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Experiências femininas na Universidade Artigos/Articles
ExpEriências fEmininas na UnivErsidadE: violência dE gênEro
E rEsistência fEminista
Female experiences at the University: gender violence and
Feminist resistance
Natalia Silveira de Carvalho
1
RESUMO: Recentes denúncias de assédio, nas Universidades, ensejam debate e análise crítica a
partir do aporte dos estudos de gênero. Neste texto, procuro reetir sobre violência de gênero e
resistência feminista na Universidade por meio de metodologias autobiográcas, a m de relatar
experiências em dois contextos: na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho e na
Universidade Federal da Bahia. Identico que a organização feminista na Universidade é central
no fortalecimento das mulheres e desenvolvimento das políticas de prevenção e enfretamento à
violência de gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Violência de gênero contra mulheres. Feminismos. Assédio sexual. Universidade.
ABSTRACT: Recent allegations of harassment in Universities give rise to debate and critical analysis
based on the contribution of gender studies. In this essay, I try to reect on gender violence and
feminist resistance at the University through autobiographical methodologies, to report experiences
in two contexts, at the São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho and at the Federal
University of Bahia. I identify that the feminist organization at the University is central to the
empowerment of women and the development of policies to prevent and combat gender violence.
KEYWORDS: Gender violence against women. Feminisms. Sexual Harassment. University.
introdUÇÃo
Nos últimos anos, temos visto cada vez mais denúncias de assédio
sexual nas Universidades brasileiras. Desde a minha graduação em Direito (2005
a 2009) na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
no campus de Franca, tenho vivido experiências de violência de gênero no
contexto universitário e até hoje testemunhado modalidades de violência contra
 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, bolsista CAPES.
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2022.v8esp2.p59
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CARVALHO, N. S.
mulheres no âmbito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) onde cursei meu
mestrado, sou estudante do doutorado e desenvolvo outras atividades desde 2010.
Semelhante ao boom de denúncias de violência doméstica e familiar contra as
mulheres quando da promulgação da Lei n° 11.340/2006 (Lei Maria da Penha),
o que não signicou necessariamente um aumento dos casos de violência, penso
que o movimento que vivemos agora nas Universidades signica um rompimento
com o acordo tácito de silêncio sobre as múltiplas violências contra as mulheres
na vida universitária.
Falar sobre assédio sexual, na vida universitária, exige enfrentarmos
muitos problemas: o medo e o silêncio das vítimas, a negação da violência pela
comunidade e até mesmo sua naturalização nas relações acadêmicas. Não poderia
ser diferente, considerando que os espaços acadêmicos não se afastam do contexto
social em que estão inseridos. Nesse sentido, a produção de conhecimento
cientíco não exime a Universidade de ser locus de produção e reprodução
de relações de poder. Basta uma breve recapitulação da epistemologia crítica
feminista – Donna Haraway (1995), Maria Mies (1998), Sandra Harding (1996)
– para reetirmos sobre as bases sociais e históricas dos interesses de investigação
acadêmica, ou ainda, dos sujeitos legitimados a produzir conhecimento. Esta
crítica compreende que há bases epistemológicas silenciadas da ciência moderna,
como o masculinismo inerente à regra da neutralidade, fazendo com que mulheres
sigam sem alcançar a mesma legitimidade acadêmica que os homens.
Fui incentivada a reetir sobre as experiências universitárias das
mulheres, especialmente sobre nossas (sobre)vivências da violência de gênero
(POSSAS, 2015, 2017) no âmbito do projeto de extensão desenvolvido pelo
Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG), da UNESP campus
Marília. Nessa perspectiva, sigo a proposta de organizar um breve relato de
experiência considerando o contexto de violência contra as mulheres que
testemunhei na graduação na UNESP, como também minha experiência atual com
violência de gênero, notadamente assédios sexuais, no contexto da Universidade
Federal da Bahia. A m de organizar meu relato, valho-me de metodologias
autobiográcas que permitem reexões e construções narrativas posicionadas da
experiência histórica e em primeira pessoa (hooks, 2017; PASSEGI; SOUZA;
VICENTINI, 2011). Além disso, também me vali de fonte documental para
melhor contextualização das minhas memórias mais longínquas relacionada às
violências sexuais contra universitárias na UNESP campus Franca, buscando em
reportagens veiculadas à época pelos jornais Folha Ribeirão e Folha de São Paulo.
