SEÇÃO DOSSIÊ
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O SOM DO DISSENSO: Apontamentos para uma história/concepção
dos partidos e organizações políticas em um caso concreto de pesquisa
THE SOUND OF DISENSUS: Notes for a history/conception of political
parties and organizations in a concrete research case
EL SONIDO DE LA DISIDENCIA: Apuntes para una historia/concepción
de los partidos y organizaciones políticas en un caso concreto de
investigación
Lineker Noberto
1
RESUMO
Tomar partidos políticos como objeto de estudo envolve riscos metodológicos a serem devidamente
analisados. Alguns estudiosos tendem a compreendê-los como um grupo monolítico, isento de divergências
internas, outros tantos tendem a considerá-los como um grupo intelectual restrito, um tipo de elite política,
aparentemente desvinculada dos conflitos sociais que lhe perpassam e superam. Quase sempre, no entanto,
a realidade, intransigente, se impõe. E se em muitos momentos, do interior destes objetos, e dos arquivos
disponíveis a pesquisa, soam os ruídos de desarmonia das vozes em dissenso, em outros, o que resta é ouvir
o som do silêncio. Ambos podem e devem ser interpretados pelo historiador atento. Inspirado nas
ponderações de Gramsci, este artigo apresenta uma orientação teórico-metodológica de como se deve
escrever sobre a história de partidos e organizações políticas, se valendo de resultados concretos de pesquisa
sobre a Polop.
PALAVRAS-CHAVE: Gramsci; partido político; Polop.
ABSTRACT
Taking political parties as an object of study involves methodological risks to be properly analyzed. Some
scholars tend to understand them as a monolithic group, free from internal differences, others tend to
consider them as a restricted intellectual group, a type of political elite, apparently disconnected from the
social conflicts that permeate and overcome it. Almost always, however, the uncompromising reality
imposes itself. And if in many moments, from the interior of these objects, and from the archives available
for research, the disharmony noises of dissenting voices sound, in others, what remains is to hear the sound
of silence. Both can and should be interpreted by the attentive historian. Inspired by Gramsci's
considerations, this article presents a theoretical-methodological orientation on how to write about the
history of political parties and organizations, using concrete research results on Polop.
KEYWORDS: Gramsci; political party; Polop.
1
Doutor em História (UFRGS). Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pesquisador do
Laboratório de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais da Universidade Estadual de Feira de
Santana (LABELU/UEFS). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5341175207325122. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-8344-9484. E-mail: lineker.noberto@yahoo.com.br
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RESUMÉN
Tomar a los partidos políticos como objeto de estudio implica riesgos metodológicos para ser
adecuadamente analizados. Algunos estudiosos tienden a entenderlos como un grupo monolítico, libre de
diferencias internas, otros tienden a considerarlos como un grupo intelectual restringido, una especie de
élite política, aparentemente desconectada de los conflictos sociales que la permean y superan. Casi
siempre, sin embargo, la realidad intransigente se impone. Y si en muchos momentos, desde el interior de
estos objetos, y desde los archivos disponibles para la investigación, suenan los ruidos de desarmonía de
voces disidentes, en otros, lo que queda es escuchar el sonido del silencio. Ambos pueden y deben ser
interpretados por el historiador atento. Inspirándose en las consideraciones de Gramsci, este artículo
presenta una orientación teórico-metodológica sobre cómo escribir sobre la historia de los partidos y
organizaciones políticas, utilizando resultados concretos de investigación sobre Polop.
PALABRAS CLAVE: Gramsci; partido político; Polop.
O que é um partido político? Aquele curioso que observar o texto dedicado a
partidos na afamada coletânea em defesa da história política, organizada por René
Rémond, perceberá a indicação de que o partido é o lugar onde se opera a mediação
política entre a “realidade vivida [pertencente] à esfera do concreto cotidiano” e o
“discurso” e “representações especulativas”
2
. Pois, como bem esclarece seu autor:
Na verdade, entre um programa político e as circunstâncias que o originaram,
há sempre uma distância considerável, porque passamos então do domínio do
concreto para o do discurso, que comporta uma expressão das ideias e uma
linguagem codificada. É no espaço entre o problema e o discurso que se situa
a mediação política, e esta é obra das forças políticas, que têm como uma de
suas funções primordiais precisamente articular, na linguagem que lhes é
própria, as necessidades ou as aspirações mais ou menos confusas das
populações. Por isso a mediação política assume o aspecto de uma tradução e,
como esta, exibe maior ou menor fidelidade ao modelo que pretende exprimir.
