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GRAMSCI NO BRASIL: NOTAS SOBRE UM ENCONTRO MEMORÁVEL NA
SENDA DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E POLÍTICA
Anita Helena Schlesener
1
RESUMO:
O presente artigo traz um recorte da história da recepção do pensamento de Gramsci no Brasil a partir de
um encontro promovido pelo Curso de Serviço Social da UFMA e que possibilitou um debate político
importante. Retomamos alguns aspectos deste debate para compreender a relação entre política e educação
mostrando as possibilidades de leitura que o texto fragmentário de Gramsci possibilita. O artigo visa a
mostrar que os escritos de Gramsci podem ser lidos de perspectivas diferentes a fim de interpretar o
movimento do real, o que acentua a riqueza de seus escritos.
PALAVRAS-CHAVE: Política, Educação, Antonio Gramsci.
ABSTRACT:
This article brings a clipping of the history of the reception of Gramsci's thought in Brazil from a meeting
promoted by the Social Work Course at UFMA and which enabled an important political discussion. We
return to some aspects of this controversy to understand the relationship between politics and education,
showing the possibilities of reading that Gramsci's fragmentary text makes possible. The article aims to
show that Gramsci's writings can be read from different perspectives in order to interpret the movement of
the real, which accentuates the richness of his writings.
KEYWORDS: Politics, Education, Antonio Gramsci.
INTRODUÇÃO
Partimos aqui do Caderno 10 de Antonio Gramsci (1978, p. 1242) onde, a
propósito da filosofia de Croce, o autor acentua que a “história é sempre história
contemporânea, isto é, política”, no sentido que, “agindo no presente, interpretamos o
passado”. Desta perspectiva, rememorar pode ter o significado de identificar no presente
traços que o passado deixou e que condicionam a vida econômica e social de tal modo
que, para criar as condições de transformação social, faz-se necessário saber ler estes
sinais no presente. Também pode significar que um escrito, depois de publicado, se torna
1
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora no Programa de Pós-
Graduação em Educação na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Presidenta da International Gramsci
Society Brasil (IGS-Brasil) Gestão 2022-2024. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2768-5858 E-mail:
anitahelena1917@gmail.com
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independente do autor e pode ser interpretado de acordo com as circunstâncias. Ao fazer
a releitura do passado a partir da Revolução Francesa, ponto de referência para pensar a
modernidade, Gramsci se afasta do hegelianismo de Croce e de sua leitura especulativa
de Marx para afirmar a identidade entre economia, política e história, acentuando os
desdobramentos desta relação no contexto da realidade italiana. O embate travado em
forma de monologo pelo encarcerado insere-se em uma tentativa de identificar os
conflitos que, explicitados no campo intelectual, permitiriam esclarecer as relações
ocorridas na realidade efetiva. A história sempre reinterpretada para a compreensão dos
limites das forças em luta no presente: este o significado de retomar o processo de
inserção do pensamento de Gramsci no Brasil.
Outra questão importante a salientar é sobre o conceito de educação, entendida
aqui em seu sentido amplo, de formação que ocorre ao longo da vida como construção da
subjetividade e da concepção de mundo a partir da inserção social de cada um. Recebemos
em nosso processo educativo costumes e preconceitos que trazem a marca do passado e
que, de certo modo, condicionam o presente no conjunto das relações sociais.
A história da recepção de Gramsci no Brasil pode ser lida num recorte temporal
que já se estende por noventa anos e que alguns autores já tentaram explicitar, mas pode
ser sempre retomada. Pretendemos fazer aqui o relato de um encontro memorável que
serviu para esclarecer as duas margens entre as quais navegamos e em relação às quais
temos que definir o caminho futuro. Este encontro ocorreu em 1999, em São Luiz do
Maranhão, num evento promovido pelo Curso de Serviço Social da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA) e que se intitulava “Jornada sobre Gramsci”. A singularidade deste
Evento, que reuniu na ocasião em torno de 150 participantes, é que teve como convidados
Carlos Nelson Coutinho, Edmundo Fernandes Dias e Domenico Losurdo, evidenciando
as diferenças de leitura e as possibilidades de interpretação do pensamento gramsciano e
delimitando fronteiras e percursos possíveis.
