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CIÊNCIA EXPERIMENTAL E TRADUTIBILIDADE. OBJETIVIDADE E IDEOLOGIA
CIENTÍFICA NOS CADERNOS DO CÁRCERE
Experimental science and translatability. Objectivity and scientific ideology in the Prison Notebooks
Scienze sperimentali e traducibilità. Oggettività e ideologia scientifica nei Quaderni del Carcere
Camilla Sclocco
1
RESUMO:
O artigo constitui uma reformulação do minicurso realizado por ocasião do III COLÓQUIO
INTERNACIONAL ANTONIO GRAMSCI (IGS-Brasil) "Filosofia da práxis e tradutibilidade: legado de
Gramsci na América Latina". A primeira parte investiga a conexão entre a reflexão sobre as ciências
experimentais e o tema da tradutibilidade nos Cadernos da Prisão. A segunda parte discute a relação da
epistemologia de Gramsci com a filosofia de Croce e a filosofia de Lênin. A terceira parte mostra a
relevância da reflexão de Gramsci sobre as ciências no contexto dos debates epistemológicos
contemporâneos.
PALAVRAS-CHAVE: ciência experimental, epistemologia, tradutibilidade, cosmopolitismo.
ABSTRACT:
The article constitutes a re-elaboration of the minicurso held on the occasion of the III COLÓQUIO
INTERNACIONAL ANTONIO GRAMSCI (IGS-Brasil) "Filosofia da práxis e tradutibilidade: legado de
Gramsci na América Latina." In the first part, the link between the reflection on experimental sciences and
the theme of translatability in the Prison Notebooks is investigated. The second part discusses the
relationship of Gramsci's epistemology with Croce's philosophy and Lenin's philosophy. The third part
shows the relevance of Gramscian reflection on the sciences in the context of contemporary epistemological
debates.
KEY-WORDS: experimental sciences, epistemology, translatability, cosmopolitanism.
1
Doutoranda em Filosofia na École Normale Supérieure de Lyon (Triangle). Graduada na Faculdade de Filosofia da
Università degli Studi di Roma La Sapienza.
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ESTRATTO:
L'articolo costituisce una rielaborazione del minicurso tenuto in occasione del III COLÓQUIO
INTERNACIONAL ANTONIO GRAMSCI (IGS-Brasil) “Filosofia da práxis e tradutibilidade: legado de
Gramsci na América Latina”. Nella prima parte viene indagato il legame tra la riflessione sulle scienze
sperimentali e il tema della traducibilità nei Quaderni del carcere. La seconda parte discute il rapporto
dell'epistemologia gramsciana con la filosofia di Croce e con la filosofia di Lenin. La terza parte mostra
l'attualità della riflessione gramsciana sulle scienze nell'ambito dei dibattiti epistemologici contemporanei.
PAROLE-CHIAVE: scienze sperimentali, epistemologia, traducibilità, cosmopolitismo.
INTRODUÇÃO
Em 2017, em um denso artigo sobre o conceito de tradutibilidade, Giuseppe Cospito concluiu
enfatizando a necessidade de novas investigações que melhor especificariam, no pensamento gramsciano
“la connessione tra il tema della traducibilità […] e il rifiuto di ogni teoria corrispondentista della verità
che presupponga un oggetto esterno indipendente (Cospito 2017, p. 58). Nas páginas seguintes, tentaremos
explorar esta questão em duas direções específicas. Em primeiro lugar, focalizando como na reflexão de
Gramsci a atividade das ciências experimentais é pensada em relação ao cleo teórico do conceito de
tradutibilidade, ou seja, o caráter cosmopolita do processo civilizatório. E, em segundo lugar, reconectando
este tema à questão da relação de Gramsci com a filosofia de Croce e Lênin.
Em conclusão, seguindo as solicitações de Javier Balsa (Balsa 2019, pp. 196-197) e Raul Burgos
(Burgos 2019, pp. 247-250) para que os estudos gramscianos na Itália não separassem o estudo filológico
da investigação política do presente, também expressa na Conferência Internacional de Estudos Egemonia
e modernità. Il pensiero di Gramsci in Italia e nella cultura internazionale (Roma, 18-20 de maio de 2017)
(Frosini, Giasi 2019), tentaremos atualizar alguns dos temas da discussão da Gramsci sobre as ciências
experimentais, para mostrar seu potencial como instrumento de análise crítica dos debates epistemológicos
contemporâneos e de suas premissas políticas.
CIÊNCIA E TRADUCIBILIDADE
Nos Cadernos da Prisão, o tema da ciência experimental se cruza com o tema da tradutibilidade
em relação à questão do cosmopolitismo. A tendência de unificação mundial da economia determina que a
filosofia da práxis assume uma visão internacional do processo de construção do sujeito e assim que
concebe todas as atividades humanas (filosofia, arte, ciência etc.) e todas as diferentes culturas nacionais
como parte da mesma processualidade política (Descendre, Zancarini 2016, pp. 16-17). A participação no
mesmo processo político faz que eles se juntem e que se traduzam umas nas outras, de acordo com uma
tradução que, como Gramsci lembra em uma nota do Caderno 11, non è perfetta certamente, in tutti i
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particolari, anche importanti […] ma lo è nel fondo essenziale (Gramsci 1975, p. 1470). Esta forma
internacionalista de entender o processo de construção do sujeito está de fato ligada à peculiar convençao
de Gramsci segundo a qual a sociedade humana, no presente ainda fragmentada em grupos sociais e dividida
em grupos estatais, será conduzida pela prática comunista à superação da fragmentação conflituosa e à
unificação mundial. É neste sentido que o conceito de tradutibilidade segundo Gramsci é um elemento
critico inerente al materialismo storico (Gramsci 1975, p. 851), ou seja, delimita a originalidade crítica
do marxismo frente a todas as outras filosofias (Frosini 2019, pp. 45-48).
Esta visão do processo histórico como tendência ao cosmopolitismo e da construção política do
sujeito como realizando-se em nível internacional segundo os modos de tradução nacional leva Gramsci a
delinear uma forma original de progresso cultural. Atividade de tradução tua entre diferentes povos e
diferentes culturas nacionais que participam de uma mesma visão política, o progresso cultural é entendido
como o trabalho de colaboração de todos os povos:
due culture nazionali, espressioni di civiltà fondamentalmente simili, credono di
essere diverse, opposte, antagonistiche, una superiore all’altra, perché impiegano
linguaggi di tradizione diversa, formatisi su attività caratteristiche e particolari a
ognuna di esse. […] Per lo storico, in realtà, queste civiltà sono traducibili
reciprocamente, riducibili l’una all’altra. […] il progresso reale della civiltà
avviene per la collaborazione di tutti i popoli, per “spinte” nazionali (Gramsci
1975, p. 1470).
