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GRAMSCI, OS INTELECTUAIS NA GEOGRAFIA POLÍTICO-
PARTIDÁRIA E A CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
GRAMSCI, INTELECTUALES EN LA GEOGRAFÍA POLÍTICO-
PARTIDISTA Y LA CIVILIZACIÓN BRASILEÑA
Ricardo José de Azevedo Marinho
1
Vagner Gomes de Souza
2
Pablo De Las Torres Spinelli Fonseca
3
RESUMO
O artigo aborda, partindo do aporte de Gramsci (1891-1937), a situação atual dos intelectuais na geografia
político-partidária na civilização brasileira estabelecendo algumas distinções. Do continuum proposto por
Norberto Bobbio (1909-2004), que vai da extrema direita à extrema esquerda, distinguem-se as esquerdas
e seus intelectuais nas suas inúmeras matizes como neojacobina, reformadora e radical. Aponta-se que
mesmo quando as fronteiras entre elas nem sempre são claras, eles têm visões muito diferentes sobre
questões fundamentais relacionadas ao valor da democracia e as liberdades individuais. Além de investigar
as razões do surgimento dos diferentes tipos de esquerda e seus intelectuais as diferenças entre cada
experiência, finalmente aprofundamos os traços fundamentais da perspectiva reformadora, aquela que se
define por aspirar a alcançar sociedades mais sustentáveis, onde a liberdade fala em nome da igualdade e
igualdade fala em nome da liberdade.
PALAVRAS-CHAVE: Americanismo, esquerda, igualdade, liberdade, república, democracia.
RESUMEN
El artículo discute, a partir de la contribución de Gramsci, la situación actual de los intelectuales de la
geografía político-partidista en la civilización brasileña, estableciendo algunas distinciones. Del continuum
propuesto por Norberto Bobbio, que va de la extrema derecha a la extrema izquierda, la izquierda y sus
intelectuales pueden distinguirse en sus innumerables matices, como neojacobina, reformadora y radical.
Se señala que aun cuando los límites entre ellos no siempre son claros, tienen puntos de vista muy diferentes
1
Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE. Pós-Doutor pelo Programa
de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). E-mail: ricardo.marinho@cedae.com.br
2
Professor das Secretarias Estadual e Municipal do Rio de Janeiro - SME Rio de Janeiro e SEEDUC
Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de s-Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Editor do BLOG VOTO POSITIVO. E-mail: vgsouza@bol.com.br
3
Professor do Colégio Inovar Veiga de Almeida - Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Sociais pelo
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA)
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: pscpda@yahoo.com.br
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sobre cuestiones fundamentales relacionadas con el valor de la democracia y las libertades individuales.
Además de investigar las razones del surgimiento de diferentes tipos de izquierda y sus intelectuales, las
diferencias entre cada experiencia, finalmente profundizamos en los rasgos fundamentales de la perspectiva
reformadora, aquella que se define por aspirar a lograr sociedades más sostenibles, donde la libertad habla
en nombre de la igualdad, y la igualdad habla en nombre de la libertad.
PALABRAS CLAVE: Americanismo, izquierda, igualdad, libertad, república, democracia.
INTRODUÇÃO
É conveniente esclarecer logo no início destas linhas ensaísticas que as distinções
que trataremos aqui não se referem a diferenças semânticas dos conceitos indicados nesse
extenso título que obviamente existem, mas aceitando o uso próximo as sinonímias que
adquiriram no debate público e procuraremos analisar as realidades que eles, no seu
conjunto, pretendem abranger.
Afirmamos que os conceitos muitas das vezes não revelam as coisas que estão
cobertas e que podem ser muito diferentes, e essas diferenças às vezes também são
contraditórias e mesmo parcialmente opostas.