Domenico Losurdo foi um historiador e pesquisador com reconhecimento
internacional que, a partir do seu espírito revolucionário e sua ação intelectual fecunda,
inspirou movimentos sociais e infundiu uma força de resistência na juventude acadêmica
brasileira a partir de suas inúmeras participações em debates promovidos na Unicamp e
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outras Universidades Brasileiras. Suas leituras em torno do hegelianismo e do
liberalismo, bem como sobre outros temas circunstanciais foram muito fecundos para o
debate em torno do marxismo. No Evento citado sua conferência foi sobre Hegel em
italiano, com tradução simultânea pote Edmundo Fernandes Dias. Em vista disso, nos
deteremos na participação dos outros dois palestrantes buscando reconstituir em breves
notas as polêmicas que evidenciam as duas leituras de Gramsci que prevaleceram no
Brasil.
Iniciamos com uma breve abordagem sobre os limites da primeira edição dos
escritos carcerários na organização de Togliatti, seguida de notas sobre a tradução
brasileira e a interpretação de Carlos Nelson Coutinho. Na sequência, a abordagem da
interpretação oposta, trazida por Edmundo Fernandes Dias e o seu debate com Coutinho.
Seguem-se algumas conclusões.
O TEXTO FRAGMENTÁRIO DE GRAMSCI NA SUA PRIMEIRA EDIÇÃO
O texto fragmentário de Gramsci, escrito nas severas condições carcerárias, abre
a possibilidade de inúmeras leituras. Uma das leituras possíveis, que procura contemplar
o conjunto da obra gramsciana, é a que se elabora em torno da noção de revolução, no
sentido de mostrar como esse conceito, vinculado à redefinição da noção de Estado, não
se enquadra a uma leitura por etapas, mas se produz como uma interpretação da realidade
que busca entender o processo contraditório em seu interior, ou seja como se define a luta
de classes em cada novo momento histórico. Para Gramsci, entender esses mecanismos
significava dar instrumentos de luta à classe operária. A teoria política de Gramsci é
crítica e profundamente revolucionária, porque apontou os limites da política liberal
burguesa e procurou desenvolver uma nova concepção de mundo a fim de construir uma
“nuova civiltà”.
Seus escritos, porém, a partir do formato fragmentário serviu a “usos” diversos,
tiveram um impacto diferente conforme as necessidades políticas dos que se embatiam
na disputa do poder em determinada conjuntura histórica. O primeiro a instrumentalizar
os escritos de Gramsci foi Palmiro Togliatti, no trabalho se seleção dos fragmentos dos
Cadernos do Cárcere organizados em obras temáticas.
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A inserção do pensamento de Gramsci no Brasil se fez a partir tanto da obra
temática organizada por Togliatti, quanto da imagem que este produziu de Gramsci,
conforme as condições de sua publicação e divulgação na Itália por meio da reconstrução
e da atuação do Partido Comunista Italiano (PCI). Como acentua Juan Carlos Portantiero
(1981, p. 67), além do Gramsci precursor da política prudente do comunismo italiano
no segundo pós-guerra, considerada por alguns como uma reedição da política da social-
democracia alemã às vésperas de primeira guerra mundial, existe outro Gramsci, que
está no extremo oposto. A divulgação de Gramsci na América Latina retomou em grande
medida a interpretação togliattiana e outras leituras permaneceram quase desconhecidas.
Hoje se reconhecem os limites da edição de Togliatti, bem como os condicionamentos
históricos que influenciaram na sua organização doa Cadernos. O vasto material de
publicações de Togliatti (1991) durante a fase de preparação da publicação dos Cadernos,
processo que levou dez anos nos quais somente ele conhecia o conteúdo da obra
gramsciana, demonstra a tentativa de criar uma imagem de Gramsci vinculada ao
marxismo-leninismo.
