Lukács e a aplicabilidade do método dialético materialista na constituição do ser social
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.8, n.1, p. 73-96, Jan./Jun., 2022
LUKÁCS E A APLICABILIDADE DO MÉTODO DIALÉTICO MATERIALISTA
NA CONSTITUIÇÃO DO SER SOCIAL
LUKÁCS AND THE APPLICABILITY OF THE MATERIALIST DIALECTIC
METHOD IN THE CONSTITUTION OF SOCIAL BEING
Rafael
de
Almeida
Andrade
1
Renan
Araujo
Kell
2
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre um dos traços mais marcantes
da teoria marxista: o conceito de materialismo histórico. Em tempos de contra intelectualidade
e irracionalismo exacerbado, o filosofo György Lukács se faz extremamente necessário e atual em
nosso tempo presente. Iremos abarcar como Lukács compreende e aprofunda o método proposto
por Karl Marx através de seu refinamento e desenvolvimento teórico buscando sempre uma
trajetória clara entre suas obras História e consciência de classe e sua obra máxima Para uma ontologia
do ser social.
Palavras-chave
:
Lukács.
Método
dialético.
História
e
consciência
de
classe.
Ontologia
do
ser
social.
ABSTRACT: This article aims to discuss one of the most striking features of Marxist theory: the
concept of istorical materialism. In times of counter-intellectualism and exacerbated irrationalism,
the philosopher György Lukács is extremely necessary and current in our present time. We will cover
how Lukács understands and deepens the method proposed by Karl Marx through his refinement
and theoretical development, always seeking a clear trajectory between his works History and Class
Consciousness and his masterpiece Towards an ontology of social being.
Keywords: Lukács. Dialectical method. History and class consciousness. Ontology of the social
being.
1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” Câmpus – Marília. Mestrando em Cncias Sociais
pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista UNESP Câmpus
Marília. Integrante do Grupo de Pesquisa “Cultura e Política do Mundo do Trabalho”.
2 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” Câmpus – Marília. Mestrando em Ciências Sociais
pelo Programa des-graduação em Cncias Sociais da Universidade Estadual Paulista UNESP Câmpus - Ma-
rília. Editor da Revista Aurora e Colunista do Jornal Balaiada.
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2022.n1.p73
ANDRADE, R. A.; KELL, R. A.
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INTRODUÇÃO
Buscaremos delinear sinteticamente o desenvolvimento intelectual de
Lukács aos patamares mais elevados de sua teoria materialista, ao qual passa pela
crítica à tradição neokantiana, a crítica à filosofia hegeliana e sua autocrítica aos
seus escritos anteriores à 1930, alcançando seus estudos de maturidade dispostos
em sua obra xima intitulada Para uma ontologia do ser social
3
.
Em um pequeno artigo autobiográfico datado de 1933 intitulado
Meu caminho para Marx, Lukács descreve sua trajetória filosófica aos quais
perpassou ao longo de sua vida. Os caminhos intelectuais de Lukács passaram
pela tradão neokantiana (tradição hegemônica entre os intelectuais alemães do
início do culo XX) onde aceitava a imanência da consciência sem qualquer
exame crítico, tomado pela posição meramente gnosiológica da constituição da
consciência de classe. Porém a trajetória neokantiana dura pouco, em 1914-15
Lukács publica Teoria do romance, contendo grandes traços da sua passagem
do idealismo subjetivo ao idealismo objetivo, afirmando que “Hegel adquiriu
para mim uma importância cada vez maior, em particular a Fenomenologia do
Espírito (LUCS, 1983, p. 2) somente em 1923 com a publicação de História
e consciência de classe (HCC) que o autor coma a superar seus traços idealistas
objetivos de Hegel afirmando que:
Apesar da tentativa, consciente, de superar e “eliminar” Hegel através de
Marx, problemas decisivos da dialética foram resolvidos nesta obra de maneira
idealista (dialética da natureza, teoria do reflexo etc.). (LUCS, 1983, p. 2).
Fica evidente que a trajetória de Lukács pós a década de 30 foi marcado
por seus estudos feitos dos Manuscritos Ecomico-filoficos (1844) de Marx
no Instituto Marx-Engels-Lenin em Moscou. Culminando mais tarde em sua
autocritica a concepção de “reificação”
4
desenvolvidas em seu livro História e
consciência de classe (1923), reparação essa que em nosso entendimento marca
definitivamente sua transição ao materialismo dialético de Marx-Engels.
A identificação de Lukács com o marxismo significou uma mudança
qualitativa em seu desenvolvimento. No entanto, devemos esclarecer que seu
desenvolvimento não aconteceu de modo repentino como uma ruptura radical,
ao contrário, as raízes da mudança e seu trânsito de suas primeiras obras: do
neokantismo, para o hegelianismo e posteriormente para o marxismo, devem ser
buscadas
muito
antes,
em
sua
síntese
dialética
na
juventude,
e
nas
tensões
internas
3 Para uma ontologia do ser social é uma obra de introdução a Ética, projeto este ao qual Lukács não chegou a
escrever. A complexidade da “Ontologia de Lukács é tamanha que o autor escreveu Prolemenos para uma on-
tologia do ser social (1984) com o intuito de evidenciar determinados conceitos dispostos em sua Ontologia que
poderiam ser melhor explicados. Tal obra não possuiu o objetivo de reformular a essência de Para uma ontologia
do ser social, tendo como único e exclusivo objetivo fazer-se compreendido.
4Trataremos sobre os conceitos de reificação e/ou estranhamento nospicos subsequentes a este capítulo.
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desta ruptura. Ademais, os críticos de Lukács não colaboram para uma avaliação
objetiva de seu esforço teórico, Lukács foi por muitas vezes incompreendido, ou
intencionalmente deformado, raramente Lukács recebeu dos estudiosos de sua
obra um tratamento equilibrado. (NETTO, 1983; MÉSZÁROS, 2013).
A Revolução de Outubro 1917 revelou-se para Lukács como resposta
para seus conflitos internos, ou seja, o jovem Lukács conseguiu enxergar naquela
experncia, uma alternativa de ruptura das determinações da sociedade burguesa,
da qual ele manifestava profunda repulsa, como ele mesmo manifesta no
prefácio de A teoria do Romance: “esse repúdio da guerra [1914] e, com ele,
da sociedade burguesa da época era puramente utópico; nem sequer no plano
da intelecção mais abstrata havia na época algo que mediasse minha postura
subjetiva com a realidade (LUKÁCS, 2009, p.8). Dessa forma Lukács coloca os
“pés” na realidade concreta e encontra no proletariado o sujeito dessa mudança,
que anteriormente ele não era capaz de enxergar pelos seus pressupostos idealistas
e do “conflito entre valores autênticos e o mundo (capitalista) inautênticos” o
que tornava seu pensamento trágico, pois essa contradição era indissolúvel
(LÖWY, 1998, p. 134). Assim para Lukács a Revolução Russa lhe apresenta uma
possibilidade radical e real para mudança, e faz com que em dezembro de 1918
ele entre no Partido Comunista Húngaro e do qual nunca mais sairá.
As obras de Lukács produzidas ao longo de mais de cinco décadas e
que perpassam uma evolução teórica e ideológica muito complexa, constitui
uma problemática gigantesca no pensamento filosófico do século XX. O
desenvolvimento intelectual de Lukács realizou-se através de numerosas
contradões e rupturas, a relação dialética entre continuidade e descontinuidade
é traço notório em sua obra, o que confere uma grande divergência entre os
estudiosos da obra de Lukács, sua evolução anterior e posterior são extremamente
conflitantes, só há unanimidade que ao fim da Primeira Guerra Lukács aderiu ao
marxismo (NETTO, 1983).
