A crítica de Carol Gilligan ao androcentrismo e sexismo
Artigos/Articles
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, v.8, p. 67-86, Edição Especial, 2022.
A
CRÍTICA DE
C
AROL
G
ILLIGAN AO ANDROCENTRISMO E SEXISMO NA
PSICOLOGIA E NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
C
AROL
G
ILLIGAN
S CRITIQUE TO ANDROCENTRISM AND SEXISM IN
PSYCHOLOGY AND SCIENTIFIC PRODUCTION
Matheus Estevão Ferreira da Silva
1
RESUMO:
Trata-se da apresentação de resultados parciais de uma pesquisa concluída financiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Objetivou-se refletir sobre a
obra de Carol Gilligan no tocante das críticas que teceu às teorias psicológicas do desenvolvimento,
sobretudo da teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg, argumentando que
conservavam um viés masculinizante. Entrou-se em contato com livros, capítulos de coletâneas e
artigos de autoria de Gilligan que abordam as críticas tecidas pela autora, sendo, o principal desses
materiais bibliográficos, o seu livro Uma voz diferente (In a Different Voice), publicado em 1982.
Ressalta-se que Gilligan
questionou a validade da teoria
de
Kohlberg ao argumentar que as
mulheres se
desenvolvem moralmente diferente dos homens, pois elas se orientariam pelo
que chamou
de Ética do
Cuidado, enquanto eles se orientariam pela Ética da Justiça. As críticas de Gilligan são consideradas
revolucionárias para o campo da Psicologia do Desenvolvimento Moral, além da própria Psicologia
e da Ciência em geral, e com implicações de vanguarda ao pensamento feminista de sua época.
Conclui-se sobre a importância de Gilligan ao modo de se fazer Ciência, quanto à participação nula
das mulheres em dados amostrais e às considerações acerca do desenvolvimento feminino.
PALAVRAS-CHAVE: Carol Gilligan. Androcentrismo. Sexismo. Ética do Cuidado.
Desenvolvimento Moral.
ABSTRACT: This is the presentation of partial results of a completed research funded by the
Foundation for Research Support of the State of São Paulo (FAPESP). The objective was to reflect on
Carol Gilligan’s work in terms of her criticisms of psychological theories of development, especially
Lawrence Kohlberg’s theory of moral development, arguing that they retained a masculinizing bias.
She came into contact with books, chapters from collections and articles authored by Gilligan that
address the criticisms made by the author, the main one of these bibliographical materials being
1
Mestrando em Educação e Pedagogo pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, e graduando em Psicologia pela Faculdade de
Ciências e Letras (FCL/UNESP), Campus de Assis. Foi bolsista de Iniciação Científica FAPESP em ambas gra-
duações, foi bolsista de Mestrado do CNPq e atualmente é bolsista de Mestrado da FAPESP. E-mail: matheus.
estevao2@hotmail.com
http://doi.org/10.36311/2447-780X.2022.esp.p67
SILVA, M. E. F.
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her book In a Different Voice, published in 1982. It is noteworthy that Gilligan questioned the
validity of Kohlberg’s theory by arguing that women develop morally different from men, as they
would be guided by what he called the Ethics of Care, while they would be guided by the Ethics
of Justice. Gilligan’s critiques are considered revolutionary for the field of Psychology of Moral
Development, in addition to Psychology and Science in general, and with avant-garde implications
for the feminist thought of her time. It concludes about the importance of Gilligan in the way of
doing Science, regarding the null participation of women in sample data and considerations about
female development.
KEYWORDS:
Carol Gilligan. Moral Development. Ethics of Care. Women.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, apresentam-se resultados parciais de uma pesquisa
concluída que foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (FAPESP)
2
. Essa pesquisa maior teve o objetivo de reunir, mapear
e analisar a produção nacional e internacional de pesquisa em Psicologia do
Desenvolvimento Moral, no período de 1982 a 2019, que tem gênero como
tema.
Uma autora de suma importância para o desenvolvimento dessa
pesquisa foi a psicóloga estadunidense Carol Gilligan (1936-atualmente).
Gilligan ficou conhecida por ter questionado a validade universal da teoria moral
do também psicólogo estadunidense Lawrence Kohlberg (1927-1987) e de outras
psicológicas do desenvolvimento, acusando-as
de serem androcêntricas e
sexistas
3
.
É
importante ressaltar que foi a partir dos estudos e da teoria de Kohlberg (1992) que
o campo da Psicologia interessado pelo estudo da moralidade, a Psicologia do
Desenvolvimento Moral, “consolidou-se como área nobre da Psicologia” (LA
TAILLE, 2007, p. 17; SILVA, 2020; 2021).
No entanto, com base em suas pesquisas, Gilligan (1982) argumentou
haver um caminho de desenvolvimento moral alternativo ao traçado por Kohlberg
(1992) em sua teoria, sendo as mulheres representativas dessa alternativa de
desenvolvimento. Em referência ao que encontrou empiricamente, a autora (1982)
chamou esse outro modo que o desenvolvimento moral pode ocorrer de Ética
do Cuidado, enquanto referiu-se ao modelo de desenvolvimento kohlberguiano
como Ética da Justiça, que para ela seria mais representativo a como os homens se
desenvolvem.
2
A pesquisa intitulou-se O gênero na produção de pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento Moral: mapeamento
e análise em
periódicos
internacionais
de língua
inglesa (1982-2018
)
, com vigência
de
01/08/2019 a
29/02/2020
e vinculando-se à FAPESP pelo processo de n.º 2019/08942-1. Disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/bol-
sas/187806/o-genero-na-producao-de-pesquisa-em-psicologia-do-desenvolvimento-moral-mapeamento-e-ana-
lise-em-per/. Acesso em: 01 out. 2021.
3
De acordo com Ribeiro e Pátaro (2015), o sexismo é a discriminação baseada nas diferenças entre os gêneros,
nomeadamente de homens e mulheres, enquanto o androcentrismo, por sua vez, reside na base do sexismo, é
um pensamento que “[...] consiste em considerar o homem como centro do universo, único apto a governar, a
determinar leis e a estabelecer justiça” (p. 158) e que leva, portanto, ao sexismo e outras formas de discriminação.