Desse material é necessário salientar um artigo de 1937, nascido de um discurso
pronunciado em Moscou em 27 de maio, um mês após a morte de Gramsci. Neste texto,
que praticamente introduziu Gramsci como dirigente do Partido e rtir do fascismo,
Togliatti expõe o processo de condenação e o sofrimento de Gramsci na prisão com o
objetivo de desvelar os mecanismos de repressão utilizados pelo fascismo desde o
assassinato de Matteotti, em 1924, até a morte de Amendola e Gobetti. Togliatti apresenta
Gramsci como o primeiro marxista da Itália, o primeiro bolchevique italiano, porque foi
educado na escola do marxismo-leninismo, pressupostos que “lhe deram a possibilidade
de percorrer a estrada justa” na análise dos fundamentos econômicos e políticos da
revolução italiana. Evidente que, em 1937, Togliatti ainda não conhecia o conteúdo dos
escritos de Gramsci, material em fotocópias que ele recebeu apenas em 1938 e formulava
uma opinião a partir dos interesses partidários imediatos, num momento em que
prevalecia o regime de terror stalinista, ao qual a adesão do PCI se mostrava clara.
O objetivo de propaganda política e de legitimação da posição partidária do PCI
continuam em outros discursos evidenciando uma instrumentalização dos escritos de
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Gramsci que vai se concretizando ao longo do tempo até os escritos togliatianos de 1944.
Queiramos ou não, esta primeira interpretação marcou por longo tempo o destino das
leituras do político sardo e influenciou sua recepção no Brasil.
Togliatti (1949, p. XVII) definiu os caminhos de interpretação desde a publicação
do primeiro volume dos Cadernos do Cárcere: a orientação política da interpretação
emana do prefácio de II materialismo storico e Ia filosofia de Benedetto Croce, no qual
Togliatti procura definir as intenções do autor salientando que Gramsci desejava escrever
alguma coisa “fur ewig”, de acordo com as exigências de objetividade, probidade,
seriedade científica e de pesquisa desinteressada da verdade”. Descrevendo o percurso
teórico dos Cadernos, Togliatti acentua que os escritos do volume ora publicado eram,
em certo sentido, o “coroamento de todas as pesquisas conduzidas por Gramsci nos anos
do cárcere”. Desse ponto de vista, a obra começou a ser apresentada pelo final. A edição
crítica, que foi publicada em 1975 e apresenta os cadernos em ordem cronológica, situa a
redação dos escritos sobre a filosofia de Benedetto Croce (Caderno 10), entre 1932-35. A
ideia de um Gramsci culturalista tem raízes nesta interpretação, com repercussões na
recepção do pensamento de Gramsci no Brasil.
O início da década de 1960 no Brasil foi marcado por ideais e práticas muitas
vezes contraditórios, que revelavam tensões políticas emergentes: os sonhos de
modernização da parte das classes dominantes, que se empenharam na implementação de
uma política desenvolvimentista, eram partilhados também por setores de esquerda, que
se expressavam na variada gama de movimentos que se estendiam desde o Partido
Comunista Brasileiro (PCB) até as vanguardas artísticas (cinema e teatro, principalmente)
e os grupos mais radicais que se organizavam em torno de projetos revolucionários
socialistas.
A ação política do PCB na década de 1960 pressupunha tanto a relação do Partido
com a Terceira Internacional Comunista e a sua aceitação das determinações políticas
daquela organização partidária, quanto a sua inserção no debate político nacional, onde
prevalecia, desde o final da década de 1950, o ideário nacionalista, que pretendia
implementar um processo de modernização econômica e reformas sociais, a partir de
ações governamentais, com apoio da sociedade civil. A partir desta posição, o Partido
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enfrentou muitas querelas e dissidências tendo como pano de fundo a definição da
natureza da revolução no Brasil e as possíveis estratégias políticas.
As profundas contradições sociais se manifestavam na participação da sociedade
civil na vida política do país, expressando-se de várias maneiras: havia setores que
apoiavam medidas nacionalistas e movimentos que reivindicavam reformas sociais e
mudanças políticas urgentes. A organização política dos trabalhadores urbanos e rurais
convivia com as diferentes posições de setores da classe média, que iam desde a
participação nas manifestações urbanas em favor de mudanças radicais até o apoio à
intervenção militar que acabou acontecendo no Golpe de Estado de 1964.