É precisamente uma das tarefas do historiador que trabalha com as forças
políticas tentar perceber essa distância, fundamental para a compreensão dos
fenômenos históricos, entre a realidade e o discurso
3
.
Mesmo que a identificação da distância entre o discurso do partido e a realidade
que busca interpretar, organizar e transformar, seja uma tarefa suficientemente
importante para cobrar a atenção do pesquisador, deve-se levantar suspeitas sobre a
ideia, explicitada acima, do partido enquanto o elaborador de uma coerência em um
mundo onde reina a confusão. As “aspirações mais ou menos confusas das populações”
não encontram articulação, e definição de conteúdo, apenas na ação organizativa de um
partido político. Se algo que a prática da história social demonstra é que,
experenciando as condições concretas de sua vida, as pessoas, em geral, traçam
objetivos e articulam as suas aspirações. O fato destas perpassarem por níveis distintos
de organização coletiva não deveria nos permitir ver no partido aquele que inventa a
ordem, onde antes havia apenas o caos. O conflito social e a política não se manifestam
apenas onde existem partidos políticos. Ademais, a menção “as populações”, invés de
2
BERSTEIN, Serge. Os partidos in: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª ed., Rio de
janeiro: editora FGV (Fundação Getúlio Vargas), 2003, p. 60.
3
Idem, p. 61.
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classes, ou mesmo de grupos sociais, que pretendem representar, certamente não é
fortuita, e expõe a adesão a uma perspectiva liberal, que fica melhor apresentada a
seguir. Mas apesar dessa função ser atribuída as “forças políticas”, logo se percebe que
pela concepção de Serge Berstein, não basta, contudo, que ela se cumpra para que o
agente coletivo seja identificado enquanto um partido.
Valendo-se da análise de Maurice Duverger, para o autor, os partidos políticos
atestam um determinado estágio de desenvolvimento das sociedades. Retomando a
história da formação dos partidos políticos franceses, ingleses e estadunidenses no século
XIX, o autor pondera que não se deve confundir “grupos restritos, que não passavam de
clientelas com efetivos limitados, com os partidos políticos modernos, com vocação para
encampar ou canalizar os votos de populações numerosas, e que vemos nascer no mundo
ocidental no final do século XIX”
4
. Buscando elencar critérios para distinguir “forças
políticas”, como clubes, associações, facções e grupos parlamentares dos partidos
políticos, Berstein acaba por apresentar uma concepção bastante restrita de partido.
Para negar as “clientelas, as facções [e] os partidos ligados unicamente a um
homem” seu primeiro critério aponta para a duração no tempo”, “que garante ao partido
existência mais longa que a vida de seus fundadores, e implica que ele responda a uma
tendência profunda da opinião pública”. O segundo é a extensão no espaço, que supõe
uma reorganização hierarquizada e uma rede permanente de relações entre uma direção
nacional e estruturas locais, abrangendo uma parte da população”, o que serve para excluir
“do campo dos partidos os grupos parlamentares sem seguidores do país e as associações
locais sem visão de conjunto da nação”. O terceiro é “a aspiração ao exercício do poder,
que necessita de um projeto global que possa convir à nação em seu conjunto, e que, por
isso, implica a consideração de arbitragens necessárias aos interesses contraditórios que
se manifestam”. Característica que, segundo sua visão, exclui “os grupos de pressão
representativos de uma categoria definida, como os grupúsculos restritos dedicados à
defesa intransigente de uma ideologia, mesmo quando trazem o nome de ‘partidos’”. E
por fim, a vontade de buscar o apoio da população, seja recrutando militantes, seja
atraindo o voto dos eleitores condição indispensável para a realização do objetivo
anterior”
5
.
O próprio Berstein reconhece a limitação deste “modelo” extraído de Duverger,
que baseado exclusivamente na experiência de alguns países do ocidente não pode
abarcar a condição histórica de muitas outras realidades não só da própria Europa, como
das outras regiões do mundo. Por isso, coube a coletânea destinar um espaço em especial
para a história do “associacionismo”, ou seja, o estudo das corporações, ofícios, grupos
religiosos, ligas, uniões, sociedades, organizações de modo geral, movimentos, frentes,
clubes, federações, grupos de pressão ou interesse, institucionalizados ou não, etc. O texto
escrito por Jean-Pierre Rioux, que faz menção a um campo especifico ocupado pelo
“historiador da associação”
6
, dedica-se, então, as formas de organização que sempre
foram entendidas pela história política tradicional como predecessoras aos partidos
políticos. Uma visão que, de alguma forma, ainda é corroborada pela história política dita
4
BERSTEIN, op. cit., p. 62.