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Assim, na pesquisa concluída, considerou-se que as investigações que
interseccionam gênero e moralidade como tema de pesquisa despontaram no
campo da Psicologia do Desenvolvimento Moral principalmente a partir do que
ficou conhecido como debate Kohlberg-Gilligan (JORGENSEN, 2006; SILVA,
2021), que se refere ao debate travado por ambos autores na defesa de suas
ideias. Passados 40 anos desde seu início, esse debate é considerado como um dos
grandes marcos teóricos do campo e para o estudo da moralidade, impulsionando
a renovação da literatura especializada.
Para este artigo, reservou-se a apresentação dos resultados obtidos
mediante o procedimento de revisão de literatura que constituiu a metodologia
dessa pesquisa.
Logo, como um recorte dessa investigação, objetiva-se
refletir sobre
a obra de Carol Gilligan no tocante das críticas que teceu às teorias psicológicas
do desenvolvimento, sobretudo da teoria do desenvolvimento moral de Lawrence
Kohlberg, que argumentou conservarem um viés masculinizante.
Para tal, entrou-se em contato com livros, capítulos de coletâneas e
artigos de autoria de Gilligan (1977; 1982; 1998; 2015; GILLIGAN; BELENKY,
1980; MURPHY; GILLIGAN, 1980; GILLIGAN; ATTANUCCI, 1988)
que abordam as críticas tecidas pela autora, sendo, o principal desses materiais
bibliográficos, o seu livro Uma voz diferente (In a Different Voice), publicado em
1982.
O texto deste artigo organiza-se da seguinte forma: primeiro, ressaltam-
se aspectos biográficos e suas reverberações em sua obra, revisitando de forma
concisa seus antecedentes e background. Em seguida, apresentam-se as críticas de
Gilligan às teorias psicológicas do desenvolvimento, sobretudo a teoria moral de
Kohlberg, e sua proposição de uma Ética do Cuidado. Em um terceiro
momento, conclui-se ressaltando que as críticas de Gilligan são consideradas
revolucionárias para o campo da Psicologia do Desenvolvimento Moral, além da
própria Psicologia e da Ciência em geral, e que teve implicações de vanguarda ao
pensamento feminista de sua época, ajudando a fundar uma de suas vertentes, o
chamado Feminismo da Diferença. O artigo se encerra com as considerações finais.
ASPECTOS BIOGRÁFICOS E ANTECEDENTES DA AUTORA
Carol Friedman Gilligan é uma professora universitária e psicóloga
estadunidense, hoje aos 84 anos, atualmente professora da Universidade de Nova
Iorque (2002-atualmente), sendo professora aposentada da Universidade de
Harvard (1969-1997), onde conseguiu seu Ph.D. em Psicologia Social em 1964,
e lecionado anteriormente na Universidade de Chicago (1965-1966) até ter sido
contratada em Harvard.
Essa autora tornou-se referência mundial para os estudos do campo da
Psicologia do Desenvolvimento Moral e, por conseguinte, dos Estudos Feministas
SILVA, M. E. F.
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e Estudos de Gênero durante o período da Segunda Onda do Feminismo e
não ficou conhecida nesse período como ditou os seus rumos , quando
publicou resultados de suas próprias pesquisas que realizou nos Estados Unidos
com mulheres, utilizando da teoria kohlberguiana do desenvolvimento moral
e de dilemas morais sobre o aborto (GILLIGAN, 1977; 1982; GILLIGAN;
BELENKY, 1980; MURPHY; GILLIGAN, 1980).
Com o passar dos anos, o trabalho inicial de Gilligan, sua teoria
decorrente dessas primeiras investigações e o modelo de desenvolvimento moral
dela advindo, a Ética do Cuidado, também foram ganhando notoriedade e sendo
reconhecidos por outras áreas do conhecimento, a princípio na Filosofia e no
Direito, para depois na Educação, Enfermagem e outras, assim como em vários
campos da própria Psicologia, como também ressalta Sharpe (1992) sobre essa
repercussão.
Contudo, antes de nos aprofundarmos em seu trabalho de pesquisa,
teoria, modelo de desenvolvimento e, portanto, elucidar porquê Gilligan se
tornou uma referência de tamanha importância, é fundamental debruçar nas
circunstâncias biográficas que antecederam todo esse seu trabalho e
reconhecimento consequente.
Os antecedentes da vida de Gilligan também influenciaram diretamente
nos caminhos dos quais trilharia e, logo, em sua obra. Todo esse background
como ela própria denomina (JORGENSEN, 2006) formaria e implicaria em
seus interesses de pesquisa, em sua abordagem feminista e forma de olhar para a
Psicologia, ao desenvolvimento humano e à questão moral e de gênero.
Para Friedman (2020, p. 671, tradução minha), “é tanto um prazer
como um desafio apresentar Carol Gilligan”. Para ele, “[...] o prazer vem da
oportunidade de falar de alguém que tem sido amiga, um exemplo de intelectual
cuja perspectiva sobre a influência da sociedade sobre o indivíduo tem me
ajudado no trabalho como psicanalista para compreender a importância do
desenvolvimento de meus pacientes, o que ela chamaria de ‘uma voz própria’” (p.
671, tradução minha). Quanto ao desafio que é apresentar Gilligan, o autor
(2020, p. 671, tradução minha, grifos do autor) ressalta que:
[...] surge da dificuldade de apresentar alguém que indubitavelmente é
conhecida por quem conhece a história do Feminismo nos Estados Unidos.
Em 1982, In a different voice: psychological theory and women’s development foi
publicado e com o tempo estabeleceu Carol Gilligan como uma voz importante
em nossa compreensão da Psicologia das mulheres; uma voz com poder muito
convincente para resistir ao poder do saber e dos pronunciamentos psicológicos
convencionais sobre como as mentes das mulheres funcionavam, como as
mentes das mulheres eram inevitavelmente diferentes das mentes dos homens,
que até então eram consideradas superiores em racionalidade em comparação
aos seus pares femininos, mais emocionais.
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Como mencionado na citação acima, o reconhecimento internacional de
Gilligan veio logo após publicar, em 1982, o seu livro In a Different Voice:
psychological theory and women’s development, cujo título foi traduzido ao português
no Brasil (Pt-Br) como Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e
mulheres da infância à idade adulta (GILLIGAN, 1982).