O início da minha graduação em Direito na UNESP foi marcado por
uma experiência coletiva de medo do estupro que as estudantes daquele campus
universitário vivenciaram, graças a uma série de ataques a unespeianas (e a
outras estudantes de outras Universidades da cidade) no início dos anos 2000.
Aqueles estupros em série ocorreram antes do meu ingresso como estudante da
UNESP, mas marcaram minha vida universitária pelo medo e sentimento de
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vulnerabilidade. Como procurarei relatar, além de ser uma experiência de medo,
esta também foi uma vivência de solidariedade e cuidado entre mulheres, assim
como minhas experiências mais recentes acompanhando situações de assédio
sexual tem feito com que eu reviva aqueles momentos. Por isso a necessidade de
contar um pouco do que nós, as unespianas de Franca, vivemos no início dos anos
2000, a partir do olhar imbricado em um novo e atual contexto de denúncia e
organização de mulheres contra os assédios na vida universitária.
ExpEriência UnEspiana
Quando me matriculei na UNESP, em 2005, minha primeira semana
foi marcada pela Semana do bicho, evento organizado pelas entidades estudantis
que tinha em sua programação apresentação dos grupos de pesquisa e extensão,
palestras sobre temas relevantes ao contexto universitário e festas; foi neste
contexto que conheci as histórias de violências sexuais contra mulheres naquele
campus. Lembro-me bem de uma atividade especíca da semana de recepção
sobre a série de estupros contra universitárias da UNESP de 2000 a 2004.
Naquele momento, estudantes deram seu testemunho; não se tratava da fala
das vítimas dos estupros, mas de amigas, colegas, companheiras de república e
vizinhas das vítimas, ou até mesmo mulheres que conheciam garotas que viveram
nas casas onde ocorrera alguma daquelas violações. Pelo passar dos anos, não
posso me lembrar com exatidão das falas, mas até hoje posso sentir o medo e
insegurança que me tomaram naquele momento. Eram muitos os conselhos das
nossas veteranas: não ande sozinha, durma com a porta do quarto trancada, faça
aulas de defesa pessoal. Hoje penso que as sensações que vivi naquele momento
guardam profunda relação com o clima de medo vivido pelas universitárias antes
da chegada da turma de 2005. Além disso, pela primeira vez presenciei mulheres
relatando casos de violência sexual de forma pública. As falas daquelas estudantes
encontraram a minha vivência secreta enquanto vítima de outras violências de
gênero em outros contextos.
A organização daquela atividade foi um exercício de solidariedade
feminista com as vítimas dos estupros, tendo em vista que o sigilo de suas
identidades foi mantido e as narrativas de violência não foram relativizadas nem
distorcidas, o que era relevante considerando que vivíamos em um contexto de
culpabilização das vítimas. Antes disso, em 2003, as estudantes organizaram um
ato exigindo providências junto ao poder público. Segundo o jornal Folha de São
Paulo (BALAZINA, 2003), as manifestantes seguravam faixas dizendo: “Chega
de descaso”, “Polícia não é só para acabar com festa: queremos solução”, “Mais
rondas noturnas” e “Chega de viver com medo”.
Em Franca, a maioria de nós vivia no centro da cidade, em casas antigas
que abrigavam repúblicas femininas ou masculinas, sendo poucas as moradias
mistas. As violências possuíam um enredo semelhante: o agressor conseguia
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CARVALHO, N. S.
invadir a residência, se valendo de alguma falha na segurança ou a invadia pelo
acesso ao sótão, comum naquelas construções. Naquela época, suspeitava-se que
o agressor atacava em residências que já havia frequentado de alguma forma. Uma
vez invadido a casa, o agressor se apossava de facas ou outros objetos que poderia
ameaçar sicamente a vítima e se trancava em seu quarto, enquanto ela estivesse
dormindo. Muitas de nós, com medo, nos trancávamos em nossos quartos,
algumas dormiam com facas ou garrafas de vidro ao lado de suas camas. Mesmo
não conhecendo as identidades das vítimas, sabíamos ao menos que algumas
delas haviam deixado a cidade, não sabíamos muito sobre a continuidade de seus
estudos, ainda que houvesse a informação que uma ou outra aderira ao regime
domiciliar.
