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IDEOLOGIA EMPREENDEDORA E HEGEMONIA BURGUESA
NO BRASIL: UMA ANÁLISE SOBRE O SEBRAE
ENTREPRENEURIAL IDEOLOGY AND BOURGUESE
HEGEMONY IN BRAZIL: AN ANALYSIS OF SEBRAE
IDEOLOGÍA EMPRESARIAL Y HEGEMONÍA BURGUESA EN
BRASIL: UN ANÁLISIS DEL SEBRAE
Erika Cordeiro do Rêgo Barros Valentim
1
Juliane Feix Peruzzo
2
Angela Amaral
3
Resumo: Este trabalho discute a materialidade da ideologia empreendedora no Brasil,
evidenciando um dos principais Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) da burguesia
nacional: o Sebrae. A pesquisa utiliza dados bibliográficos, documentais e estatísticos,
no sentido de apreender a materialidade de tal ideologia burguesa na disputa pela
hegemonia. Com base nas contribuições de Antonio Gramsci acerca da relação entre
Estado, ideologias e disputas pela hegemonia, discute-se a centralidade da ideologia do
empreendedorismo no Brasil, num contexto de avanço das contrarreformas trabalhista e
previdenciária.
Palavras-chave: Ideologia. Aparelho Privado de Hegemonia. Empreendedorismo.
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco.
E-mail: erika.barros@ufpe.br
2
Professora Associada II da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: peruzzo.juliane@gmail.com
3
Professora Associada IV da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: angela.amaral@ufpe.br
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Abstract: This paper discusses the materiality of entrepreneurial ideology in Brazil,
highlighting one of the main Private Hegemony Apparatuses (APHs) of the national
bourgeoisie: Sebrae. The research uses bibliographic, documentary and statistical data, in
order to apprehend the materiality of such bourgeois ideology in the dispute for hegemony
Based on Antonio Gramsci's contributions about the relationship between State,
ideologies and disputes for hegemony, the centrality of ideology is discussed of
entrepreneurship in Brazil in a context of advancing labor and social security counter-
reforms.
Keywords: Ideology. Private Apparatus of Hegemony. Entrepreneurship.
Resumen: Este trabajo discute la materialidad de la ideología empresarial en Brasil,
destacando uno de los principales Aparatos Privados de Hegemonía (APHs) de la
burguesía nacional: el Sebrae. La investigación utiliza datos bibliográficos, documentales
y estadísticos, con el fin de aprehender la materialidad de tal ideología burguesa en la
disputa por la hegemonía. A partir de las contribuciones de Antonio Gramsci sobre la
relación entre el Estado, las ideologías y las disputas por la hegemonía, se discute la
centralidad de la ideología del emprendimiento en Brasil, en un contexto de
contrarreforma laboral y de seguridad social en avance.
Palabras clave: Ideología. Aparato Privado de Hegemonía. Emprendimiento.
1 INTRODUÇÃO
No cenário nacional, a implementação de políticas públicas voltadas ao
microempreendedorismo vem sendo conduzida historicamente por parcerias entre
Governo Federal e Sistema S. Composto por nove instituições prestadoras de serviços, o
Sistema S pode ser considerado um dos principais conglomerados de Aparelhos Privados
de Hegemonia (APHs) da cultura empreendedora nacional.
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As análises críticas que identificam o Sebrae enquanto importante APH da
burguesia nacional apontam para a sua significativa atuação na ideologização do
empreendedorismo, cujo sentido é a obtenção de consensos da classe trabalhadora às
contrarreformas trabalhista e previdenciária, que avançam ao lado do desemprego
estrutural e da precarização do trabalho no Brasil. Assim como nos anos 1970, quando
assumiu diretrizes claramente vinculadas ao projeto neoliberal, tal APH permanece
sintonizado às necessidades do capital, agora sob as premissas ultraneoliberais que
ganham força a partir do golpe de 2016.
O presente texto considera que a análise deste APH, a partir de aportes teóricos
gramscianos, revela-se um caminho fecundo à compreensão da cultura empreendedora
no Brasil, a qual vem sendo protagonizada pelo estímulo ao microempreendedorismo
formal como novo horizonte das relações de trabalho. Nesse sentido, consideramos que
as categorias e conceitos de Gramsci têm o potencial de contribuir para o deciframento
das antigas e novas formas de funcionamento do Sebrae desde a compreensão de seu
papel histórico na difusão ideológica do empreendedorismo nacionalmente às novas
determinações que emergem no contexto político-econômico atual.
O artigo está dividido em duas seções de desenvolvimento. Na primeira, as
categorias ideologia e hegemonia são discutidas na perspectiva gramsciana, assim como
outros conceitos relacionados: Estado Integral, intelectuais e aparelhos privados de
hegemonia. Na segunda seção, discute-se o Sebrae enquanto principal aparelho privado
de hegemonia da burguesia brasileira na disseminação da ideologia empreendedora.