5
Idem, p. 62-63.
6
RIOUX, Jean-Pierre. A associação em política in: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª
ed., Rio de janeiro: editora FGV (Fundação Getúlio Vargas), 2003, p. 107.
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renovada. A diferença para os seus apologistas é que, diferente da tradicional, essas
“formas primitivas de organização” não são mais desprezadas como objetos de estudo,
pelo contrário, são encarados como um campo de pesquisa em aberto. O que se evidencia
pela sua presença na coletânea.
O papel que Rioux atribui a essas associações é apenas o de exercitores de uma
sociabilidade política, ou formas distintas de intervenção na luta e na disputa pelo poder,
identificando neles a virtude de serem “círculos de pensamento”, os melhores “lugares de
renovação das ideologias políticas e os guardiães da chama”
7
. Entretanto, a óbvia
percepção que o autor tem sobre o crescimento das associações como alternativa crítica
aos partidos políticos na contemporaneidade “algumas associações não apenas
criticaram [...] com vigor o sistema partidário, mas pretenderam substituí-lo para melhor
regenerar a democracia” é mais do que suficiente para questionar essa visão
evolucionista que a modernização liberal impõe a concepção de partido aceita pelos
autores filiados a esta corrente da história política
8
. Porém, este modelo eurocêntrico (e
evolucionário) não é apenas restrito por suas noções conscientemente excludentes, mas
também por suas opções metodológicas oriundas de sua fidelidade ideológica. Partindo
de uma perspectiva restritamente liberal, Berstein reconhece que a descrição feita por ele,
fala mais dos partidos pertencentes a regimes ditos “democráticos” de longa data, do que
os partidos que ele próprio qualifica de totalitários (fascistas e comunistas) e os regimes
dos “países do Terceiro Mundo ou das democracias populares”
9
.
Não é por acaso que durante o texto, o autor somente ver restrições relevantes nos
aspectos ideológicos dos partidos por ele identificado como “totalitários”, como se o
próprio liberalismo não fosse em si uma ideologia de classe, que conforma modelos
societários e condutas politicamente aceitáveis, opondo-se ao que postula como
degenerações, anormalidades a serem combatidas e excluídas. Por isso, mesmo
considerando imprescindível a análise da formação ideológica do partido, Berstein dilui
a ideologia liberal a um tipo de “cultura política”. Defendendo que a ideologia política
“varia singularmente segundo os diferentes tipos de organização, mas [que] em todos os
casos, ela constitui um sistema de crenças compartilhado por todos os que dizem
pertencer ao partido, sejam eles militantes, membros ou simplesmente eleitores”, o
historiador francês considera ser raro que esta ideologia se baseie “diretamente numa
doutrina claramente formulada e apoiada em bases filosóficas, ou com pretensão
filosófica”. Desta forma,
somente em] partidos totalitários [que se pretende] pôr em prática uma
teoria preestabelecida, fazendo de seus militantes uma nova elite, realizando
“o homem novo” previsto pela doutrina no interior do partido, antes de forçar
toda a sociedade a se adaptar ao modelo assim constituído. Nesse caso, estamos
em presença de um sistema ideológico fechado, que não é suscetível de
qualquer reordenamento, pois seus limites foram fixados de uma vez por todas
7
Idem, p. 127.
8
Idem, p. 126-127.
9
BERSTEIN, op. cit., p. 93.
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pela doutrina, e, nessa hipótese, o partido assemelha-se a uma igreja, a doutrina
a um catecismo, os membros militantes a “exército de crentes”
10
.