Porém, antes disso, Gilligan teve de trilhar um longo caminho, cuja
experiência adquirida seria seu referido background e que levaria consigo para
a Psicologia. Quando perguntada sobre “Como e quando você começou a
desenvolver uma identidade feminista?”, em entrevista
4
concedida à Leeat Granek
no ano de 2009, Gilligan (LEEAT; GILLIGAN, 2009, p. 2, tradução minha)
responde que isso retoma muito antes de ter adentrado na Psicologia, logo, antes
da publicação de seu livro supracitado:
[Começou] No início da segunda onda do movimento de mulheres. Eu
participei do Movimento dos Direitos Civis. Eu fiz parte do recenseamento
eleitoral, do Movimento Antiguerra e do movimento para parar os testes
atmosféricos de armas nucleares. Então, em outras palavras, eu estava muito
envolvida em todos os movimentos dos anos de 1960. [...] E o feminismo foi
apenas uma extensão disso.
De origem judaica, Gilligan nasceu em 28 de novembro de 1936,
na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos. Frequentou a escola progressista
Walden School e graduou-se pela Swarthmore College em 1958, aos 22 anos,
estudando literatura inglesa, História e Psicologia, e dois anos depois, em 1960,
obteve seu Mestrado em Psicologia Clínica pelo Radcliffe College. Após graduar-
se no final da década de 1950, Gilligan casou-se com James Frederick Gilligan
(1935-atualmente).
Assim, tendo crescido em um ambiente considerado progressista para
a época, e já casada, Gilligan passou a se envolver em importantes movimentos
sociais que eclodiam nos Estados Unidos da cada de 1960. Cabe salientar que
esse é um período da História estadunidense muito marcado pela segregação
racial, pela violência, inclusive policial (portanto, institucional), à população
negra e à diversidade sexual e de gênero. Na entrevista de 2009, a própria Gilligan
(LEEAT; GILLIGAN, 2009, p. 3, tradução minha, grifos meus) rememora esse
período, em que conciliava seu casamento e a maternidade dado o nascimento
de seus primeiros filhos com sua atuação nos movimentos sociais, a carreira de
dançarina moderna que iniciou ao ingressar em uma companhia de dança onde
morava e seu Ph.D. em Psicologia Social em Harvard, como se segue:
4
Essa entrevista faz parte do projeto “História oral das vozes feministas da Psicologia” da Psychology’s Feminist
Voices, um arquivo digital multimídia on-line que contém as histórias de psicólogas feministas. Disponível em:
https://feministvoices.com/files/profiles/pdf/Carol-Gilligan-Oral-History.pdf. Acesso em: 01 out. 2021.
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[...] depois que terminei a Faculdade fomos para Cleveland porque meu marido
entrou para a Faculdade de Medicina lá. Isso deve ter sido em 1962, durante
as midterm elections. Na época ocorria o recenseamento eleitoral que registraria
eleitores afro-americanos para votar. Eu já tinha um filho de dois anos na época,
era
verão, e lembro-me de entrar na área de Hough, em Cleveland, que era ‘o’
bairro
negro da cidade, o gueto. Eu ia para lá de qualquer maneira porque eu era
dançarina
moderna e estava envolvida com uma companhia de dança moderna localizada
em Hough, chamada Karamu House, companhia que era na palavra
usada na
época ‘inter-racial’. [...] Assim, eu estava familiarizada com o bairro
porque essa
companhia de dança estava no meio dele. [...] Eu tinha um filho de dois anos,
era verão, e então coloquei meu filho no carrinho e fui bater de
casa em casa
pelo bairro. Se você fizesse isso com uma criança de dois anos,
você seria bem-
vindo. E eu batia nas casas [...] e as pessoas me convidavam
para entrar. Isso
foi antes de eu fazer qualquer trabalho [de pesquisa]. E eu me
sentava e
conversava com elas sobre a importância de se ter uma voz e, portanto,
a
importância do voto. Foram longas conversas. [...]. Assim me envolvi no
Movimento dos Direitos Civis... Até chegar no feminismo. [...] Então eu estava
fazendo o recenseamento eleitoral, estava dançando nessa companhia de dança
inter-racial, e logo voltaria para a Psicologia [em Harvard].
Em meio a essa conciliação entre vida pública (atuação em movimentos
sociais e carreira de dançarina moderna) e vida privada (casamento e cuidado dos
filhos), conciliação que interrompeu seus estudos na Psicologia por um curto
intervalo de tempo, após ter defendido seu Mestrado em 1960, Gilligan retomou
seus estudos ao ingressar no curso de Doutorado em Harvard.
Como ressalta a autora (LEEAT; GILLIGAN, 2009, p. 4, tradução
minha, grifos meus) sobre sua formação inicial: “como estudante de graduação em
Swarthmore, me formei em literatura inglesa e havia um Honours program em
que você tinha um major e dois minors. Meu major era literatura inglesa emeus
minors eram História e Psicologia”. E sua identificação com a Psicologia decorreu
de a “psicologia em Swarthmore ser a psicologia da Gestalt [a abordagem
predominante], que tratava apenas da percepção, o que era fascinante para mim.
[...] E eu pensei que queria ser uma terapeuta” (p. 5, tradução minha).
Essa identificação, no entanto, logo findou, “quando fui para a pós-
graduação em Harvard, que era a Psicologia Clínica convencional [a abordagem
predominante]” (LEEAT; GILLIGAN, 2009, p. 5, tradução minha), pois, como
ressalta a autora,
Quando cheguei [em Harvard], fiquei horrorizada com o campo da
Psicologia. Essa é a única coisa que posso dizer. Minha compreensão do mundo
humano foi moldada por Tolstoy, Faulkner, Virginia Woolf, Jane Austen, etc.
Como você poderia pensar na vida humana sem entender a história? [...] E
quando encontro esse mundo clínico, vejo uma linguagem do tipo ‘mãe é fria e
pai é distante’, e penso ‘o quê?’. Isso parecia ser tão reducionista. [...] Eu pensei
que ficaria louca (p. 5, tradução minha).