Quando olhamos com Gramsci (Partido Socialista Italiano - PSI depois Partido
Comunista Italiano - PCI, pelo qual foi deputado no Reino de Itália de 1924-1926) os
intelectuais na geografia político-partidária da civilização brasileira não podemos deixar
de dizer que houve época em que se escrevia sobre o Brasil e os que o faziam eram a
intelligentsia que sempre teve compromissos expressos na vida pública como Jorge
Amado (1912-2001) no Partido Comunista Brasileiro - PCB (constituinte e deputado
federal na legislatura de 1946-1948), Nestor Duarte (1902-1970) na Esquerda
Democrática (constituinte e deputado federal na legislatura de 1946-1947), Gilberto
Freyre (1900-1987) na Esquerda Democrática (constituinte e deputado federal na
legislatura de 1946-1950), Caio Prado Jr. (1907-1990) no Partido Democrático (PD) e
depois no PCB (constituinte e deputado do Estado de São Paulo de 1947-1948) e Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982) no Partido Socialista Brasileiro (PSB) e depois Partido
dos Trabalhadores (PT).
Começaremos analisando alguns pontos de vista teóricos que nos permitem
primeiro distinguir as geografias político-partidárias da esquerda, centro-esquerda e
outras formas progressistas em relação com aquelas que dizem respeito à direita, bem
como a centro-direita e o conservadorismo.
SEM TEORIA CIVILIZATÓRIA BRASILEIRA, NÃO PODE HAVER
MOVIMENTO CIVILIZATÓRIO BRASILEIRO
Sartori nos diz que a esquerda é a política que tem à ética como referência e rejeita
a injustiça. A esquerda está marcada pelo altruísmo e a direita pelo egoísmo. Embora ele
aponte que devido à heterogênese dos fins, nos termos de Hegel, o egoísmo pode
subitamente favorecer o bem comum e o altruísmo (com a melhor das intenções) causar
danos gerais. Aponta, além disso, por causa de seu fundamento altruísta, que a esquerda
tem uma demanda maior pela ética e menos perdão à corrupção quando no poder (Sartori,
2021).
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Bobbio, cuja elaboração política é inteiramente permeada por sua reflexão sobre
a necessidade de combinar inegavelmente liberdade e igualdade, ele nos propõe em
Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política (2012) um continuum
que vai desde a visão da extrema esquerda, onde a liberdade é esmagada pelo
autoritarismo igualitário, e até mesmo à extrema direita, que se caracterizam por seu duplo
caráter autoritário e anti-igualitária, produzindo, entre os dois extremos, posições menos
polarizadas como os defensores da liberdade de centro-esquerda e tendentes à igualdade
e um centro de direita que é a favor da liberdade, tendo uma vocação menor para a
igualdade.
A definição dessas categorias, como em toda sua reflexão envolvida, não é feita a
partir de visões absolutas, mas relativas.
Por isso, quando se atribui maior sensibilidade à esquerda para reduzir as
desigualdades, não se atribui a ela uma aspiração absoluta por um igualitarismo
totalizador e nem tampouco à direita uma vontade obstinada de conservar todas as
desigualdades.
O livro é uma rebelião moral e política contra o que ele via como um
desarmamento moral da esquerda como resultado do fim abrupto do mundo soviético, da
emergência do pensamento neoliberal e das dificuldades que o Estado de bem-estar
começava a ter. Isso o incomodava, ao ver o estupor da esquerda numa espécie de
rendição à moda da época, uma acomodação, até mesmo um relaxamento da tensão moral
e aí ele recoloca veementemente a validade da diferença entre esquerda e direita.
Comentando o livro de Bobbio, Anthony Giddens, talvez o teórico mais exigente
e iconoclasta em matéria de renovação na esquerda europeia, levanta: “Embora o que está
“na esquerda” ou “na direita” possa mudar, ninguém pode estar à direita e à esquerda ao
mesmo tempo” (Giddens, 1999).
Se voltarmos nosso olhar para a Ibero-América, devemos ser antes de tudo
cuidadosos com definições muito amplas. Tal como se generalizou com certa imprecisão
que os anos 1990 foram uma “virada à direita”, houve uma inexatidão similar que
oposta na qualificação dos anos subsequentes de uma "guinada generalizada para a
esquerda", pelo menos para o que se tem chamado hoje de esquerda e afins no singular,
sem aprofundar as diferenciações entre as esquerdas muito diversas.