A partir destes dois núcleos do conceito de tradutibilidade (o caráter global do processo de
construção de uma nova civilização e cosmopolitismo como ponto de chegada da prática marxista) é
possível identificar um terreno teórico para compreender o entendimento de Gramsci sobre as ciências
experimentais em relação ao princípio da tradutibilidade. A questão surge em uma nota no Caderno 11
escrita entre julho e agosto de 1932
2
, onde Gramsci argumenta que
la scienza sperimentale è stata (ha offerto) finora il terreno in cui una tale unità
culturale ha raggiunto il massimo di estensione: essa è stata l’elemento di
conoscenza che ha più contribuito a unificare lo “spirito”, a farlo diventare più
universale; essa è la soggettività più oggettivata e universalizzata concretamente
(Gramsci 1975, p. 1416).
Para entender a idéia da ciência como a atividade que mais contribui à unificação cultural da
humanidade e, como conseqüência, para esclarecer como o tema da tradutibilidade está entrelaçado com a
2
A datação aqui e nas seguintes páginas é tirada de Cospito (2011, pp. 897-904).
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negação de Gramsci da existência transcendente da matéria, é necessário retraçar algumas das discussões
mais amplas sobre ciência delineadas nos cadernos entre outubro de 1930 e dezembro de 1932. Em
particular, a tentativa gramsciana de uma historiacização absoluta das ciências experimentais em polêmica
com a idéia positivista da ciência assumida acriticamente pelo materialismo histórico do filósofo e político
soviético Nicolaj Ivanovič Bucharin.
A HISTORICIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS EXPERIMENTAIS
Temporalmente sobreposta à reformulação do materialismo histórico em filosofia da práxis, a
discussão de Gramsci sobre as ciências experimentais é sua verdadeira chiave di volta (Izzo 2021, p.
122), porque ela é orgânica à crítica da degeneração sociológica do marxismo de Bucharin. E, mais
genericamente, ela é organica à crítica da tendência dogmatizadora do marxismo soviético nos anos 30,
dependente do projeto político do socialismo em um país e do processo de bolchevização da Internacional
Comunista. Seguindo os diferentes fios da reflexão carcerária, emerge de fato como, segundo Gramsci, o
caráter dogmático do marxismo de Bucharin depende de seu fundamento sobre as pedras angulares da
epistemologia positivista. Ou seja, sobre a idéia da existência de uma matéria objetiva que evolui de acordo
com leis independentes do sujeito e sobre a noção de ciência como uma atividade neutra capaz de refletir
essas leis objetivas. No centro, então, da definição do marxismo como sociologia, que Stalin mais tarde
colocou na base da teoria do Diamat, haveria uma des-historicização das ciências naturais, que adquirem o
status de disciplinas objetivas, neutras, removidas da dinâmica histórica, capazes de se elevarem acima dos
conflitos de classe para restituir o mundo externo como o é (Fresu 2019, pp. 308-330; Balsa 2018). É por
isso que, em março de 1932, na terceira série dos Appunti di filosofia, Gramsci argumenta que o problema
das ciências naturais é o fundamental a ser resolvido para purgar o marxismo das tendências metafísicas e
deterministas:
la posizione delle scienze naturali o esatte nel quadro del materialismo storico.
Questo è il problema più interessante e urgente da risolvere, per non cadere in
un feticismo che è appunto una rinascita della religione sotto altre spoglie
(Gramsci 1975, p. 1076).
Para Gramsci, a reformulação do materialismo histórico em filosofia da práxis deve passar pela
elaboração de uma nova teoria epistemológica. Uma teoria que historiciza as ciências naturais, que as
considera internas aos discursos hegemônicos, enraizadas na ideologia e que, ao mesmo tempo, não perde
o conceito de objetividade e o reelabora a partir do princípio da união do sujeito e do objeto, da teoria e da
práxis.
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A nota mais abrangente deste ponto de vista é o § 17 do Caderno 11, que traz o título La così detta
“realtà del mondo esterno”. Aqui, de fato, Gramsci enfatiza que no fundo da defesa da transcendência
material de Bucharin está uma concepção destoricizada das ciências naturais:
la quistione [difesa della materia in sè] è strettamente connessa, e si capisce, alla
quistione del valore delle scienze così dette esatte o fisiche e alla posizione che
esse sono venute assumendo nel quadro della filosofia della praxis di un quasi
feticismo, anzi della sola e vera filosofia o conoscenza del mondo (Gramsci
1975, p. 1413).
A referência crítica neste caso é Theory and practice from the standpoint of dialectical
materialism, discurso de Bucharin no 2º Congresso Mundial de História da Ciência e Tecnologia, realizado
em Londres no verão de 1931 (Bucharin 1931). Aqui o filósofo soviético havia justificado a existência da
realidade do mundo externo a partir das certezas espontâneas do senso comum e havia ridicularizado teorias
idealistas que, afirmando que o mundo é uma criação da atividade do sujeito, acabaram por herdar o
preconceito religioso de um mundo externo criado por Adão. Segundo Gramsci o contrário é verdadeiro. É
a crença instintiva na realidade externa pelo senso comum que é derivada das religiões. Estes, de fato,
ensinando que o mundo é criado por Deus para o ser humano, que o ser humano enfrenta um mundo
catalogado em espécies e ordenado em leis, mostram que eles também contêm dentro de si princípios de
materialismo. Daqui a necessidade da filosofia praxis de se confrontar seriamente com as filosofias
idealistas, sem ridicularizá-las. Tal confronto demonstraria que a filosofia da praxis não é herdeira do
materialismo de senso comum. Ao contrário, ela traduz a concepção idealista na teoria das superestruturas.
De modo que o que a filosofia clássica moderna exprime de forma especulativa no conceito de espírito, a
filosofia da práxis posa na linguagem historicista, na afirmação do caráter superestrutural de toda atividade
humana e da concepção do mundo:
fa anzi meraviglia che il nesso tra l’affermazione idealistica che la realtà del
mondo è una creazione dello spirito umano e l’affermazione della storicità e
caducità di tutte le ideologie da parte della filosofia della praxis, perché le
ideologie sono espressione della struttura e si modificano col modificarsi di essa,
non sia mai stato affermato e svolto convenientemente (Gramsci 1975, p. 1413).
O que deve ser enfatizado é que em Gramsci não ocorre o abandono do conceito de objetividade,
nem a rejeição de sua utilidade na luta político-cultural. Ao contrário, a noção de objetividade é desligada
de uma concepção metafísico-materialista, ou seja, religiosa, e submetida a uma operação de historicização
absoluta. Isto emerge bem de uma nota no Caderno 11 contida na seção intitulada La scienza e le ideologie
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“scientifiche”, onde Gramsci observa que o problema da definição do conceito de objetividade é de
importância central para a elaboração da filosofia da práxis:
la quistione più importante da risolvere intorno al concetto di scienza è questa:
se la scienza può dare, e in che modo, la “certezza” dell’esistenza obiettiva della
così detta realtà esterna (Gramsci 1975, p. 1455).