Assim, apenas o pensamento anti-capitalista ou antiliberal torna-se uma crença”,
e os partidos comprometidos programaticamente com esta perspectiva “seitas” (ou seja,
anomalias políticas). Aqueles que, fieis a ideologia liberal, aceitam os limites impostos
pela sociabilidade burguesa, podem não apenas serem identificados como mais
democráticos, como expressões naturalizadas da realidade. Como se o liberalismo não
fosse também em si um sistema ideológico, que pondo em prática uma teoria
preestabelecida, fazendo de seus militantes uma nova elite, circunscreve certos limites de
atuação, fixados de uma vez por todas por uma doutrina que força toda a sociedade a se
adaptar ao seu modelo de vida. Esta perspectiva acrítica se evidencia em inúmeros trechos
do seu texto, que, no entanto, devido a outros interesses metodológicos, não serão aqui
explorados. Cabe avançarmos para a resposta que Antonio Gramsci e a tradição marxista
deu a mesma questão antes formulada: o que é um partido político?
Para Gramsci, partidos são todos aqueles organismos que agem na “elaboração e
difusão das concepções de mundo, na medida em que elaboram essencialmente a ética e
a política adequadas a elas, isto é, em que funcionam como ‘experimentadores’ históricos
de tais concepções”
11
. Este entendimento dilata a percepção senso comum que se tem
sobre um partido político, apresentando-se radicalmente distinto dela. Assim, o marxista
sardo nos ajuda a pensar um partido como uma organização em sentido amplo, e não,
simplesmente, como um instituto administrativo. Ou seja, qualquer coletivo que
conscientemente tome alguma ação política, organizada sob um projeto de sociedade,
pode ser pensado como partido político.
A Organização Revolucionária Marxista Política Operária, mais conhecida
como ORM-PO ou Polop, foi uma organização política clandestina que nunca possuiu o
aval legal, e que no início de sua trajetória não se autodenominou partido, por não se
considerar ainda capaz de exercer a função de vanguarda revolucionária, destinada, na
concepção leninista, ao Partido Operário. Nestes termos, dificilmente seria considerado
como um partido, pela conhecida formulação da história política que teve em René
Rémond um dos seus principais teóricos e divulgadores. Contudo, foi na concepção de
partido de Gramsci que a minha pesquisa buscou seus pressupostos teórico-
metodológicos e percorreu os arquivos
12
. E será explorando seus resultados que darei
continuidade a exposição das considerações sobre como se deve escrever a história de
10
BERSTEIN, op. cit., p. 86-87.
11
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do rcere. V. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.
105.
12
A Polop foi uma organização marxista que, fundada em 1961, tornou-se referência no campo comunista
devido sua oposição ao predomínio do PCB. Tendo existido até os anos 1980, a Polop passou, porém, por
inúmeras cisões e reorganizações. Nascido como Organização Revolucionária Marxista Política Operária
(ORM-PO), após o “racha” provocado pelo seu IV Congresso Nacional, realizado em 1967, rearticulou-se
na fundação do Partido Operário Comunista (POC), e no início da década de 1970, depois de novo cisma,
reorganizou-se sob nova nomenclatura: Organização de Combate Marxista-Leninista Política Operária
(OCML-PO). Para mais informações sobre a primeira versão da Polop Cf. NOBERTO, Lineker. Nova
Senda Socialista: a história da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (ORM-PO). Tese
de doutorado em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2021.
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dos partidos e organizações políticas. Pois, segundo o próprio marxista sardo, é
justamente “a partir do modo de escrever a história de um partido que resulta o conceito
que se tem sobre o que é um partido ou sobre o que ele deva ser”
13
.
Não é incomum que trabalhos historiográficos reduzam a história de um partido a
atuação da sua direção, em um tipo, nem sempre admitido, de retorno à história política
tradicional, na qual os eventos dignos de nota encontravam sua expressão nos grandes
líderes. Deve-se evitar reduzir as organizações políticas a trajetória de suas direções. Para
tanto, é necessário reconhecer que a unidade de uma organização não significa a ausência
de dissensos. Nenhum partido ou agrupamento humano é um corpo monolítico.
Sabe-se que a definição de um programa político é um importante passo para
demarcação de uma coesão organizacional. Se as ideias que dão corpo à linha
programática são declaradas oficialmente como única possível, a sistematização de um
programa depende, porém, da rejeição de outras teses alternativas, que foram derrotadas
em confrontações abertas ou veladas. Neste sentido, mais do que compreender as posições
consagradas nas resoluções como oriundas de um consenso político, a investigação
histórica deve identificar o conflito interno que as produziu. Uma análise focada nos
produtos da elaboração teórica (teses e resoluções), suas práticas de elaboração, discussão
e deliberação, e as estratégias de difusão e propaganda é importante para identificar a
trajetória de uma organização, mas não é suficiente.