2 IDEOLOGIA E HEGEMONIA NA PERSPECTIVA GRAMSCIANA
Nas reflexões de Antonio Gramsci acerca do Estado Integral, as categorias
ideologia e hegemonia comparecem organicamente articuladas, expressando a apreensão
crítica de determinações apontadas por Marx, conferindo-lhes, no entanto, maior
desenvolvimento face às condições sócio-históricas de seu tempo: as novas formas de
dominação do capitalismo no século XX a partir das transformações operadas na estrutura
e superestrutura de tal sociabilidade.
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Sem adentrarmos no longo e duradouro debate que envolve as polêmicas
concepções sobre ideologia na tradição marxista e suas repercussões nas elaborações de
Gramsci, cabe destacar o caráter materialista da ideologia no pensamento de Marx, uma
vez que para ele, “a produção das ideias, de representações, da consciência, está, em
princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio
material dos homens, com a linguagem da vida real” (MARX & ENGELS, 2007, p. 94),
sendo as ideias da classe dominante, as ideias dominantes, “isto é, a classe que é a força
material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”
(MARX & ENGELS, 2007, p. 47), conforme escreve em A ideologia alemã.
É no conhecido Prefácio (1859) que Marx retoma a temática da ideologia sob uma
visão sistematicamente mais ampliada, ao supor que as diferentes expressões assumidas
pela ideologia (filosofia, arte, política, religião, direito, etc.) se constituem como
determinadas formas da consciência que funcionam como condutos de suas práticas na
interação com o real, meio pelo qual “os homens adquirem consciência desse conflito e
o levam até o fim” (MARX, 2008, p.48).
Conforme aponta Liguori (2014), Gramsci não teve acesso à Ideologia Alemã,
publicada entre os anos 1920-1930, nem parte da concepção de Engels sobre ideologia
enquanto falsa consciência. Extrai, no entanto, do Prefácio da Crítica da Economia
Política, uma leitura inovadora que repõe as bases contidas em Marx, enriquecendo-as
teoricamente com novas questões. É neste sentido, que para o marxista sardo, no bloco
histórico:
[...] as forças materiais são o conteúdo, e as ideologias a forma; a distinção de
forma e conteúdo é meramente didática, posto que as forças materiais não
seriam concebíveis historicamente sem forma, e as ideologias seriam caprichos
individuais sem a força material (GRAMSCI, 1971, p. 57).
Cabe ressaltar que o caráter materialista da ideologia no pensamento de Marx se
mantém na obra de Gramsci, sobretudo em contraponto à definição equivocada atribuída
a Gramsci como “teórico das superestruturas”, análise comum nas interpretações
referenciadas por Norberto Bobbio. Contrariamente à tal proposição, ao conceber o
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Estado Integral, Gramsci supera as dicotomias entre estrutura / superestrutura; sociedade
civil / sociedade política, apreendendo-as enquanto totalidade cuja a complexa atuação
estatal não se reduz ao aparato coercitivo, mas se estende à construção de consensos
necessários à dominação da classe burguesa.
Ao apreender o Estado como expressão universal das relações sociais que não
reproduz mecanicamente os interesses exclusivos da classe dominante, mas que incorpora
determinadas demandas das classes subalternas em termos gramscianos: o Estado
Integral Gramsci vai muito além das concepções até então formuladas sobre a relação
Estado-sociedade, identificando a inexistência de qualquer cisão no âmbito de tal relação.
O Estado Integral, ou Estado Ampliado, nos termos de Buci-Gluksmann (1980),
é determinado pelas relações entre sociedade política (a face mais conhecida do Estado
historicamente, referindo-se a todo o aparato coercitivo necessário à administração dos
governos) e sociedade civil (o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia,
organizadores das vontades coletivas através de mecanismos consensuais, nos quais se
destaca a atuação dos intelectuais). Nas palavras de Gramsci:
[...] Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o
que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos
designados vulgarmente como “privados”) e o da “sociedade política ou
Estado”, planos que correspondem respectivamente, à função de “hegemonia”
que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio
direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”.
Essas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são
“prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da
hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo”
dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo
fundamental dominante à vida social (...); 2) do aparelho de coerção estatal
que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem
ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na
previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais
desaparece o consenso espontâneo (GRAMSCI, 2000, p. 20-21).
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É interessante destacar, também, que a concepção de sociedade civil em Gramsci
apresenta elementos opostos à perspectiva hegeliana e, que se diferenciam, ao mesmo
tempo, da concepção de Marx.
Para Hegel, a sociedade civil contém tanto o poder policial, quanto o poder
político, existindo uma cisão entre os interesses privados (no âmbito da sociedade civil)
e os interesses universais (no âmbito do Estado). Na perspectiva hegeliana, o Estado
condensa os diferentes interesses existentes na sociedade civil, impondo-se como vontade
geral, representação do bem público. Enquanto a sociedade civil abarca a organização
material das relações de produção e seus respectivos interesses econômico-corporativos,
o Estado é, para Hegel, a superação das contradições, a unidade entre interesses
particulares e universais, momento superior da história.
na concepção de Marx, longe de representar a superação das contradições, o
Estado é a sua exata expressão na sociedade burguesa; a cristalização da dominação de
classes existente na sociedade civil. A sociedade civil também é o terreno da produção
material e da luta de classes que se expressa no Estado. Na Crítica à filosofia do Direito
de Hegel (1843), Marx inverte a lógica hegeliana e sustenta que são as condições
materiais as relações sociais concretas que dão origem às formas político-jurídicas na
relação Estado sociedade civil. Há, portanto, uma concepção orgânica entre Estado e
sociedade civil, inexistindo qualquer autonomia entre ambos.
