacto na economia e outros
danos colaterais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto de coronavírus
(COVID-19) como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional e, em 11 de
março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como pandemia (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2020).
Muitas foram as respostas dadas pelos países à crise, cada uma delas expressando suas
diferentes formas de governo, sociedade e cultura. Algumas dessas respostas, no entanto, foram,
em linhas gerais, mais bem sucedidas do que outras. Segundo as Nações Unidas (ONU), o
mundo precisa estar preparado para enfrentar novas pandemias (UNITED NATIONS, 2020).
Nesse sentido, experiências no enfrentamento da pandemia de COVID-19 podem colaborar
com o entendimento sobre como certas medidas ajudaram a salvar vidas e a preservar a
economia. O que faz com que as capacidades estatais e capacidades dinâmicas do Estado não
possam ser ignoradas, já que cabe aos governos a responsabilidade da implementação de
políticas para responder às crises.
A revisão bibliográfica apresentará os conceitos de capacidades estatais e capacidades
dinâmicas e a relação entre esses termos e após a exposição teórica, será apresentado um estudo
de caso para identificar a presença e influência de capacidades estatais e capacidades dinâmicas
para respostas às crises. Foi escolhida para análise a estratégia adotada pelo Vietnã para
combater a COVID-19, que o país ofereceu um dos mais bem sucedidos exemplos de resposta
à pandemia. As informações para realização do estudo foram coletadas de diversas fontes,
incluindo artigos, relatórios e portais como Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial da
Saúde (OMS) e foram comparadas com a teoria sobre capacidades estatais e capacidades
dinâmicas para identificar aspectos relacionados a esses conceitos.
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O objetivo do estudo é destacar a presença de capacidades que, ainda que em uma
abordagem inicial, possam ter uma relação de influência nas ações e políticas adotadas pelo
Vietnã para lidar com a crise gerada pela pandemia de COVID-19.
CAPACIDADES ESTATAIS
A ideia de capacidades estatais vem sendo empregada por diversos autores em uma
considerável variedade de aspectos. O termo está presente em análises que envolvem atributos
políticos, fiscais, administrativos, territoriais, burocráticos, infraestruturais, de inovação, entre
outros. Dada tamanha abrangência e complexidade, é comum que autores separem o conceito
em grupos ou áreas de atuação de determinadas capacidades. Pires e Gomide (2018, p.25)
comentam, a partir da análise de vários autores, que os conceitos envolvendo capacidades
estatais podem se dividir em dois grandes grupos: o primeiro “refere-se à criação e à
manutenção da ordem em um determinado território, o que, por sua vez, exige um conjunto de
medidas para a proteção da soberania das nações, como dirigir um aparato coercivo, arrancar
tributos, e administrar um sistema de justiça”; Enquanto no segundo grupo conceitual “procurou
refletir sobre as capacidades que os estados possuem (ou não) para atingir, de forma efetiva, os
objetivos que pretendem por meio de suas políticas públicas, como a provisão de bens e serviços
públicos(PIRES; GOMIDE, 2018, p. 26).
Cingolani (2013), em sua revisão conceitual sobre capacidades estatais, divide o tema
de forma ainda mais específica, adotando sete dimensões de capacidades estatais.
Em estudos mais gerais sobre capacidades estatais, como o que é proposto aqui, torna-
se razoável o uso de categorias para agrupar e sistematizar os vários aspectos de capacidades
estatais. Nesse sentido, as dimensões apresentadas por Cingolani (2013) foram escolhidas para
servir de base neste estudo, por permitir que o aspecto multidimensional de capacidades estatais
não seja um empecilho para análises. As sete dimensões são: coerciva, fiscal, administrativa,
transformativa, relacional, legal e política.
Dimensão coerciva
Também pode ser identificada, de forma mais específica, como dimensão militar.
Cingolani (2013, p. 28) comenta que é “o atributo mais básico de governança em praticamente
todas as definições, sendo a capacidade do estado de monopolizar a aplicação do poder
coercitivo”. Em outras palavras, trata-se do monopólio do uso da força ou da violência por parte
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do estado, para ser capaz de atingir seus fins, sejam eles a manutenção da ordem interna ou a
proteção de suas fronteiras contra outras nações. A dimensão coerciva é responsável pela
manutenção do poder do estado, como visto, seja aplicando a força sobre sua própria população
ou contra ameaças externas. Esse aspecto possui grande influência na formação e permanência
dos estados (e seus regimes políticos).
Dimensão fiscal
Cingolani (2013, p. 28) diz que “esta dimensão enfatiza o poder do estado de extrair
recursos da sociedade, principalmente na forma de taxação”. É neste aspecto que outros
elementos relacionados com a questão fiscal, além da cobrança de taxas, se estabelecem, como
a eficiência dos gastos públicos e a extensão de serviços que podem ser oferecidos à população.
Dimensão administrativa
Nas palavras de Cingolani (2013, p. 31), a dimensão administrativa “é talvez a mais
amplamente referenciada na literatura, e muitas vezes intimamente relacionada com boa
governança”. Segundo sua análise, esse aspecto se mostrou fortemente influenciado pelo
modelo weberiano de burocracia. Sendo assim, as principais características transmitidas pela
tradição weberiana estão presentes como sinônimo de elevada capacidade estatal:
profissionalização da carreira pública; impessoalidade; eficiência; desvio da discricionariedade;
uso de padrões; e mérito como critério. Evans e Rauch (2000, p. 50) concordam com a
necessidade da presença de características do modelo weberiano de burocracia para a formação
de um estado “desenvolvimentista”, principalmente “recrutamento meritocrático por meio de
concursos, procedimentos de contratação e demissão do serviço público, em vez de nomeações
e demissões políticas, e preenchimento dos níveis mais altos da hierarquia por meio de
promoção interna”.