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A despeito desse choque e decepção com a abordagem predominante da
Psicologia na época, no ano de 1964 em Harvard Gilligan defendeu sua tesede
Doutorado intitulada Responses to temptation: an analysis of motives (Respostasà
tentação: uma análise dos motivos, em tradução livre) (GILLIGAN, 1964), emque
questionava “por que nós fazemos o que fazemos?” (GILLIGAN, 1998, p.127,
tradução minha). Nessa pesquisa que desenvolveu, analisou a mudança de
comportamentos diante de determinados contextos, lendo histórias a seus
entrevistados e manipulando os conflitos presentes nessas histórias: “Eu escrevi
uma dissertação muito curta [...] onde mostrei como você pode transformar
trapaceiros em não-trapaceiros e não-trapaceiros em trapaceiros, lendo histórias
para eles. A situação nelas é uma situação de conflito. Você manipula o conflito e
muda seu comportamento” (LEEAT; GILLIGAN, 2009, p. 5, tradução minha).
Entre 1965 e 1966, Gilligan atuou como professora na Universidade
de Chicago, onde seu marido era médico interno, sendo ela “[...] um dos
membros do corpo docente que se recusou a dar notas porque elas estavam sendo
usadas como base para o recrutamento [da guerra] do Vietnã” (GOLDBERG;
GILLIGAN, 2000, p. 701, tradução minha)”. Conforme descreve Goldberg, “ela
participou de protestos e se tornou ativa no registro de eleitores, no movimento
pelos direitos civis, no movimento antinuclear e na greve das mulheres pela paz”,
logo, “a importante questão de como as pessoas tomam decisões morais remetia
ao trabalho de doutorado de Gilligan, e continuou a se infiltrar em sua vida diária
e em seu pensamento, mas o assunto estava longe de ser o centro de qualquer
trabalho acadêmico que ela estivesse fazendo [naquele momento]” (2000, p. 701,
tradução minha).
Ainda nesse período, como ressalta Gilligan (2005, p. 729, tradução
minha), “no final da década de 1960, cinco anos após completar meu Ph.D.,
voltei a Harvard para dar aulas em meio período e, por sorte, tive a oportunidade
de ensinar com Erik Erikson em seu curso sobre o ciclo da vida humana, e depois
com Lawrence Kohlberg em seu curso sobre escolha moral e política”.
No curso de Erik Erikson (1902-1994), na época um importante
psicanalista e que viria a ser conhecido como um dos principais teóricos da
Psicologia do Desenvolvimento, “ele começava sua aula exibindo o filme de
[Ingmar] Bergman ‘Morangos Silvestres’ sobre o ciclo de vida” e, com esse filme,
“o problema que ele evidencia é que você não consegue entender história de vida
separada da história. História de vida e história estão interligadas. E eu conseguia
me relacionar com isso” (LEEAT; GILLIGAN, 2009, p. 6, tradução minha). A
autora reconhece que, “ele me mostrou uma maneira de trabalhar em psicologia
que, para mim, tinha integridade” (p. 6, tradução minha).
Quanto a Lawrence Kohlberg, o encontro com ele definiria seus
próximos passos no campo da Psicologia, como rememora a própria Gilligan
(1998, p. 126-127, tradução minha) seu primeiro contato com ele:
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Eu conheci Larry [Lawrence] pela primeira vez na primavera de 1969, em uma
festa na casa de Herb Saltzstein. Ao contrário de alguns rumores, eu não era
aluna de Larry, eu não era sua orientanda de pós-doutorado. [...] Alguns dias
após a festa de Saltzstein, Larry me ligou para perguntar se eu conduziria um
estudo com adolescentes. Eu estava interessada no raciocínio das pessoas sobre
as decisões da vida o que era chamado de ‘dilemas da vida real’, e o estudo era
sobre o raciocínio dos adolescentes sobre a tomada de decisões sexuais em suas
próprias vidas e também nos pais.
Então ao conhecê-lo pessoalmente cinco anos após seu doutoramento
em Harvard, Gilligan interessou-se pelo seu trabalho e aceitou o convite de
Kohlberg de colaborar como Pesquisadora Assistente (Research Assistent) nas
pesquisas que ele desenvolvia na época (GILLIGAN, 1998). Dessa colaboração,
que transcorreu durante a década de 1970, chegaram a publicar trabalhos
em conjunto (KOHLBERG; GILLIGAN, 1971; GILLIGAN et al., 1971;
GILLIGAN; KOHLBERG, 1978). É a partir desse trabalho anterior com
Kohlberg que Gilligan pôde seguir para seu próprio programa de pesquisa,
pioneiro e que a deixou conhecida mundialmente.
ANDROCENTRISMO E SEXISMO DAS TEORIAS PSICOLÓGICAS DO
DESENVOLVIMENTO
A teoria de Kohlberg (1992) sobre o desenvolvimento moral foi
extraída inicialmente de sua pesquisa de Doutorado, defendida no ano de 1958
na Universidade de Chicago (KOHLBERG, 1958), intitulada O desenvolvimento
de modos de pensamento e escolha moral nos anos 10 a 16, em tradução livre. Essa
teoria fundamenta-se no trabalho do epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-
1980), tanto no campo cognitivo como da moralidade, dando continuidade aos
estudos de Piaget (1932/1994) sobre o desenvolvimento moral, e na teoria da
justiça do filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002).
Nessa pesquisa de Doutorado, Kohlberg (1958) acompanhou
longitudinalmente uma amostra de 84 meninos brancos de classe médiade
Chicago e idade entre 10, 13 e 16 anos. Kohlberg utilizava de entrevistas para
coletar os juízos dos seus participantes sobre dilemas morais
5
que lhes eram
apresentados e, assim, analisar a qualidade dos juízos para resolução dos dilemas.
A principal contribuição dessa pesquisa foi a definição dos estágios de
desenvolvimento moral.
5
Dilemas morais o situações extremas, geralmente protagonizadas por um personagem, que envolvem dois
valores que o personagem protagonista deve decidir qual aderir. Os dilemas morais fazem parte da metodologia
kohlberguiana como forma de apreciar o raciocínio por detrás da adesão a determinado valor e, assim, de discer-
nir qual o estágio moral correspondente à justificação sobre o que o personagem deve fazer.