A seguir, é mostrado que, do ponto de vista da filosofia da práxis, a ciência é uma atividade que
não encontra seu objeto já existente, mas que o constrói com o uso de instrumentos materiais e teóricos. O
processo de construção de conceitos objetivos da ciência se dá através de um longo processo de seleção de
sensações cujo caráter fundamental é sua universalidade, ou seja, o fato de ser realizado através da
colaboração de toda a comunidade internacional de cientistas. Gramsci entra também nas especificidades
deste processo, fornecendo amplamente a metodologia através da qual a seleção das sensações é feita. No
início, a ciência forja instrumentos materiais e elabora princípios teóricos de indução e dedução, que
permitem reforçar os órgãos de sensação e ampliar a capacidade humana de experimentar o mundo. E, em
um segundo momento, aplica este complexo de instrumentos materiais e intelectuais às sensações, de modo
de distinguir entre o que é universalmente experimentável e o que é apenas individualmente. A ciência,
portanto, considera como realidades objetivas unicamente aquelas sensações que todos os cientistas do
mundo podem experimentar, independentemente uns dos outros. Somente aquelas sensações que podem
ser repetidas por toda a comunidade internacional e cuja garantia é a reprodutibilidade da experimento.
la scienza seleziona le sensazioni, gli elementi primordiali della conoscenza:
considera certe sensazioni come transitorie, come apparenti, come fallaci, perché
dipendono da speciali condizioni individuali e certe altre come durature, come
superiori alle condizioni speciali individuali. […] Si stabilisce ciò che è comune
a tutti gli uomini, ciò che tutti gli uomini possono controllare nello stesso modo,
indipendentemente gli uni dagli altri, purché essi abbiano osservato le condizioni
tecniche di accertamento. “Oggettivosignifica proprio e solo questo: che si
afferma essere oggettivo, realtà oggettiva, quella che è accertata da tutti gli
uomini, che è indipendente da ogni punto di vista che sia meramente particolare
o di gruppo […] Ciò che interessa la scienza non è tanto dunque l’oggettività del
reale, ma l’uomo che elabora i suoi metodi di ricerca (Gramsci 1975, pp. 1455-
1456).
Deste modo, o fundamento do conceito de objetividade é deslocado da existência da matéria
transcendente aos procedimentos coletivos e universais através dos quais a ciência seleciona sensações que
são superiores às condições individuais e que podem ser percebidas universalmente. A noção de
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objetividade é, portanto, submetida a uma transformação lingüística e redefinida com a expressão
universal subjetivo:
oggettivo significa sempre “umanamente oggettivo”, ciò che può corrispondere
a “storicamente oggettivo”, cioè oggettivo significherebbe “universale
soggettivo” (Gramsci 1975, pp. 1415-1416).
No caráter universal dos procedimentos científicos, a discussão de Gramsci sobre epistemologia
encontra a questão da tradutibilidade. A seleção das sensações e a definição da objetividade se dá mediante
um procedimento universal, ou seja, com a colaboração de todos os povos" (Gramsci 1975, p. 1470).
Colaboração universal que coincide com o que, como demonstramos, é o núcleo teórico do conceito de
tradutibilidade.
Assim como não existe objetividade externa independente do assunto, também não existe uma
ciência natural neutra para garantir o conhecimento da denominada objetividade externa. Para a filosofia
da práxis, historicizar a ciência significa fornecer uma definição de objetividade dissociada do postulado
ontológico e, ao mesmo tempo, definir a atividade científica como uma atividade superestrutural, ou seja,
interna à dialética histórica como outras atividades humanas. Isto porque, para Gramsci, no período anterior
à concreta e real unificação da humanidade, a ciência não pode deixar de ser penetrada pela política e
participar das diversas construções hegemônicas. A nota onde isto emerge melhor é o § 38 do Caderno 11,
que parte precisamente da crítica daquelas visões de mundo, incluindo o marxismo de Bucharin como
sociologia, que consideram a ciência como uma disciplina livre da ideologia, da política e da história. Como
uma disciplina capaz de relacionar diretamente o ser humano com a realidade tal como ela é:
porre la scienza a base della vita, fare della scienza la concezione del mondo per
eccellenza, quella che snebbia gli occhi da ogni illusione ideologica, che pone
l’uomo dinnanzi alla realtà così come essa è, significa ricadere nel concetto che
la filosofia della praxis abbia bisogno di sostegni filosofici all’infuori di se
stessa. Ma in realtà anche la scienza è una superstruttura, una ideologia (Gramsci
1975, p. 1457).
Historicismo integral, a filosofia da praxis historiciza toda a realidade, e mesmo a ciência. Ela é,
como todas as outras atividades humanas, uma ideologia e uma superestrutura. Mas, de um tipo particular.
Porque a partir da época do desenvolvimento da sociedade industrial moderna e do capitalismo, ela adquire
uma função essencial que a distingue de todas as outras superestruturas. Uma função inerente ao
desenvolvimento dos instrumentos materiais da estrutura. A ciência se apresenta assim como a
superestrutura mais estreitamente ligada à atividade econômica e ao aparato técnico estrutural, mais capaz
de reagir sobre a estrutura da sociedade:
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in realtà anche la scienza è una superstruttura, una ideologia. Si può dire, tuttavia,
che nello studio delle superstrutture la scienza occupi un posto privilegiato, per
il fatto che la sua reazione sulla struttura ha un carattere particolare, di maggiore
estensione e continuità di sviluppo, specialmente dopo il Settecento, da quando
alla scienza fu fatto un posto a parte nell’apprezzamento generale? (Gramsci
1975, pp. 1457-1458).
A operação da historicização da ciência leva Gramsci ao problema de entender como a ciência
pode construir conceitos universais e, ao mesmo tempo, enquanto superestrutura e ideologia, inseri-los no
processo de construção de aparelhos hegemônicos. Este problema origem à seguinte passagem,
decididamente complexo:
essa [la scienza] appare sempre rivestita da una ideologia e concretamente è
scienza l’unione del fatto obiettivo con un’ipotesi o un sistema di ipotesi che
superano il mero fatto obiettivo. È vero però che in questo campo è diventato
relativamente facile distinguere la nozione obiettiva dal sistema di ipotesi, con
un processo di astrazione che è insito nella stessa metodologia scientifica, in
modo che si può appropriarsi dell’una e respingere l’altra. Ecco perché un
gruppo sociale può appropriarsi la scienza di un altro gruppo sociale senza
accettarne l’ideologia (Gramsci 1975, p. 1458).