Dimensão transformativa
Esta dimensão está voltada para a capacidade de industrialização do Estado, entendida
aqui como a habilidade de usar sua estrutura e seus recursos, tanto materiais quanto imateriais,
para transformar e agregar valor. No entanto, na revisão feita por Cingolani (2013), foi
percebido que esse aspecto não se limita à ideia transformativa da industrialização e alcança
outros campos, como capacidade distributiva e de inovação.
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Dimensão relacional
Cingolani (2013, p. 31) diz que esta dimensão “busca captar até que ponto o estado
realmente permeia a sociedade e é capaz de internalizar as intenções sociais em suas ações”.
Em certa medida, essa dimensão considera que o Estado pode ser limitado pela sociedade civil.
Seja qual for a capacidade do Estado, ela só se realiza a partir de um determinado arranjo com
a sociedade. Saravia (2006, p. 24), a partir de destaques da Organization for Economic Co-
operation and Development (OCDE), comenta que “a diversificação das necessidades, as novas
tecnologias de comunicação e informação e o papel decisivo da mídia, a crescente participação
dos usuários e grupos de pressão nos processos decisórios e a exigência de maior transparência
e provisão de informação em todas as áreas de ação governamentalsão algumas das formas
de examinar o papel dos governos.
Dimensão legal
Uma percepção similar de limitação do Estado é encontrada na dimensão legal, sendo
que aqui o foco está na forma e extensão da intervenção do estado na sociedade. Para a
dimensão legal existe a necessidade de um código legal construído pela sociedade e mantido
pelo Estado, ou seja, os limites da capacidade de intervenção e do uso da força pelo estado são
ditados pela sociedade. Cingolani (2013, p. 32), no entanto, identificou também que estudos
mais recentes reconhecem a necessidade de um estado forte e capaz de intervir na sociedade de
forma mais acentuada, principalmente para lidar com crises e intempéries do mercado. Ou seja,
existe o desafio de encontrar um sistema legal e contratual equilibrado, bem estabelecido e
confiável que permita respostas rápidas do estado, mas que não seja flexível ao ponto de
ameaçar as liberdades civis.
Dimensão política
Nesta dimensão, a capacidade do Estado pode ser entendida como a capacidade de
formulação e aplicação de políticas públicas por parte do grupo que se encontra no poder.
Cingolani (2013, p. 32) comenta que esse aspecto “frequentemente se refere ao nível de poder
acumulado pelo líder eleito em ordem de fazer valer suas prioridades políticas através de
diferentes agentes institucionais (partido, Congresso, etc.)”.
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CAPACIDADES DINÂMICAS DO ESTADO
Capacidades do Estado e capacidades dinâmicas do estado são ideias próximas,
construídas com uma estreita relação, no entanto, possuem algumas distinções. Uma delas trata
do tipo de capacidade que é estudada. Usamos, em português, a palavra [capacidade] para lidar
com as duas ideias, mas em inglês, temos duas palavras distintas para elas. Os termos em inglês
são state capacity (para capacidades estatais) e dynamic capabilities (para capacidades
dinâmicas). Capacity diz respeito às qualidades necessárias para a realização de algo, ou seja,
quando se diz que algo ou alguém tem a capacidade de fazer algo, nesse sentido, significa que
existem as condições para fazer algo da maneira pretendida (KATTEL; DRECHSLER;
KARO, 2019, p. 3). capability representa mais o escopo do trabalho que precisa ser realizado
e a qualidade da execução desse trabalho, não apenas a possibilidade de sua realização.
(COLLINS, 2022).
Essa diferença é fundamental para entender como os estudos sobre capacidades
dinâmicas constantemente destacam que não basta somente alcançar um objetivo específico, é
preciso também considerar o impacto de como alcançá-lo e para onde direcionar o resultado.
Kattel (2022, p. 1) sintetiza essa ideia em uma frase construída a partir dos estudos de vários
pesquisadores na área: “Os formuladores de políticas econômicas estão cada vez mais de acordo
que não é suficiente focar nas taxas de crescimento econômico; o que igualmente importa é a
direção e o tipo de crescimento”.
Além da sutil diferença entre capacity e capability, outro aspecto também ajuda a
distinguir o entendimento de capacidades dinâmicas da abordagem mais geral de capacidades
estatais. Trata-se, no caso de capacidades dinâmicas, da presença de um foco maior nas relações
entre as diversas áreas de atuação do Estado, promovendo a ação por missão através de uma
visão holística das capacidades (KATTEL; MAZZUCATO, 2018). Essa característica está
presente desde sua definição clássica, feita por Teece, Pisano e Shuen (1997, p. 515) ao dizerem
que capacidades dinâmicas podem ser entendidas como “a capacidade de uma organização e de
sua gestão para integrar, construir e reconfigurar competências internas e externas para lidar
com mudanças rápidas do ambiente”. É possível perceber como análises a partir de capacidades
dinâmicas do estado fornecem elementos para entender a atuação do Estado no enfrentamento
de crises. Mazzucato e Kattel (2020, p. 256) afirmam que “uma das maiores lições é que a
capacidade do estado para administrar uma crise dessa proporção [referindo-se à pandemia de
COVID-19] depende dos investimentos cumulativos que um Estado fez em sua capacidade de
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governar, realizar e administrar”. Ou seja, a resposta a crises, como a causada pelo SARS-CoV-
2, deve estar em uma forma de governar, e não somente em ações reativas e medidas
emergenciais. Talvez devido à influência que capacidades dinâmicas recebem da área de gestão
estratégicas das organizações (KATTEL, 2022, p. 1), aqui capacidades são vistas como um
processo em constante desenvolvimento e aprimoramento, que depende de investimentos
direcionados.