A divulgação de Gramsci no Brasil permitiu, em determinados momentos, uma
crítica política e uma renovação do pensamento de esquerda, mas também serviu a
objetivos políticos mais imediatos que levaram, em determinadas circunstâncias, a
instrumentalizar seu pensamento. Embora a sua heterodoxia emane a cada novo parágrafo
de seu texto, Gramsci foi inicialmente apresentado pelos tradutores, no momento da
primeira publicação, como um marxista preocupado com a questão cultural desvinculada
da questão política, porque era o que se mostrava viável dentro dos limites da política do
PCB. Mais tarde, quando deram relevância à questão política, o Gramsci apresentado foi
o Gramsci togliattiano, leninista, fundador do PCI, que seguiu essa orientação partidária.
No fundo, Gramsci não deixou de ser o “teórico das superestruturas”, em nenhum
momento se considerou relevantes as suas reflexões sobre economia nem se procurou
mostrar a interrelação dialética entre econômico e político, que permite redefinir a questão
das superestruturas.
Cabe salientar que ao menos duas leituras prevaleceram no Brasil, a partir da
conjuntura histórica da década de 1960, época de sua inserção nos debates do PCB e os
pressupostos que orientavam a noção de revolução que prevalecia entre parcelas das
esquerdas vinculadas ou simpatizantes do Partido. A partir da tradução brasileira a
interpretação de Gramsci que se firmou foi a que seguiu, em linhas gerais, a noção de
revolução processual implícita na leitura de Togliatti, na ideia de construção de uma
democracia progressiva, nos moldes do que ocorria com o PCI na Itália.
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Hoje se identifica a complexidade de uma obra que se produziu ao longo de uma
vida e que precisa ser lida em sua totalidade para ser compreendida. Esta é uma das
dificuldades enfrentadas no Brasil, visto que não temos ainda nem a tradução da Edição
Crítica de Valentino Gerratana e um mínimo de sua produção jornalística publicada entre
1916 e 1926 encontra-se traduzida.
Podemos ainda dizer, depois de um longo período de leitura e interpretações de
Gramsci no Brasil, que prevaleceram uma leitura culturalista que abre caminho a uma
interpretação liberal e se aproxima de teorias pós-modernas, e uma outra que retoma o
Gramsci revolucionário, cujo ponto de partida para qualquer reflexão é a luta de classes;
no meio do caminho destes extremos, a leitura filológica mais recente, para a qual o
embate político fica em segundo plano. Partindo da observação de Gramsci de que toda
história é história contemporânea, nenhuma destas vertentes pode afirmar que apresenta
a verdade sobre o seu pensamento, visto que as circunstâncias históricas e políticas de
cada momento condicionam a leitura e a apropriação intelectual de um autor. A verdade
é que tudo é histórico e uma teoria precisa ser entendida tanto no seu conteúdo quanto na
sua relevância e efetividade política. A questão em aberto é a da tradutibilidade a ser
construída entre teoria e prática; para Gramsci (1978, p. 851), “o princípio da
tradutibilidade recíproca é um elemento crítico’ inerente ao materialismo histórico”.
Visto que toda história é história contemporânea, traduzir significa interpretar para
compreender o real em seu movimento conjuntural e estrutural. Desta perspectiva,
seguem as nossas notas sobre as interpretações de Coutinho e Dias.
NOTAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE COUTINHO
Carlos Nelson Coutinho e Edmundo Fernandes Dias foram dois grandes
intérpretes e polemizadores que se confrontaram em debates memoráveis a partir de suas
leituras do pensamento de Gramsci, debates dos quais, apesar das divergências, nunca
faltou o respeito que cabe nas polêmicas entre grandes intelectuais. O embate teórico entre
Coutinho e Dias nos apareceu translúcido e é dele que pretendemos falar a seguir. Para
tanto, precisamos retomar alguns pontos da leitura que ambos fizeram dos escritos de
Gramsci.
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Carlos Nelson Coutinho, como um dos principais tradutores dos textos de Gramsci
publicados no Brasil e divulgador do pensamento gramsciano por meio de seus escritos,
foi uma figura de grande relevância no debate brasileiro. Ao longo dos anos 1970, em
ensaios e comunicações, Coutinho não procurou explicitar os conceitos de Gramsci
como desenvolver a análise da realidade brasileira com o apoio de suas categorias. No
bojo desse trabalho, tem-se uma formulação do conceito de revolução, que é atribuída a
Gramsci, mas se elabora a partir da interpretação construída por Togliatti.