Neste sentido, os consensos devem ser interpretados como produtos de um
conflito interno, nem sempre facilmente visível. Principalmente porque de seu resultado,
muitas vezes, emergem não apenas as orientações táticas, estratégicas e eixos
programáticos que viabilizam a unidade partidária, mas formas de silenciamento das teses
derrotadas. É o caso de partidos que, com forte rigidez organizativa, exigem dos
derrotados, ao fim do conflito, a submissão plena às teses vitoriosas.
Por exemplo, não é raro que a historiografia tenda a apresentar os documentos
oficiais aprovados em congresso como expressões do posicionamento das organizações
estudadas. Este procedimento não é em si um equívoco, porém, muitas vezes obscurece
a compreensão de que de estes documentos representavam exclusivamente o
posicionamento de um grupo dentro da própria organização e não da totalidade de seus
militantes. Grupo, que se fazendo vitorioso no conflito interno, fez de suas teses à
orientação de toda a organização. É o caso daquele que é reconhecido como o principal
documento da Polop. O Programa Socialista para o Brasil (PSpB) aprovado pelo IV
Congresso Nacional, realizado em setembro de 1967, consagrou, na integralidade, o
projeto de programa apresentado na luta interna pelos militantes ligados à direção
nacional. Mesmo que fiéis as linhas programáticas gerais que haviam orientado a
fundação da organização em 1961, e, portanto, sem representar uma mudança de rota
brusca nas orientações estratégicas da Polop, o PSpB nunca conseguiu reunir um sólido
consenso em torno de si, sendo sua aprovação motivo para a própria cisão da ORM-PO.
O procedimento torna-se ainda mais problemático quando motivado por esta
vitória final, a historiografia reconhece todos documentos coerentes com as teses da
direção nacional como o único posicionamento da organização sobre os temas arrolados,
desprezando assim as teses da minoria, que travou a luta interna até sua derrota. Neste
13
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. V. 3. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p.87-88.
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processo, muitos documentos que se quer foram aprovados em congressos ou elaborados
por órgãos competentes, segundo as normas estatutárias regentes, tornam-se expressões
oficiais da linha política defendida pela organização com um todo. Para ilustrar essa
questão, citarei um caso especifico sobre a Polop.
Alguns autores se perguntaram como a organização caracterizou o golpe e a
ditadura que adveio dele. A resposta mais adequada deve levar em consideração que
apesar dela ter elaborado uma posição oficial, a compreensão sobre o golpe não foi
exatamente a mesma para todos os seus militantes. A luta interna que a tomou após 1964
demonstrou disparidades entre a interpretação do golpe promovida pela direção nacional
e um núcleo dominante de uma de suas Secretarias Regionais (SR).
O PSpB ratificou a posição dominante, defendida desde o princípio pelo Comitê
Nacional (CN), de que o golpe era produto direto da ação coordenada da chamada
“burguesia nacional” com o latifúndio e o imperialismo, que aliados desde o processo
inicial do desenvolvimento industrial no país, buscaram conservar as estruturas
socioeconômicas ameaçadas pelo movimento popular num momento de ascensão da luta
de classes no início da década de 1960, abrindo mão do domínio político direto nos
negócios de Estado. O que significava que a ditadura pós-64 representava a associação
definitiva da burguesia brasileira ao imperialismo norte-americano, na condição de sócia
menor.
Essa posição aparece nos Informes Nacionais produzidos pela direção e em textos
avulsos de seus colaboradores. No entanto, compreendendo a história da Polop como a
história da desavença e do conflito interno, foi possível identificar que divergências sobre
estratégia e táticas reverberam sobre análises de conjuntura, tornando fundamental
encontrar na documentação disponível não apenas a unidade interpretativa de alguns
temas, mas as suas desarmonias. Se levados apenas em consideração estes Informes
elaborados sob o controle da direção teríamos uma única perspectiva disponível, aquela
que, vitoriosa, se fez oficial. Isso, contudo, silenciaria as perspectivas dissonantes. Na
prática, o que temos neste tipo de documentação é a voz da direção sobrepujando outras
vozes nem sempre unificadas de grupos rebeldes dentro de algumas secretarias
regionais. Outras fontes disponíveis nos arquivos consultados durante a pesquisa foram
capazes de demonstrar que a leitura sobre o golpe e a interpretação da nascente ditadura
encontrava distintas posições dentro da ORM-PO.