O primeiro elemento paradoxal é que essa virada parece se cristalizar
precisamente nos anos em que a Ibero-América vai bem, entre 2003 e 2008. Anos de forte
crescimento, que para compará-lo em sua história, seria necessário traçar nada menos que
40 anos. Esse crescimento com melhor qualidade também teve melhorias nos indicadores
sociais, principalmente no emprego e na diminuição momentânea da pobreza e
indigência, e naqueles anos (que não é menos importante em nossa fragilíssima história
democrática e ainda mais débil republicanamente) a democracia eleitoral era a norma.
Essa mudança produzida, embora menos geral do que parecia e mais diversificada,
é menos paradoxal se considerarmos os anos anteriores à dita guinada supostamente
bombástica nas análises equivocas ausentes de críticas ao americanismo (no dizer de
Gramsci) da ciência política que aqui se faz. Nesta experiência então, livre desse entulho
nada analítico, parece mais claro como um efeito retardado dos resultados medíocres de
anos anteriores.
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De fato, a década de 1990 e os anos iniciais deste século foram marcados por uma
forte hegemonia do pensamento econômico que vê o mercado como enteléquia, com um
contrapeso insuficiente do que se tem chamado de esquerdas e afins de uma visão mais
aberta e de progresso planetário inclusivo como a transformação produtiva do mundo com
equidade naquilo que poderia ser traduzido como um programa da esquerda, centro-
esquerda e outras formas progressistas.
Mesmo quando parecia haver exceções parciais naqueles anos, como o Brasil, não
havia nenhuma tendência de longo prazo com sucessos relevantes na economia, no social
e na política sob a égide de governos apoiados por uma coalizão de centro-esquerda
(Partido da Social Democracia Brasileira & Partido da Frente Liberal - PSDB-PFL, PT &
Partido Liberal - PT-PL, PT e Partido Republicano Brasileiro - PT-PRB e PT & Partido
do Movimento Democrático Brasileiro - PT-PMDB), que pudessem fazer eles se
diferenciarem do resultado medíocre da região (Castells, 2019).
Esse saldo insatisfatório de um período prolongado acabou produzindo em 2018
uma profunda frustração, um ceticismo, não em relação à democracia, mas, sobretudo,
em relação aos resultados econômicos e sociais que dela se exigem, uma percepção de
exclusão de grande parte da cidadania, uma visão da globalização nada inclusiva (que de
fato assim aconteceu), prejudicial à maioria e uma visão crítica dos governantes vistos
como distantes e quase sempre corruptos (Castells, 2018).
A persistência de crises internas e externas (1997, 2001, 2008, 2016) foi
acompanhada no Brasil por uma verdadeira prova permanente ao sistema político e uma
amarga rejeição dos partidos políticos existentes.
Foi assim que tanto as eleições de 2018 realizadas no final desse período medíocre
e volátil quanto às realizadas no período da guinada supostamente bombástica, que
terminou com um impeachment em 2016, foram marcadas por um espírito rebelde e
mudança política como em 2013, que felizmente assumiu o caminho eleitoral, em meio a
crises ameaçadoras com desfechos violentos que infelizmente nos acometeram em nossos
200 anos de história.
Consequentemente, o que se generalizou foi à mudança e a mudança por meio de
eleições. A redução dessa mudança a um único tipo parece exagerada, ainda mais se
considerarmos as eleições presidenciais mais recentes, onde a maioria dos candidatos do
centro a direita venceu. Uma vez que em 2018 destacou-se a expressão do “voto
ressentido” numa democracia republicana em risco (Souza, 2019).
No entanto, essa visão é comum fora da região, seja nos EUA ou na Europa, de
perspectivas ideológicas muito diferentes. Nos Estados Unidos da América, por aqueles
setores que continuam a ser influenciados pela lógica de Carl Schmitt (1888-1985) amigo-
inimigo que seguiu na Guerra Fria, e na Europa por aqueles que têm uma nostalgia
insuperável de Régis Debray e daí de uma América Latina turbulenta, excitante e de alto
risco, de emoções fortes para eles e, para nós, experiências trágicas.