Capacidades dinâmicas oferecem uma visão relacional, com geração de crescimento
sustentável, colaboração entre setor público e privado, além de um novo tipo de relação entre
governo e mercado, na qual o setor público intervém como formador de mercado e não somente
como controlador. Portanto, trata-se de uma nova perspectiva para capacidades, procurando um
alinhamento com os desafios dos Estados modernos para lidar com crises, competição,
crescimento, questões sociais e ambientais.
Nesse sentido, Mazzucato e Kattel (2020, p. 256), colocam que “a intervenção do
governo é eficaz se o estado tiver a correspondente capacidade (capability) para agir”, e
acrescenta que “os governos deveriam investir no fortalecimento de áreas críticas, como
capacidade de produção, capacidade de aquisição, simbiose na colaboração público-privado
que genuinamente servem ao interesse público e expertise digital e de dados (ao mesmo tempo
que protege a privacidade e segurança)”. em relação ao combate à pandemia, os autores
colocam que “para preparar-se para futuras pandemias, os governos devem construir
capacidades dinâmicas nas seguintes áreas: capacidade de adaptação e aprendizagem,
capacidade de alinhar os serviços públicos com as necessidades dos cidadãos, capacidade de
governar sistemas de produção resilientes; e capacidade de governar dados e plataformas
digitais(MAZZUCATO; KATTEL, 2020, p. 257).
ESTUDO DE CASO
O primeiro caso conhecido de COVID-19 ocorreu em dezembro de 2019 (ANDERSEN
et al., 2020) e se espalhou pelo mundo rapidamente. Em 2021 o Ministério da Saúde do Vietnã
informou que o país sofreu quatro ondas de contaminação pelo vírus SARS-CoV-2 (LE et al.,
2021, p. 1). A primeira onda, com o vírus original de Wuhan (China) teve início em 23 de janeiro
de 2020 e durou 85 dias, contando com 100 casos e nenhuma morte. A segunda onda ocorreu a
partir de 25 de julho de 2020 e durou 129 dias. O surto inicial ocorreu na cidade de Da Nang,
ainda com o vírus de Wuhan. Foram reportados 554 casos e 35 pessoas que apresentavam
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comorbidades faleceram. A terceira onda surgiu em Hai Duong com a variante inglesa em 28
de janeiro de 2021, com duração de 57 dias, contando com 910 casos e nenhuma morte foi
reportada (LE et al., 2021, p. 1).
Para efeito de comparação, neste mesmo período o Brasil contava mais de 12 milhões
de casos de COVID-19, que resultaram em mais de 300 mil mortes (MORTES…, 2021). Apesar
de se tratar de números absolutos, a diferença da velocidade de proliferação do vírus no Vietnã
e em outros países (principalmente do ocidente) é gritante.
Somente o impacto da quarta onda mudou drasticamente a situação, relativamente
segura, em que se encontrava o Vietnã. A onda teve início no mesmo s em que o Vietnã
recebia as primeiras doses de vacina, em abril de 2021 (WORLD HEALTH ORGANIZATION,
2021). Esta onda foi impulsionada principalmente pela variante indiana, considerada uma das
mais contagiosas existentes, podendo ser até 50% mais transmissível do que outras variantes
(DOUCLEFF, 2021). O número de casos confirmados subiu para milhões no passar dos meses
e milhares de pessoas perderam a vida.
Os números mostram, no entanto, que a política adotada pelo governo vietnamita para
controlar as sucessivas ondas de contágio pode ter salvado milhares de vidas e ajudado a manter
empregos e a economia do país em expansão. Em julho de 2022, ou seja, mais de um ano após
a quarta onda, o país contava 11 milhões de casos de COVID-19, que resultaram em quase 6
mil mortes. Já no Brasil, que assim como outros países não teve tanto sucesso no controle das
primeiras ondas, na mesma data apresentava mais de 33 milhões de casos e cerca de 400 mil
mortes. O número de mortes por milhão no Brasil em 13 de julho de 2022 era de 3.171 enquanto
o Vietnã apresentava 442 mortes por milhão de habitantes, um número cerca de 7 vezes menor
(CORONAVIRUS…, 2022). No entanto, é preciso notar que números absolutos de infecção e
mortalidade, por si só, não permitem afirmar que o governo do Vietnã foi mais bem sucedido
que o do Brasil em sua resposta à COVID-19, necessitando, para isso, de estudos comparativos
mais abrangentes, já que outras variantes precisam ser consideradas, como questões culturais e
geográficas.
O Vietnã tem sido amplamente reconhecido por sua resposta eficaz no combate à
COVID-19. A OMS elogiou as ações do país, incluindo a rápida resposta inicial, o rastreamento
de contatos, a comunicação eficaz e a mobilização da comunidade (WHO, 2021). Os Centers
for Disease Control and Prevention (CDC) informaram que o Vietnã se destacou no controle
do COVID-19 por meio de forte liderança e coordenação, rápida detecção e isolamento de
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casos, rastreamento agressivo de contatos e medidas rígidas de quarentena (CENTERS FOR
DISEASE CONTROL AND PREVENTION, 2020). Todd Pollack, diretor do projeto The
Partnership for Health Advancement in Vietnam (HAIVN) em parceria com a Harvard Medical
School e outras instituições afiliadas, afirmou que a resposta do Vietnã à COVID-19 foi
excepcional e, embora parte de seu sucesso decorra de um contexto único, muitas lições do
Vietnã são amplamente aplicáveis em outros países (POLLACK et al., [2021?]).