Um documento de militantes da SR de Minas Gerais, por exemplo, oferecia uma
interpretação sensivelmente distinta da posição oficial amplamente visível nos informes
nacionais da organização. Apresentando um cenário internacional de completo domínio
do imperialismo, o documento resumia a instauração da ditadura a uma ação coordenada
e “importada” pela “grande burguesia imperialistae as outras forças que compunham as
classes dominantes locais. Segundo seus formuladores, a crise do sistema capitalista e o
avanço da consciência de classe do proletariado internacional levava a “grande burguesia
imperialista” a apoiar-se na violência para garantir seus privilégios. Por isso, “a
sobrevivência do imperialismo [estava] condicionada à existência de um complexo
militar” internacional que ao mesmo tempo que buscava ampliar as condições de
produção e reprodução do capital; mantinha o proletariado sob constante vigilância,
retardando sua tomada de consciência revolucionária; constituía entraves ao crescimento
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do bloco socialista, e sufocava os movimentos de libertação nacional que protagonizavam
o processo de descolonização
14
.
Defendendo que os Estados nacionais começavam a se transmutar em um “super
estado militarista” devido as pressões imperialistas de uma nova dinâmica do capitalismo
internacional, os autores identificavam que a ditadura, de certa forma, foi exportada para
o Brasil. Ou seja, a ditadura brasileira não era produto da ação da “burguesia nacional”,
aliada do imperialismo, mas de forças imperialistas internas que se associavam ao
complexo industrial militar de uma força estrangeira. O golpe militar de abril havia
promovido a “apendicificação do Estado Nacional [brasileiro] ao Super Estado Militarista
[internacional], em processo de estruturação”
15
.
Como já foi dito, também sobre esta questão, a posição do grupo ligado à direção
nacional saiu vitoriosa na luta interna. E como resultado disto, boa parte da historiografia
da Polop ratificou esse posicionamento como único, aparentemente, existente,
alimentando a memória oficial que este grupo constitui sobre a organização. Por isso, nas
coletâneas de documentos dedicados a história da Polop, figuram os textos aprovados nos
congressos, como o PSpB, mas também alguns escritos que, elaborados por militantes
como subsidio para a discussão interna, não haviam sido exatamente aprovados por
nenhuma instância administrativa, mas como se encontravam coerentes com as teses
vitoriosas acabaram por ser consagrados pela historiografia como versões preliminares
das teses oficiais da organização, enquanto os documentos dos derrotados, como o projeto
de programa citado acima, são excluídos dessas publicações, e quase sempre não são se
quer mencionados
16
. Se estes compilados cumprem a função de apresentar qual era o
posicionamento oficial assumido publicamente pela organização, satisfazendo assim o
interesse dos leitores que buscam apenas esta informação geral, estes textos representam,
no entanto, o produto final de um debate interno, que deveria ser objeto de interesse de
qualquer pesquisador engajado em estudar e recontar a história dos partidos e
organizações políticas.
Isto deveria levar os historiadores a uma reflexão mais aprofundada sobre o
próprio corpus documental a que ele teve acesso durante sua pesquisa. Lendo as fontes
sobre a Polop que constam nos arquivos disponíveis a investigação histórica e isto
certamente pode ser estendido a provavelmente todas as outras organizações políticas
em muitos momentos ficamos sabendo da existência de documentos críticos às posições
da direção nacional através de textos produzidos pela própria CN para se defender. Em
tais documentos, quase nunca os textos respondidos eram reproduzidos integralmente,
apenas alguns de seus trechos eram apresentados para esclarecer ao leitor os elementos
fundamentais da crítica que estavam sendo respondidas. Se muitas vezes as vozes dos
dissidentes podem ser ouvidas nos ruídos apresentados pelos seus próprios
antagonistas, os dissensos nem sempre se expressaram em críticas abertas, e por isso, para
encontrá-los é necessário ler os rastros deixados pela vasta documentação à disposição,
14
NAVARRO, Joaquim, FERREIRA, Fenando e SEABRA, Tania. A tendência e o caminho da revolução.
Arquivo CEDEM/UNESP. Fundo POLOP, p. 5.
15
Idem, p. 10.