Lucs (2003, p. 30) em seu prefácio de 1967, aponta que em HCC
nem todas as ideias estavam erradas, “creio que se pode encontrar ainda várias
ideias igualmente corretas”. Mazzeo (2011, p. 149) aponta que HCC evidencia
as infinitas possibilidades anaticas da realidade posta pelas categorias dialético-
materialistas presente no conjunto da teoria social marxiana, exatamente centradas
em seu “método”. é posvel notar o esforço de expor as categorias da diatica
em seu movimento real, objetivo. claras sinalizações de uma compreensão
ontológica do ser social, o pprio Lukács evidencia isso no mesmo prefácio:
Também não se pode negar que muitas passagens procuram mostrar as
categorias dialéticas em sua objetividade e seu movimento ontogico efetivo e
que por isso, apontam na direção de uma ontologia autenticamente marxista
do ser social (LUKÁCS, 2003, p. 30).
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É exatamente sobre essa trajetória que desenvolveremos o presente
artigo, porém por questões metodológicas não abarcaremos sua transão de uma
escola filosófica a outra através de suas várias obras, optamos por fazê-lo através
das obras História e conscncia de classe e Para uma ontologia do ser social, está
última por ser a obra que carrega todos os traços de suas transições intelectuais,
constituída através da crítica, ou seja, a ontologia de Lukács se torna ao mesmo
tempo um acerto de contas com a própria superação intelectual do autor, assim
como uma crítica mordaz as tradições neokantiana, hegeliana e a maturação de
suas apreensões das obras marxianas.
Buscaremos nos moldes de nosso estudo transcorrer as passagens
mais consideráveis das críticas feitas aos neokantianos por Lukács levando em
consideração a constituição da crítica ontológica à concepção de mundo
meramente gnosiológica. Assim como a crítica feita à concepção do alemão Nicolai
Hartmann (1882-1950) quanto a sua ontologia da natureza, e perpassando por
duas categorias fundamentais no que tange o método de Lukács, como se torna
posvel compreender as relações sociais através da relação sujeito/objeto (intentio
recta
intentio
obliqua).
E
finalizando
a
breve
introdução
ao
qual
se
faz
necessária
a
crítica ao idealismo hegeliano antes do estudo feito por Lukács à teoria da
economia-política de Marx, precisamente a concepção ontológica de Marx.
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE: MÉTODO DIALÉTICO E
REIFICAÇÃO
Considerada por muitos como a maior obra filosófica marxista
do século XX, as discussões acerca de História e Consciência de Classe (HCC)
continuam até nossos dias, alimentadas por traduções, reedições e críticas, que
apesar de variadas polêmicas, “repousam sobre a base comum de materialismo
vulgar, cientificismo positivista e ortodoxia dogmática”. Mas de qualquer forma,
esse contínuo interesse e o debate que é extremamente atual, confirmam a riqueza
extraordinária do texto publicado em 1923 (LOWY, 1998, p. 205).
Em linhas gerais, o jovem Lukács manifestava uma repulsa contra a
forma de vida da sociedade burguesa, e as formas predominantes de fragmentação
capitalista, porém com soluções dadas por ele, de postulados de cater abrangente
e inflexível (o rigorismo ético). Em A teoria do romance, o conceito de totalidade
foi o princípio regulador abstrato de Lukács, embora, ele tivesse consciência
da importância crucial desse conceito. Mas foi em HCC que ele conseguiu,
pela primeira vez, operar com a categoria de totalidade concreta e a de mediação.
(VEDDA, 2015; MÉSZÁROS, 2013).
O que distingue o marxismo das cncias burguesas, não é o predomínio
da economia na explicação da hisria, mas o ponto de vista da totalidade concreta,
a superação da mera aparência das coisas. “A categoria da totalidade, o domínio
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universal e determinante do todo sobre as partes constituem a esncia do método
que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento
de uma ciência inteiramente nova” (LUKÁCS, 2003, p. 105). Lukács ainda segue
afirmando:
A ciência proletária é revolucionária não somente pelo fato de contrapor
à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, mas, em primeiro lugar,
devido à essência revolucionária do método. O domínio da categoria da
totalidade é o portador do princípio revolucionário na ciência (LUKÁCS,
2003, p. 105-106).
Dessa forma a totalidade não determina, todavia, somente o objeto,
determina também o sujeito do conhecimento, ou seja, Lukács sinaliza que as
relações sociais são determinadas historicamente e se expressam na realidade tanto
nas relações de produção, quanto na forma que o ser social apreende essa realidade,
importante salientar que o jovem autor ao considerar a consciência como produto
da materialidade do real, ultrapassa o solipsismo e a consciência como mero estado
psicológico. A cncia burguesa exerce papel fundamental para incompreensão da
totalidade social, pois ela ao partir do ponto de vista do indivíduo isolado,
consegue atingir fatos desconexos, concebidos abstratamente de forma parcial.
“A totalidade pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo
uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar
o objeto como totalidade” (LUKÁCS, 2003, p. 107).
Lukács possibilita um salto substantivo quando identifica que a
“totalidade concreta”, é a categoria fundamental para compreensão da realidade
e a concretiza como um “processo histórico-social (SZÁROS, 2013). Isto é:
Mudaas contínuas das formas de objetividade de todos os fenômenos sociais
em sua ação recíproca, dialética e contínua, e o surgimento da inteligibilidade
de um objeto a partir de sua função na totalidade determinada na qual ele
funciona fazem com que a concepção da totalidade seja única a compreender a
realidade como devir social (LUKÁCS, 2003, p. 85 grifos do autor).
Lukács foi responsável por recolocar a categoria da totalidade novamente
em evidência, por um lado, o suposto cientificismo revisionista, e por outro, o
marxismo vulgar da III Internacional colocaram no esquecimento aquilo que era
de fato central na posição metodológica nas obras de Marx. “A categoria hegeliana
da totalidade oposta à visão fragmentária cientificista, e a categoria marxista da
alienação estavam inteiramente reabilitadas e se encontravam desenvolvidas com
uma força dialética de extraordinária intensidade”. Assim Lukács não um
salto qualitativo acerca da compreensão da realidade, como vai além das visões
fragmenrias e mecânicas que reproduziam a realidade social. O filósofo húngaro
“estabelece um vínculo entre a possibilidade de conhecimento e a situação de
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classe”. E a partir desse vínculo, estabelece a possibilidade de conhecer a sociedade
como uma totalidade histórica. (TERTULIAN, 2008, p. 45; FREDERICO,
1997, p. 12).
Trata-se de destacar os fenômenos de sua forma mais imediata, ou seja,
de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados ao seu núcleo
e a sua essência, para assim serem compreendidos. Por outro lado, trata-se de
compreender o caráter de aparência dos fenômenos que emergem na realidade
social, porém devemos entender essa dupla determinão, isto é, da necessidade
de considerar as manifestações imediatas dos fenômenos, e o reconhecimento
da superação simultânea da imediaticidade, que é o que constitui justamente a
relação dialética (LUKÁCS, 2003).
Somente nesse contexto, que integra os diferentes fatos da vida social
(enquanto elementos do desenvolvimento histórico) numa totalidade, é que o
conhecimento dos fatos se torna possível enquanto conhecimento da realidade.
Esse conhecimento parte daquelas determinações simples, puras, imediatas e
naturais (...), para alcançar o conhecimento da totalidade concreta enquanto
reprodução intelectual da realidade. Essa totalidade concreta não é de modo
algum dada imediatamente ao pensamento. “O concreto é concreto diz Marx,
“porque é síntese de várias determinações, portanto, a unidade dos múltiplos
(Ibidem, p. 76-77, grifos do autor).