A estratégia vietnamita
O Vietnã é um país com cerca de 100 milhões de habitantes que vem passando por uma
profunda transformação econômica desde 1986 com a implementação da política Doi Moi
3
(porta aberta) que abriu a economia do país.
Segundo Pollack et al. (2021?) o Vietnã tem investido pesado em seu sistema de saúde
desde então, com um crescimento médio de 9% ao ano desde 1990. Além disso, o país tem uma
história de sucesso no combate a epidemias. O Vietnã foi o segundo país a enfrentar o SARS
em 2003 e o primeiro a ser declarado livre do vírus (WORLD HEALTH ORGANIZATION,
2003).
Em paralelo, o país também promoveu o desenvolvimento de seus sistemas de
informação. Pollack et al. (2021, p. 2) diz que “o Vietnã vem por muito tempo mantendo um
robusto sistema de coleta e agregação de dados [public data], e em 2009 isso se tornou
praticamente um sistema [web-based] em tempo real”. Com esse sistema, hospitais e centros
de saúde notificam, em até 24 horas, doenças para o controle central do Ministério da Saúde,
permitindo rastrear o desenvolvimento de epidemias.
A estratégia adotada pelo governo do Vietnã contra a COVID-19 pode ser identificada
na análise feita por Le et al. (2021, p. 2) das ações adotadas durante as quatro ondas que
atingiram o país. Foi destacado um conjunto de medidas, que podem ser chamadas de estratégia
5P
4
: preparação, potencial de contágio, prevenção, priorizar a vacinação e publicar com
cuidado.
Preparação
3
Literalmente entendido por inovação/renovação, mas comumente traduzido por open door”.
4
Em livre adaptação para o português.
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O preparo do sistema de saúde vietnamita para respostas a crises como a pandemia de
COVID-19 teve início anos antes com investimentos constantes e orientados para esse objetivo
específico. Pollack et al. (2021, p. 2) comenta que “com o surgimento da epidemia de SARS
[em 2003], o Vietnã aumentou o investimento em sua estrutura de saúde pública, desenvolvendo
um centro nacional de operações para emergências em saúde pública e um sistema nacional de
vigilância em saúde pública”.
Potencial de contágio
Trata-se do sucesso no controle das primeiras ondas. Para alcançar isso, as equipes de
saúde conseguiram identificar novos casos cedo, rastrear os contatos de cada paciente infectado,
zonear áreas com maior risco de contaminação e estabelecer quarentenas.
Os cidadãos precisam fornecer declarações de saúde através de APPs
5
criados pelo
governo. Uma vez testado positivo, essa informação é repassada para o Ministério da Saúde e
o indivíduo infectado recebe o status de F0. Todas as pessoas que tiveram contato com ele
passam a ser consideradas F1. As pessoas em contato com F1 se tornam F2 e assim por diante.
As equipes locais de respostas rápidas rastreiam todos os contatos e indivíduos F0, F1 e F2 são
imediatamente isolados em dependências do governo por 14 dias, precisando de 3 testes
negativos para poder ser liberados. Indivíduos F3, F4 e F5 devem fazer quarentena voluntária
em suas residências por 14 dias. Le et al. (2021, p. 2) diz que “encorajar as pessoas a usarem o
self-testing
6
em casa foi também um game-changer
7
para a estratégia. Esse teste ajuda a detectar
novos casos cedo, especialmente em casos assintomáticos, que são altamente transmissíveis”.
Prevenção
A prevenção de mortes, incluindo pacientes com outras enfermidades que não sejam
COVID-19, além do aspecto humanitário, tem relação com a necessidade de evitar o colapso
do sistema de saúde por conta da pandemia, o que agravaria a crise. Para isso, os outros pontos
5
Aplicativos para celular.
6
COVID-19 rapid testing kit.
7
A expressão game-changer pode ser traduzida para o português como "mudança de jogo", “divisor de águas
ou "elemento transformador".
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da estratégia são fundamentais, como controlar as primeiras ondas, promover a vacinação e
investimentos em infraestrutura e tecnologia da informação.
O Vietnã promoveu diversas campanhas durante a pandemia, sendo a maior delas
voltada para a prevenção da doença. Conhecida como 5K
8
, a campanha é de fácil assimilação
e consiste na divulgação de 5 ações elencadas pelo governo como essenciais para evitar a
proliferação do vírus: uso de máscara, desinfecção, distanciamento social, não aglomerar e
praticar a declaração de saúde.
Após o impacto da quarta onda, o governo do Vietnã criou uma nova campanha, com
mais exigências, ampliando assim as medidas da 5K. Mantendo a identidade e a estratégia de
fácil assimilação, a nova campanha recebeu o nome de 5T
9
e as ações promovidas consistem
nas seguintes atitudes: seguir estritamente a 5K; armazenar uma quantidade adequada de
alimentos em casa; permitir o acesso de equipes médicas e medicamentos no nível térreo
10
;
testes de COVID-19 para todas as pessoas; vacinação nas enfermarias e comunidades.
Priorizar a vacinação
A vacinação massiva da população diminui drasticamente o número de casos graves e
de fatalidades, aliviando assim a necessidade de medidas austeras de controle das ondas e o
risco de colapso do sistema de saúde. Além disso, a imunização da população é parte central no
processo de superação da crise.