Antes de entrar ainda mais nos detalhes, é conveniente um banho de realismo.
Nem todas as mudanças tiveram orientações radicais: o México, tal como no Brasil, onde
esses países constituem mais da metade da população ibero-americana e cerca de 70% do
seu produto interno bruto (PIB), aparecem quando bem compreendidos num móvel
moderado do continuum de Bobbio, entre a centro-esquerda e centro-direita.
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Uma trilha interessante e diplomática é a fornecida por Alain Rouquié, que
caracterizou os governos brasileiros de 1995 a 2018 como desenvolvimentistas sociais e
não rumo a uma dita ruptura cujo objetivo seria responder a uma suposta demanda de
reparação social e moral. O que aqui se passou foi à continuidade com mudança, com a
construção de consensos para evitar a instabilidade político-econômica e consideraram
que a modernização permitiria uma resposta eficiente às demandas sociais modernas
(Rouquié, 2020).
Essa pontuação é interessante porque se baseia no percurso histórico peculiar que
os precede e não em um mundo de opções infinitas e vontade pura. Sem cair em nenhuma
cilada histórica, é preciso, ao examinar cada realidade, ver os rumos políticos, os tipos de
agravos acumulados, de oportunidades perdidas, de responsabilidade ou
irresponsabilidade das classes dirigentes deslocadas, os níveis de coesão alcançados e os
níveis de desenvolvimento alcançados.
No entanto, compreender as diferenças históricas não significa ignorar ao menos
um núcleo de demandas dos virtuosos binômios liberdade-igualdade e república-
democracia que devem ser exigidos de um projeto político para ser considerado
genericamente progressista civilizatório.
As experiências de redemocratização do Brasil no século passado sempre fizeram
emergir o tema da Reforma Agrária. Tanto na recente redemocratização iniciada em 1985
quanto na de 1945 ocorrida sob o impacto da vitória das forças do antifascismo (1939-
1945) observamos as tentativas de elaboração de uma transformação política e social
no mundo rural de forma consensualizada. Essa perspectiva convergiu para a ampliação
da cidadania no período de 1945-1964 no qual os direitos sociais instituídos na Era Vargas
foram coroados pela conquista dos direitos políticos.
Ressalvadas as diferenças de conjunturas históricas dos dois momentos de
redemocratização, assinalamos para a percepção da continuidade que, entre outros
indícios, fez-se com mudanças de orientação da reforma na questão agrária. Portanto, a
redemocratização de 1945 inaugurou uma longa travessia em direção de uma política de
reforma agrária no Brasil; que iria se exaurir, no período que vai de 1954 a 1964.
Entendemos que a reforma agrária brasileira se constituiu como uma cultura
política institucionalizada pela prática de afirmação da legalidade democrática-
constitucional. uma forte relação entre o desenvolvimento dos direitos políticos pela
via democrática e a incorporação do tema agrário como direito social; o que verificamos
no debate político em torno da difícil e inconclusa conceituação da "função social da
propriedade" presente na Constituinte de 1946. A bancada comunista na Constituinte
de 1946 introduziu no texto constitucional a subordinação do uso da propriedade ao bem-
estar social (art. 147); porém a desapropriação só poderia ser feita mediante prévia e justa
indenização em dinheiro (art. 141, parágrafo 16), o que recolocava o debate do Império
sobre as indenizações da Abolição (Duarte, 1953).
Nesses cenários, favoráveis do pós-1945 e logo soterrado e o especificamente
difícil do pré-1964, inúmeros sujeitos políticos e intelectuais contribuíram para a
apresentação de diversas propostas de transformação do mundo rural, que tinham em
comum a adoção de medidas graduais de Reforma Agrária. As medidas configuraram a
formação de um exercício gradual no encaminhamento de mudanças. Assim,
consideramos a política agrária de Nestor Duarte como parte integrante dessa formulação
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desse programa progressista civilizatório num continuum da política de frente. O
intelectual baiano estaria além da geografia política do político de militância liberal-
democrática no pensamento social brasileiro.