Assim Lukács se contrapõe a um empirismo exacerbado que dominava
o marxismo naquele momento, de forte influência positivista, sinalizando para a
vocação do sujeito revolucionário de transcender a imediaticidade por meio de
um processo de múltiplas mediações, ou seja, uma compreensão profundamente
dialética. Lukács faz emergir a especificidade irreduvel do ser social em relação
ao ser da natureza,acentuando o cater essencialmente mediatizado do trabalho
da subjetividade” (TERTULIAN, 2001, p.31).
Os sistemas parciais, dispersos e isolantes da sociedade burguesa, isto
é, a fragmentação do indivíduo dado pelo sistema capitalista, nos leva a um
obscurecimento do real, o que, pelo contrário,o acontece com a dialética. Além
de insistir na unidade concreta dos fenômenos sociais, desmascara essa ilusão
produzida pelo capitalismo. Porém a dialética não é pura e simples epistemologia
e ou apenas um ato gnosiológico, pelo contrário ela atua em unidade entre teoria
e prática (LUKÁCS, 2003).
Para Lukács, a vida social capitalista engendra uma positividade dos
fenômenos sociais que mistifica a sua íntima essência: eles tomam a aparência
de coisas (reificação) ultrapassar esta superfície fetichizada, no plano do
conhecimento, é possível a um pensamento articulado à ação que, ela
mesma, queira ultrapassar os quadros da vida social capitalista. Ou seja: a
diatica do marxismo se sustenta sobre uma prática revolucioria do real
(daí a unidade necessária entre teoria e prática) (NETTO, 1983, p. 41).
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Lukács dessa forma estabelece um fator extremamente importante
para satisfazer o problema da “imediaticidade-mediações-totalidade”, que é na
capacidade da “atividade prático-crítica” do sujeito. Somente através da atividade
prático-crítica podemos “encontrar essas mediações complexas [...]”, que nos
permitirão chegar à forma dada historicamente concreta da sociedade capitalista
como um todo, isso é, apreender dialeticamente as múltiplas determinações das
esferas específicas cultura, arte, política, ética etc., (MÉSZÁROS, 2013, p. 62).
Dessa forma száros (2013, p. 62) afirma:
Se a “desmistificação” da sociedade capitalista, por conta do caráter fetichista
de seu modo de produção e troca, tem de partir da análise da economia, isso
não quer dizer que os resultados de tal investigação econômica podem ser
simplesmente transferidos para outros níveis e esferas. Mesmo no que se
refere à cultura, política, lei, religião, arte, ética etc., da sociedade capitalista,
ainda precisamos encontrar essas mediações complexas, nos vários níveis
da generalização histórico-filosófica, que permitirão chegar a conclusões
fidedignas tanto sobre a forma ideogica específica em queso quanto sobre a
forma dada, historicamente concreta, da sociedade capitalista como um todo.
A ilusão fetichista do modo de produção capitalista tem por função
ocultar a realidade e envolver todos os fenômenos em uma compreensão
a-histórica, isto é, não transitório. A sociedade do capital mistifica as relações
objetivas, o mundo aparece ao sujeito apenas em sua imediaticidade “como
coisas e relações entre coisas, por isso, o método dialético, ao mesmo tempo em
que rompe o véu da eternidade das categorias, deve também romper seu caráter
reificado”, abrindo caminho para a apreensão da realidade e sua transformação
(LUKÁCS, 2003, p. 87).
O estatuto teórico do marxismo, a relação da consciência das classes com a
realidade e a sua função no conhecimento e na transformação do mundo, as
conexões entre organização (partido) e classe é este o elenco básico da
temática de HCC, desenvolvido num confronto com a tradição filosófica
clássica (Kant e Hegel), com a ciência social burguesa (especialmente Weber)
e com as deformões ideológicas diferenciadas da II Internacional (Kautsky,
Bernstein e o “austro-marxismo”). A concepção historicista que matriza o
pensamento de Lukács resgata muitos dos problemas anteriormente analisados
por ele. A própria teoria da reificão é uma nova abordagem dos modos de ser
daquele «estilo burguês de vida» que o preocupara nos seus escritos iniciais
(NETTO, 1983, p. 42).
O que Lukács es querendo dizer é que as relações reflexivas dessas
formas fetichistas que emergem de forma inevitável na sociedade capitalista,
são objetos de conhecimento, porém o objeto de conhecimento é visto apenas
em suas formas fetichizadas, não são o próprio modo de produção capitalista
e sua forma de sociabilidade, mas a ideologia da classe dominante. Assim
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Lukács expõem a necessidade das categorias de mediação, ou seja, a função
metodológica das categorias de mediação consiste na ajuda das significações
imanentes que derivam necessariamente aos objetos da sociedade burguesa, mas
que estão ausentes do surgimento imediato desses objetos, e, portanto, do seu
reflexo mental (LUKÁCS, 2003).
A qualificação dos objetos e o fato de serem determinados por categorias
abstratas da reflexão manifesta-se na vida do trabalhador diretamente como
um processo de abstração, que se efetua nele próprio, que o separa de sua
força de trabalho, obrigando-o a vendê-la como mercadoria, e visto que ela é
inseparável de sua pessoa física, o trabalhador insere a si mesmo e a ela num
processo parcial, produzido mecânica e racionalmente, que ele descobriu
pronto, acabado e funcionando sem ele, e no qual, ele é inserido como mero
número reduzido a uma quantidade abstrata, como um instrumento específico
mecanizado e racionalizado (LUKÁCS, 2013, p. 336).
Assim o trabalhador em-si, isso é, como produto hisrico da sociedade
burguesa capitalista, pode tornar-se consciente do seu ser social, o para-si,
quando torna-se consciente de si mesmo enquanto uma mercadoria. Quando
coma a ficar claro tudo o que esse imediatismo pressupõe, as formas fetichistas
da estrutura das mercadorias começam a desintegrar-se”, assim “o trabalhador
reconhece a si mesmo e suas próprias relações com o capital na própria
mercadoria”. Porém, “enquanto o proletariado for incapaz na prática de elevar-
se acima desse papel de mero objeto da sociedade burguesa, sua consciência
constituirá
a
autoconsciência
da
mercadoria
(Ibidem,
p.
340-341,
grifos
do
autor).
Para Lukács, uma fratura irremediável entre o marxismo (ortodoxo)
e a cncia burguesa: a sociedade pode ser cientificamente estudada a partir da
totalidade, sendo essa “capaz de resolver as formas sociais nos seus processos”. As
classes então representam o ponto de vista da totalidade, porém o proletariado,
e partindo dele, pode-se conhecer a realidade social em um processo de
autoconhecimento, que a sobrevivência da burguesia pressupõe a mistificão
da vida, para que jamais se alcance uma clara compreensão das condições da
sua própria existência. Dessa forma o marxismo encarna a consciência teórica
do proletariado, sendo o proletariado ao mesmo tempo sujeito-objeto do
conhecimento. Portanto para o proletariado, conhecer-se como totalidade,
significa conhecer a sociedade, “e este conhecimento é a única garantia de êxito
da ação revolucionária” (NETTO, 1983, p. 41).
Disso decorre o pressuposto hegeliano de identidade sujeito-objeto,
que reproduz em certa medida, o mito de um sujeito que produz por si mesmo
o mundo para retomá-lo e reabsorver novamente em si, em HCC a realidade
é entendida como “ação”. Interessante notar que essa relação de dualidade entre
contemplação e ação é essencial dentro de HCC para distinguir e opor a ciência
burguesa da ação revolucionária (OLDRINI, 2008; MUSSE, 2005).