Publicar com cuidado
Durante a pandemia, vários países enfrentaram consequências em relação à
disseminação de fake news que resultaram, entre outras coisas, em resistência à vacinação por
uma considerável parcela da população (HORTON, 2021). Diante de um momento de angústia,
quando tantas pessoas buscam informações para entender a crise e saber como agir, as fake
news se valem disso para disseminar teorias da conspiração envolvendo armas biológicas
chinesas, tratamentos sem nenhuma base científica como água com limão ou óleo de coco para
8
5 ações que começam com a letra K em vietnamita.
9
5 ações que começam com a letra T em vietnamita.
10
No Vietnã, as residências nas grandes cidades são estreitas e verticalizadas, compartilhando entradas em
labirintos formados por becos, característica que dificulta o acesso das equipes médicas.
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matar o vírus (ROCHA et al., 2021), além de medicamentos com potencial risco para a saúde
se usados sem acompanhamento médico, como é o caso da Ivermectina (FDA, 2021). A
desinformação se tornou um risco à saúde das pessoas e um grave problema para a
implementação de medidas de combate ao vírus, ao ponto de alguns pesquisadores passarem a
considerar esse aspecto uma espécie de pandemia paralela, o que levou Hua e Shaw a
cunharem o termo “infodemic(HUA; SHAW, 2020). O governo do Vietnã procurou fortalecer
seus canais oficiais de informação e promoveu uma campanha massiva contra fake news, além
de mudanças na legislação que estabeleceram multa
11
por sua disseminação (PHUONG;
PEARSON, 2020
)
.
Segundo Le et al. (2021, p. 4), “cidadãos mostraram uma elevada aceitação da vacina
(98%) e alta adesão a métodos preventivos pessoais e comunitários, que também ajudaram a
evitar que a COVID-19 se espalhasse ainda mais”.
Capacidades estatais para enfrentamento da COVID-19
Usando a análise das capacidades estatais a partir de suas dimensões, é possível
identificar sua influência para realização da estratégia de resposta à COVID-19 desenvolvida
pelo governo do Vietnã.
Em relação à dimensão coerciva, a crise causada pela COVID-19 não exigiu, no Vietnã,
o uso de força contra ameaças externas ou internas. Apesar de algumas tensões sociais terem
sido noticiadas, como a crise causada pela escassez de combustível (NGUYEN; SAKET, 2022),
que gerou protestos ocasionais e várias intervenções no mercado pelo governo. O país possui
certos atritos sociais entre grupos étnicos e religiosos, como os Hmong no noroeste,
Montagnards/Degar e protestantes no planalto central e Khmer Krom nas regiões do sudoeste
do país, no entanto, o Partido Comunista do Vietnã (PCV)
12
estabeleceu com sucesso o
monopólio do uso da força.
Sobre a dimensão fiscal, como foi observado, o Vietnã vem ampliando seu investimento
em saúde pública desde a década de 1990, o que indica certa capacidade de extrair recursos da
sociedade para permitir investimentos em setores específicos. A abertura da economia do país
com a política Doi Moi iniciou uma grande entrada de investimentos, que conseguiu ser mantida
por governos subsequentes e ajudou a desenvolver a indústria. Em 1990, o PIB do Vietnã era
11
A multa pode chegar a três salários mínimos no Vietnã e é específica para COVID-19.
12
Tradução livre para Đảng Cộngsản Việt Nam.
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de 6.4Bi USD, saltando para 271Bi em 2020. Mesmo com a pandemia, o Vietnã cresceu 5.2%
em 2021. Em parte, auxiliado pela saída de investimentos da China para o Vietnã, que o
Vietnã conseguiu aliviar restrições antes da China (BUSINESS STANDARD, 2022). A massiva
entrada de dinheiro estrangeiro tem permitido que a capacidade de investimento do país não
seja afetada e, sendo assim, não foi um fator de impacto negativo para lidar com a crise de
COVID-19. Segundo o Fundo Monetário Internacional (DABLA-NORRIS; YUANYAN,
2021), o país foi bem sucedido em sua política monetária durante a pandemia em 2020,
apoiando a economia com políticas de metas, contendo a inflação e mantendo taxas de câmbio
adequadas. No entanto, a corrupção ainda é um grave problema no país. Apesar de vir
promovendo medidas anticorrupção que permitiram subir 30 posições na última cada, o
Vietnã ainda ocupa a 87º posição de uma lista de 180 países no global corruption perception
índex (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2022).
Sobre a capacidade administrativa, o governo do Vietnã vem promovendo reformas e
possui um índice para avaliar o desempenho de suas províncias em um conjunto de reformas
administrativas. Segundo o VIETNAM… (2022, p. 7), “a administração estadual é capaz de
fornecer serviços públicos básicos em quase todo o país, embora a qualidade da burocracia varie
entre províncias e cidades”
13
. O relatório aponta uma rie de problemas em relação à
capacidade administrativa, entre eles: nomeação arbitrária de membros do PCV para cargos
públicos; avaliação de mérito condicionada à aprovação dos comitês do PCV, o que na prática
desmonta qualquer estrutura baseada em mérito; as relações pessoas e famílias continuam sendo
muito relevantes; existe a venda e compra de cargos públicos; e a corrupção continua um
problema, apesar de ser combatida, principalmente em grande escala. Nenhuma das principais
características listadas por Evans e Rauch (2000) como necessárias para o desenvolvimento do
estado foi encontrada de forma evidente e funcional, como concurso público, nomeações e
demissões sem influência política, promoções internas.