O grande avanço de Gramsci neste debate é o de apreender o Estado enquanto
unidade contraditória, marcada pela combinação de novas funções com suas tradicionais
formas de atuação coercitivas / repressivas. A constituição e desenvolvimento desse
(novo) Estado Integral são movidos, segundo Gramsci, pelas lutas de classes operadas no
interior do próprio Estado.
Nessa perspectiva, a ampliação do Estado indicava que a revolução não seria
possível somente através da luta armada, da tomada do Estado, mas deveria ser operada
primeiramente no âmbito das instituições localizadas na sociedade civil. Desse modo, ao
tratar sobre a questão da ideologia, Gramsci vai afirmar que estas: “organizam as massas
humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem
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consciência de sua posição, lutam, etc.” (GRAMSCI, 2011, p. 238).
Observa-se que em Gramsci, ideologia e hegemonia o elementos centrais do
Estado capitalista, categorias inseparáveis, organicamente articuladas, mas que não se
confundem, que a hegemonia é decorrente da afirmação de uma classe diante das
demais; da afirmação de uma determinada ideologia. Assim, a hegemonia, no pensamento
gramsciano, pressupõe a efetivação de uma ampla reforma intelectual e moral que resulte
em uma nova racionalidade garantidora da dominação. Tal possibilidade é determinada
pela capacidade de que uma classe fundamental, seja ela subalterna ou dominante, tenha
de elaborar sua visão de mundo, de construir suas ideologias.
Concordamos com Dias (2014) em sua análise da hegemonia como concepção
que não se reduz apenas à dominação ideológica, mas como a possibilidade de construção
de uma nova civilização conduzida por uma reforma intelectual e moral. Vemos que em
Gramsci, a formação da hegemonia realiza-se mediante determinadas práticas
pedagógicas construídas nos espaços institucionais da sociedade civil. Ao articular
ideologia e disputas pela hegemonia, Gramsci retoma e amplia a perspectiva de Marx ao
afirmar que uma das funções mais imprescindíveis do Estado é elevar a grande massa
da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde a
determinadas necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos
interesses das classes dominantes” (GRAMSCI, 2011, p. 284).
No âmbito de tal função, a atuação dos intelectuais é fundamental. Segundo
Gramsci, todo grupo social, ao ocupar um lugar no mundo da produção, cria, de forma
orgânica, seus próprios intelectuais, os quais "lhe dão homogeneidade e consciência da
própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político"
(GRAMSCI, 2001, p.15).
A concepção gramsciana sobre os intelectuais apreende-os no conjunto das
relações sociais e não apenas em suas distinções internas. Articula-os, assim, aos grupos
a que se vinculam, às respectivas classes sociais e seus estratos. Gramsci destaca, no
entanto, que tal relação entre os intelectuais e grupos / classes sociais não é imediata, mas
mediatizada "em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das
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superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os seus funcionários"
(GRAMSCI, 2001, p.20).
Dentre os tipos de intelectuais, Gramsci chama atenção para dois grupos
específicos: os tradicionais e os orgânicos. Os intelectuais tradicionais, que variam
conforme a nacionalidade e os terrenos histórico-culturais, são dotados de uma certa
continuidade histórica ininterrupta, o que lhes confere a impressão de autonomia e
independência em relação às classes dominantes. Gramsci exemplifica os intelectuais
tradicionais citando o contexto italiano: intelectuais pré-existentes a um determinado
bloco histórico, como clérigos, filósofos, administradores, funcionários do Estado e
teóricos que atuavam na produção e difusão de ideias, valores e comportamentos sociais
voltados ao atendimento dos interesses de classes dominantes e suas frações.
Quanto aos intelectuais orgânicos, Gramsci destaca a sua posição de defesa,
organização e direção de classe, podendo ser originários da própria classe a que se
vinculam, ou terem sido cooptados ao longo de sua trajetória. Seu diferencial consiste na
inserção ativa, orgânica, na prática cotidiana com aqueles que formam tal classe; ou seja,
um intelectual de novo tipo, que correspondia às necessidades do capitalismo em sua fase
de expansão industrial.
Segundo apontam Liguori e Voza (2009), apesar de utilizar a ideia de aparelho
hegemônico em diversos cadernos, é no Caderno 10 que Gramsci articula tal conceito à
nova concepção de ideologia. O aparelho hegemônico, ou aparelho privado de
hegemonia, conforma o espaço da luta ideológica, o terreno ideológico de reforma das
consciências em disputa, onde se expressam com mais clareza as estruturas ideológicas
das classes dominantes, sendo tais aparelhos partes constitutivas do Estado Integral.