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Assim, Kohlberg (1992) propõe um modelo de desenvolvimento
universal, que todas as pessoas perpassam, e que se apresenta em três níveis (pré-
convencional, convencional e pós-convencional) e seis estágios, sendo dois estágios
correspondentes a cada nível. Sendo esses estágios hierárquicos e ausentes de
retrocessos, Kohlberg (1992) ressalta que esses raciocínios respectivos aos seus
estágios são raciocínios de justiça, e os quais evoluem qualitativamente em direção
a um ideal de justiça.
Para validação dessa teoria e respectivo modelo, Kohlberg dedicou
décadas de sua vida (de 1960 a 1980) para aplicação dos seus dilemas em diferentes
culturas e amostras de pesquisa. No entanto, desde quando começou a realizar
tais novos estudos, vários desses estudos demonstravam um baixo desempenho por
parte das mulheres em relação aos homens, como o próprio Kohlberg pontua:
“alguns estudos mostram diferenças entre os sexos, com adolescentes e adultos
homens pontuando mais que as mulheres. Isso inclui os estudos de Holstein
[1976], de Haan, Smith e Block [1968], e de Kuhn[, Langer, Kohlberg & Haan,
1977]” (KOHLBERG, 1982, p. 517, tradução minha). Quando eram avaliadas a
partir do modelo desenvolvimental de níveis e estágios da teoria de Kohlberg, as
mulheres geralmente chegavam a atingir somente até o estágio três, denominado
Orientação pelas expectativas do grupo, em que a moralidade se caracteriza pela
necessidade de estar de acordo com o que pessoas próximas esperam, enquanto os
homens as transpassavam.
Carol Gilligan (1977), na época colaboradora de Kohlberg nesses
estudos, lançou um olhar diferente sobre esses resultados de diferenças de gênero.
Para ela, as diferenças entre homens e mulheres, e o baixo desempenho por parte
delas, dar-se-iam pela orientação moral distinta das mulheres para responder aos
dilemas morais.
Foi nessa época que, contratada pela Universidade de Harvard, Gilligan
passou a trabalhar com dilemas morais reais
6
em suas próprias pesquisas e, diante
do contexto estadunidense de início da década de 1970, utilizou do aborto como
tema para basear seus dilemas:
[...] em 1973, ano em que a Suprema Corte dos EUA legalizou o aborto,
deu-se às mulheres uma voz decisiva. Resumindo meu estudo, concentrei-me
na decisão das mulheres em continuar ou abortar uma gravidez. Eu estava
totalmente cega para a variável gênero na época, mas o que começou como
um estudo envolvendo homens [com o trabalho junto de Kohlberg] se tornou
um estudo com mulheres. E naquele momento histórico, após a decisão da
Suprema Corte no caso Roe versus Wade, o altruísmo, há muito visto como o
epítome da bondade feminina, de repente pareceu moralmente problemático
(GILLIGAN, 2011, online, tradução minha).
6
Dilemas podem ser hipotéticos, quando mais abstratos e difíceis de ocorrerem, ou reais, quando encontrados
mais facilmente no cotidiano da vida real. As críticas de Gilligan, quanto à metodologia kohlberguiana, também
se voltaram ao recorrente uso de dilemas hipotéticos em detrimento dos dilemas reais.
SILVA, M. E. F.
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Na divulgação dos primeiros resultados dessas suas pesquisas, Gilligan
(1977) ressalta ter encontrado a progressão da moral pré-convencional à pós-
convencional nas respostas das mulheres aos dilemas. No entanto, a autora
(1977, p. 492, tradução minha) argumenta que o dilema do aborto revela a
existência “de uma linguagem moral distinta cuja evolução informa a sequência
do desenvolvimento das mulheres. Essa linguagem [...] define o problema moral
como uma obrigação de exercer cuidado e evitar danos [e que] diferencia as
mulheres dos homens”.
No ano de 1982, Gilligan publica seu livro, que se tornou best- seller,
Uma voz diferente (GILLIGAN, 1982), que trata de três das pesquisas que
realizou, a primeira sobre identidade e desenvolvimento moral (com 25
estudantes universitários), a segunda com mulheres grávidas sobre a temática
do aborto (com 29 mulheres selecionadas em uma serviço de aconselhamento
para clínicas de gravidez e aborto em uma área metropolitana) e a terceira sobre
direitos e responsabilidades (com 144 sujeitos, sendo homens e mulheres). Essas
pesquisas reiteraram suas constatações anteriores (GILLIGAN, 1977) sobre o
desenvolvimento moral das mulheres diferir dos homens, sendo suas amostras
diversificadas em termos etários, étnicos, de gênero e de classe social.
O aparente déficit no desenvolvimento moral feminino foi atribuído por
Gilligan (1982) como um problema na teoria de Kohlberg em dois aspectos: de
metodologia e, consequentemente, de teoria. No primeiro aspecto, de metodologia,
na amostra original de sua tese (KOHLBERG, 1958), como referido, ela foi
composta totalmente pelo público masculino 84 meninos brancos de classe
média. Dessa forma, a teoria de Kohlberg conservou um viés masculinizante, isto
é, assumiu a experiência masculina como regra (androcentrismo) para elaborar um
modelo de desenvolvimento que se pretende universal. Isso leva segundo
aspecto problemático, de teoria.
Nesse segundo aspecto, qualquer diferença que apareça entre as
mulheres e os homens na trajetória do desenvolvimento traçada é “em geral
considerada como significando um problema no desenvolvimento das mulheres”
(sexismo) (GILLIGAN, 1982, p. 11), sendo elas então as desviantes.
Enquanto no estudo de Piaget do julgamento moral da criança, as meninas
são um à parte, uma curiosidade a quem ele se dedica quatro curtos verbetes
num índice que omite também ‘meninos’ porque se presume ‘a criança’
como masculina na pesquisa da qual Kohlberg extrai sua teoria, as mulheres
simplesmente não existem (GILLIGAN, 1982, p. 28).
Não obstante a essa constatação e a crítica que tece ao entendimento
androcêntrico e sexista deixado por Kohlberg em seus estudos de que as mulheres
apresentam um desenvolvimento deficitário, Gilligan (1982) também constatou
A crítica de Carol Gilligan ao androcentrismo e sexismo
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esse entendimento em várias outras teorias psicológicas do desenvolvimento, tais
como as teorias de Piaget, Erik Erikson, Sigmund Freud (1856-1939) e outros.