A capacidade transformativa contempla grandes ambições do governo do Vietnã e
recebe bastante atenção. A abertura do Vietnã seguiu algumas estratégias adotadas pela China,
entre elas, o estabelecimento de zonas livres, chamadas de Zonas de Processamento de
Exportação (ZPE), que devido à mão de obra barata atraiu investimentos estrangeiros e seus
processos de fabricação. Desde então, essas zonas passaram por várias reformas e o governo
13
The state administration is able to provide basic public services throughout most parts of the country, though
the quality of the bureaucracy varies between provinces and cities.
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segue atraindo capital e expertise estrangeira para impulsionar seu desenvolvimento industrial.
Entre 2018 e 2019, por exemplo, o Ministério da Indústria e Comércio removeu 675 de 1.215
(representando 55,5%) requisitos legais para 27 setores e indústrias sob sua gestão
(VIETNAM…, 2022). No entanto, regulamentos ambientais são constantemente violados.
Segundo o VIETNAM… (2022, p. 27), “[...] autoridades ignoraram ou até mesmo tentaram
encobrir e proteger as empresas violadoras, como evidenciado em vários desastres ambientais
na última década”.
Tratando da dimensão relacional, graças aos benefícios sociais resultantes de sua
expansão econômica, o Vietnã ingressou no ranking de países com elevado grau de
desenvolvimento humano (UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2020). No
entanto, muitas questões sociais não foram resolvidas neste processo de desenvolvimento ou
até mesmo foram intensificadas por ele. É possível citar aumento da corrupção e desigualdade,
assim como, degradação e poluição ambiental. Aumentaram também as tensões com minorias
étnicas, como os grupos étnicos Khmer resistindo a certas políticas governamentais vistas como
opressivas. Além disso, uma das características mais questionadas internacionalmente é a falta
de liberdades básicas no país e há relatos de violação de direitos humanos.
Em relação à capacidade legal, a constituição do Vietnã garante a separação dos três
poderes, no entanto, segundo o VIETNAM… (2022), essa é uma distinção meramente formal.
Na prática, todos os poderes estão sob controle do PCV. Especificamente em relação ao
Judiciário, os principais juízes são membros do PCV e vinculam suas decisões à avaliação dos
comitês do partido. De acordo com a organização Human Rights Watch
14
, “aqueles que criticam
o regime de partido único enfrentam intimidação policial, assédio, restrição de movimento,
agressão física, detenção e prisão. A polícia detém presos políticos durante meses sem acesso a
aconselhamento jurídico e submete-os a interrogatórios abusivos (HUMAN RIGHTS
WATCH, 2020). Nesse sentido, o governo do Vietnã apresenta poucas limitações legais para
intervir na sociedade, podendo remover pessoas de suas residências, autorizar empresas a
manterem seus funcionários trancados nos escritórios, impedir deslocamentos de forma
arbitrária, trancar prédios e residências, além de tantas outras medidas que seriam difíceis ou
impossíveis de realizar em países com sistemas legais que limitam o poder de intervenção do
estado. Algumas penalidades foram criadas especificamente para quem desrespeitasse medidas
14
A Human Rights Watch é uma organização não governamental fundada em 1978 e presente atualmente em cinco
continentes. A organização realiza investigações, pesquisas e promove ações em defesa dos direitos humanos.
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de prevenção contra COVID-19: o não uso de máscara em locais públicos; ocultar status de
saúde; abrir negócios não fundamentais; aglomeração de mais de 10 pessoas; espalhar fake
news; entre outras (THI, 2020).
O último aspecto que falta ser abordado em relação às dimensões das capacidades
estatais é a capacidade política. Existe votação no Vietnã, mas não existe competição entre os
candidatos. As eleições são uma mera formalidade, já que os cidadãos votam em uma lista pré-
aprovada pelo PCV. O país adota o chamado “centralismo democrático(VIETNAM…, 2022)
que permite a um membro do comitê executivo
15
dizer não para a implementação de alguma
política. No entanto, uma vez que a política é adotada, todos os membros são obrigados a apoiá-
la. Na prática, existe pouca ou nenhuma oposição no governo do Vietnã, mesmo dentro do
partido único, e suas políticas são aprovadas sem resistência. Como visto, a partir da aprovação,
não é permitida nenhuma oposição. Sobre a gestão da crise causada pela pandemia, o governo
estabeleceu o Comitê de Direção Nacional para prevenção e combate à COVID-19, liderado
pelo vice-primeiro-ministro e coordenado pelo Ministério da Saúde. O comitê conta com
membros do Ministério da Defesa Nacional, Segurança Pública, Relações Internacionais,
Educação, Gabinete do Governo, Gabinete do Comitê Central, Finanças e Planejamento.
Segundo o VIETNAM… (2022, p. 34), “todas as decisões são tomadas pelo comitê de forma
transparente e efetivamente coordenada. O sucesso do Vietnã em conter a pandemia é em grande
parte atribuível a esse mecanismo de coordenação de políticas”.
Capacidades dinâmicas do Estado para enfrentamento da COVID-19
Para identificar as ocorrências de capacidades dinâmicas, serão observadas as áreas
consideradas essenciais por Mazzucato e Kattel (2020) para o enfrentamento da COVID-19:
capacidade de adaptação e aprendizagem; capacidade de alinhar os serviços públicos com as
necessidades dos cidadãos; capacidade de governar sistemas de produção resilientes; e
capacidade de governar dados e plataformas digitais.