O caráter cosmopolita do processo de construção de conceitos objetivos leva Gramsci a descartar
a possibilidade da existência de diferentes ciências conformas o aparato ideológico a que elas pertencem, e
a buscar a solução do problema na idéia que o núcleo objetivo da ciência permanece o mesmo e que o que
muda é sua utilização, o sistema de hipóteses em que a ciência entra. Precisamente porque a ciência avança
de forma cosmopolita, através da colaboração de toda a comunidade internacional de cientistas, é sempre
possível para a filosofia da práxis separar os conceitos subjetivos universais da ciência da ideologia, do
sistema de hipóteses que determina a aplicação prática da ciência ao sistema produtivo (Rossi 1976).
Vale notar que a referência crítica de Gramsci neste caso é um artigo de Mario Missiroli publicado
na "Ordine Nuovo" em 1919 (Missiroli 1963), que apoiava a tese de que a ciência experimental, tal como
se desenvolveu até aquele momento, era ideologia burguesa de classe: o novo estado proletário tinha que
rejeitá-la e construir uma inteiramente nova que fosse estranha à lógica capitalista. Uma posição que mais
tarde, no auge da Guerra Fria, seria aceita pela União Soviética com o início do caso Lysenko, em setembro
de 1948, e a rejeição da genética Mendeliana como ciência burguesa (Cassata 2008). Uma virada
epistemológica que teria lançado em descrédito internacional a ciência soviética, que, até aquele momento,
havia demonstrado contribuir decisivamente para o progresso científico do mundo inteiro. O caso Lysenko
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ajuda a compreender melhor a importância que Gramsci atribuía à definição da ciência como uma atividade
cosmopolita. Para Gramsci, não ciência proletária que se oponha a uma ciência burguesa, porque a
ciência é uma atividade que, como todas as outras, avança com a colaboração de todos os povos. O que
muda é o projeto político, o propósito político para o qual a ciência é aplicada.
3-A SUPERAÇÃO DA FILOSOFIA DE CROCE E A CONTINUAÇÃO DA FILOSOFIA DE
LÊNIN
Uma das características filosóficas mais interessantes do discurso epistemológico traçado nos
Cadernos da Prisão é que ele pode funcionar como uma lente de aumento para compreender a relação da
filosofia da práxis, por um lado, com o neo-idealismo de Benedetto Croce e, por outro, com o pensamento
de Lênin. Uma relação que é importante esclarecer, porque a crítica do materialismo positivista de Bucharin
e o recurso a certos motivos neo-idealistas de Croce não implica mecanicamente um distanciamento do
marxismo soviético em sua totalidade (Da Silva 2018).
Do neo-idealismo italiano, como é bem conhecido, Gramsci leva um motivo fundamental de sua
epistemologia: a negação da existência de uma matéria transcendente e a definição da objetividade como a
produção da atividade científica. Fundamental, neste sentido, é para ele toda a polêmica de Croce contra o
positivismo, que, dentro da filosofia da práxis, funciona como um instrumento para elevar o marxismo de
todas as tendências materialistas, ou seja, metafísicas e religiosas, por sollevare questa concezione che si
è venuta, per la necessità della vita pratica immediata, volgarizzando’, all’altezza che deve raggiungere
per la soluzione dei compiti più complessi che lo svolgimento attuale della lotta propone (Gramsci 1975,
p. 1233). Tanto que se poderia afirmar que a discussão sobre as ciências foi concebida por Gramsci também
como interna a esse trabalho coletivo de superação do idealismo crociano por parte do marxismo, que nos
cadernos leva o nome de Anti-Croce: “occorre fare i conti con la filosofia di Croce, cioè per noi italiani
essere eredi della filosofia classica tedesca significa essere eredi della filosofia crociana, che rappresenta il
momento mondiale odierno della filosofia classica tedesca (Gramsci 1975, p. 1234).
Croce, contra a redução da história e da filosofia à ciência favorecida pelo clima positivista da
segunda metade do século XIX, havia proposto uma definição de ciência como atividade de caráter prático
que forja esquemas e leis gerais a fim de dominar a natura. Em seu sistema circular do espírito, as ciências
foram assim colocadas na esfera prática, distinta da esfera teórica prerrogativa da arte e da filosofia-história
(Croce, 1996). Uma operação que o conduziu a dois resultados. Primeiro, colocando as ciências no círculo
espiritual, ele as historializou, privou-as do status de disciplinas que refletem as leis transcendentes do
mundo externo. E, em segundo lugar, ele fazia das leis objetivas da ciência um produto da atividade
científica. A ciência-sujeito e o objeto-lei científica foram assim reunidos em unidade além da
transcendência dos elementos materiais. É este aspecto da epistemologia neo-idealista que é absorvido por
Gramsci em sua filosofia da práxis e traduzido, como vimos, na teoria das superstruturas.
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Em segundo lugar, colocando as ciências em uma esfera prática distinta da esfera teórica do
espírito, Croce chegou ao ponto de privar de status cognoscitivo o saber científico. De acordo com a
estrutura de seu pensamento filosófico, de fato, o conhecimento é sempre conhecimento do real histórico,
ele deve sempre dizer ao individual concreto. E as ciências, construindo leis gerais que dão a igualdade
geral independentemente do individual, não podem servir para conhecer a realidade concreta e viva. Daqui
a negação das leis científicas como conceitos e suas definição como pseudo-conceitos, ou seja, como
esquemas de utilidade prática e não cognoscitiva. Este segundo aspecto da concepção de Croce sobre as
ciências é, ao contrário, rejeitado por Gramsci. Para estes últimos, como vimos, as ciências experimentais
não são uma mera atividade prática, porque, enquanto superestruturas, enquanto ideologias, enquanto
terreno para a construção de aparelhos hegemônicos, elas são ricas em cultura. Nem são desprovidos de
valor cognoscitivo. Para Gramsci, os conceitos objetivos da ciência têm seu valor precisamente no fato de
que eles unificam culturalmente a humanidade, dando-lhe uma primeira base comum de conhecimento. Na
época anterior à unificação real da humanidade, a ciência se apresenta como a atividade humana que mais
representa o processo em direção a esta unificação.
E é precisamente sobre a questão da unificação da humanidade que ocorre o verdadeiro ponto de
diferença a respeito da concepção epistemológica do neo-idealismo de Croce. Para Croce, de fato, conceitos
teóricos e pseudo-conceitos práticos do espírito, embora sempre históricos e, portanto, modificando-se de
acordo com as mudanças da história, são já universais, enquanto produto de atividades puras. Concebendo
as atividades humanas como categorias a priori, válidas para todos os seres humanos, Croce mostra assim
que ele concebe a humanidade como já unificada, purificada de elementos ideológicos e conflitos de classe.