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Somente quando a função histórica da teoria constituir no fato de tornar esse
passo possível na prática; quando for dada uma situação histórica, na
qual o conhecimento exato da sociedade torna-se, para uma classe, a
condição imediata de sua auto-afirmação na luta; quando, para essa classe,
seu autoconhecimento significar, ao mesmo tempo, o conhecimento correto
de toda sociedade; quando, por consequência, para tal conhecimento, essa
classe for, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento e, portanto, a
teoria interferir de modo imediato e adequado no processo de revolução social,
somente então a unidade da teoria e da prática, enquanto condição prévia da
função revolucionária da teoria, será possível (LUKÁCS, 2003, p. 66).
A tomada de posição de Lukács reafirma a necessidade da simbiose entre
teoria e ptica que está posta na teoria social de Marx e de Lenin, e nos mostra o
ambiente em que se travava o debate naquele momento, isto é, de um positivismo
que faz a separação rígida entre método e realidade e entre pensamento e ser,
consequências lógicas da esterilização do método dialético, causado pelo desejo
de se libertar dasciladas dialéticas” do hegelianismo, caminho esse que sabemos
onde nos leva predominância no plano teórico-prático de posições mecânicas,
cuja evolução ao socialismo é quase que inevitável pelo próprio desenvolvimento
do capitalismo (LUKÁCS, 2003).
Em função disso, segundo Ramalho (2017) a centralidade do método
se articula de forma indissolúvel aos preceitos revolucionários, ademais, o
sentido prático consiste em exercer a função de autoconscientização do sujeito
revolucionário. Dessa forma não se trata de conceber teoria e prática como
obtenção de preceitos lógicos, mas em termos de possibilidade real no próprio
movimento concreto da história.
Ora, o que Lukács pretende em HCC é demonstrar que o processo
subjetivo é condição necessária para um tratamento unitário entre a teoria e a
prática, pois as relações objetivas e hisricas não são simplesmente uma sucessão
de fatos isolados, mas “precisamente (...) produtos de uma época histórica
determinada: a do capitalismo” (LUKÁCS, 2003, p.74). Dessa maneira a
conscientização é um produto a ser buscado no próprio processo histórico, cujo
núcleo é:
destacar os fenômenos de sua forma dada como imediata, de encontrar
as mediações pelas quais eles podem ser relacionados ao seu núcleo e à sua
essência e nela compreendidos; por outro, trata-se de compreender o seu
caráter e a sua aparência de fenômeno, considerada como sua manifestação
necessária. Essa forma é necessária em razão de sua esncia histórica, do seu
desenvolvimento no campo da sociedade capitalista. Essa dupla determinação,
esse reconhecimento e essa superação simultânea do ser imediato constitui
justamente a relação dialética (LUKÁCS, 2003, p. 75-6 grifos do autor).
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A função da teoria é conhecer a si mesmo (autoconhecimento) enquanto
sujeito e objeto do conhecimento
5
, ou seja, a teoria é a forma que me identifico
enquanto ser gerico e pertencente a uma classe, portanto, a teoria é o momento
em que tomo conhecimento da minha existência real, enquanto parte de um
momento histórico concreto e determinado, isto é, enquanto classe produzida
pelo antagonismo social, que ao mesmo tempo é produto desse antagonismo e
sua negação. Pom, o simples fato de tornar consciente de si mesmo não muda a
condição objetiva, a teoria é necesria e só se torna materialmente efetiva quando
se apodera das massas. Lukács deixa isso muito claro quando afirma: o que faz
a dialética materialista ser revolucionária é a unidade entre teoria e prática
6
, ou
seja, a teoria é condição necessária para o passo seguinte, sem o qual há uma
reprodução da sua forma de exisncia reificada (LUCS, 2003). Marx em seu
texto Ctica da filosofia do direito de Hegel Introdução afirma:
A arma da crítica o pode, é claro, substituir a ctica da arma, o poder material
tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria tamm se torna força
material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das
massaso logo demonstrar ad hominem, e demonstra ad hominem o logo se
torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem,
é o próprio homem (MARX, 2013, p.157).
Lukács
complementa:
Essa mudança contínua das formas de objetividade de todos os fenômenos
sociais em sua ação recíproca, dialética e contínua, e o surgimento da
inteligibilidade de um objeto a partir de sua função na totalidade determinada
na qual ele funciona fazem com que a concepção diatica da totalidade seja a
única a compreender a realidade como devir social. É somente nessa perspectiva
que as formas fetichistas de objetividade, engendradas necessariamente pela
produção capitalista, nos permitem -las como meras ilusões, que não são
menos ilusórias por serem vistas como necessárias. As relações reflexivas dessas
formas
fetichistas,
suas
“leis”,
surgidas
inevitavelmente
da
sociedade
capitalista,
5 “A ideia de Lukács sobre a unidade identidade de sujeito e objeto deu origem a o poucos eqvocos. Longe
de defen-la acriticamente, devemos, porém, chamar a ateão para o fato de que muitos críticos não miram
no verdadeiro alvo, terminando por criticar algo diverso do que Lukács realmente pensava. Em primeiro lugar,
a identidade de sujeito e objeto não constitui uma unidade (identidade) metafísica, mas dialética: ela contém
diversidades na identidade. Em segundo lugar, a identidade de sujeito e objeto é um resultado, e não o início da
evolão histórica: essa identidade surge gras à superação da reificação capitalista das relações sociais. Em ter-
ceiro lugar, Lucso está interessado numa dialética abstrata e supra-hisrica de sujeito e objeto no conjunto
da sociedade humana, mas sim na concreta dialética de sujeito e objeto na sociedade capitalista, na dialética da
consciência da classe burguesa e proletária. Finalmente, a identidade de sujeito e objetoo é um fato imediato,
mas sim mediatizado pela ação, pela práxis crítica e revolucionária” (SOCHOR, 1989, p.30-1)
6 “A práxis não é nem mero oposto da teoria, nem um simples critério da verdade. Tampouco é apenas contrário
da oposição contemplativa, embora esse momento seja sublinhado com particular força. Todos esses momentos
estão certamente contidos no conceito de pxis elaborado por Lukács; mas, ao mesmo tempo, pxis significa
muito mais: é a esfera própria do ser humano, algo que do ponto de vista da realidade histórico-social tem
um caráter ontocriativo e é produção e reprodução da vida social humana, a qual, por sua vez, é o elemento
fundamental da transformação do ser” (Idem, p.31)
Lukács e a aplicabilidade do método dialético materialista na constituição do ser social
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mas dissimulando as relações reais entre os objetos, mostram-se como as
representações necessárias que se fazem os agentes da produção capitalista. Elas
são, portanto, objetos do conhecimento, mas objetos conhecidos nessas formas
fetichistas e através delas não é a ppria ordem capitalista de produção, mas a
ideologia da classe dominante (LUKÁCS, 2003, p. 85-86).
Segundo MAAR (1996), a teoria da reificação de Lukács é uma teoria
da constituão da realidade social com base na teoria do valor, e no conceito de
fetichismo da mercadoria de Marx. Dessa forma, configura-se uma deformão
da própria existência do homem enquanto produto de uma produção e
reprodução reificada da vida. A práxis deve ser entendia como revolução, sua
auto-emancipação, por isso devemos ter cautela em acusar Lukács de “práxis-
centrismo” como faz Tertulian (2001; 2008), pois é preciso compreender sua
ênfase na prática como crítica das formas “metafísicas” de contemplação, que
caracterizavam o socialismo como produto do desenvolvimento histórico.
O que consiste o fetiche da mercadoria? Consiste na intermediação a
partir da qual as relações sociais se estabelecem no modo de produção capitalista.