Ele ocupa um lugar interessante no que se refere à relação entre a transformação
da representação política com uma mudança na fonte da subalternidade eleitoral dos
pequenos proprietários, ou seja, a proposta do gradual enfraquecimento político do
latifúndio. Essa sugestão de teorização da política em Nestor Duarte se está presente
em seu primeiro romance com grande peso na atualidade política brasileira, Gado
Humano (Duarte, 1937).
A atuação política de Nestor Duarte na geografia político-partidária esteve em
constante diálogo com o PCB, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Ignácio
Rangel (1914-1994), Josué de Castro (1908-1973) e tantos outros intelectuais que
constituíram um campo político democrático. Sua interpretação pretende ampliar o foco
de análise do processo de modernização no sentido de tornar mais dinâmica uma
abordagem que vincule a sociedade agrária e a ordem política, o que se torna mais
interessante ao verificar a manifestação do voto no mundo rural.
Outro intelectual que fez uma intervenção política no espaço público brasileiro foi
o também baiano Jorge Amado. A questão do tema agrário esteve presente em suas obras
dos anos 1930 e 1940 com pontos convergentes ao da linha política do PCB, como até
inseriu temas que se tornariam fundamentais no mundo agrário antes da sua consolidação
na academia, como os fenômenos do cangaço e do messianismo; e, além disso, ao elaborar
a defesa de culto e da liberdade religiosa no país na Constituinte de 1946 conseguiu inserir
a convergência entre a liberdade e a igualdade sem nenhuma amarra das instituições
religiosas no quesito e que, ao mesmo tempo, pudessem esclerosar o processo de
soerguimento das massas populares em prol de sua individuação, o que o tangência em
uma chave de leitura da posta por Marx sobre o tema da religião e fé (Marx; 2010).
CONCLUSÃO
As distinções que fizemos naturalmente têm sobreposições e pontos de interseção
na vida real. Apesar disso, as distâncias e diferenças são reais e às vezes exclusivas. Assim
como você não pode ser à esquerda e à direita ao mesmo tempo, você não pode ser a favor
e contra a república e a democracia ao mesmo tempo.
Diversidade e debate são bons, e é justo ressaltar que o programa progressista
civilizatório brasileiro não pode e não deve ser absolutamente homogêneo, embora
também não possa ser uma espécie de salão do faroeste onde alguns caubóis míticos e
não históricos como demonstrou Eric Hobsbawm (1917-2012) no seu livro póstumo de
2013, impondo a lei pela velocidade com que saca suas armas, ou o que quer que seja.
Entre os paramos e a lei da selva há um amplo espaço de possibilidades políticas,
com debate, república, regras do jogo democrático, com espaços de crítica e ação
coordenada e projeto coletivo.
É legítimo apreciar a obra construída com olhos mais ou menos críticos; isso
dependerá das diferentes sensibilidades, do local de onde ocorrem as mudanças e até dos
traços de caráter.
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Nada disso deve ser um obstáculo para, ao final do debate, agir de maneira
concordante e leal.
Gostaríamos de concluir apontando alguns elementos que nos parecem essenciais
para que o espaço progressista civilizatório brasileiro reformador se torne uma força
principal e duradoura.
1) A primeira é a adesão ativa dos intelectuais e dos partidos e sem concessões à
república e à democracia em suas dimensões processuais. Aquela caracterizada pela
realização regular de eleições livres, institucionalizadas e competitivas, bem como a
validade das liberdades políticas como opinião, expressão, associação, movimento,
acesso a meios jornalísticos não monopolistas e afins. Caracterizado em suma, porque as
maiorias, seja qual for o seu tamanho, respeitam a minoria e onde estes podem, por sua
vez, tornar-se maioria. Este, e não as políticas econômicas ou sociais é o ponto decisivo
da intransponível diferença entre o critério de interpretação de Gramcsi como baliza da
proposta progressista civilizatória e uma versão neojacobina que maltrata esses
princípios.