No caso de Piaget, que aqui cabe ressaltar por se tratar de um trabalho
de pesquisa dentro da mesma tradição teórica
7
de Kohlberg e, naquele momento,
de Gilligan, em seu livro O juízo moral na criança de 1932, único de Piaget
destinado à investigação empírica da moralidade, o autor (1932/1994) dividiu sua
metodologia de investigação pelo gênero dos(as) participantes, não problematizou
e tirou conclusões sobre o desempenho supostamente inferior das meninas no
desenvolvimento moral.
Em momento em que investigou como as crianças aprendem as regras de
jogos, observando-as separadamente pelo gênero, meninos e meninas, enquanto
jogavam “bolinha” e “pique/amarelinha”, Piaget (1994, p. 69) aponta diferenças
entre os gêneros e enfatiza que mesmo uma observação superficial pode revelar que
as meninas: “têm o espírito jurídico muito menos desenvolvido que os meninos”,
e que são “mais tolerantes e mais facilmente satisfeitas com as inovações [...] e
é nisso que podemos considerá-las como menos preocupadas com a elaboração
jurídica” (PIAGET, 1994, p. 73). De outras formas, esse entendimento se estende
ao trabalho de Erikson e Freud.
A partir disso, Gilligan (1982) infere que a teoria de Kohlberg (1992)
não estaria adequada para avaliação das mulheres, uma vez que elas partiriam de
uma estrutura de raciocínio moral distinta, que prioriza o cuidado e bem-estar do
outro, que deu o nome de Ética do Cuidado, enquanto os homens priorizariam
em seus juízos morais uma estrutura que chamou de Ética da Justiça, que a
teoria de Kohlberg estaria exclusivamente voltada. No seu livro, vale ressaltar,
Gilligan considera a orientação moral pelo cuidado como uma alternativa de
desenvolvimento não substituta, mas complementar à orientação pela justiça
traçada por Kohlberg.
Logo na introdução de seu livro, Gilligan (1982) deixa claro que a
orientação moral ao cuidado que encontra é identificada não por gênero, mas por
tema. Assim, a Ética do Cuidado representa apenas uma maneira diferente de se
responder a problemas morais e sua associação às mulheres é uma constatação
empírica. Quando Gilligan escutou as vozes não ouvidas (das mulheres), percebeu
que elas expressavam uma forma diferente de a moralidade se basear, que não pela
justiça, e que por isso apareciam como menos desenvolvidas que os homens, por
serem avaliadas por um modelo que não as representavam. E a Ética do Cuidado
apareceu empiricamente vinculada às mulheres.
7
Considera-se Piaget como quem inaugura a abordagem cognitivo-evolutiva no estudo psicológico da mo-
ralidade, porém que foi consolidada por Kohlberg, cujos estudos consolidaram o campo da Psicologia do
Desenvolvimento Moral. Piaget (1932/1994) forneceu apenas as primícias da abordagem cognitivo-evolutiva,
que foi constituída a partir dos estudos e da teoria de Kohlberg (1992), que aprofundou os estudos de Piaget,
sendo a teoria moral piagetiana considerada como um projeto inacabado (FREITAS, 2003).
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É importante enfatizar que não foi objetivo de Gilligan (1982) propor
em seu livro de 1982 uma teoria moral e um modelo de desenvolvimento
subjacente. Seu objetivo foi contrastar “dois modos de pensar e focalizar um
problema de interpretação mais do que representar uma generalização sobre
ambos os sexos” (GILLIGAN, 1982, p. 12), ou seja, de contestar a universalidade
da teoria kohlberguiana que excluía as mulheres e de enfatizar uma outra forma de
se responder a problemas morais (pelo cuidado). Ainda assim, seu livro é
seminal nesse sentido e fornece as bases para essa teoria e modelo, retomados e
consolidados em pesquisa por suas(seus) continuadoras(es) pouco depois. Sem
abandonar a perspectiva estruturalista de Kohlberg, desde seu livro Gilligan
(1982) deixou anunciado níveis de desenvolvimento moral do cuidado.
Em seu modelo, que se aplicaria melhor à perspectiva feminina, Gilligan
(1977; 1982) mantem a divisão do desenvolvimento moral em três níveis, tal como
em Kohlberg, porém com cinco estágios respectivos, sendo dois deles transicionais.
Na transição de cada nível, é resolvido um conflito entre o Eu (self) e os Outros,
isto é, entre a responsabilidade consigo mesmo e a responsabilidade com os
outros. A definição mais recente dos níveis e estágios do modelo gilliginiano foi
proporcionada com a elaboração da Ethics of Care Interview (ECI) pela norueguesa
Eva Skoe (1993).
CONTRIBUIÇÃO FEMINISTA DE GILLIGAN À PSICOLOGIA E À
PRODUÇÃO CIENTÍFICA
Fleming (2006, p. 16, tradução minha), ressalta que o trabalho de
Gilligan vai além de “críticas a preconceitos sexistas”, uma vez que “ela desenvolveu
ideias teóricas próprias, principalmente quanto a mulheres e homens diferirem em
suas concepções de moralidade”. Seu trabalho e suas ideias ganharam visibilidade
mundial com a publicação de Uma voz diferente, no ano de 1982, que, no dizer
da Harvard University Press que o publicou, “é o pequeno livro que começou
uma revolução” (GILLIGAN, 2015, p. 19, tradução minha). Essa visibilidade é o
resultado do quanto suas ideias foram importantes e revolucionárias para a época,
final da década de 1970 e início da década de 1980.
No entanto, a recepção desse livro e de suas ideias divide opiniões
até hoje, sendo aclamados por uns e, ao mesmo tempo, criticados por outros.
Hekman (1995, p. 01, tradução minha) pontua que “os críticos e defensores de
Gilligan a elegeram, respectivamente, como a vilã ou salvadora do debate
intelectual em andamento nos anos 1980 e 1990”. Embora sua recepção se
divida, neste artigo não visitaremos todos os seus reconhecimentos e críticas.