Nesta postulação de unidade da humanidade e do processo histórico dado, opera o pressuposto político
da aceitação do sistema social existente.
Assim, por exemplo, em Di un equivoco concetto storico: la “borghesia”, discurso lido na
Academia de Ciências Morais e Políticas da Real Sociedade de Nápoles em 1928, onde, em polêmica com
a historiografia marxista, a burguesia é negada como um conceito histórico e identificada, nella sua
purezza, come il complesso di tutti coloro che hanno vivo il sentimento del bene pubblico, ne soffrono la
passione, affinano e determinano i loro concetti a quest’uopo” (Croce 1928, p. 273). Da classe construtiva
da era moderna, ela se torna una classe non classe, simile a quel ceto generale’, a quell’allgemeine
Stand, al quale lo Hegel riconosceva come cerchia dell’attività che gli spettava, come suo proprio affare,
gl’‘interessi generali, die allgemeine Interessen (Croce 1928, p. 273). Ou em Poesia popolare e poesia
d’arte onde o povo é negado como uma realidade social e reduzido a uma construção sociológica, ou seja,
a uma série de condizioni estrinsecamente e materialmente determinate (Croce 1991, p. 24). Desta
maneira, a classe burguesa é reconhecida como representante dos interesses gerais de todas as classes, dos
valores de toda a humanidade, do conhecimento real de todos os seres humanos e do conceito de beleza de
todos os povos.
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Para Gramsci, ao contrário, as diversas disciplinas e atividades humanas ainda não são universais.
Elas são, no presente caracterizado pela fragmentação social e estatal, superestruturas, ou seja, formações
ideológicas enraizadas pela dinâmica de conflito da realidade social. São atividades encarnadas na luta
hegemônica de sujeitos políticos. Assim, a unidade do espírito, a universalidade das diversas atividades
humanas, que Croce considerava serem realidades eternas e imutáveis da história não obstante a
transformação histórica de seus produtos, pois Gramsci corresponde àquela fase da história que se segue ao
conflito entre grupos sociais, na qual a humanidade está concretamente unificada em um único sujeito
histórico. É desta perspectiva que entre julho e agosto de 1932 Gramsci observa que
ciò che gli idealisti chiamano “spirito” non è un punto di partenza, ma di arrivo,
l’insieme delle soprastrutture in divenire verso l’unificazione concreta e
oggettivamente universale e non gun presupposto unitario (Gramsci 1975, p.
1416).
Este ponto de distância de Croce nos permite especificar melhor a noção de objetividade proposta
pelos Cadernos da Prisão. Em Gramsci, como vimos, o conceito de objetividade, ainda que mantido, é
desvinculado da existência de uma transcendência material para ser redefinido como um universal
subjetivo, ou seja, um processo de universalização do sujeito. E, ao mesmo tempo, no presente da
fragmentação social e estatal, ele é definido em termos de ideologia, terreno da construção de aparelhos
hegemônicos. O que deve ser enfatizado é que a realização da universalização do sujeito e,
consequentemente, a existência de uma objetividade concreta universal, ou seja, não ideológica, coincide
para Gramsci com o ponto final da luta pela unificação cosmopolita e real da raça humana. Não definível
no presente do conflito social, ela é para Gramsci um produto da eliminação das contradições internas da
sociedade humana, da realização completa da sociedade comunista. Na mesma nota citada acima, de fato,
a Gramsci concluiu:
l’uomo conosce oggettivamente in quanto la conoscenza è reale per tutto il
genere umano storicamente unificato in un sistema culturale unitario; ma questo
processo di unificazione storica avviene con la sparizione delle contraddizioni
interne che dilaniano la società umana, contraddizioni che sono la condizione
della formazione dei gruppi e della nascita di ideologie non universali concrete
ma rese caduche immediatamente dall’origine pratica della loro sostanza. C’è
quindi una lotta per l’oggettività (per liberarsi dalle ideologie parziali e fallaci)
e questa lotta è la stessa lotta per l’unificazione culturale del genere umano
(Gramsci 1975, p. 1416).
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A objetividade real e não ideológica torna-se assim a conquista da luta hegemônica de grupos
populares de todo o mundo, manifestada por meio da tradução recíproca das diferentes lutas nacionais.
Como se deveria perceber, a concepção da objetividade como construção e processo hegemônico comporta
uma relação complexa com o pensamento de Lênin.
A atitude de Gramsci em relação à filosofia de Lenin pode ser detectada pela maneira seletiva em
que nos cadernos se estabelece a relação com o obra do revolucionário bolchevique. Por um lado, Gramsci
tende a ignorar a reivindicação do Materialismo e Empiriocriticismo do materialismo como fundamento da
filosofia marxista, distanciando-se dele de uma forma velada, se não críptica. Por outro lado, ele faz uma
extensão filosófica significativa da teoria de hegemonia de Lenin, o que lhe permite o desenvolvimento
pleno do marxismo como historicismo absoluto. Deste ponto de vista, como Pietro Daniel Omodeo
observou, a filosofia de praxis de Gramsci e o marxismo como sociologia de Bucharin podem ser
concebidos como duas formas diferentes e opostas de desenvolver o pensamento de Lênin (Omodeo 2020,
pp. 45-48). Gramsci parte do Lênin da teoria da hegemonia e, desenvolvendo plenamente seu núcleo
filosófico, também através de uma superação paralela do neo-idealismo, eleva o marxismo ao historicismo
absoluto. Bucharin, por outro lado, parte do Lênin do Materialismo e Empiriocritismo, do Lênin da
afirmação da existência das coisas independentemente do ser humano, e, adicionando elementos tomados
sem crítica do positivismo do século XIX, fundamenta o marxismo em uma epistemologia materialista-
científica, reduzindo-o a uma sociologia de fatos sociais.
Todavia, deve-se notar que no Materialismo e Empiriocritismo, de Lenin não traços de
sociologia dos fatos sociais. No texto de 1908, escrito por ocasião dos conflitos internos da corrente
bolchevique após a revolução de 1905, a afirmação enfatizada da realidade do mundo externo serve
sobretudo como uma instrumento político-filosófico para a crítica ao marxismo de Bogdanov. Este último,
de fato, fundando o marxismo sobre as teorias de Mach, acabava por dissociar a noção de objetividade da
dinâmica concreta dos conflitos sociais e por operar uma relativização da realidade que tornava impossível
a concepção dialética da história, por um lado, e a resolução política de suas contradições, por outro
(Cangiano 2022, pp. 130-140). A isto devemos acrescentar que para Lenin, o conhecimento do mundo
externo não serve para conhecer as leis em função das quais a realidade se desdobra segundo seu próprio
ritmo. Pelo contrário, tal conhecimento serve como base para transformar o mundo externo e subverter o
equilíbrio social. Para fazer revolução. Não obstante a afirmação do materialismo como base do marxismo,
em Lenin não nem determinismo nem tanta sociologia dos fatos históricos (Fresu 2008, pp. 171-246;
Fresu 2015).