Gramsci observa que em regimes parlamentares a hegemonia geralmente é
caracterizada por uma combinação equilibrada entre força e consenso, “sem que a força
supere em muito o consenso, mas, antes, que pareça apoiada pelo consenso da maioria
expresso pelos assim chamados órgãos de opinião pública”. Contrariamente a tais
períodos, no contexto do pós-guerra “o aparelho hegemônico se estilhaça e o exercício
da hegemonia torna-se permanentemente difícil e aleatório” (Q 13, 37, 1.638 [CC, 3, 95]).
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Concordamos com a análise de Liguori e Voza (2009, p. 76), a qual compreende a
natureza fundamental dos aparelhos privados de hegemonia para o exercício da
hegemonia. Os autores chamam atenção ao fato de que tal relação, na perspectiva
gramsciana:
[...] parece também ser o trait d’union entre o conceito de hegemonia e aquele,
em via de formação, de “Estado integral” e oferece uma base material à
concepção gramsciana de hegemonia, não assimilável a uma concepção
idealista, culturalista ou liberal.
Quase um século após seus escritos, os apontamentos de Gramsci, brevemente
expostos aqui, mostram sua atualidade, sendo imprescindíveis para a compreensão crítica
do Estado capitalista atual, suas ideologias orgânicas e as estratégias de disputa pela
hegemonia. No tópico seguinte, apresentamos uma das principais ideologias do
capitalismo na conjuntura atual e sua relação com a hegemonia burguesa a partir da
perspectiva gramsciana: a ideologia empreendedora e sua construção no cenário nacional
através da atuação do Sebrae, compreendido como Aparelho Privado de Hegemonia
(APH) da burguesia nacional.
3 O SEBRAE NA CONDIÇÃO DE APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA
DA IDEOLOGIA EMPREENDEDORA
A centralidade do empreendedorismo na contemporaneidade tem sido discutida
por diferentes perspectivas teóricas desde as abordagens vinculadas à ideologia
neoliberal, nas quais o empreendedorismo comparece como estratégia de crescimento
econômico e resposta ao desemprego na chamada sociedade pós-industrial, às
abordagens que analisam criticamente a ideologia empreendedora, situando-a no bojo da
relação capital-trabalho e apontando suas contradições.
Segundo Dardort e Laval (2016, p. 149), a racionalidade neoliberal encontra na
ideologia empreendedora o aparato necessário ao processo de concorrência num contexto
de crise estrutural, no qual “a valorização do empreendedorismo e a ideia de que essa
faculdade só pode se formar no meio mercantil são partes interessadas na redefinição do
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sujeito referencial da racionalidade neoliberal”. Ainda conforme os autores, a educação
e a imprensa são acionados de modo exponencial para a difusão ideológica do
empreendedorismo, para a construção do homem-empresa.
Se a partir dos anos 1980 o discurso empreendedor torna-se ressignificação do
trabalho precarizado, informal, sendo recomendado por aparelhos privados de hegemonia
em âmbito mundial, como a Organização Internacional do Trabalho e o Banco Mundial,
para as economias periféricas, na atualidade nota-se que ele alcança as economias
centrais, adquirindo a condição de ideologia orgânica do capitalismo mundial.
No cenário brasileiro, a implementação de políticas públicas voltadas ao estímulo
do empreendedorismo vem sendo conduzida historicamente por parcerias entre Governo
Federal e Sistema S. Composto por nove instituições prestadoras de serviços, o chamado
Sistema S pode ser considerado um dos principais conglomerados de Aparelhos Privados
de Hegemonia (APHs) da burguesia nacional. Nota-se, historicamente, a significativa
atuação deste APH na ideologização do empreendedorismo, cujo sentido é a obtenção de
consensos da classe trabalhadora às contrarreformas trabalhista e previdenciária, que
avançam ao lado do desemprego estrutural e da precarização do trabalho no Brasil.
Apesar de estar apartado da esfera governamental no âmbito formal-legal desde
os anos 1990, quando é desvinculado da Administração Pública Federal, verifica-se uma
constante imbricação entre este APH (Sistema S) e o Estado (restrito) historicamente.
Isso é expressão, em termos gramscianos, da interpenetração entre sociedade civil e
sociedade política, totalidade conformadora do Estado Integral.
Nesse sentido, tal desvinculação além de ser questionada até mesmo por análises
que passam longe do referencial gramsciano, cai por terra face à superação, alcançada
por Gramsci, dos dualismos que contrapõem sociedade política e sociedade civil. No
plano legal, enquanto a sociedade política representada pelo Estado brasileiro
regula juridicamente as políticas governamentais voltadas ao empreendedorismo,
aparelhos privados de hegemonia como o Sistema S atuam na conformação ideológica
do ser empreendedor; na condução pedagógica das massas à adesão ao
empreendedorismo como saída para o desemprego e informalidade no Brasil. O Sistema
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S se apropria, portanto, da ideologia empreendedora ideologia orgânica do capital na
contemporaneidade e se ocupa de disseminá-la no terreno nacional através de diversas
estratégias, de modo a corresponder às necessidades do Estado capitalista na disputa pela
hegemonia.