Interessa-nos, aqui, o reconhecimento de Gilligan no que se refere à produção
do conhecimento científico, em Psicologia e outras áreas do conhecimento, ao
desvelar a reprodução da visão androcêntrica de mundo e do sexismo pela Ciência
moderna, que controversamente se dizia neutra e livre de valores.
A crítica de Carol Gilligan ao androcentrismo e sexismo
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De acordo com Brabo (2015, p. 111), o Feminismo surgiu desde o final
do século XIX, mas se tornou difundido no início do século XX, considerado
tanto “[...] um movimento social, com uma ideologia de libertação das mulheres,
quanto uma teoria crítica do sexismo (discriminação de sexo baseada na ideologia
da inferioridade da mulher), da visão androcêntrica de mundo e da dominação
masculina”.
Para sua apreensão histórica, ainda que não haja consenso na literatura,
Brabo (2015) e Nogueira (2017) ressaltam que o Feminismo pode ser dividido
temporalmente em Ondas sequenciais: a Primeira Onda, que se situa no final do
século XIX até os anos de 1960; a Segunda Onda, situada até meados dos anos de
1980; e a Terceira Onda, situada a partir da década de 1990, onda que se encontra
atualmente em curso e, em alguns círculos, referenciada como pós-feminismo.
O livro de Gilligan é publicado no período de Segunda Onda do
Feminismo, sendo recebido pela academia universitária no início da década de
1980, a princípio nos Estados Unidos, onde sua repercussão foi imediata. Nesse
momento histórico, as teorizações decorrentes do Movimento Feminista ainda
se institucionalizavam nas Universidades, mediante a constituição formal de um
campo de conhecimento multidisciplinar autointitulado Estudos Feministas
(Feminist Studies).
Na literatura dos Estudos Feministas, em que o trabalhou de Gilligan
se somou, Lemos de Souza (2017, p. 22) ressalta que a crítica feminista pôde
sinalizar diversos equívocos no modo de condução das pesquisas que implicam
também o questionamento de seus fundamentos, e “dentre elas, destacam-se duas
críticas: a) a da condução dos resultados em função das hipóteses formuladas
previamente pelos cientistas; b) as teorias científicas serviam a determinadas
posições androcêntricas ou estruturas de poder”.
E as críticas que Gilligan (1982) faz em Uma voz diferente envolvem
essas duas críticas da literatura feminista sinalizadas pelo autor (2017).
Na primeira crítica, a) Gilligan emprega o uso das narrativas, tal como
Kohlberg em suas entrevistas com dilemas, mas com mulheres grávidas com
dilemas sobre a decisão de fazer ou não aborto. Nesse trabalho, ela não incita as
mulheres a raciocinarem pela Ética de Justiça, deixando suas respostas aparecerem
livremente, compreendendo que “[...] precisamos alterar nossa estrutura
interpretativa para ouvir suas histórias como histórias morais” (HEKMAN,
1995, p. 07, tradução minha). Foi a partir dessa adaptação do método original de
Kohlberg, sem ir avalia-las a partir de um modelo prévio, que Gilligan (1982) fez
as vozes das mulheres serem ouvidas.
Na segunda crítica, b) Gilligan constata a presença nula, ou quase
nula, das mulheres nas primeiras amostras que as principais teorias psicológicas
do desenvolvimento tiveram sua elaboração baseada. Assim, o resultado que
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essas teorias encontram, de que as mulheres apresentam um desenvolvimento
deficitário, seria um reflexo desse enviesamento pelo qual foram criadas, pois elas
não representam o desenvolvimento das mulheres. Não obstante, também
evidencia uma tendência sexista de, quando se percebe diferenças entre homens
e mulheres, de que essa diferença é sempre resultante de um problema no
desenvolvimento das mulheres, então as desviantes.
Gilligan, portanto, dentro dessa literatura feminista de crítica
epistemológica à Ciência, contribui no sentido de promover “rupturas nos
modelos de conhecer com base na emergência de outras categorias necessárias
para pensar os conhecimentos sobre a realidade e nós mesmos” (LEMOS DE
SOUZA, 2017, p. 25). Ela evidencia outras formas de se conceber e produzir
conhecimento, além de denunciar o seu status anterior, então prejudicial às
mulheres por compactuar com estruturas de poder que perpetuam desigualdades
historicamente afirmadas entre homens e mulheres
8
.
Em um nicho dos Estudos Feministas voltado à Psicologia, o
trabalho de Gilligan foi somado, e tornou-se referência nele, o qual denuncia
a resistência da Psicologia para “um inevitável compromisso ético-político que [...
historicamente] sempre se recusou a fazer” (OLIVEIRA, 2017, p. 9). Essa
literatura feminista denuncia que a Psicologia, construída a partir de referenciais e
metodologias positivistas e experimentalistas, historicamente recusou a assunção
de qualquer compromisso político, como o feminista, e isso permitiu a geração de
interpretações androcêntricas e sexistas sobre o desenvolvimento humano, como
referido anteriormente.
A contribuição feminista de Gilligan, contudo, não se esgota com
as implicações que teve na crítica à produção do conhecimento. Seu trabalho
também reverberou no pensamento feminista de sua época, especificamente em
um momento autocrítico que o Movimento Feminista revisava, do ponto de
vista teórico, suas pautas quanto às questões de gênero. Essa reverberação foi
tamanha a ponta de ajudar a fundar uma corrente intelectual feminista, chamada
de Feminismo da Diferença.
Antes, o Feminismo reivindicava o direito à igualdade, mas a partir
daquele momento autocrítico, algumas feministas passaram a reivindicar o direito
à diferença. Essa mudança deu-se, segundo Araújo (2005, p. 47), por se perceber
como problemático as mulheres quererem assimilar modelos masculinos:
8
É importante salientar que no contexto da publicação do livro de Gilligan, o debate sobre a cisgeneridade e
transgeneridade ainda não se fazia tão presente, considerando que o campo dos Estudos Feministas ainda se
consolidava, assim com o campo dos Estudos de Gênero constituído pouco depois. Contemporaneamente, cabe
ampliar o debate do “grupo mulheres” para perspectivas da transgeneridade.
A crítica de Carol Gilligan ao androcentrismo e sexismo
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[as feministas] queriam ocupar os espaços dos homens, comportando-se, agindo,
sentindo e falando como eles. E, assim, acabaram se defrontando
com
uma crise de
identidade, ao perceberem
que com esses comportamentos
supervalorizavam
as
qualidades consideradas masculinas, em detrimento das femininas.