Nos anos 1980, Coutinho passou também a desenvolver um trabalho de
historiador, fazendo o inventário da inserção do pensamento de Gramsci no Brasil,
inicialmente em comunicações apresentadas em Seminários realizados na Itália (Ferrara,
1985 e Formia, 1989) e, posteriormente, traduzidas pelo próprio Carlos Nelson Coutinho,
para publicação no Brasil (COUTINHO, 1988). Nos dois eventos, tratou-se de uma
versão da história que, de certa forma, atuou como uma justificação de seu trabalho
pessoal.
A inserção das ideias de Gramsci no Brasil foi dividida por Coutinho em dois
momentos: um primeiro ciclo, que vai da primeira publicação de parte da obra de Gramsci
(1966) até meados dos anos 1970 e um segundo ciclo, que inicia com a segunda edição
da tradução brasileira, de 1978. Nos dois ensaios citados Coutinho faz um esboço
histórico da situação política pós-1968 e do ambiente cultural vivido pelas esquerdas
brasileiras para justificar a pequena influência ou o quase desinteresse pelas primeiras
edições do texto de Gramsci: o movimento de esquerda aparece polarizado entre, por um
lado, o PCB, com sua “tradição terceiro-internacionalista”, em que predominava uma
concepção do marxismo “fortemente economicista” e, por outro, grupos que Coutinho
denomina de “ultraesquerda”, entre os quais inclui os que se dedicavam ao estudo da
teoria de Althusser.
Por meio desses ensaios, esboçam-se algumas das condições objetivas que
caracterizaram a conjuntura histórica em que se inseriu o pensamento de Gramsci na
década de 1960. Coutinho aponta como dificuldades para a recepção do pensamento de
Gramsci no Brasil não só as medidas de exceção da ditadura militar, mas também a
“própria cultura então dominante nos ambientes culturais brasileiros de esquerda”,
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influenciada por modelos interpretativos e pela tradição da Terceira Internacional que
predominava no PCB, situação que levava a entender o Brasil como um país com uma
“formação social atrasada, semicolonial e semifeudal, que teria necessidade, para superar
suas contradições e encontrar o caminho do progresso social, de uma revolução
'democrático-burguesa' ou de 'libertação nacional'” (COUTINHO, 1988, p. 104-105).
Essa era, ainda na leitura de Coutinho, a posição do PCB desde os anos 1930.
Na análise de Coutinho, ocorria “uma estranha (mas não paradoxal) convergência
entre as posições mais reacionárias da ditadura e a orientação terceiro-internacionalista
do marxismo brasileiro”, o que dificultou a recepção do pensamento de Gramsci no
momento de sua primeira publicação. Foi com o decnio da ditadura e a crise da velha
esquerda que a influência de Gramsci, a partir da metade dos anos 1970 se fez sentir, em
“análises políticas e historiográficas” de “autores comunistas, social-democratas, cristão-
progressistas e até mesmo liberais” (COUTINHO, 1988, p. 105). Coutinho acentua que,
embora opostos, esses lados coincidiam na análise da realidade brasileira, entendendo-a
como uma realidade constituída de uma formação social “'atrasada', semicolonial e
semifeudal”, que deveria, por suposto, passar necessariamente por uma revolução
'democrático-burguesa' antes de se lançar à construção de um projeto socialista. Essa
composição dificultou, no entender de Coutinho, a recepção da obra de Gramsci no Brasil,
de modo que o seu texto começou a ser lido e amplamente discutido a partir da metade
dos anos 1970, ou seja, “simultaneamente ao início (ainda tímido) do processo de abertura
política e à crise cada vez mais explícita das organizações marxistas tradicionais”
(COUTINHO, 1988, p. 104-105).