No âmbito do Sistema S, é o Sebrae quem concentra uma atuação mais
significativa na construção e difusão da ideologia empreendedora, sobretudo através do
microempreendedorismo formal. Composto por mais de 700 unidades de atendimento no
território brasileiro, o Sebrae possui representações em todos os estados do país, com sede
localizada em Brasília. Em seu Estatuto Social, alterado em 2021, o Sebrae declara como
objetivo institucional:
[...] fomentar o desenvolvimento sustentável, a competitividade e o
aperfeiçoamento técnico das microempresas e das empresas de pequeno porte
industriais, comerciais, agrícolas e de serviços, notadamente nos campos da
economia, administração, finanças e legislação; facilitar o acesso ao crédito, a
capitalização e o fortalecimento do mercado secundário de títulos de
capitalização daquelas empresas; promover o desenvolvimento da ciência, da
tecnologia, do meio ambiente, da capacitação gerencial e da assistência social;
promover a educação, a cultura empreendedora e a disseminação de
conhecimento sobre o empreendedorismo, em consonância com as políticas
nacionais de desenvolvimento (SEBRAE, 2021, p. 2).
Tais atribuições são indicativas da dimensão deste APH, que para além da estreita
relação com o Estado (restrito / sociedade política) e de uma ampla estrutura, articula
diversas áreas de interesse econômico nacional que não se restringem às políticas
específicas de microempreendedorismo. Cabe ressaltar, no entanto, uma contradição
central na “desvinculação” do Sebrae à Administração Pública: apesar de constituir-se
como entidade autônoma, o seu funcionamento permanece ligado diretamente às políticas
governamentais, assim como o financiamento via fundo público por contribuições
compulsórias incidentes sobre as folhas de salário das empresas (0,3%) e demais repasses
do governo federal.
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Gráfico 1 - Recursos transferidos para o Sebrae Nacional investidos em programas
e projetos no período (2015 - 2021)
Fonte: SEBRAE, 2022. Elaboração própria.
Como podemos observar no gráfico acima, de 2015 a 2021
7
houve um
crescimento significativo no volume de recursos investidos para a implantação de
programas e projetos institucionais a nível nacional. Enquanto em 2015 foram
investidos R$ 246.337.391,13 em programas e R$ 723.147.889,71 em projetos, em 2021
os recursos subiram para R$ 1.727.927.083,67 e R$ 3.783.431.284,30 respectivamente
(SEBRAE, 2022).
A redução de recursos observada no ano de 2020 pode ser explicada como
decorrente da Medida Provisória 932/2020, que diminuiu pela metade as contribuições
obrigatórias das empresas para o Sistema S, desonerando as folhas de pagamento como
forma de apoio aos empresários no contexto da Covid-19. Tal operação realizada pelo
governo federal foi objeto de críticas de dirigentes do Sistema S, que argumentaram
impactos nos serviços executados, sobretudo na qualificação da classe trabalhadora.
Isso expressa, no entanto, as correlações de forças existentes na relação entre
governo federal e Sistema S na disputa pela condução de parte do fundo público. A MP,
convertida posteriormente no Projeto de Lei 14025 /2020, estabeleceu que 50% dos
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recursos repassados ao Sebrae seriam destinados ao Fundo de Aval às Micro e Pequenas
Empresas (Fampe) nos meses de abril, maio e junho de 2020. Vale ressaltar que o Fampe
constitui mecanismo de financeirização do capital via fundo público, posto que oferece
linhas de crédito utilizando parte do trabalho excedente apropriado pelo Estado, através
da tributação de impostos, e revertido em empréstimos, de modo a articular capital
portador de juros e capital fictício.
No que diz respeito aos dirigentes deste APH, que exercem, em termos
gramscianos, o papel de intelectuais orgânicos, nota-se vinculações diretas com frações
da burguesia nacional. Uma breve análise acerca da trajetória dos atuais intelectuais
orgânicos
4
do Sebrae nos permite identificar dois principais perfis: empresários ligados
a negócios tradicionais familiares; ou seja, cuja condição de classe é originária da própria
burguesia nacional; e intelectuais com perfis técnicos, que dispõem de currículos com
formações em áreas relacionadas à administração e negócios, assim como históricos de
atuação na gestão de APHs da burguesia nacional e em instituições ligadas a frações da
classe empresarial.
Nota-se que o alinhamento entre dirigentes do Sebrae e governo federal é um
traço característico de diferentes conjunturas, uma vez que os seus dirigentes e
intelectuais orgânicos sempre mantiverem estreita relação com setores dominantes da
burguesia nacional e com os núcleos decisórios do poder as históricas intervenções
do governo federal na indicação e aprovação dos quadros dirigentes da entidade
demonstram isso.
O arcabouço teórico-conceitual de Gramsci nos auxilia na compreensão dessas
articulações; ou seja, no fato de que os intelectuais não formam uma classe à parte,
autônoma, mas se movimentam de forma a corresponder aos interesses corporativos da
classe à qual se vinculam. Como argumenta Weide (2019, p.97), os intelectuais
orgânicos, para Gramsci, “podem ter sua origem na própria classe ou terem sido
arregimentados, cooptados em outros grupos sociais, mas precisam ter vivência, prática
4
O quadro intelectual e dirigente do Sebrae Nacional é composto atualmente por: Roberto Tadros,
Carlos Melles, Bruno Quick, Eduardo Diogo, entre outros.
