Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.8, p. 29-38, Edição Especial 2, 2022. 29
Descolonizando o olhar Artigos/Articles
DecolonizanDo o olhar análise De imagens criaDas
por coletivos Digitais contra a violência De gênero na
UniversiDaDe*
Decolonizing the gaze - analysis of images createD by Digital
collectives against genDer violence at the University
Maria Inês Almeida Godinho
¹
RESUMO: A universidade tem se mostrado um local de formas de violências relacionadas ao gênero
e suas interseccionalidades que atinge alunas, alunos e alunes. Para dar visibilidade a essas agressões,
estudantes das três universidades públicas estaduais paulistas (UNESP, USP e UNICAMP) estão
se mobilizando e criando coletivos em redes sociais digitais onde compartilham textos e imagens
- produzidas ou repostadas de outras fontes - cujo intuito é revelar sua luta em construir espaços
acadêmicos livres de discriminações. O objetivo é analisar essas peças visuais – ilustrações e
fotograas - criadas para as plataformas Facebook e Instagram, a m de compreender se essas imagens
têm a intenção de “decolonizar o olhar”, isto é, se desconstroem as lógicas colonialistas de percepção
dos corpos, dos gêneros e das sexualidades. Esta pesquisa está baseada no conceito de decolonização
do olhar, conforme descrito pelos autores latino-americanos Barriendos (2019), Léon (2012) e
Schenkler (2019; 2017;2016; 2012).
PALAVRAS-CHAVE: Violência de gênero. Universidade. Coletivos universitários. Decolonização
do olhar.
ABSTRACT: e University has shown itself a place of forms of violence related to gender and
its intersectionalities that aect all students. To give visibility to these attacks, alumnus from the
three public universities in São Paulo (UNESP, USP and UNICAMP) are mobilizing and creating
collectives in digital social networks where they share texts and images - produced or reposted
from other sources - whose aim is to reveal their struggle in building academic spaces free of
discrimination. e objective is to analyze these visual pieces - illustrations and photographs -
created for Facebook and Instagram platforms, in order to understand if these images are intended
to “decolonize the look”, that is, if they deconstruct the colonialist logics of perception of bodies,
of genders and sexualities. is research is based on the concept of decolonization of the gaze, as
described by Latin American authors, like Barriendos (2019), Léon (2012) and Schenkler (2019;
2017; 2016; 2012).
KEYWORDS: Gender violence. University. University collectives. Decolonization of the look.
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2022.v8esp2.p29
30 Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.8, p. 29-38, Edição Especial 2, 2022.
GODINHO, M. I. A.
introDUÇÃo
O objetivo principal dos coletivos contra a violência de gênero e
suas interseccionalidades criados por estudantes das três universidades públicas
estaduais paulistas (USP, UNESP e UNICAMP) é desmontar as estruturas
acadêmicas que perpetuam os abusos físicos, morais, sexuais e psicológicos
das quais alunas, alunos e alunes são alvo por parte de colegas, professores e
funcionários. Uma das estratégias para conseguir maior visibilidade para suas
lutas é compartilhar imagens que narrem essas agressões em suas páginas e pers
das redes sociais online, Facebook e Instagram.
Essas imagens também são a saída encontrada pelos estudantes para
expressar sua indignação com um problema que quase nunca é resolvido pelas
instituições de ensino, muito ao contrário. As queixas costumam ser minimizadas
ou simplesmente apagadas, seja por desinteresse em modicar a estrutura de
poder ou por receio de expor a universidade.
Neste artigo, analiso se essas imagens produzem representações
legítimas de seus corpos e sexualidades, ou seja, se elas traduzem as discriminações
e agressões sofridas na universidade, ou, se ao contrário, inconscientemente
reforçam valores e estereótipos concretizados no imaginário colonial transmitido
pela mídia e outras mediações.
Em minha percepção, estas mensagens imagéticas devem questionar a
produção de sentido do legado visual colonial, assim construindo novas formas
de “ver” a diversidade que habita a universidade, tirando-a da invisibilidade
institucional.