Capacidade de adaptação e aprendizagem
Como foi observado, o Vietnã usou sua experiência em epidemias anteriores para
direcionar seu investimento em saúde pública e formar competências e estruturas para respostas
15
Membro do Politburo no Vietnã.
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rápidas às crises sanitárias. Segundo Le et al. (2021, p. 2), “em primeiro lugar, a autoridade
vietnamita preparou um sistema de saúde preventivo potente desde a base com lições valiosas
das epidemias respiratórias anteriores, incluindo SARS (2002-2003) e gripe aviária (2009)”,
Pollack et al. (2021, p. 1) tem a mesma compreensão, afirmando que “uma das razões pelas
quais o Vietnã conseguiu agir tão rapidamente e manter a contagem de casos tão baixa é que o
país experimentou uma epidemia de síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003 e casos
humanos de gripe aviária entre 2004 e 2010”. O relatório VIETNAM… (2022, p. 32) também
confirma uma capacidade de aprendizado e adaptação quando diz que “o Vietnã confiou em sua
própria experiência antipandemia do passado, bem como no sistema de saúde local”. Com base
no que foi observado, é possível considerar que essa capacidade foi de grande relevância para
a realização e sucesso da estratégia de resposta do Vietnã à COVID-19, contribuindo para a
contenção das primeiras ondas e ganhando tempo para o processo de imunização da população.
Capacidade de alinhar serviços públicos com as demandas dos cidadãos
Essa característica apresenta certos desafios para ser analisada, já que o regime político
estabelecido no Vietnã praticamente anula a voz de qualquer oposição (mesmo interna no
partido único) e a população tem pouco espaço para manifestar suas necessidades ou desacordos
com os serviços públicos prestados. Medidas favoráveis no sentido de maior transparência e
democratização no Vietnã estão sendo adotadas, em grande parte devido a acordos de comércio
internacional que colocam cláusulas de direitos humanos, como o acordo assinado com a União
Europeia em 2020 (UNESCO, 2020). No entanto, essas medidas estão sendo avaliadas como
“cosméticase meramente “formalistas(VIETNAM…, 2022).
Especificamente durante a pandemia, a realização de lockdowns restringiu o acesso a
serviços públicos no país, no entanto, segundo o VIETNAM… (2022, p. 24), “em geral, houve
pouca interrupção no acesso a serviços públicos essenciais”. Além disso, pesquisadores do
projeto Competing Regional Integrations in Southeast Asia (CRISEA) concluíram que o
governo alcançou um alto nível de confiança da sociedade, graças às características
comunitárias da sociedade e cultura vietnamita diante de crises [...] e da política governamental
de criação de confiança por meio do engajamento social”. (DO et al., 2021, p. 5).
Capacidade de governar sistemas de produção resilientes
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Após 5 meses em queda desde o início da pandemia, as fábricas no Vietnã já começaram
a mostrar recuperação e o país, que cresceu 7% em 2018, foi um dos poucos a conseguir manter
seu PIB positivo durante a fase mais crítica da pandemia (POLLACK et al., 2021, p. 10).
Comentando esse aspecto da capacidade de produção do Vietnã durante a pandemia, o
VIETNAM… (2022, p. 4) afirma que apesar de um ambiente global desafiador e tensões
contínuas entre os Estados Unidos e a China, a economia do Vietnã mostrou resiliência;
sustentado por uma demanda interna robusta, manufatura orientada para a exportação e um
crescimento sem precedentes do setor privado”.
Além disso, o Vietnã vem sedimentando o escoamento de sua produção através de uma
série de parcerias e acordos internacionais. O país estreitou sua relação com os Estados Unidos
e China, seus principais parceiros comerciais, e assinou cooperações com a União Europeia.
Em 2007 ingressou na World Trade Organization (WTO) e em 2018 formou o
Comprehensiveand Progressive Trans-Pacific Partnership (CPTPP), acordo comercial
multilateral na região.
Capacidade de governar dados e plataformas digitais
Esse aspecto foi o mais ignorado na bibliografia analisada, que muito pouco foi
comentado sobre governança de dados no Vietnã e nenhum dos estudos destaca diretamente
essa característica como fundamental. Pollack et al. (2021, p. 2) informa apenas que o Vietnã
possui um robusto sistema de coleta de dados.
No entanto, indícios de um grande investimento em governança de dados e a aplicação
de plataformas digitais para o combate à COVID-19 estão, indiretamente, presentes em todos
os trabalhos abordados. É presumível que o controle de dados esteja na base da estratégia
adotada no Vietnã, como revela a importância que foi dada à formação de suas plataformas
digitais.
Entre os diversos APPs criados ou atualizados para ações durante a pandemia, o PC-
Covid se tornou o mais popular,
16
criado pela parceria de três ministérios do Vietnã (Ministério
da Saúde, Ministério da Segurança Pública e Ministério da Informação) e três grandes empresas
do país na área de tecnologia (BKAV, Viettel Telecom e VNPT). Característica que ressalta o
16
Informações coletadas na distribuidora de serviços digitais Google Play.
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investimento em uma simbiótica relação entre público e privado, que Mazzucato e Kattel (2020,
p.2) consideram crítica para o estabelecimento de capacidades dinâmicas. O APP é operado
pelo Centro Nacional de Tecnologia para Prevenção e Controle da COVID-19 e conta com
diversas funcionalidades: declaração médica, leitura de status médico através de QR code,
declaração de mudança ou deslocamento, informações sobre testes e vacinação, rastreamento
de contatos e de movimentação, mapa de risco de infecção de acordo com a localidade (em
tempo real), entre outras.