Outra questão implícita nas afirmações de Coutinho é a intenção do PCB em
manter a tutela da atividade intelectual, bem como a direção política, apesar da crise
interna gerada pelas revelações do Relatório Kruschev de 1956 sobre os horrores do
stalinismo. O PCB o promoveu a renovação, diz Coutinho, mas também não
obstaculizou o seu encaminhamento por parte de “alguns jovens intelectuais ligados então
ao Partido”. A direção do Partido havia compreendido a importância da renovação como
pressuposto para que o “PCB continuasse a exercer influência” sobre a esquerda, ou seja,
a renovação intelectual foi consentida (COUTINHO, 1988, p. 105).
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Cabe salientar que no evento de Formia, com texto publicado na Itália, Coutinho
acentua que as “primeiras referências a Gramsci da parte de jovens intelectuais
comunistas” aparece em “publicações culturais ligadas ou influenciadas pelo PCB”; e
acrescenta uma nota de rodapé fazendo uma observação que parece inocente e até ingênua
sobre um escrito de Löwy sobre a recepção de Gramsci no Brasil: “é interessante observar
que, diversamente de Coutinho e Konder, Löwy não se refere ao Gramsci filósofo, mas,
ao contrário, ao teórico dos conselhos operários”. Acrescenta que se trata, porém, de uma
linha de pesquisa que teve seguimento a partir de 1984, “quando o tema do jovem
Gramsci reaparece em tese de doutorado redigida por Edmundo Fernandes Dias e
apresentada na Universidade de São Paulo” (COUTINHO,1995, p. 125).
As breves observações acima, com grande respaldo nos escritos de Coutinho,
demonstram que a inserção do pensamento de Gramsci no Brasil teve uma orientação
que, para Coutinho, estava centralizada no PCB, chegando a acentuar que a publicação
se constituiu em uma “operação” que tinha “uma finalidade clara: apresentar ao leitor
brasileiro um Gramsci sobretudo filósofo e crítico literário, no qual a dimensão
estritamente política tinha um peso secundário”, conforme a “linha de interpretação
oficial do PCI” (COUTINHO, 1995, p. 127). Portanto, a dicotomia entre cultura e
política foi intencional, orientada pela postura do PCB e pela predominância do
“marxismo-leninismo” nos ambientes culturais brasileiros de esquerda, fato que
restringiu o alcance crítico e antidogmático da obra gramsciana.
Assim, a dicotomia entre cultura e política acentuada nas notas introdutórias ao
primeiro livro de Gramsci no Brasil, Concepção Dialética da História, não foi fruto das
circunstâncias históricas, mas de um posicionamento político e ideológico de Coutinho
ante o texto de Gramsci. No curso dos anos, esta leitura prevaleceu no Brasil, na medida
em que a tradução da edição temática passou a circular e não se tinha acesso a outros
materiais visto não estarem traduzidos.
Implicitamente Coutinho reconhecia que o problema da escassa repercussão do
pensamento de Gramsci entre o público brasileiro se ligava ao vínculo estabelecido entre
o autor italiano e o PCB: “Nosso autor chegava ao Brasil num momento em que amplos
setores da intelectualidade de esquerda, radicalizando sua oposição a uma ditadura que
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também se radicalizava, não mais reconheciam nas formulações políticas do PCB” uma
resposta adequada aos desafios da nova situação (COUTINHO, 1995, p. 128).
Na verdade, o pouco impacto do pensamento de Gramsci neste primeiro momento
deve-se tanto às circunstâncias históricas quanto à sua apresentação como filósofo da
cultura. Em As categorias de Gramsci e a realidade brasileira Coutinho salientou que o
“ambiente cultural permaneceu hostil a uma justa recepção de Gramsci”, sem definir
claramente o que entendia por “justo”: o que seria, no entender de Coutinho, uma
recepção “justa”? A interpretação togliattiana, de acordo com a orientação “oficial” do
PCI? Ou a redução das categorias de Gramsci à matriz teórica leninista, mais apta a
conviver com o stalinismo predominante no PCB? Quem sabe a leitura liberal, a partir
dos postulados croceanos? O conceito “justo”, além de apresentar um sentido moral,
demonstra uma atitude dogmática que exclui todas as outras possibilidades de leitura.