2) A segunda é à distância das exclusões: nem desista da liberdade em nome da
igualdade nem da igualdade em nome da liberdade.
A convicção de que viver em sociedade exige sacrificar a liberdade individual,
levando em conta a presença do outro, desenvolvendo a solidariedade do gênero humano.
Igualdade também não é absoluta e muito menos de uniformidade, de ausência de
diversidade. De uma perspectiva progressista civilizatória, é necessário um compromisso
persistente para alcançar uma sociedade mais justa, para igualar oportunidades, para
garantir um mínimo civilizacional para todos. Isso requer uma esfera pública com
capacidade e vontade de agir, de tornar realidade as liberdades positivas e o cumprimento
progressivo dos direitos econômicos e sociais. Como aponta Rosanvallon (2013) uma
política de esquerda para uma sociedade de iguais deve ser sempre uma política ativa de
intervenção e de não aceitação da força das escolhas.
3) A terceira é a abertura e curiosidade sobre o que é novo, a vontade de sempre
corrigir o que foi feito. Isso não significa desvalorizar o que foi feito, mas entendê-lo
como um passo em um longo caminho. Esse ensinamento de Marx demorou a ser
compreendido por tantos. Gramsci vai chegar a ela no cárcere e nos deixara reflexões
riquíssimas sobre essa conquista.
É a solidez do que foi conquistado que nos permite pensar criticamente sobre
como seguir em frente.
É porque uma base sólida para o desenvolvimento equitativo é sempre construída
num processo histórico de longuíssima duração, e que podemos pensar em fazer coisas
diferentes e novas para avançar.
Na experiência brasileira recentemente interrompida, muitos exemplos. Sem
ter removido todas as probabilidades de retrocesso, os enclaves mais indignos nos nossos
200 anos ainda não foram purgados. Sem sair do atoleiro da educação que se encontra
assim desde a promulgação da Constituição, a qualidade da educação pode ser
colocada como eixo do debate com a Lei Darcy Ribeiro (1922-1997) de 1996. Sem ter
dado os passos gigantescos e firmes na redução da pobreza, hoje uma sociedade mais
igualitária poderia ser discutida como uma questão bem encaminhada. Sem ter avançado
em um Brasil macroeconomicamente integrado as melhores práticas da economia
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mundial, não será possível colocar a questão ambiental e as mudanças climáticas na
agenda concretamente.
4) A quarta refere-se à ética da reforma. Ela é difícil. Não carrega consigo a
vertigem da refundação, as vozes do épico e a duração de um momento excitado e curto
para depois se transformar em opacidade, retórica distante da realidade, num
“parlamentarismo negro” nas palavras de Gramsci. A ética da reforma deve coexistir com
o que a sociedade delibera no binômio república-democracia, inclusive o mercado que
antecede a sua apropriação pelo sistema do capital, em tempos longos, sem épica nem
epopeia.
Como aprendemos com o pessimismo da razão, acreditamos que, para evitar a
decadência e a corrupção, é necessário o império objetivo de normas no dizer de Ronald
Dworkin (2021) que minimizem a discricionariedade. Mais regras, então, para evitar
abusos em um processo de mudança.
5) Uma reflexão final, ser adepto da civilização não significa banir o sonho. Mas
você só sonha bem quando seus pés estão no chão e você trabalhou duro. Não abandonar
o longo caminho da mudança e atolar-se em atalhos arriscados não significa renunciar a
ideais.
Digamos com Max Weber (1864-1920), que não é suspeito de nenhum arroubo
nos deixa a lição de que a política é um trabalho duro e lento com madeira dura, com uma
combinação de paixão e bom senso. É, claro, inteiramente correto e confirmado por toda
a experiência histórica, que o que é possível nunca teria sido alcançado se os indivíduos
no mundo não tivessem tentado repetidamente o impossível.
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SEÇÃO DOSSIÊ
https://doi.org/10.36311/2526-1843.2022.v7n11.p74-83
© Rev. Práxis e Heg Popular
Marília, SP
v.7
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Dez/2022
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Recebido em 13 de janeiro de 2023
Aceito em 13 de janeiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023