16
MIRANDA, Orlando; FALCÓN, Pery. POLOP: uma trajetória de luta pela organização independente da
classe operária no Brasil. CVM (Centro de Estudos Victor Meyer). Salvador/BA, Empresa Gráfica da
Bahia, 2ª ed., 2010.
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incluindo suas inevitáveis lacunas. Cabe lembrar que na luta interna de qualquer
organização, os documentos dos derrotados são menos privilegiados na reunião de um
arquivo do que o daqueles que, vitoriosos, fizeram de suas posições, a posição oficial de
toda a organização. Mais do que lamentar uma lacuna, os documentos das oposições
internas que não constam nestes arquivos, e devem ter se perdido para sempre, falam por
si só em sua própria ausência. Basta que ouçamos o som do silêncio.
As diferenças internas certamente não nos devem impedir de aceitar que uma
posição prevaleceu internamente, consagrando-se como a oficial da organização. Os
consensos devem sempre serem levados em consideração, e possuem o seu lugar na
história dos partidos, entretanto, sem que para isso se pague o preço de desprezar os
desacordos, as lutas e as rupturas próprias da vida das organizações. Os partidos políticos
não são associações monolíticas, mas sim um corpo vivo e pulsante, onde os conflitos
não podem ser excluídos por nenhum dispositivo, nem pelas mais variadas pretensões de
homogeneização. Portanto, é sempre necessário perceber a evidência das diferenças e
divergências que marcam a vida interna da organização que se pretende estudar.
Um outro exemplo sobre a historiografia da Polop pode nos ajudar a demonstrar
a profundidade dessa questão. Objeto de um recém interesse acadêmico, os estudos sobre
a ORM-PO geralmente questionam a sua capacidade organizativa e definição ideológica
como expressão de uma falta de unidade que se expressou, ao fim, na cisão que lhe
liquidou.
Pioneira na investigação sobre os motivos que levaram a cisão de 1967, Joelma
Oliveira identificou nas divergências apresentadas pela acirrada discussão interna sobre
o caráter da revolução brasileira o motivo para sustentar sua hipótese de que a ORM-PO
não poderia “ser percebida como uma organização coesa, amadurecida e centralizada em
seus objetivos”
17
. Para a autora, o breve período de existência da Polop entre 1961 e 1967
pode ser caracterizado apenas como “um momento de aglutinação e tentativa de formação
de um grupo coeso” que, contudo, nunca se concretizou, devido uma série de
interrupções, a começar pelo golpe de 1964
18
.
Percorrendo uma trilha semelhante, Sérgio Luiz de Oliveira foi além, ao defender
que a ORM-PO a
presentou em toda sua trajetória “um certo caráter de
provisoriedade”. Que sem nunca ter obtido uma verdadeira unidade, a organização
permaneceu
“como um movimento disperso, regionalizado, com [apenas] alguns
elementos de coesão”, se constituindo mais
enquanto [uma] frente, a partir da união
entre agrupamentos distintos” do que uma organização coesa
19
.
Para negar a unidade organizativa da ORM-PO, expressa na falta de um programa
político, e explicar a existência das diferenças que se manifestaram na decisiva luta
17
OLIVEIRA, Joelma Alves de. POLOP: As origens, a coesão e a cisão de uma organização marxista
(1961-1967). Dissertação de mestrado em sociologia. UNESP. Araraquara, 2007, p. 141.
18
Idem, p. 166.
19
OLIVEIRA, Sérgio Luiz Santos de. Caminhando com os próprios pés: a formação política e teórica da
ORM-POLOP (1956-1967). Tese de doutorado em história na Universidade de São Paulo (USP), 2016,
p.149. Itálicos do autor.
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interna que resultou em uma cisão após a realização do IV Congresso em 1967, ambos
autores recorreram ao pluralismo originário da organização.
Almejando “identificar como as distintas origens a permear [a Polop]
contribuíram para a cisão
20
, Sérgio Luiz de Oliveira foi, certamente, mais explícito nessa
pretensão. Partindo da compreensão de que os grupos oriundos da Liga Socialista
Independente, Juventude Socialista e Mocidade Trabalhista “dividiram espaço na ORM-
PO” até a sua implosão em 1967, o autor reduziu praticamente todas as divergências
internas as diferenças que supostamente marcavam a constituição desses grupos
originários. E sem condições de avaliar de onde exatamente advinham essas diferenças,
sugeriu, mais de uma vez, que elas emanavam da composição dos grupos originários
21
.