O QR code desempenha um importante papel, por ser de fácil consulta por autoridades
ou para acesso em localidades. Cada cidadão recebe um QR code pessoal. Também são
oferecidos os chamados QR code locais, para escritórios, supermercados, escolas, hospitais,
locais públicos, etc. Esses locais devem garantir o registro completo dos cidadãos que entram
e saem dos locais por meio da leitura do código.
Os cidadãos (e as empresas ou instituições) podem visualizar as informações detalhadas
do número de doses de vacina que foram tomadas pelo usuário. O PC-Covid também exibe os
resultados dos testes quando ficam disponíveis. Quando o usuário acusa positivo para a
presença do vírus, a tela do APP muda de verde para vermelho, indicando uma pessoa
contaminada, mesmo sem a necessidade de leitura do QR code.
Além disso, o APP permite que seus usuários acusem suspeitas de infecção de outros
usuários e denunciem problemas na implementação dos regulamentos de prevenção às
autoridades. Segundo os desenvolvedores do APP, informações sobre leitura do QR code,
declaração médica, declaração de mudança de localidade, detecção de contato próximo, e outros
dados fornecidas pelo PC-Covid são combinados em um sistema de rastreamento rápido para
concluir o rastreamento de pessoas relacionadas a um caso de COVID-19 em alguns minutos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em relação às capacidades estatais, entre as dimensões utilizadas neste estudo, aquelas
que mais se destacaram na análise foram as dimensões fiscal, transformativa e política,
enquanto aspectos de elevado nível de capacidade no Vietnã. Já as dimensões administrativa,
relacional e legal também exerceram influência, mas apresentaram indícios de um grau
duvidoso de capacidade.
A identificação de um elevado nível de corrupção e a ausência de uma administração
pública mais alinhada com certos princípios do modelo weberiano, como profissionalismo da
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carreira pública, impessoalidade e mérito como critério, chamam a atenção, pois são elementos
que podem influenciar na eficiência do estado e é suposto a presença de grande eficiência para
se lidar com crises. Apesar dos problemas de capacidade administrativa, como vimos, o Vietnã
foi bem sucedido, pelo menos inicialmente, em usar sua estrutura administrativa para
implementar sua estratégia.
Por sua vez, a capacidade envolvida na dimensão legal busca um equilíbrio entre a
liberdade de ação do estado e os direitos civis de sua população. Como o judiciário é totalmente
subordinado ao executivo no Vietnã, isso cria um desequilíbrio em relação à proteção dos
direitos de seus cidadãos. Especificamente sobre o enfrentamento de crises, o poder de
intervenção que esse desequilíbrio oferece em favor do estado pode favorecer respostas rápidas
e mais radicais, porém, com elevado risco de abusos sobre a sociedade.
A capacidade transformativa, com a impressionante industrialização do Vietnã nas
últimas décadas, apesar de ter se mostrado um dos pontos fortes no país durante a pandemia,
vem com muitos alertas sobre degradação ambiental.
Abordando agora as capacidades dinâmicas do estado, todos os atributos considerados
essenciais por Mazzucato e Kattel (2020) para o enfrentamento de pandemias foram, de fato,
identificados no estudo de caso e se mostraram como fator de relevância para o sucesso da
contenção do vírus.
É necessário destacar que a capacidade de alinhar serviços públicos com as demandas
dos cidadãos é difícil de ser avaliada devido à falta de transparência e liberdade de expressão
no Vietnã, no entanto, mesmo instituições internacionais destacaram o elevado apoio da
população às medidas adotadas no país. Ainda assim, esse aspecto necessita de uma avaliação
mais aprofundada.
Sobre a capacidade de governar dados e plataformas digitais, notou-se que, apesar das
evidências da importância dada pelo governo e elevado investimento neste sentido, a maioria
das pesquisas ignoraram a relevância desse aspecto e se mantiveram focados nos resultados que
essa capacidade possibilita, como a rapidez de identificar infectados e rastrear seus contatos. É
preciso notar que, apesar do governo justificar os dados que são coletados, existem muitas
preocupações sobre o uso desses dados.
Em relação à capacidade de governar um sistema de produção resiliente, os alertas sobre
degradação ambiental, inclusive com proteção do governo, têm um peso ainda maior aqui, pois
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para capacidades dinâmicas, como alcançar os objetivos importa tanto quanto os objetivos em
si e os problemas ambientais podem vir a custar caro ao Vietnã no futuro. Tran afirma que o
Vietnã é considerado pela The Global Climate Risk Index de 2020 como um dos países mais
afetados por alterações climáticas (TRAN et al., 2020).
É presumível que haja também influência de aspectos culturais e demográficos que
favorecem o sucesso vietnamita. O Vietnã tem uma população muito jovem (VIETNAM, 2023),
contando (em 2020) com apenas 7.8% de sua população com idade acima de 65 anos. Essa
característica tem sido usada também para explicar a baixa mortalidade por COVID-19 em
países da África (SOY, 2020). Outra característica marcante é que existe um elevado senso de
comunidade na cultura vietnamita e o uso de máscaras já era um costume bem estabelecido no
Vietnã antes do início da pandemia de COVID-19.
O Vietnã contou com grande cooperação da população; investimento prévio com
planejamento focado em respostas a crises sanitárias e em coleta e tratamento de dados; um
comitê centralizado e multidisciplinar sustentado por um governo forte; uma indústria resiliente
(que inclusive foi uma das principais produtoras de EPIs durante a pandemia); e uma gestão
fiscal flexível.
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Submetido em: 13/03/2023.
Aprovado em: 28/06/2023.