As relações sociais entre os seres sociais não são diretas, imediatas, mas ao contrário,
elas são mediadas pela forma da mercadoria. O caráter fetichista que se manifesta
nas relações sociais, provém em última alise, da forma social de trabalho que
produz mercadorias. Ou seja, a forma como me relaciono na sociedade do capital,
deve ser necessariamente uma relação entre compradores e vendedores, em outras
palavras, para maior compreensão “os trabalhos privados atuam, de fato, como
membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece
entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores”
(MARX, 1983, p. 71).
A mercadoria passa a determinar nossas relações sociais, o fetiche da
mercadoria passa a ter existência real, pois, o fato de que para obter algo eu devo
pagar um determinado preço, e isso é dado como natural como condição eterna
da exisncia humana, e passa a moldar socialmente as formas de relações sociais,
ou seja, é reproduzido cotidianamente nas relações sociais, o fetichismo passa a
ter uma existência real, pois é dado no plano da consciência e da prática cotidiana
como algo natural que se reproduz. “À primeira vista, a mercadoria parece uma
coisa trivial, evidente. Analisando-a, -se que ela é uma coisa complicada, cheia
de sutileza metafísica e manhas teológicas” (MARX, 1983, p.70).
A mercadoria como valor de uso que aparece como algo trivial,
esconde algo mais complexo: o valor, o valor de troca, ou seja, a capacidade dessa
mercadoria ser trocada no mercado por outra mercadoria, no caso, o dinheiro.
Mas como isso apareceu? Quem determina isso? As respostas a essas perguntas só
são possíveis a partir de um complexo de mediações que nas relações imediatas
não se atinge. Marx (1983, p. 71) afirma:
ANDRADE, R. A.; KELL, R. A.
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Objetos de uso tornam mercadorias apenas por serem produtos de trabalhos
privados, exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses
trabalhos privados forma o trabalho social total. Como produtores somente
entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as
características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem
dentro dessa troca. (...) Por isso, aos últimos aparecem as relações sociais entre
seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relões diretamente
sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, seo como relações reificadas
entre as pessoas e relações sociais entre coisas.
O método marxista, enquanto método de conhecimento da realidade
o pode ser separado daatividade prático-crítica do proletariado, ou seja, são
os indivíduos que fazem sua história, mas em determinadas condições que não
são as que eles querem, porém que são produzidas por eles mesmos pelas suas
relações sociais. O conhecimento da realidade produzido pelo método diatico é
insepavel da perspectiva de classe e da emancipão do proletariado. Abandonar
essa perspectiva significa se distanciar do método dialético marxista, da mesma
forma, que adotá-lo implica diretamente a participação na luta de emancipação
do proletariado (LUKÁCS, 2003).
A ONTOLOGIA LUKACSIANA E A APREENSÃO DO REAL
A metodologia crítica de Lukács parte dos pressupostos marxistas, e
a construção de sua ontologia passa necessariamente pelo crivo dos processos
históricos. A crítica que Lukács faz ao neokantismo tem como objetivo a superação
do
método proposto por essa vertente filofica. O ponto central para compreender
como o autor desenvolve seus pressupostos ontológicos parte de como a filosofia
responde e compreende a realidade concreta. Adepto a tradição marxista, o autor
se utiliza de uma categoria fundamental para a ctica ao neokantismo, a categoria
de totalidade. Mais especificamente, a recusa do neokantismo em considerar os
aspectos reais em sua interconexão entre os variados conjuntos de fatos. Lukács
discorre sobre a constituição do neokantismo afirmando:
Tanto desvaneceu o idealismo kantiano no curso doculo XIX que surgiu uma
corrente idealista no positivismo não apenas dirigida contra o materialismo,
mas como a pretensão de criar um meio filosófico que extraditasse do campo
do conhecimento toda visão de mundo, toda ontologia, e, ao mesmo tempo,
criasse um presumido terreno gnosiológico que não fosse nem idealista
subjetivo nem materialista-objetivo, mas que, justamente nessa neutralidade,
pudesse oferecer a garantia de um conhecimento puramente científico
(LUKÁCS, 2012, p.55).
Importante ressaltar que neokantismo e neopositivismo o sinônimos
para Lukács, sendo estas a unilateralidade da visão exclusivamente gnosiológico-
Lukács e a aplicabilidade do método dialético materialista na constituição do ser social
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teórica e lógica sobre a realidade” (LUKÁCS, 2012, p.61). Ou seja, a teoria do
conhecimento científico pautado pela matematização do pensamento (regulação
linguística), assim como sua neutralidade aos pressupostos tanto idealistas quanto
materialistas.
Disso decorre, em primeiro lugar, a negação por princípio que da totalidade
das ciências, de suas inter-relações, da complementação recíproca de seus
resultados e da generalização dos métodos e das conquistas científicas possa
surgir um espelhamento adequado da realidade em si, uma imagem de mundo
(LUKÁCS, 2012, p.51).
Antes de discorrer sobre a concepção do neopositivismo, é importante
ressaltar o significado do positivismo. Sobre a classificação do positivismo Karel
Kosik nos apresenta importantes contribuições ao afirmar que:
O positivismo efetuou, no campo da filosofia, uma limpeza em grande estilo,
extirpando os resíduos da concepção teológica da realidade entendida como
hierarquia ordenada segundo os graus de perfeição: e, como, um perfeito
nivelador, reduziu toda a realidade à realidade física (KOSIK, 2002, p.46).
É fundamental classificarmos dois conceitos utilizados por Lukács
quando o autor faz a crítica ao neopositivismo, o conceito de totalidade e a
realidade em si. “Totalidade significa: realidade como todo estruturado, diatico,
no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjuntos de fatos) pode vir
a ser racionalmente compreendido. (KOSIK, 2002, p.44). Ou seja, a totalidade
não é um objeto que possamos tocar ou simplesmente comprar em um mercado,
a totalidade é uma categoria subserviente a racionalidade com o propósito de
apreender a realidade em si.
Que é a realidade? Se é um conjunto de fatos, de elementos simplíssimos e
até mesmo inderiváveis, disso resulta em primeiro lugar, que a concreticidade
é a totalidade de todos os fatos; e em segundo lugar que a realidade, na sua
concreticidade, é essencialmente incognosvel pois é possível acrescentar, a
cada fenômeno, ulteriores facetas e aspectos, fatos esquecidos ou ainda não
descobertos, e mediante este infinito acrescentamento é possível demonstrar a
abstratividade e a não-concreticidade do conhecimento (KOSIK, 2002, p.43).
O neokantismo diverge consubstancialmente da ontologia materialista
quando elimina “toda distinção entre a própria efetividade e suas representações
nas diversas formas de espelhamento (LUCS, 2012, p.61). A problemática
está na construção da veracidade concreta, ou seja, na classificação da realidade
através de uma simples unidade da linguagem, no caso específico do neokantismo
a linguagem matemática. Como Kosik afirma no excerto que dispomos acima, a
realidade
é
um
complexo
de
conjuntos
de
fatos,
e
essa
unicidade
apresentada
pelos
ANDRADE, R. A.; KELL, R. A.
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neopositivistas quanto à ciência matemática ser a resposta ontológica a dimensão
da apreensão do real seguimentada em uma manipulação logicista.