Assim, a polêmica de Gramsci contra Bucharin seria também implicitamente estimulada pela
tentativa de desenvolver de maneira diferente o legado de Lênin filósofo
3
. Tentativa que se exprime no
3
Aproveito, portanto, a oportunidade para corrigir uma tese que discuti em meu Antonio Gramsci e le scienze
sperimentali (Sclocco 2021). Aqui, de fato, após ter reconstruído a polêmica com o marxismo como sociologia de
Bucharin e notado a presença de um distanciamento das reivindicações materialistas de Materialismo e ––––––
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trabalho de recuperação e desenvolvimento do núcleo filosófico do pensamento leninista, a teoria da
hegemonia, e do abandono dos elementos externos a ela, o materialismo e a afirmação da existência da
transcendência material.
Como Gianni Fresu recentemente observou, o reconhecimento da contribuição filosófica de Lenin
para a elaboração da filosofia da práxis não é um dado adquirido (Fresu 2022). De fato, mesmo a crítica
gramsciana européia acabou, de várias maneiras, por sofrer as conseqüências culturais da experiência do
fim do socialismo real e da inauguração de uma época, como a atual, caracterizada pelo preconceito do fim
do pensamento ideológico, do arquivamento do século XX como um século de horrores e do descrédito da
figura de Lênin, representada como o responsável de todas as sangrentas tragédias do século XX. Daqui a
aguda observação do autor de que “l’eredità della Rivoluzione d’Ottobre rappresenta il vero spartiacque
interpretativo attorno al pensiero politico di Gramsci, tra chi ribadisce la sua adesione (mai rinnegata) a
quel processo e quanti intendono ridimensionarne il valore della sua centralità (Fresu 2022, p. 80).
Hoje, graças ao progresso dos estudos filológicos da obra de Gramsci inaugurada por Gianni
Francioni e continuada com o trabalho coletivo da Edição Nacional dos Escritos de Antonio Gramsci, é
possível reconstruir com suficiente precisão a relação com o Lênin filosofo nos Cadernos da prisão.
Primeiramente, deve-se notar que em outubro de 1930, ou seja no período inicial da reformulação do
materialismo histórico em filosofia da práxis, a Gramsci é claro que a teoria de hegemonia de Lenin tem
um valor filosófico inerente à superação do marxismo como reducionismo economicista. Na longa nota
Rapporti tra strutture e superstrutture da primeira série dos Appunti di filosofia, de fato, após o traçado de
algumas das formas em que o economismo se apresenta, como o liberalismo teorico, il sindacalismo
teoretico o “l’astensionismo elettorale” (Gramsci 1975, p. 461), Gramsci se concentra longamente nas
formas pelas quais o materialismo histórico pode degenerar em economismo histórico. Em conclusão, ele
observa que o concetto di egemonia representa o apporto massimo di Iliíč alla filosofia marxista, al
materialismo storico, apporto originale e creatore (Gramsci 1975, p. 465). Segundo Gramsci, com a crítica
em Que fazer? do economismo como método de luta exclusivamente a nível econômico-corporativo e com
a valorização da luta política e a construção de aparatos hegemônicos, Lênin desenvolveria plenamente o
princípio filosófico de Marx expresso no Prefácio da Crítica da Economia Política de 1859, segundo o
qual os homens se tornam conscientes dos conflitos no terreno das ideologias: “Iliíč avrebbe fatto progredire
il marxismo non solo nella teoria politica e nella economia, ma anche nella filosofia (cioè avendo fatto
progredire la dottrina politica avrebbe fatto progredire anche la filosofia) (Gramsci 1975, p. 465).
Para Gramsci, a possibilidade de reconhecer o valor filosófico da teoria política de hegemonia
reside no princípio da tradutibilidade. Um mês após a nota acima mencionada, de fato, fazendo referência
Empiriocritismo, concluiria que a crítica de Gramsci a Bucharin continha também uma crítica a Lênin. Na realidade,
a posição de Gramsci em relação a Lênin é mais complexa. Nas páginas seguintes, fazendo uso de estudos recentes,
mostrarei como nos Cadernos da Prisão há elementos filológicos pouco conhecidos e discutidos em nossos estudos
europeus que não autorizam a extensão das críticas de Gramsci a Bucharin ao pensamento de Lênin em geral.
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implícita a Lenin, observa-se que como as línguas (econômica, política, filosófica etc.) que constituem uma
mesma concepção de mundo se traduzem umas nas outras, então pode ocorrer que uma personalidade
política expresse sua concepção de mundo não na linguagem filosófica, não no Materialismo e
Empiriocritismo, mas na linguagem da política:
avviene che una grande personalità esprima il suo pensiero più fecondo non nella
sede che apparentemente sarebbe la più logica dal punto di vista classificatorio
esterno, ma in altra parte che apparentemente sembrerebbe estranea. […] Un
uomo politico scrive di filosofia: può darsi che la sua “vera” filosofia sia invece
da ricercarsi negli scritti di politica. In ogni personalità c’è un’attività dominante
e predominante: è in questa che occorre ricercare il suo pensiero, implicito il più
delle volte e talvolta in contraddizione con quello espresso ex professo (Gramsci
1975, p. 473).
Posteriormente, em uma nota da segunda série de Appunti di filosofia escrita entre fevereiro e
novembro de 1931, Gramsci esclarece que o significado filosófico da teoria da hegemonia de Lênin
coincide com o princípio de que, na era da fragmentação do estado e da divisão social, toda a atividade
humana é alimentada internamente pela política, é identificada com a ideologia e é o terreno para a
construção de aparatos hegemônicos. Com Lenin, o marxismo é totalmente elevado ao historicismo
absoluto: nenhuma atividade humana é considerada externa à dialética histórica. Em uma nota, de fato,
observa-se que:
tutto è politica, anche la filosofia o le filosofie […] e la sola “filosofia” è la storia
in atto, cioè la vita stessa. In questo senso si può interpretare la tesi del
proletariato tedesco erede della filosofia classica tedesca e si può affermare
che la teorizzazione e la realizzazione dell’egemonia fatta da Ilici è stata anche
un grande avvenimento “metafisico” (Gramsci 1975, p. 886).