A partir dessa revisão, uma nova vertente de pensamento feminista é
fundada, o Feminismo da Diferença, que “[...] defende a existência de diferenças
entre homens e mulheres, mas assume que as características feministas são de valor
(inclusive valor societal) superior” (NOGUEIRA, 2017, p. 34). Logo, uma de
suas principais bases teóricas foi o trabalho de Gilligan, surgido oportunamente
naquele contexto.
De forma simplificada, poderíamos dizer que [o Feminismo da Diferença]
enfatiza as diferenças psicológicas entre homens e mulheres, tomando cada grupo
como homogêneo internamente e valorizando os aspectos da personalidade
das mulheres relacionados à maternidade. [...] No âmbito do ‘feminismo da
diferença’, entretanto, o que prevalece é a polaridade homem-mulher, uma
premissa apoiada num segundo pressuposto: a universalidade dessas categorias
(homem, mulher, a oposição binária entre eles) (CARVALHO, 1999, p. 20).
Apesar desse reconhecimento de Gilligan, diversas críticas também
foram tecidas à autora e às suas ideias. O Feminismo da Diferença, por exemplo,
foi rechaçado pelas demais vertentes teóricas feministas, principalmente por aquelas
mais contemporâneas de orientação pós-estruturalista e interseccional, por sugerir um
essencialismo identitário: de que existe uma essência masculina e feminina, ou seja, de
um modo primário, natural, universal ou imutável de ser homem e ser mulher. E essa
crítica se estende ao trabalho de Gilligan, que também foi acusado de essencialista.
Apesar de, desde seu livro de 1982, Gilligan (1982) deixar anunciado
que a Ética do Cuidado é caracterizada por tema, não por gênero, e que sua
associação às mulheres não é absoluta, Zirbel (2016) elenca quatro problemas
interligados provenientes desse essencialismo sugerido em suas ideias:
[1)] a ausência de pluralidade na descrição das experiências humanas, [2)]
o binarismo resultante desta ausência de pluralidade, [3)] a uniformização
dos processos de desenvolvimento moral e [4)] o reforço dos estereótipos
que sustentam o sistema de gênero. Possivelmente por conta da estratégia do
contraste e da necessidade de evidenciar o androcentrismo do modelo de
moralidade kohlberguiano, Gilligan deixou de pontuar (ou falhou em
perceber) a multiplicidade das experiências e formas de ser tanto de homens
quanto de mulheres. Como resultado, uma uniformização dos processos de
desenvolvimento moral que permite a associação das mulheres à perspectiva do
cuidado e da preservação dos relacionamentos, e a dos homens à perspectiva
da justiça e da autonomia. O que dá margem às críticas endereçadas a Ética do
Cuidado gilliginiana de que a mesma reforça os papéis tradicionais de homens e
mulheres na sociedade.
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Apesar disso, o trabalho de Gilligan e suas ideias continuam como uma
importante referência, tanto à Psicologia do Desenvolvimento Moral como aos
Estudos Feministas. Prestes a completar 40 anos desde a publicação de Uma voz
diferente, as ideias de Gilligan continuam atuais, sendo ainda trazidas e discutidas
na pesquisa científica, em âmbitos nacional e internacional.
Desdobrada dessas suas críticas, a teoria do cuidado, ou teoria da
Ética do Cuidado, foi continuada por Gilligan (1998; 2011; 2015; GILLIGAN;
ATTANUCCI, 1988) juntamente de outras(os) autoras(es), como a citada Skoe
(1993) e outras como Joan Tronto, Nel Noddings, Virginia Held, entre outras(os),
ainda que algumas dessas(es) autoras(es) tenham dado à Ética do Cuidado novas
roupagens, diferentes da proposta original gilliginiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, buscamos resgatar as críticas de androcentrismo e
sexismo tecidas no âmbito do trabalho de Carol Gilligan às teorias psicológicas do
desenvolvimento. Esse resgate foi feito ressaltando as implicações que tais críticas,
iminentemente feministas, tiveram aos modos de se conceber e produzir
conhecimento na Psicologia e na Ciência em geral, além de sua reverberação no
campo dos Estudos Feministas.
Em recente manifestação de Gilligan sobre a reverberação de seu
trabalho nesse aspecto aqui visitado, que pode ser vista na entrevista que nos
concedeu por ocasião do Dossiê “40 anos de ‘Uma voz diferente’: contribuições,
desdobramentos e o legado das ideias de Carol Gilligan (1936-)”, ela nos disse:
[...] lembro-me de como, desde o início, meu trabalho foi reconhecido como
um ‘pertubardor’. Eu estava perturbando uma história sobre o desenvolvimento
humano que não parecia verdadeira. Levei mais tempo do que imaginei para
chegar às seguintes três frases que falam diretamente sobre o que m sido as
principais fontes de confusão em torno do meu trabalho, incluindo a questão
de gênero.
1.
A voz diferente é uma voz humana
2.
A voz da qual ela difere é uma voz patriarcal
3. Em uma sociedade ou cultura patriarcal, uma voz humana é uma voz de
resistência.
Em suma, embora a ‘voz diferente’ seja uma voz humana, as vozes das mulheres
continuam a ser críticas para trazer à tona a tensão entre a democracia (baseada
na voz igual) e o patriarcado (que privilegia as vozes dos pais). (SILVA;
GILLIGAN, 2022, p. 24).
O pensamento de Gilligan continua vivo e atual. Em 2022, às vésperas
do 40º aniversário de seu livro publicado em 1982, concordamos com o que
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Hekman (1995, p. 01, tradução minha) ressaltou no final da cada de 1990:
“as ramificações morais, epistemológicas e metodológicas de seu trabalho ainda
estão sendo exploradas”. Concordamos e ampliamos essa afirmação: neste início
da segunda década do século XXI, as ideias lançadas no livro Uma voz diferente
não se esgotaram, continua sendo uma obra seminal nos vários sentidos em que as
ideias nele contidas foram desenvolvidas e exploradas, por isso frequentemente
retomado e redescoberto em diferentes áreas do conhecimento.
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