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cotidiana”.
Nesta perspectiva, o intelectual orgânico encontra-se fundamentalmente ligado
ao “grupo social ou à classe social com a qual não apenas se identifica, mas, sobretudo,
lhe propicia a formação da consciência de classe nas dimensões econômica, política e
social” (SILVEIRA, 2020, p. 141), além disso, os intelectuais orgânicos também atuam
como “organizadores, construtores, aglutinadores da vontade coletiva para a realização
da hegemonia desta classe”; elementos que podem ser observados nas práticas e
discursos do quadro intelectual e dirigente do Sebrae historicamente (BRANDÃO;
DIAS, 2007, p. 90).
Para além destes intelectuais, outros diversos grupos de intelectuais que
possuem parcerias com o Sebrae e que são vinculados a aparelhos privados de hegemonia
da burguesia internacional, como as agências das Nações Unidas, a exemplo da Unesco;
instituições de ensino como a London Business School e o Babson College; bancos, como
o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre tantos outros
10
.
Nota-se na vasta produção de conteúdo digital do Sebrae, além da produção midiática e
bibliográfica, as contribuições de intelectuais com diferentes formações e vinculados a
instituições nacionais e internacionais.
Segundo Alves (2016, p. 644), as ações do Sebrae concernentes à promoção do
empreendedorismo cultural estão divididas em cinco linhas gerais: 1) capacitação; 2)
consultoria; 3) promoção e acesso ao mercado; 4) informação cnica e 5) acesso a
serviços financeiros. A dinâmica de funcionamento do Sebrae enquanto APH envolve,
portanto, um conjunto de práticas que vão desde a oferta de cursos gratuitos à distância,
consultorias e atendimentos individualizados nas unidades da instituição, à construção
de propostas, no âmbito legal, que regulamentam o microempreendedorismo formal no
Brasil, como é o caso da regulamentação de motoristas e entregadores de aplicativos na
condição de Microempreendedores Individuais (MEIs) em 2019.
Cabe destacar, no entanto, que desde sua reinvenção institucional, a partir dos
anos 1990, a educação empreendedora vem sendo a principal forma de atuação do
Sebrae. Expressão disso é a criação de um centro próprio voltado à produção de
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conteúdos e metodologias de empreendedorismo para serem utilizadas por professores e
alunos nos diferentes espaços educacionais. O conjunto de tais conteúdos está reunido
em uma plataforma específica: o Centro de Educação Empreendedora CER, que se
apresenta como “uma ponte entre o saber e o fazer” e, na prática, propicia as diretrizes
para a execução da nova Base Nacional Comum Curricular; ou seja, é expressão concreta
do Estado Integral nas suas formas de disseminação ideológica do empreendedorismo e
de construção de uma nova cultura do trabalho no Brasil. Segundo dados do Sebrae
(2022), diversos projetos de educação empreendedora da instituição já foram realizados
em mais 4.533 municípios, atendendo a 7 milhões de estudantes e 270 mil professores.
Nesse sentido, a atuação pedagógica deste APH expressa elementos de
materialidade da cultura empreendedora no Brasil que, na condição de ideologia forjada
pelo capital, constitui-se não apenas como mascaradora da realidade social, como forma
de dominação e encobrimento da exploração do trabalho e das contradições de classe no
capitalismo, mas consiste em “uma concepção de mundo definidora e constituidora do
real” (BRANDÃO; DIAS, 2007, p. 81); está entrelaçada com a vida material, com as
necessidades do capitalismo na conjuntura atual. Na condição de ideologia, o
empreendedorismo revela, assim a sua materialidade, que “as ideias não nascem de
outras ideias, as filosofias não nascem de outras filosofias, mas são as expressões sempre
renovadas do desenvolvimento histórico real” (GRAMSCI, 1978 p. 22).
Na trilha dos principais programas apoiados pelo Sebrae está o Programa
Microempreendedor Individual - PMEI, criado através da Lei Complementar nº
128/2008, durante o Governo Lula, e considerado como a principal estratégia de
regularização do trabalho informal no Brasil. O PMEI possibilita a trabalhadores por
conta própria o acesso a alguns direitos e benefícios previdenciários, conformando uma
modalidade bastante peculiar de proteção social no Brasil: para acessar direitos
trabalhistas limitados, os sujeitos se formalizam na categoria de Microempreendedores
Individuais, constituindo-se, legalmente, empresários de si mesmos.
Em 2022 o PMEI alcançou a marca de mais de 14 milhões de inscritos, sendo
observado um crescimento significativo de adesões ao programa no contexto da
pandemia, com o crescimento do desemprego e da consequente desproteção social da
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classe trabalhadora que encontra no trabalho autônomo, por conta própria, a alternativa
de sobrevivência e de acesso aos direitos previdenciários.