As divergências entre o neopositivismo e a ontologia lukacsiana,
partem da concepção de que o primeiro toma o sujeito como ponto central para
desenvolver seus pressupostos anaticos do mundo concreto, e a ontologia
lukacsiana procura analisar através de seu método materialista dialético o objeto
em si através de suas contradões imanentes. Lukács fundamenta a constituão
do ser social através de uma leitura entre a contraditoriedade dos complexos, entre
a essencialidade do objeto e as causalidades que decorrem do seu movimento
interno. Como afirmamos acima, a constituição da ontologia lukacsiana se
fundamenta através da crítica. Crítica está baseada em escolas filosóficas de maior
relevância e influência que exerceram sobre os pensadores um papel decisivo na
constituição do apreender o mundo, porém a crítica não nasce sem se apoiar
em um processualidade, sem se apoiar no acúmulo teórico desenvolvido pela
humanidade, Lukács afirma:
Na realidade, nem a religião nem a ciência nem a filosofia constituem formações
completamente autônomas, dotadas de legalidade própria, de modo que
tanto sua metodologia quanto seu conteúdo sejam sempre determinados com
exclusividade por seu automático desenvolvimento. (LUKÁCS, 2012, p.52).
Fica evidente os traços da processualidade histórica influenciados
por Marx, tal processualidade que a escola filosófica neokantiana renega, pois
parte dos pressupostos da ciência pura, da ciência neutra. Para os neokantianos
a realidade pode ser tomada única e exclusivamente pela abstração cognoscente,
a universalidade factual e suas categorias através da processualidade histórica é
renegada pela tradão “metafísica” e a particularidade do sujeito em sua abstração
do real toma a veracidade pela matematização e datidade das sínteses das
múltiplas determinões do concreto. Pois como afirma Lukács,[...] A unidade
neopositivistas da manipulação científica assume um aspecto ainda mais grotesco
quando o ser humano e as relações humanas são o objeto da pesquisa” (LUKÁCS,
2012, p.73). O problema decorre da quantificação e medão das relações sociais,
pois a análise fenomênica das sínteses das múltiplas determinações do real
tomadas em seu caráter ontológico em perspectiva lukacsiana tem necessariamente
em
levar em consideração as relações entre sujeito e objeto, entre essência e
fenômeno, e não apenas a classificão e enumeração do sujeito como querem os
neopositivistas, ou seja, a análise materialista parte do objeto (suas legalidades)
para analisar suas categorias, e o o inverso neopositivista que a priori analisa
o objeto com categorias predefinidas. Sobre este ponto é fundamental discorrer
sobre a relação entre essência e fenômeno em Lukács
7
, pois a sua apreensão da
7 Discutiremos este ponto no subitem ao qual discorremos sobre a crítica de Lukács feita a concepção hegeliana.
Lukács e a aplicabilidade do método dialético materialista na constituição do ser social
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realidade e seu método ontogico materialista tem como pontos nodais a relação
entre ambas as categorias, pois:
Entre as concepções ontológicas que contrapõem essência e fenômeno
enquanto graus distintos do ser e as que diluem a essência no fenômeno,
Lukács contrapõe seu tertium datur: o ser é histórico porque sua essência,
em vez de ser dada a priori, se consubstancia ao longo do próprio processo
de desenvolvimento ontológico. Em lugar de determinar o processo do
exterior, a essência em Lukács é parte integrante e imprescindível de toda a
processualidade. O mesmo ocorre com a esfera fenomênica (LESSA, 2012,
p.44).
Retomemos o ponto central deste entendimento, apreensão do real.
Lukács parte dos pressupostos teóricos de Marx, e este afirma que o “primeiro
pressuposto de toda a hisria humana é, naturalmente, a exisncia de indivíduos
humanos vivos (MARX; ENGELS, 2007, p.87). Para Marx a verdadeira ciência
é a ciência da história, podemos perceber a analise materialista de Marx em suas
anotações em seu livro A ideologia ale, quando afirma sobre a materialidade
da história que descrevemos acima quando diz: “O primeiro ato histórico desses
indivíduos, pelo qual eles se diferenciam dos animais, é não o fato de pensar,
mas sim o de começar a produzir seus meios de vida (MARX; ENGELS, 2007,
p.87). O primeiro ato histórico desses indivíduos que diz Marx é o que Lukács
determina como salto ontológico, ou seja, a produção e reprodução da vida
material através de uma necessidade histórica, afirmando que “o ponto de partida
não é dado nem pelo átomo (como nos velhos materialistas), nem pelo simples ser
abstrato (como em Hegel). Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo.
(LUKÁCS, 1978, p.02).
Sobre a breve introdução referente à base materialista da análise da
realidade, podemos acrescentar que a produção dos meios de vida descritos
por Marx e o ponto de partida ontológico descrito por Lukács encontra-se
precisamente na satisfação das necessidades materiais através da categoria do
trabalho
8
.
A satisfação dos meios de vida através do trabalho tem como pressuposto
central a transformação constante da natureza, como afirma Marx, sem essa
constante transformação não seria possível a existência do próprio homem.
Essa articulação entre homem e natureza é o “pontapé” inicial da constituição
ontológica do homem em quanto ser social, pois é “a partir do trabalho, o ser
humano se faz diferente da natureza, se faz um autêntico ser social” (LESSA,
2011, p. 17). É sobre a característica ontológica da natureza (termo empregado
por Hartmann e utilizado por Lukács) que Lukács desenvolverá sua crítica à
8 Sobre a categoria trabalho iremos discutir detidamente no subitem, ao qual, discorreremos sobra a constituição
da ontologia lukacsiana.
ANDRADE, R. A.; KELL, R. A.
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Hartmann superando e preservando traços centrais para o desenvolvimento da
ontologia materialista.
CRÍTICA A ONTOLOGIA DA NATUREZA DE HARTMANN
Lukács através da crítica feita a Nicolai Hartmann (1882-1950)
demonstra os limites e as contribuições fundamentais desse autor, Lukács
engendra sua crítica com base na ontologia da natureza de Hartmann afirmando
que ele trata os problemas ontogicos de maneira sóbria e ponderada com base
no seguinte ponto de vista: como o ente-em-si pode estar constituído de fato.”
(LUKÁCS, 2012, p.133). Tal constatação demonstra a diferença de Hartmann
frente a concepção filofica dos neokantianos, onde este parte da essencialidade
das relações o que Hartmann define como intentio recta, ou seja, a estruturação
não em sua forma única e exclusivamente fenomênica, mas no objeto existente
em si. Lukács demonstra o distanciamento de Hartmann frente à metafísica
kantiana afirmando:
Facilmente se pode perceber que, nesse ponto, Hartmann procede a uma
inversão radical da crítica gnosiológica kantiana e predominante desde
Kant: esta quer transformar a retrorreferência da relação “sujeito-objeto” às
fuões cognitivas do sujeito em instância que visa à constatação da justeza do
conhecimento; Hartmann considera o objeto existente em si como o pametro
único do ato de conhecer, porque todas as formas de relação “sujeito-objeto
o derivadas, contendo sempre em si mesmas possibilidades de deformação
daquilo que é a constituição independente do fenômeno ainda o tocada por
nenhuma subjetividade (LUKÁCS, 2012, p.135).
A crítica de Lukács à concepção de Hartmann parte do ponto de que
Hartmann leva em consideração apenas o objeto em si, desconsiderando o papel
fundamental do por consciente, ou seja, o momento cognoscente é renegado por
Hartmann ao ponto de seu todo rejeitar a gnosiologia assim como a lógica. O
eixo central da ctica de Lukács está na apreensão do real, mais precisamente o
caminho ontológico mais preciso para apreender o real, quando nos diz que: “a
partir da análise dos complexos com o auxílio de abstrações, visando compreender
sua dinâmica e estrutura, que são as da realidade propriamente dita, por meio
dessas interações etc.” (LUKÁCS, 2012, p.148).