Além dos casos envolvendo estudantes da UNESP, havia ainda outros
contra estudantes de outras Universidades, residentes em bairros distintos, cujos
casos guardavam semelhança entre si: estupros ocorridos dentro das casas das
vítimas, em que o agressor utilizou objetos da própria residência para coação
física. Havia ainda um caso de estupro contra uma funcionária pública federal,
dentro de seu apartamento; o agressor, neste caso, teria escalado o edifício pelo
lado de fora e invadido sua unidade. Esses não eram os únicos casos de estupro
em Franca naquela época, mas chamavam atenção pela ritualística; além disso,
mesmo as unespianas não sendo as únicas vítimas e ter havido, naquela época, a
suspeita de que os vários casos parecidos não poderiam ter sido cometidos pelo
mesmo agressor, tanto a comunidade universitária quanto a mídia local e estadual
tratavam o caso como uma série de ações promovidas por apenas um indivíduo
batizado de “maníaco da UNESP”
2
.
Esses estupros que marcaram a história
3
da UNESP Franca ocorreram
entre 2000 e 2004. Ocorriam ainda outras situações de violência de gênero contra
mulheres no campus universitário, como homens se escondendo nos banheiros
femininos para nos observarem dentro das cabines sanitárias; havia também
um homem
4
que andava de bicicleta pelas imediações do campus, com o rosto
coberto por uma camiseta, que assediava sicamente as mulheres, passando a
Esta denominação pode ser encontrada em notícias veiculadas pelos jornais Folha de São Paulo e Folha Ribeirão.
No veículo de imprensa CGN, da cidade de Franca, foi possível encontrar a denominação “Tarado da UNESP”.
Foi por meio da amostra de DNA coletada do lençol de uma das vítimas que a polícia civil identicou o
professor de dança que atuava no campus universitário, vinculado a um projeto de extensão da Universidade,
não sendo docente formal da instituição. Este é um dado relevante para pensarmos os aspectos relacionados à
responsabilidade institucional da Universidade, ainda mais em um contexto em que seu nome foi vinculado a
estupros em série. A identicação ocorreu no ano de 2005 e me lembro que todos os casos de estupro contra
as estudantes da UNESP foram imputados a ele, em um primeiro momento. Não me lembro de detalhes da
investigação nem da ação penal e por esta ter se dado na modalidade de processo físico, não tive ainda a chance
de consultar os autos para recuperar maiores informações. De todo modo, ele era alguém conhecido no campus
que se envolvia em atividades do cotidiano universitário.
Sabíamos que eram homens porque alguns daqueles que se escondiam no banheiro eram vistos, mas não me
lembro de nenhum ser capturado. Além disso, sobre o homem da bicicleta, também era visto, mas como man-
tinha o rosto coberto não era possível reconhecê-lo.
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Experiências femininas na Universidade Artigos/Articles
mão em suas partes íntimas. Tudo o que soube desse homem em especíco foram
de relatos de estudantes da UNESP Franca sobre essa violação, além, também,
de ter sido vítima de sua atuação. Ademais, era comum colegas relatarem terem
sido assediadas por homens que, dentro de seus carros, diminuíam a velocidade,
acompanhado as estudantes em sua caminhada pela rua pública e ao chamá-las,
como se fossem pedir alguma informação, mostravam seu pênis ereto.