O princípio leninista de hegemonia coincide com o núcleo teórico da filosofia da práxis: a unidade
da teoria e da prática, a identificação da política, da filosofia e da história.
Neste princípio filosófico leninista, Gramsci traça a resposta mais robusta à acusação de Croce de
marxismo de reduzir mecanicamente a esfera cultural à economia. Em 2 de maio de 1932, em uma missiva
a Tatiana Schucht, ele observa que a liquidação do marxismo por parte de Croce como uma teoria que na
ação política não leva em conta o momento da direção cultural, mas apenas o da intervenção estatal, é
infundada. Na verdade, é somente através a contribuição da teoria da hegemonia que o momento cultural
entra no marxismo:
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è avvenuto proprio che nello stesso periodo in cui il Croce elaborava questa sua
sedicente clava, la filosofia della praxis, nei suoi più grandi teorici moderni,
veniva elaborata nello stesso senso e il momento dell’“egemonia” o della
direzione culturale era appunto sistematicamente rivalutato in opposizione alle
concezioni meccanicistiche e fatalistiche dell’economismo. È stato anzi
possibile affermare che il tratto peculiare della pmoderna filosofia della praxis
consiste appunto nel concetto storico-politico di egemonia. Mi pare perciò che il
Croce non sia up to date con le ricerche o con la bibliografia dei suoi studi
preferiti o abbia perso la capacità di orientamento critico (Gramsci 2020, p. 781).
A concepção ético-política de Croce não teria, portanto, um significato liquidatore: non si
capisce perché il Croce creda alla capacità di questa sua impostazione della teoria della storia di liquidare
definitivamente ogni filosofia della praxis (Gramsci 2020, p. 780). A mesma insistência também emerge
em uma nota coeval no Caderno 10, onde Gramsci se refere a Lênin como o maior teórico moderno da
filosofia da práxis
il più grande teorico moderno della filosofia della praxis nel terreno della lotta e
dell’organizzazione politica, con terminologia politica, ha in opposizione alle
diverse tendenze “economistiche” rivalutato il fronte della lotta culturale e
costruito la dottrina dell’egemonia come complemento della teoria dello Stato-
forza e come forma attuale della dottrina quarantottesca della "rivoluzione
permanente" (Gramsci 1975, p. 1235).
A filosofia da práxis como historicismo absoluto, ou seja, como a politicização de toda atividade
humana, é assim delineada por Gramsci como uma explicação da filosofia implícita na teoria política de
hegemonia de Lenin. Isto também mostra que a afirmação de Gramsci da ciência como uma atividade
superestrutural, interna aos discursos hegemônicos e interiorizada com a política, é fortemente inspirada
pelo pensamento filosófico leninista. Em uma nota no Caderno 11 intitulada Oggettività e realtà del mondo
esterno, Gramsci de fato observou:
razionale e reale si identificano. Pare che senza aver capito questo rapporto non
si può capire la filosofia della praxis, la sua posizione in confronto dell’idealismo
e del materialismo meccanico, l’importanza e il significato della dottrina delle
superstrutture. Non è esatto che nella filosofia della praxis l’“idea” hegeliana sia
stata sostituita con il “concetto” di struttura, come afferma il Croce. L’“idea”
hegeliana è risolta tanto nella struttura che nelle superstrutture e tutto il modo di
concepire la filosofia è stato “storicizzato”, cioè si è iniziato il nascere di un
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nuovo modo di filosofare pconcreto e storico di quello precedente (Gramsci
1975, p. 1420).
A CONTRIBUIÇÃO DE GRAMSCI PARA UMA NOVA EPISTEMOLOGIA POLÍTICA
Neste último parágrafo, quero retomar um estudo recente de Omodeo e Meisner (Omodeo e
Maiesner 2022), juntando algumas observações sobre a contribuição da discussão epistemológica de
Gramsci para a possível construção de uma nova epistemologia política. No estudo, os dois autores mostram
de maneira bastante convincente que os atuais debates epistemológicos internacionais sofrem de uma forte
polarização entre uma epistemologia cientista voltada para o neo-positivismo e uma relativista voltada para
o pós-modernismo. De tal forma que tanto nas revistas especializadas quanto nos meios de comunicação
de massa a discussão epistemológica está representada como se entre a alternativa da verdade como reflexo
da realidade externa e a verdade como construção lingüística não pudesse haver uma terceira.
Este é o caso, por exemplo, da epistemologia relativista proposta por Steve Fuller no inquietante
Post Truth: Knowledge as a Power Game (Fuller 2018), onde o construtivismo epistemológico é usado para
reduzir conceitos verdadeiros a formações lingüísticas móbiles e para deslegitimar a expertise científica.
Um aparato filosófico pós-moderno utilizado pelo autor para sustentar uma série de visões políticas
antidemocráticas: negação do universalismo dos direitos humanos, negação da teoria da evolução e da
mudança climática, negação da nocividade do tabaco e do uso de pesticidas, denúncia das universidades
como bastiões de uma sociedade ainda feudal. Trata-se de uma epistemologia herdeira do fenômeno que se
espalhou nos Estados Unidos da América desde a Guerra Fria da organização de laboratórios de cientistas
financiados por blocos capitalistas internacionais específicos para negar evidências científicas que
forçariam intervenções da política para regular o método de produção e o mercado.
As tentativas de responder a estas epistemologias de extrema direita concentram-se na defesa
democrático-liberal dos fatos científicos e do conhecimento neutro e desinteressado das academias,
especialistas e periódicos científicos revisados por pares, que se consideram uma garantia de verdade
científica e de responsabilidade democrática (Oreskes, Conway 2012). Daqui a oposição nos debates
científicos entre a epistemologia neo-positivista que defende a neutralidade da ciência a respeito da política
e a epistemologia pós-moderna, céptica, que nega a existência de conceitos objetivos e universais.
Mas, segundo os autores, a oposição e a exclusão mútua entre estas duas orientações seria apenas
aparente. Porque os dois opostos esconderiam em si a mesma matriz ideológica, cumprindo assim a mesma
função social, ou seja, a destorização do sistema econômico neoliberal e neocapitalista. Em ambos os casos,
de fato, se renuncia à compreensão historicista dos conceitos objetivos e do status da ciência. A defesa
neopositivista da factualidade científica desenraíza fatos de suas origens históricas, de suas conexões com
a práxis humana e o sistema produtivo, e assim acaba por transmitir uma visão de mundo determinista que
aceita como verdade somente o que existe, negando o possível como falsidade. A negação da objetividade
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pós-moderna, por outro lado, reduzindo a verdade a uma construção lingüística, renuncia à compreensão
histórica da realidade e cancela a possibilidade de enfrentar os problemas globais gerados pelo sistema
neocapitalista. As duas orientações opostas cumpririam assim a mesma função ideológica de destoricalizar
o real e promover uma desvalorização do papel da práxis e do conhecimento no processo de transformação
da realidade sistêmica.