O protagonismo do Sebrae na condução do PMEI desde sua criação é notório;
seja através da pressão para a aprovação da Lei Complementar 128/2008, do amplo
investimento midiático, como da própria execução do programa em todo o território
nacional. Além disso, o Sebrae é a principal referência na produção de dados e pesquisas
sobre os Microempreendedores Individuais MEIs, que detém todos os registros de
cadastramento dos microempreendedores, assim como dos pequenos e médios
empresários.
A implantação do PMEI vem sendo operacionalizada pelo Sebrae desde 2008, a
partir de um conjunto de orientações divulgadas em cartilhas; manuais; capacitações;
cursos gratuitos de educação à distância e presenciais; parcerias com prefeituras, além
dos conteúdos disseminados em seus veículos de comunicação, todos voltados ao
processo formalização e de educação empreendedora dos MEIs. O fomento à adesão de
trabalhadores informais ao PMEI tem sido o principal alvo das campanhas institucionais
do Sebrae nos últimos anos, carregando atualmente o slogan de ser a força do
empreendedor brasileiro”. Nesse sentido, tal protagonismo é expressão do exercício de
suas funções institucionais como planejador, orientador e coordenador de políticas
voltadas à formação da cultura empreendedora no cenário nacional.
A continuidade do PMEI na política pública brasileira, do governo Lula ao
governo Bolsonaro, é reveladora de como o seu projeto é capaz de conciliar agendas
governamentais distintas nas formas de disputa pela hegemonia, que vão desde o
neodesenvolvimentismo (com todas as suas contradições) ao ultraneoliberalismo atual.
Segundo Braga (2010, p.11), as políticas de transferência de renda, a ampliação
do poder de consumo das massas, o reajuste do salário mínimo e a reformalização do
trabalho processo do qual o PMEI foi partícipe nos governos petistas expressam a
atualidade das premissas gramscianas no movimento dialético da conservação-inovação;
movimento próprio da disputa pela hegemonia nos governos Lula.
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Nesta direção, segundo Braga, a hegemonia lulista apresentou aspectos tanto da
conservação, isto é, a reação dos de cima ao subversivismo inorgânico das massas,
quanto da inovação; ou seja, a incorporação de parte das exigências dos de baixo. E,
como podemos observar, tal dialética da inovação-conservação representada, também,
no PMEI, permanece sendo estratégia de hegemonia do governo Bolsonaro, que vem
ampliando o rol de ocupações abrangidas pelo programa, ou seja, de trabalhadores
precarizados que hoje se formalizam como microempreendedores individuais, numa
clara estratégia de potencializar as contrarreformas trabalhista e previdenciária em curso.
Em 2022, no cenário de acirrada disputa eleitoral, a seguridade social de
trabalhadores autônomos e informais constituiu pauta de diferentes projetos políticos,
como pudemos observar nos discursos de Bolsonaro, que defendeu a ampliação de
categorias ocupacionais no PMEI e propôs a criação do Microempreendedor Digital
(MED), um programa específico de formalização dos motoristas e entregadores de
aplicativos; assim como nos discursos do presidente Lula, que enfatizam a necessidade
de garantir proteção social aos trabalhadores de aplicativos, rediscutindo
“cuidadosamente” tal pauta. Acrescido a isso, consta no plano de governo Lula 2022, a
criação do Programa Empreende Brasil, cujo objetivo é “facilitar o acesso ao crédito para
micro e pequenas empresas, com novas linhas de crédito, melhores relações de trabalho
e a retomada do Cartão de Crédito do BNDES ”.
Na conjuntura de crise pandêmica, a atuação do Sebrae tem sido marcada pela
disseminação de informações acerca das medidas do governo federal de apoio aos micro
e pequenos empresários, a exemplo das novas linhas de crédito, ao mesmo tempo que
tem investido no seu potencial de produtor de dados primários e secundários sobre os
impactos da Covid-19 nos pequenos negócios, desenhando tendências e prognósticos
setoriais ao enfrentamento da crise por meio da plataforma DataSebrae / Covid-19. Ainda
nesse contexto, diante do aumento considerável do índice de inadimplência dos
trabalhadores formalizados no programa, tal APH vem atuando, também, através de suas
plataformas de comunicação, no convencimento dos MEIs à adesão das condições
impostas pelo governo federal para o enfrentamento da inadimplência.
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Em termos gerais, na conjuntura atual o Sebrae reproduz as suas formas
tradicionais de atuação em torno da ideologização do empreendedorismo como saída
para o desemprego e informalidade no Brasil, cumprindo o papel de articulador na
criação de novas categorias ocupacionais
abrangidas pelo PMEI não somente as
ocupações que apresentam baixa qualificação e rendimentos, como as ocupações que
exigem maiores níveis de qualificação e com melhores remunerações contribuindo
para a expansão dos fenômenos da pejotização e da meicização
5
.
O amplo investimento do Estado brasileiro na expansão de categorias
profissionais abrangidas pelo PMEI revela a estratégia de transferir para a classe
trabalhadora todos os custos possíveis relativos ao financiamento da Previdência Social,
mediante a exclusiva contribuição dos trabalhadores, desonerando não o capital, como
a si mesmo, dos gastos com a reprodução da força de trabalho.