Vários outros pontos poderíamos apresentar aqui para acentuar os limites da
perspectiva de Coutinho, como a ideia de “democracia como valor universal”, tomando
o conceito de forma abstrata. Para Gramsci, a realidade se transforma continuamente e o
conceito, embora distinto do real que concebe, deve considerar a historicidade e o
movimento do real. A democracia burguesa é fortemente criticada por Gramsci como uma
forma de elidir a participação popular, ou seja, faz do aparelho institucional do Estado
parlamentar um instrumento de formação e de controle da vontade popular no sentido de
proteger interesses econômicos. Tal acontece a partir da estrutura formal que assume tal
democracia, que serve para mascarar e legitimar a estrutura de poder burguesa.
A parte este detalhe, a interpretação de Coutinho de conceitos presentes nos
Cadernos como: a noção de Estado e de guerra de posições, passiveis de serem adaptados
a uma proposta de conquista progressiva ou ao contexto da teoria das etapas, podem ser
exaustivamente criticadas a partir do próprio material dos Cadernos na Edição Gerratana.
Os pontos que levantamos acima são alguns levantados também por Edmundo Fernandes
Dias no seu debate com Carlos Nelson Coutinho.
Edmundo Fernandes Dias foi docente universitário e principalmente um militante
político e sindical como dirigente do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior
(ANDES-SN) e é desta perspectiva que se dedicou à leitura dos escritos de Antonio
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Gramsci. A sua tese de Doutorado, intitulada Democracia Operária, posteriormente
publicada com o título Gramsci em Turim: a construção do conceito de hegemonia foi
um dos primeiros trabalhos consistentes sobre os escritos de Gramsci no período de 1913
a 1921, com ênfase no biênio rosso até a fundação do PCI. O caráter revolucionário dos
escritos gramscianos é ressaltado em toda a sua força na reflexão sobre os Conselhos de
Fábrica, como uma ação permanente de educação política da classe trabalhadora e uma
recomendação ao partido para desenvolver um trabalho permanente de análise e de
adequação a realidade (DIAS, 1987).
Como dirigente sindical Edmundo Fernandes Dias recorreu às categorias
gramscianas para análise da realidade brasileira contestando as leituras reformistas e
liberais que se faziam no Brasil. Sua leitura de Gramsci tinha o objetivo claro de avançar
na linha de análise conjuntural da realidade brasileira visando uma intervenção política e
de formação da classe trabalhadora. Desta perspectiva, foi um dos mais ferrenhos críticos
de Carlos Nelson Coutinho, em polemicas acirradas em ocasiões como o Evento que
recordamos aqui.
Como intelectual e docente universitário foi autor de uma extensa produção
bibliográfica, teórica e política, pela qual se notabilizou pelo rigor de interpretação do
pensamento gramsciano e pela crítica à instrumentalização e ao reducionismo de algumas
leituras de Gramsci tornando-o a matriz da verdade a referendar (DIAS, 1996). Todos os
seus escritos tinham como pressuposto a importância da luta de classes e a perspectiva
revolucionária do político sardo.
Dias mostrava a continuidade entre os Conselhos de Fábrica enquanto experiência
inédita de construção do Estado operário e os Cadernos do Cárcere, nos quais, na sua
leitura, Gramsci “repensa as práticas revolucionárias nos países capitalistas de
institucionalidade condensada sob a dominância imperialista”. Entre as duas fases não
ruptura: segue-se a mesmo forma de trabalhar os conceitos. “Obviamente atualizam-se as
categorias, constroem-se novas. Mas o fio que perpassa toda a obra é o mesmo: a
capacidade orgânica das classes trabalhadoras de construírem uma nova civiltà” (DIAS,
1996, p. 107).
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Retomamos um dos últimos escritos de Edmundo Fernandes Dias que nos foi
cedido para publicação com o título: Notas sobre hegemonia, que apresenta uma
condensação do livro Revolução Passiva e Modo de Vida publicado pela Editora
Sundermann em 2012. Este artigo se tornou uma publicação póstuma. Entre os conceitos
gramscianos que retomou e explicitou nesta abordagem estão: Estado e sociedade civil;
hegemonia; guerra de posição; linguagem. Seguindo a senda deste escrito, Dias acentua
que as leituras do conceito de sociedade civil em Gramsci (e que foram mais divulgadas
no Brasil) a apresentam como “um desdobramento metodológico do Estado”, lida por
intelectuais que se dizem marxistas, como “entidade separada da sociedade política e
transformada em elemento que permite/facilita a captura liberal da subjetividade
antagonista” (DIAS, 2014, p. 20).