Naquele contexto, também vivenciamos situações de assédio em
nossas relações acadêmicas com professores. No curso de Direito, era notório
que um determinado professor assediava sexualmente mulheres em sala de aula,
o docente agia sem constrangimentos na frente de todos. Cheguei a presenciar
situações em que ele interrompeu sua aula quando alguma estudante entrava
na sala e a acompanhava com o olhar, fazendo questão de performar por sua
expressão facial e corporal desejo sexual, além de verbalizar comentários sobre o
corpo da estudante, o que ele mesmo e muitos de nossos colegas consideravam
meros elogios.
Em relação a essas últimas situações, não posso me lembrar de nenhuma
atuação institucional para coibir as ações daquele docente, como também não me
recordo de qualquer mobilização estudantil de denúncia sobre esses fatos. Tanto
pode ter havido alguma denúncia, que foi processada de maneira sigilosa, quanto
pode ser o caso das vítimas terem optado por não denunciarem tais situações.
Lembro-me, no entanto, dessa informação ser compartilhada entre mulheres e
o assunto ser debatido em algumas rodas informais, em que outras estudantes
expressavam solidariedade e compartilhavam repulsa pelo docente, que todas as
discentes do curso sabiam quem era.
ExpEriência Baiana
A partir da atuação como advogada em uma organização não
governamental voltada ao atendimento gratuito a mulheres em situação de
violência, a Tamo Juntas, é que tenho acompanhado alguns casos de assédio na
Universidade, seja por meio do exercício da advocacia, seja pela atuação como
militante feminista. O relato que apresentarei neste tópico se vale dessas duas
dimensões de atuação, ambas pautadas pela solidariedade feminista.
Em casos recentes de assédio sexual e sexista, no contexto da
Universidade Federal da Bahia, compartilho com as vítimas suas preocupações
em como sobreviver à violência sofrida. Nos casos que conheci, ouvi as vítimas
falarem sobre a impossibilidade de permanecerem no mesmo espaço e contexto
que seus agressores, o que as fez promover métodos de sobrevivência que implicam
em perdas de conquistas pessoais. Nestes casos, acompanhei mulheres sopesarem
suas ambições e optarem pela preservação de sua integridade emocional, apesar da
dor de perder projetos importantes para suas vidas.
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CARVALHO, N. S.
Em outros casos, acompanhei decisões pela não denúncia em situações
em que as vítimas conseguiram se afastar do autor do assédio, sem a necessidade
de publicizar a violência. Até hoje, não testemunhei qualquer caso em que a vítima
mantivesse vinculação com seu assediador por alguma necessidade acadêmica.
Mesmo sendo uma dualidade conhecida, a escolha entre a denúncia e
o silêncio detém nuances exploradas pelas sobreviventes, implicando em escolhas
em processo: se haverá ou não uma denúncia, se ela será apresentada sozinha,
se haverá busca de apoio do movimento estudantil, se as vítimas optarão pela
divulgação pela mídia dos casos denunciados, como contarão para suas famílias,
quais suas pretensões acadêmicas futuras naquele espaço, dentre tantas outras.
Neste sentido, compreendo que a opção pela não denúncia é uma forma
encontrada pelas vítimas de sobreviver à violência, tendo em vista a naturalização
das hierarquias de gênero por nossa sociedade. Um dos aspectos deste fenômeno
que tem sido denunciado pelo movimento feminista e campanhas internacionais
contra o assédio sexual, como o Me too e a Marcha das vadias, é a revitimização da
denunciante, ou seja, a articulação de violências pelas instituições estatais e pelo
senso comum no sentido de culpabilizar a vítima pelo que sofreu, o que acaba por
beneciar os autores das violências.
A naturalização da violência também parece estar introjetada nas vítimas,
considerando que estas presumem que a denúncia trará repercussões negativas
para si, do ponto de vista moral e prossional, além de presumirem ainda que
enfrentarão obstáculos institucionais na Universidade relacionados à chance de
sofrerem revitimização. Se considerarmos a estrutura do processo administrativo,
é seguro dizer não possuirmos instrumental especíco para casos de assédio nas
Universidades, pois de maneira geral as vítimas necessitam recontar o ocorrido
várias vezes, em diferentes instâncias, implicando em violência institucional.