Ademais, no âmbito das intencionalidades do Estado, cabe ressaltar duas
hipóteses inteiramente vinculadas às tendências mais gerais do desmonte da seguridade
social brasileira: 1- a ampliação da histórica regressividade tributária no Brasil a cargo
das classes sociais mais baixas; 2 a negação do direito à Assistência Social, mediante
a possível utilização do MEI como critério de seletividade / exclusão do acesso a
programas sociais de transferência de renda, como o Bolsa Família.
Nesses termos, a seguridade social brasileira parece caminhar para um brutal
esfacelamento, que enterra qualquer perspectiva de complementariedade das políticas
sociais, levando os cidadãos a uma “escolha” perversa entre direitos da Assistência ou
Previdência; entre a complementação de renda para a sobrevivência ou o direito de um
dia poder se aposentar. Essas duas hipóteses iniciais ganham força com o projeto de lei
do governo federal que pretende criar o MEI Digital (MED), com o objetivo de tornar
obrigatória a adesão de motoristas de aplicativos e entregadores de aplicativos ao
Programa (EXAME,2021).
5
Bastante semelhante ao fenômeno da pejotização, a meicização atinge, entretanto, trabalhadores de baixo
rendimento e qualificação (ABÍLIO, 2021, p. 35).
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O sentido da regulamentação forçada de trabalhadores reconhecidamente
precarizados como pessoas jurídicas atende claramente aos interesses do Estado burguês,
diante do aumento de processos trabalhistas envolvendo trabalhadores de plataformas
nos últimos anos, e corresponde, ao mesmo tempo, à tendência geral de restringir cada
vez mais a sua participação na socialização dos custos de reprodução social da força de
trabalho, direcionando o fundo público para a recomposição das taxas de lucro do
capital.
Aqui, se apresentam, também, elementos particulares de um Estado Burguês
profundamente antidemocrático, que historicamente determina “pelo alto as condições
fundamentais de desenvolvimento e garantia das relações sociais de produção”, e o faz
até mesmo quando formula políticas que atendem em parte às demandas da classe
trabalhadora. O fato de o Estado burguês no Brasil impor a trabalhadores extremamente
precarizados a sua regulamentação como microempreendedores, o autogerenciamento da
sua força de trabalho e da sua proteção social, é revelador das formas de reatualização
da autocracia burguesa.
Retomando a tese de Iasi (2020) sobre as determinações centrais do Estado
brasileiro, nos deparamos com a reprodução contínua da “imposição violenta dos meios
coercitivos e da intensificação dos mecanismos explicitamente ideológicos que
encobrem e justificam a ordem social existente”, como particularidades fundamentais da
nossa formação social.
4 CONCLUSÃO
Em tempos de aprofundamento da crise estrutural, o fortalecimento da complexa
trama de APHs do capital é fundamental no sentido de reduzir as possibilidades à
abertura de uma crise orgânica, de modo a assegurar a direção intelectual-moral das
classes dominadas. Neste sentido, em um cenário em que as condições de existência das
classes subalternas alcançam patamares cada vez mais degradantes, a atuação do Sebrae
mostra-se como estratégia central da burguesia na disputa pela hegemonia.
Apesar de observarmos o surgimento e fortalecimento de outros APHs voltados
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à construção ideológica do empreendedorismo no cenário nacional, a exemplo das
organizações Lemann, o Sebrae continua sendo o principal interlocutor no âmbito das
políticas públicas de microempreendedorismo. O amplo investimento do Sebrae na
difusão da ideologia empreendedora, ou da suposta “cidadania empreendedora”, nos
termos utilizados pelo seu principal dirigente Carlos Melles , revela a necessidade de
o capital tornar não apenas aceitável, mas desejável o novo padrão das relações de
trabalho no Brasil e no mundo por meio de mecanismos consensuais.
No âmbito da crise orgânica do capital, a ideologia empreendedora se revela
como uma das ideologias do consenso do ultraneoliberalismo atual, estratégia de
justificação da expropriação de direitos que, por sua vez, corresponde à necessidade de
manutenção da hegemonia burguesa. O êxito na construção dos consensos é identificado
no apoio de amplos segmentos da classe trabalhadora brasileira às contrarreformas em
curso, que atingem um patamar devastador durante o governo neofascista de Bolsonaro,
na defesa de pautas que afetam drasticamente suas condições imediatas de existência.
Ao mesmo tempo que se diz representar os interesses dos pequenos empresários
e dos microempreendedores, o Sebrae atua para assegurar o atendimento das
necessidades da grande burguesia nacional, como a legitimação da desregulamentação
trabalhista camuflada na criação de trabalhadores-empreendedores: MEIs. Nesse sentido,
vem cumprindo com êxito a sua função de aparelho de dominação ideológica por meio
de práticas educativas que disciplinam as condutas da classe trabalhadora tanto no âmbito
do trabalho, como nas formas de sociabilidade.
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Aceito em 6 de fevereiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023