O que Lukács nos apresenta é a tomada de consciência através dos
fenômenos cotidianos, ponto que Hartmann vai de encontro, porém a crítica
da fenomenologia cotidiana de Hartmann não toca as contradições no processo
histórico-social, possibilitando que a análise da essencialidade dos femenos da
realidade acarrete em uma intuão das esncias, ou seja, Hartmann não aborda
o que tange a gênese das contradições na perspectiva ontológica do ser social.
Lukács e a aplicabilidade do método dialético materialista na constituição do ser social
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A crítica feita por Lukács às concepções hartmanniana se pela
“gradão dos tipos reais do ser: natureza inornica, natureza orgânica, mundo
do ser humano” (LUKÁCS, 2012, p. 156). O famoso salto ontológico descrito
por Lukács, que Hartmann ao desenvolver sua ontologia não considera o ser
social como participe e constituinte do ser natural, distinguindo e apartando o
ser social do ser natural. Para Hartmann o ser social diferencia-se do ser natural
por este constituir-se como um ser autônomo por caracterizar-se única e
exclusivamente como um ser psíquico, separando o ser social do ser psíquico. O
que diverge consideravelmente sobre a análise marxiana de Lukács, pois este parte
do princípio que a categoria fundante do ser social:
o trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo
este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu
metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como
uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural
de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças
naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos.
Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento,
ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 2013, p. 326-27).
Sobre a inter-relação do ser natural com o ser social, Lukács demonstra
os equívocos de Hartmann, através da materialidade do ser social (ponto em que
Hartmann não avaa em suas análises), pois, o prinpio hartmanniano aparta a
prévia ideação do plano concreto, prévia ideão que também pode ser definida
como por consciente, o que possibilita a distinção e apreeno da intentio recta e
intentio obliqua, e Lukács disserta sobre essa problemática de Hartmann afirmando
que este não se conta de que essa inferência correta pode aparecer no ato
do conhecimento unicamente porque se volta para o ente real, porque espelha
um ente real”. (LUKÁCS, 2012, p. 164). Tal ato do conhecimento em seu
aspecto homogeneizante (ex: matemática) se tomada através da processualidade
em sua imanência com um espelhamento da realidade” pode ser tomada como
parte integrante da heterogeneidade da realidade existente em si, porém a teoria
hartmanniana desconsidera esse movimento contraditório, afirmando que esse
movimento não se insere na lei do pensamento, mas do ser ideal. Fica claro
que a posição de Hartmann quanto à homogeneização de extratos categoriais
da realidade heterogênea são dimensões com especificidades distintas, porém
seu equívoco foi o de não constatar que tais dimensões distintas (intentio recta e
intentio obliqua), ou seja, o por consciente (cognoscível) e a concreticidade (ser-
em-si) são ontologicamente inseparáveis.
Lukács ao demonstrar a importância do pensamento de Hartmann
conclui:
Em nossa crítica, estivemos empenhados em analisar concretamente o concreto
e, quando necessário, refutá-lo concretamente. Porém, ao concluirmos tais
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considerações, é preciso dizer o seguinte: as limitações de Hartmann estão
essencialmente ligadas ao fato de ele evitar com certo receio os problemas
manifestamente dialéticos. Sendo um observador lúcido e imparcial da
realidade, é natural que ele seja reiteradamente confrontado com constelações
dialéticas. Mas se desvia da sua essência diatica, refugiando-se na dialética de
Aristóteles e limitando-se a falar de aporias sempre que problemas diaticos
exigem uma solução dialética (LUKÁCS, 2012, p.180).
Lucs em sua “grande ontologia” finaliza a crítica à Hartmann tendo
em vista o desenvolvimento filofico no que tange a problemática da dialética,
pois seu objetivo central é desenvolver sua ontologia através das bases categoriais
marxistas, para isso precisará passar pelas constatações hegelianas quanto à
dialética, assim como sua superação foi engendrada por Marx. É sobre a ctica
desferida à Hegel por Lukács que iniciaremos o próximo subitem do presente
artigo.
A ONTOLOGIA LUKÁCSIANA E A CRÍTICA À HEGEL
A crítica lukacsiana à filosofia hegeliana tem como base a superação
de suas categorias desenvolvidas pela teoria marxiana, Lukács tem a intenção de
desmembrar os pontos centrais da ctica que Marx faz a Hegel e pela importância
que Hegel carrega na tradição marxista. E o ponto chave para a compreensão
dessa superão teórica es na imporncia de Hegel no estudo sobre a dialética,
está no fato de este ser “o primeiro após Heráclito para quem a contradição
forma o princípio ontológico último” (LUKÁCS, 2012, p. 182). Sobre o conceito
de dialética é importante ressaltar seus pressupostos:
A dialética é tematizada na tradição marxista mais comumente enquanto
(a) um método e, mais habitualmente, um método científico: a dialética
epistemológica; (b) um conjunto de leis ou princípios que governam um setor
ou a totalidade da realidade: a dialética ontológica; e (c) o movimento da
história: dialética relacional (BOTTOMORE, 2013, p. 168).
O objetivo deste subitem tem como pressuposto discorrer sobre os
aspectos mais intricados do método dialético, e o ponto central da crítica feita à
Hegel está na concepção hegeliana de sujeito-objeto idêntico, ou seja, inversamente
a
teoria hartmanniana que separa essas duas categorias se valendo apenas do objeto
como ser-em-si verdadeiro (real), Hegel o considera a diversidade da unidade
entre sujeito-objeto, criando assim uma unidade homogenia entre natureza
e história. Lukács discorre: “certamente a dialética da história desenvolve-se
diretamente a partir da natureza, mas apresenta categorias, conexões e legalidades
qualitativamente novas” (LUKÁCS, 2012, p. 187). É imprescindível ressaltar que
Lukács e a aplicabilidade do método dialético materialista na constituição do ser social
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Lukács distingue os entes inorgânicos, orgânicos e sociais, pom o faz através de
sua processualidade e inter-relação.
Retomemos a concepção de sujeito-objeto idêntico, onde para Lukács,
[...] a objetivação designa, em Lukács, o processo de conversão da prévia-ideação
em objeto concreto, sempre com a transformação de um setor da realidade. A
exteriorizão é o momento da objetivação pelo qual se consubstancializa (isto
é, torna-se real, efetiva, substancial) a distinção entre um objeto socialmente
criado e a consciência que operou a prévia-ideação que está na gênese desse
mesmo objeto. O sujeito se exterioriza em um objeto ontologicamente
distinto de si próprio. Reforcemos: apesar de o objeto socialmente criado ser
subjetividade objetivada, não há em Lucs traço algum de identidade sujeito-
objeto. Sujeito e objetoo, enquanto criador e criatura, entes ontologicamente
distintos. (LESSA, 2015, p 26).
Para Hegel a relação sujeito-objeto tem finalidades lógicas, onde
a relação una está pré-estabelecida a priori por sua identidade, um reflexo
absoluto do movimento do próprio ente, ou seja, a categoria de causalidade
entre o por teleológico e sua causalidade posta (subjetividade objetivada) o
que impossibilita a relação causal da prévia-ideação (consciência) em relação
ao objeto, pois para Hegel o objeto nada mais é do que a exteriorização do
próprio Espírito onde “conduz ao sujeito-objeto como coroamento de uma
visão dialeticamente pretendida, porém, no resultado final degrada a uma
criptoteleologia logicizante em relação ao processo em seu conjunto”. (LUKÁCS,
2010, p. 310). Tal criptoteleologia logicizante está transcrita claramente nos
dizeres de Marx, quando este afirma que:
Tudo o que Hegel diz é correto, com a restrição: 1) de que ele põe como
idênticos estamento particular e determinação, 2) de que essa determinação,
a espécie, o gênero próximo, deva ser posta também realmente, não apenas
em si, mas para si, como espécie do gênero universal, como sua particularização
(MARX, 2010, p.135).