Além disso, são escassos protocolos especícos de prevenção e enfrentamento
ao assédio, ou ainda meios de denúncia de modo a garantir o acolhimento das
vítimas.
Um caso que veio a público na Faculdade de Direito da Universidade
Federal da Bahia, contou com múltiplas denúncias anônimas junto à Ouvidoria da
Universidade; o movimento de denúncias foi articulado por um coletivo feminista
daquela unidade, o Coletivo Madás, que também mobilizou campanha contra os
assédios promovidos pelo docente denunciado. Apesar da Universidade ter aberto
processo administrativo, o professor aposentou-se antes de qualquer condenação.
Compreendo a iniciativa do docente como resposta à pressão política que as
estudantes mobilizaram e apesar de sua aposentadoria ter impedido formalmente
qualquer outro desfecho ao processo instaurado senão sua extinção e frustradas as
expectativas sociais de punição, entendo que as estudantes daquela Faculdade de
Direito foram vitoriosas.
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Experiências femininas na Universidade Artigos/Articles
rEpEnsando a UnivErsidadE
Hillary Hiner e Ana López Dietz (2021) consideram que o Tsunami
feminista chileno ou Mayo feminista fortaleceu o movimento contra assédio
sexual, no contexto universitário, e promoveu a criação de uma rede feminista
intergeracional em torno do tema. Ressaltam que até a denúncia dos casos de
assédio pelos coletivos feministas não havia no Chile protocolo contra assédio
assexual na educação superior. O protagonismo dos coletivos feministas no
Brasil na construção de medidas de enfrentamento ao assédio nas Universidades
é reconhecido na literatura especializada (POSSAS, 2017; BANDEIRA, 2017),
em conexão com as experiências narradas neste texto e outras articulações de
mulheres nos espaços acadêmicos. Entretanto, não se trata de relação de causa e
consequência a produção de protocolos institucionais e a mobilização feminista,
havendo outros elementos de contexto a consideramos quando da análise da
aderência institucional às pautas feministas.
No cenário brasileiro, tanto identicamos a perda de autonomia
universitária nos últimos anos, considerando a interferência do governo federal
na escolha dos Reitores em algumas Universidades, quanto retrocessos na política
de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres desde a extinção da
Secretaria de políticas para as mulheres antes vinculada à Presidência da República.
Longe de esgotar a análise conjuntural da Universidade brasileira desde o golpe
de 2016 e intensicação de uma agenda de costumes abertamente defendida pelo
atual governo, que tem no centro de sua política questões de gênero e sexualidade,
identica-se contexto desfavorável à defesa dos direitos das mulheres.
Diferente do Chile, não possuímos protocolo contra assédio no
ensino superior produzido pelo Ministério da Educação, sendo que a edição de
protocolos ou guias como o da UNESP são iniciativas endógenas. Na UFBA,
por exemplo, já houve proposta de criação de protocolo semelhante, mas sem
avanço até o momento, mesmo que em seu âmbito existam núcleos de pesquisa
especializados em gênero e sexualidade, programas de pós-graduação nas mesmas
áreas, um curso de graduação especializado em gênero e diversidade, produção
acadêmica relevante nestes temas, revistas especializadas e coletivos feministas
atuantes em sua comunidade. Mais uma vez, produção de conhecimento parece
não assegurar que as Universidades deixem de se mostrar refratárias a uma política
de prevenção e enfrentamento à violência de gênero.
No entanto, temos vivido nos últimos dez anos a efervescência do
pensamento feminista nas Universidades brasileiras (HOLLANDA, 2017), por
meio da criação de coletivos feministas no âmbito do movimento estudantil,
grupos de pesquisa no campo dos estudos de gênero, sexualidade e feminismos,
programas de pós-graduação especícos sobre a temática, como no caso da UFBA
com o Programa de Pós-Graduação em estudos interdisciplinares sobre mulheres,
gênero e feminismos, ou com linhas de pesquisa que adotam a perspectiva feminista
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CARVALHO, N. S.
e de gênero, além de redes feministas de pesquisa. Não seria inesperado, portanto,
mudanças de posicionamento e fortalecimento das mulheres nesse contexto, tendo
em vista que as teorias feministas reconhecem a legitimidade das experiências das
mulheres como produção de conhecimento sobre as relações de gênero. Há nessa
perspectiva teórica não apenas a consideração da palavra das mulheres (ainda mais
quando vítimas da violência de gênero), sobretudo o pressuposto de gênero como
elemento que organiza as relações de poder (SCOTT, 1991).