Esta falsa dialética epistemológica corresponderia à falsa oposição política entre o neo-liberalismo
e o soberanismo populista típico do cenário político europeu. Uma dicotomia política que, mais uma vez,
apresentando-se como absoluta, não permite o surgimento de posições anti-liberais capazes de questionar
o sistema econômico atual. Esta situação pode ser observada acima de tudo na realidade política italiana.
Na Itália, de fato, a campanha eleitoral das últimas eleições do fim de setembro de 2022 foi inteiramente
realizada sob a bandeira desta falsa alternativa, sob a qual, no entanto, pode-se encontrar linhas políticas
análogas. Os governos neoliberais liderados pelo Partito Democratico, o último governo técnico confiado
ao ex-presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi, e a nova maioria parlamentar da direita
reacionária e pós-fascista de Giorgia Meloni seguem a mesma linha política em termos de cortes na despesa
pública para escolas, universidades e saúde, apoio às grandes multinacionais de energia fossil, investimento
em rearmamento e apoio acrítico às guerras da NATO.
Por outro lado, esta pseudo-dialética pode também se refletir na forma pela qual vários governos
têm tratado a pandemia global do vírus da Corona. Por um lado, o apelo à neutralidade superpartidária da
ciência e a uma gestão da pandemia sob a bandeira da política técnica, típica da União Européia em
particular. Pensa-se, por exemplo, que o comitê técnico-científico criado na Itália pelo Decreto do Chefe do
Departamento de Proteção Civil n°. 371 de 5 de fevereiro de 2020 previa a presença exclusiva de perfis
científicos sem figuras competentes na esfera psicológica ou bioética. Por outro lado, a rejeição da expertise
científica como meio de negar a necessidade de medidas para conter o vírus e salvaguardar a saúde da
população, como vimos no Reino Unido de Boris Johnson e no Brasil de Jair Bolsonaro.
Frente ao problema de como podemos sair desta falsa dialética epistemológica, pode ser útil voltar
à reflexão de Gramsci sobre as ciências, em particular, atualizando três aspectos da mesma. Primeiro, a
historicização da ciência como afirmação de sua caráter sempre ideológico, que discutimos nas páginas
anteriores. Uma posição gnoseológica que poderia ser utilizada em pesquisas e discussões específicas para
a crítica do neutralizismo científico típico da posição epistemológica neo-positivista.
Em segundo lugar, a historicização da noção de verdade objetiva. Nos Cadernos da Prisão, de
fato, como temos enfatizado repetidamente, a noção do objetivo não é negada, mas separada do pressuposto
de realidade transcendente material e redefinida como a produção histórica da atividade cosmopolita da
ciência. Seria proveitoso, neste sentido, retornar às notas de prisão em que Gramsci discute os conceitos
geográficos do Oriente e do Ocidente. Gramsci, de fato, embora identifica sua origem histórica, ou seja
ideológica, no punto di vista delle classi colte europee che attraverso la loro egemonia mondiale li hanno
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fatti accettare dovunque (Gramsci 1975, p. 1419), não desconsidera a utilidade dos dois conceitos, que
non cessano di essere oggettivamente reali’” in quanto permettono di viaggiare per terra e per mare e di
giungere proprio dove si era deciso di giungere, di prevedere il futuro, di oggettivare la realtà (Gramsci
1975, p. 1420). Uma posição gnoseológica útil para a crítica de orientações relativistas típicas da
epistemologia pós-moderna.
Nos Cadernos da Prisão, também outro elemento epistemológico que poderia ser útil para
pensar na nova epistemologia como alternativa à pseudo-dialética entre neo-positivismo e pós-modernismo.
Em suas discussões sobre a epistemologia contemporânea, Omodeo e Meisner se debruçam longamente
sobre a questão da divisão do trabalho intelectual entre as ciências naturais e históricas que começou na
Europa no século XIX. Um processo que, na opinião deles, acabou levando a dois resultados fortemente
reacionários. Em primeiro lugar, a ciência foi purgada de suas premissas filosóficas e éticas,
desenvolvendo-se progressivamente como uma mera técnica ligada ao sistema de produção. E por outro
lado, as ciências humanas foram progressivamente desvalorizadas como conhecimento inútil e supérfluo
porque não estavam diretamente ligadas à produção.
A este respeito, parece apropriado notar que a divisão entre as ciências humanas e as ciências
naturais faz ressaltar a profunda relevância de dois elementos da concepção das ciências de Gramsci: a
crítica do reducionismo da ciência ao desenvolvimento de seus instrumentos materiais; e a valorização do
aparato intelectual e cultural das ciências. O reconhecimento do caráter intelectual e cultural da ciência, de
fato, equivale a uma maneira de pôr a questão da reunificação das ciências humanistas e experimentais. A
idéia é explicitada por Gramsci em uma nota do Caderno 11 onde ele observa que a ciência moderna surge
historicamente sobre suposições político-filosóficas, ou seja, sobre o abandono dos dogmas das Sagradas
Escrituras:
i principali strumenti del progresso tecnico sono di ordine intellettuale (e anche
politico), metodologico, e giustamente Engels ha scritto che gli “strumenti
intellettuali” non sono nati dal nulla, non sono innati nell’uomo, ma sono
acquisiti e si sviluppano storicamente. Quanto ha contribuito al progresso delle
scienze l’espulsione dell’autorità di Aristotele e della Bibbia dal campo
scientifico? (Gramsci 1975, p. 1421).
Afirmação da caráter ideológico do conhecimento científico, reformulação histórico-política da
noção de objetividade, reunificação do conhecimento humanístico e científico. Estes são os elementos da
concepção epistemológica de Antonio Gramsci que podem ser frutuosamente utilizados na construção de
uma nova epistemologia política. Uma epistemologia política que, contra o novo positivismo, mostra o
caráter necessariamente ideológico, por ser histórico, das ciências experimentais e que, contra o novo
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relativismo reacionário, constrói uma definição de verdade objetiva de tipo histórico-político e desengajada
do pressuposto de uma metafísica materialista.
Mas, se a teoria e a práxis não podem ser desarticuladas, se em nosso mundo ainda fragmentado
em grupos de estados e dividido em grupos sociais a cultura é sempre parte de algum processo hegemônico,
como podemos iniciar a construção de uma nova epistemologia sem ao mesmo tempo lutar pela construção
de um novo sujeito político, que se traduza segundo nossos diferentes idiomas nacionais?
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v.7
n.11
p. 226-245
Dez/2022
245
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Recebido em 15 de novembro de 2022
Aceito em 20 de janeiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023