A crítica a Hegel se encontra em Marx, a teoria lukacsiana retoma
esta crítica para dar vasão a nova ontologia, ou seja, a reafirmão das categorias
materialistas fundamentais na filosofia marxiana é retomada por Lukács a fim
de constituir seus pressupostos ontológicos materiais. Essa constituição passa
necessariamente pelos desenvolvimentos dos entes inorgânico, orgânico e social.
Esse desenvolvimento está em germe na filosofia de Marx, assim como a ctica
a filosofia hegeliana encabeçada por Marx, carrega a superação e elevação das
categorias desenvolvidas por Hegel, mais precisamente podemos argumentar que
os fundamentos da ontologia lukacsiana quanto aos saltos ontológicos dos entes
acima descritos eso expressamente desenvolvidos por Marx. Um dos pontos
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centrais da superação marxiana da filosofia hegeliana encontra-se na seguinte
passagem descrita por Enderle:
[...] se por um lado a realidade, a “empiria ordiria”, é explicada “não como
ela mesma, mas como uma outra realidade’, por outro a Ideia real subjetivada
tem como sua existência o uma realidade desenvolvida a partir dela mesma,
mas a empiria ordinária, comum”. Ou seja, a inversão operada por Hegel não
altera em nada a maria, a realidade empírica, mas apenas sua “significão”,
seu “modo de expressão (MARX, 2010, p.30 apud ENDERLE, 2010, p.25).
Tal inversão descrita acima está no eixo central, ao qual, Lukács
discorre sobre Hegel, a imanência do ser em si independe do significante dado a
ele, ou seja, o modo de expressão empregado a realidade concreta não altera uma
vírgula sua concreticidade, a realidade emrica social, com ênfase no social para
a teoria lukacsiana tem entre seus modos operantes uma unidade contraditória,
onde distingue-se da consciência, porém opera sobre esta, pois “o ser social...
em-si tem uma existência independente da consciência individual do homem
singular, possuindo um alto grau de dinamismo autonomamente determinado
e determinante em face dessa consciência” (LUKÁCS, 2012, p. 201). Tal
identidade contraditória para Hegel acarreta uma determinação lógica entre as
ações individuais e as ações sociais, pois esse movimento encontra em Hegel a
categoria do por teleológico, sobre esse movimento pode-se dizer que:
La concreción dialéctica de la actividad humana que se expresa en la teleología
hegeliana del trabajo muestra al mismo tiempo aquellas mediaciones que unen
la práctica humana con la idea del progreso social. En toda vieja concepción de
la teleología se produce necesariamente una falta jerarquización de fin y medios.
El
carácter metafísico del planteamiento crea una rígida contraposición entre fin
y medio, y como el fin tiene necesariamente un carácter “ideal”, puesto que
es necesariamente la representación de alguna consciencia, toda filosofía
idealista le coloca en rminos absolutos por encima de los medios. (LUCS,
1970, p. 344)
9
.
Portanto, a relação do por do meio com o por do fim através da categoria
do trabalho, em Hegel tem expressão da identidade do sujeito com o objeto,
porém essa finalidade se da de forma unívoca na teoria hegeliana, onde todo ato
consciente (ex: trabalho) de forma apriorística em sua própria legalidade intrínseca
tem em sua imanência a forma final de seu processo contraditório. Hegel não
considera a causalidade no por consciente social, onde a consequência lógica de
2 A concretização diatica da atividade humana expressa na teleologia hegeliana do trabalho mostra ao mesmo
tempo as mediações que unem a prática humana com a ideia de progresso social. Em toda velha concepção de
teleologia, necessariamente uma falta de hierarquia de fins e meios. A natureza metafísica da abordagem cria
uma oposição rígida entre o fim e os meios e, como o fim necessariamente tem um caráter ideal”, uma vez que é
necessariamente a representação de alguma conscncia, toda filosofia idealista coloca em termos absolutos
acima dos meios. (tradução nossa)
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seu processo contradirio possui uma relação ontológica pré-determinadas em
seu sujeito-objeto idêntico, “ou seja: se as determinações de reflexão definem
uma dimensão concreta no interior de um complexo do ser pense-se, por
exemplo, na relação “forma-conteúdo” -, então a sua suprassunção pode ser
apenas gnosiológica” (LUKÁCS, 2012, p 279). A construção da “verdadeira
ontologia” procura o desenvolvimento e as transformações concretas, onde essa
transformação se dará, nas palavras do pprio Lukács, através “da respectiva
constituição concreta das determinões de reflexão concretas” (LUCS, 2012,
p. 280).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise correta do movimento do objeto na realidade, sua gênese, suas
conexões e seus desdobramentos é um ponto extremamente importante na obra
de Marx. Nesse quesito, Marx foi enfático quando asseverou que o “sujeito a
sociedade burguesa moderna, nesse caso se encontra determinado na mentalidade
tanto quanto na realidade” e que “as categorias, portanto, exprimem formas de
vida, determinações da existência” (MARX, 2008, p. 267). Dessa maneira Marx
nos deixa o princípio metodológico do qual Lukács vai se apropriar, ou seja, das
condições materiais de existências dos homens, do modo de produção da vida
material que condiciona o desenvolvimento da vida social, política, econômica,
intelectual, ética e etc. Assim “Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; ao contrio, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX &
ENGELS, 2008, p.49).
Essa concepção da história consiste, portanto, em desenvolver o processo real
de produção e a partir da produção material da vida imediata e em conceber a
forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada,
quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento
de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado como
explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas da
consciência religião, filosofia, moral etc. etc. e em seguir o seu processo de
nascimento a partir dessas criações, o que então torna posvel, naturalmente,
que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca
entre esses diferentes aspectos) (MARX e ENGELS, 2007, p. 42).
Acreditamos que a contribuão do artigo es intimamente relacionada
à sistematização do conhecimento acerca de um período extremamente controverso
tanto historicamente como na vida do no nosso autor. Para tanto nosso artigo
visa não ser um ponto final sobre o debate, mas trazer novas contribuições de
maneira crítica ao tema. Pois a obra de Lukács, ainda em nossos dias, é fonte
de intensos debates acerca de sua base filosófica da juventude, bem como sua
posterior ruptura com o pensamento juvenil até sua obra de maior fôlego, Para
uma ontologia do ser social.
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Dessa forma nosso artigo o apenas aproximões acerca desse debate
sobre a base filosófica do “jovem Lukács” e sua ruptura dialética após os anos
1930. Tentamos delinear a trajetória do método dialético e a constituição do
materialismo de Lukács, bem como ele desenvolve sua apreensão sobre o ser social nas
suas duas grandes obras: História e consciência de classe e Para uma ontologia
do ser
social. A crítica que Lukács oferece contra as concepções de Hegel, Nicolai
Hartmann, e os neopositivistas são de suma importância para entender o método
materialista dialético herdado de Marx.
Assim ao nosso ver, Lukács foi responsável pela renovação do marxismo,
e
de recolocar na ordem do dia a necessidade de se estabelecer a teoria marxiana
em bases filosóficas, para a efetivação de uma ruptura revolucionária, levando
a máxima deixada por Lenin, não prática revolucionária sem uma teoria
revolucionária. Assim Lukács restabelece a importância da relação entre teoria-
prática, sujeito-objeto, totalidade-mediação e da organização da subjetividade no
processo revolucionário.
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Submetido em: 23/04/2022
Aprovado em: 03/10/2022