Decolonizar o olhar
O termo “decolonizar o olhar” surgiu da necessidade de se pensar
estratégias de desconstrução de modelos de existir impregnados no imaginário visual
pelo padrão de ser e existir eurocêntrico. Trata-se de uma proposta de criação visual
que se insere nos estudos do giro decolonial, método analítico que se volta contra
esse modelo moldado pelos colonizadores e busca as raízes desse poder que reforça
as hierarquias, e, consequentemente, as discriminações em torno dos marcadores da
diferença, entre eles o gênero, a raça, a classe social e a religião.
Como aponta Mignolo (2007, p. 29): “a virada decolonial é a abertura
e a liberdade de pensamento e formas de vida-outros (economias-outros, teorias
políticas-outros); a limpeza da colonialidade do ser e do saber; distanciamento da
retórica da modernidade e seu imaginário imperial”.
A “decolonidade do olhar” vai em direção contrária à “colonialidade do
ver”, conceito derivado da “colonialidade de poder” descrita por Quijano (2005),
assim como “colonialidade do saber” e “colonialidade do ser”. De acordo com
Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.8, p. 29-38, Edição Especial 2, 2022. 31
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Barriendos (2019), a “colonialidade do ver” estabelece um “contraponto tático
entre os outros três níveis da colonialidade,
... o epistemológico (saber), o ontológico (ser) e o corpocrático (ou corpo-
político como dene Ramón Grosfoguel). Esse contraponto abriria, a partir
do ponto de vista deste quadrívio decolonial, um novo campo de análise das
maquinarias visuais de racialização que acompanharam o desenvolvimento do
capitalismo moderno/colonial. (BARRIENDOS, 2019, p. 41)
A ideia é dar visibilidade à sociedades marginalizadas e à outros corpos,
gêneros e sexualidades que não os padrões concretizados pela “colonialidade
do ver”, conceito que designa o entrelaçamento complexo entre os saberes
eurocêntricos e a reorganização do olhar inaugurada com a conquista da América,
que, quando conjugados, produziram uma epistemologia que apagou a cultura
local e permitiu a universalização do olhar do colonizador. Para León (2012, p.
116), nesse processo, a visualidade tem profunda imbricação com as hierarquias,
não apenas geográcas, espirituais, étnicas e linguísticas, mas também raciais, de
classe, de gênero e sexual”
1
.
A “colonialidade do ver” é um dispositivo histórico que, em primeiro
lugar, intervém e condiciona a percepção e, logo depois, a consciência, priorizando
certos aspectos em detrimento de outros. Assim, o olhar colonial se articula ao
redor de diferenças visuais como a pigmentação da pele, os órgãos sexuais, etc.,
para classicar e hierarquizar a vida social, como aponta Schlenker (in RUGERI
e outros, 2019, p. 31):
Esse olhar foi treinado para buscar isso, para marcá-lo, e a partir dessa
identicação classicá-lo ao longo de uma escala social. [...] O olhar colonial
projetava e projeta o mesmo sujeito colonizador a partir da profundidade de
seus maiores temores sobre a diferença, aquilo que o angustia e o assombra,
aquilo que quer controlar para prover a si mesmo da sensação de superioridade
sobre os outros e o mundo.
Decolonizar as imagens, portanto, propõe repudiar as lógicas implícitas
no olhar que aprendemos a assimilar do ponto de vista colonial. Isso inclui a
representação dos corpos, do gênero e das sexualidades a partir da desconstrução
dos padrões estéticos estabelecidos pela colonialidade.
Relações sociais pedem equidade, por isso, minha preocupação em
examinar se as imagens dos coletivos universitários expõem essa equivalência. A
dinâmica da representação do Outro, da diferença, ultrapassa a simples criação
de uma peça visual e se transforma em uma atitude de questionamento, ou, ao
contrário, de (re) armação da lógica colonial. Para Schlenker (2017, p. 392), as
Tradução própria de: “... no sólo geográcas, espirituales, étnicas, lingüísticas, sino también raciales, de clase,
de género y sexuales”.