Para Dias, esta leitura da “sociedade civil como lugar do consenso e em oposição
ao Estado não é apenas não-gramsciana, mas profundamente anti-gramsciana”. Assim
temos um conceito “criado por um marxista revolucionário” metamorfoseado “para o
amplo dicionário reacionário da política dos organismos internacionais”. Na separação
entre sociedade política e sociedade civil não apenas se traduz o sentido de Estado em
termos liberais como também se instrumentaliza o significado de consenso, que pode ser
entendido como acordo, mas também como “obter o consentimento, isto é, obter a
obediência”, o que não se exclui numa sociedade hierárquica e autoritária como a nossa.
Tomada de forma naturalizada e neutra, a expressão “sociedade civil” oculta “conteúdos
e práticas semanticamente diversos”. Instrumentalizar o pensamento de Gramsci não se
apresenta como ação inocente ou ingênua, mas esconde uma intencionalidade: o “erro
teórico oculta uma capitulação ideológica” (DIAS, 2014, p. 20-21).
Dias também reflete sobre a linguagem política, que é outro fator de suma
importância na luta de classes: é por meio dela que se forma o horizonte ideológico no
qual se interage e se forma (ou se anula) a consciência de classe. A “ordem burguesa, pelo
efeito ideológico da ideia de ordem, se naturaliza, perde sua historicidade, se eterniza,
passando a ser vista como o único cenário possível da vida social”. Este horizonte
ideológico nos aprisiona como grilhões invisíveis que não permitem identificar a “questão
central: o seu caráter classista” (DIAS, 2014, p. 21).
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A este conceito segue-se o de hegemonia, que Dias não cessou de explicitar no
curso de sua produção teórica e política, visto a apropriação de sentido no contexto da
ideologia burguesa. A hegemonia, para as classes trabalhadoras, define-se não como
consenso quantitativo e passivo, mas como construção de sentido comum e coletivo de
massa para criar a “inteligibilidade do real” e o reconhecimento do embate de projetos
políticos divergentes e conflitantes na sociedade. Não se apresenta, em Gramsci, como
uma reforma interna da ordem vigente, mas como a luta por um novo projeto de sociedade
(DIAS, 2014, p.22-23).
No magnífico texto Notas sobre hegemonia, a crítica ao reformismo que se institui
na apropriação liberal do pensamento de Gramsci se expressa, conforme Dias (2014, p.
24 grifo do autor), nas “políticas públicas, forma pela qual os governos pretendem impor
sua visão de mundo, seu projeto de dominação”. Tais políticas “atendem necessidades
populares de modo focalizado sem alterar-se as condições reais que as produzem”. Desta
forma, penetram fundo no solo da afetividade social subalterna”, consolidando a
hegemonia burguesa.
O embate de Dias com Coutinho se concentrava essencialmente sobre esta
abordagem reformista na interpretação do pensamento de Gramsci, tanto sobre a
apresentação da edição brasileira quanto sobre o conteúdo dos conceitos vistos a partir da
separação entre cultura e política, entre política e economia, como pressuposto teórico
para a leitura reformista do pensamento do político sardo.
Um fato do cotidiano expressa seu significado se inserido no contexto: o Evento
que reuniu estes três grandes intelectuais e intérpretes de Gramsci foi fundamental para
explicitar elementos da recepção do político sardo no Brasil, expondo a importância do
trabalho da memória realizado por historiadores na senda do esclarecimento dos
condicionamentos sociais e políticos presentes na produção intelectual. A leitura histórica
revela posicionamentos políticos no narrar ou omitir certos eventos, mostrando que
nenhuma interpretação é neutra ou definitiva e, desta forma, nossa escrita também está
exposta.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 13 de janeiro de 2023
Aceito em 13 de janeiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023