Na graduação, não fui contemporânea de coletivos ou núcleos de
pesquisa feministas ou que adotassem a perspectiva de gênero em Franca e isso
me levou à Bahia. Hoje, acompanhando a ebulição do pensamento feminista na
Universidade, ao mesmo tempo me deparo com uma estrutura universitária que
não oferece respostas efetivas às mulheres quando denunciam violência de gênero,
especialmente em casos de denúncias de assédio sexual, ou seja, que sejam ecazes
em sua erradicação. Considerando o contexto nacional, penso não ser demais
considerar que nos encontramos na ausência de políticas neste sentido.
Sendo assim, são urgentes protocolos de atuação nas Universidades
quanto à violência de gênero, até mesmo quando sua ocorrência não se relaciona
estritamente às relações acadêmicas, tendo em vista que as assimetrias de gênero
estão por toda a parte, constituem nossas identidades e naturalizam-se nas relações
interpessoais. De um lado, a Universidade necessita de regulamentação expressa
sobre violência de gênero no contexto das relações acadêmicas, desao que
extrapola as fronteiras dos campi universitários e demanda produção legislativa
em âmbito nacional. Em outra perspectiva, ao pensarmos a Universidade
enquanto comunidade pedagógica (hooks, 2017), podemos cogitar alternativas
de prevenção e reparação voltadas aos aspectos de prevenção e acolhimento de
todas as mulheres
5
que compõe a comunidade universitária e que necessitam
sobreviver às violências.
considEraÇÕEs finais
Procurei apresentar um testemunho sobre os casos de violência
de gênero no contexto universitário a m de contribuir para o debate sobre
alternativas e soluções, considerando que as violências contra as mulheres afetam
nossa permanência na Universidade e desenvolvimento prossional. Ao não
encontrar registros da experiência francana com os estupros em série na perspectiva
estudantil, considerei relevante relatar um pouco do que me lembro, com o
propósito de colaborar com futuras investigações. Além disso, considerando a
Rero-me às mulheres por se tratar da preocupação central do texto, mas não posso deixar de mencionar que
a Universidade tem sido espaço de violência contra outros grupos vulneráveis. É relevante considerar a inter-
seccção dos marcadores sociais da diferença, tais como classe, raça, gênero e sexualidade para compreender as
desigualdades e as violência. Além disso, não é demais dizer que quando me rero a mulheres, me rero a todas
que se identicam enquanto tal.
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Experiências femininas na Universidade Artigos/Articles
urgência do diálogo, articulação e solidariedade feminista em âmbito nacional,
optei por trazer também breve testemunho das lutas feministas contra a violência
de gênero, especialmente o assédio sexual, na Universidade Federal da Bahia.
Considerando as ausências no campo das políticas de prevenção e
enfrentamento à violência de gênero, creio ser possível armar a permanência
de estruturas patriarcais na organização universitária, em uma perspectiva que
reconhece o silêncio como conivência. Todavia, por considerar a perspectiva do
conhecimento situado, analiso que os limites das políticas universitárias perpassam
pelas vozes e possibilidades reais de fala dos sujeitos interessados na transformação
das relações de gênero em perspectiva emancipatória.
Tendo em vista o movimento de denúncias de assédio, as mulheres
universitárias gritam a urgência de transformação do ambiente acadêmico
para que possamos habitá-lo sem ressalvas. Assim, são urgentes novas políticas
universitárias que se comprometam abertamente com o m da violência de
gênero em conjunto com sua comunidade universitária, especialmente com os
grupos feministas.
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