Desta forma, preferindo o termo “amálgama” invés de “fusão” ao se referir a
formação da Polop, por enfatizar o elemento de mistura” a compor “um todo”, o autor
não encontrou problemas em concluir que tendo comportado em
“suas hostes correntes
e tendências distintas”, a organização cindiu após a necessidade imposta pela ditadura
de readaptar-se a nova conjuntura ter contribuído para reacender “antigas
indefinições ainda em processo de debate interno
22
.
Estes trabalhos, no entanto, acabam por reproduzir a tese que a própria direção
nacional construiu para explicar a cisão pela qual passou a Polop. Sendo um grupo
partícipe da luta interna, sua posição expõe, obviamente, uma visão parcial, que não
não se conta de um quadro mais geral, como cumpre o objetivo de negar a existência
de outras perspectivas possíveis. O equívoco desse trabalho historiográfico em reproduzir
acriticamente as vozes (de apenas um dos grupos em contenda) das fontes poderia ser
evitado se as orientações metodológicas expostas até aqui fossem levadas em
consideração.
Primeiro, deve-se pontuar que a
incapacidade de compreender a ORM-PO como
um agrupamento coeso se encontra em uma vio equivocada sobre o que significa uma
organizão política. O indício, às vezes eloquente, de conflitos internos, levou os autores a
questionarem a unidade da Polop. No entanto
, se homogênea, no sentido de um grupo
monolítico onde não se expressa qualquer desarmonia, nenhuma organização política foi
ou será jamais, a pesquisa demonstrou que as divisões internas que se manifestaram após
o golpe, e foram cruciais para sua posterior cisão, não eram expressões das diferenças dos
grupos originários da Polop. Ainda em 1964, os agrupamentos que haviam contribuído
para formação da ORM-PO haviam se diluído dentro da organização, e não haviam
tendências internas correspondentes a essas micro-organizações originárias. Seus
princípios coesionadores estavam consolidados e as diferenças que ainda se
manifestavam internamente o faziam por motivos distintos do que a diversidade da
composição original da organização pudesse sugerir.
20
Idem, p. 14.
21
Idem, p. 21 e 184. A Polop nasceu da junção de variados agrupamentos marxistas independentes, ou
ligados, em alguma medida, a partidos políticos reformistas. As principais organizações que confluíram
para o seu nascimento foram a Liga Socialista Independente (LSI), a Juventude (ou Esquerda) Socialista
do PSB e Mocidade Trabalhista do PTB. Para mais informações sobre as origens da Polop conferir a
primeira parte de NOBERTO, op. cit., 2021.
22
OLIVEIRA, 2016, op. cit., p. 196.
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Segundo, como a tese do pluralismo originário da Polop como explicação para a
cisão de 1967 pode ser compreendida como um discurso construído pela direção nacional
na luta interna, passeando pelos arquivos disponíveis a pesquisa, a historiografia não
encontrou muitos problemas para sustentá-las. Esta trilha, no entanto, deve ser refeita sob
outras orientações.
As abundantes autocríticas que insistiam em reconhecer e lamentar “o caráter
excessivamente flexível da organização interna” e sua falta de unidade ideológica,
relacionando-os a heterogeneidade dos grupos que a formaram, constantes na
documentação, representavam interesses táticos da argumentação política de um dos
grupos que travavam a luta interna em andamento. Era geralmente da direção nacional de
onde advinha as menções sobre a heterogeneidade da organização oriunda de sua
formação. Foi para combater o que caracterizava como “fracionismo”, expresso na
exagerada autonomia das secretarias regionais que em muitas das vezes desrespeitava
a orientação da direção nacional que o CN relacionou o que identificava como
“tendências federalistas” como parte inerente do processo de “evolução da organização”
devido a “herança que trazemos da nossa origem”
23
. Sempre preocupada com a autonomia
que algumas secretarias regionais buscavam conservar e ampliar, documentos da direção
nacional insistiam em relacionar praticamente todos os problemas organizativos da ORM-
PO como expressão da sua falta de coesão, recorrendo constantemente as suas próprias
origens como explicação.
Essa descentralização tem suas raízes no próprio surgimento da ORM, que se
constituiu da união de grupos regionais ainda insuficientemente amadurecidos
então. Não é aqui o lugar de expormos um histórico da nossa formação, mas é
o bastante anotar que progredimos à medida que as heranças ideológicas
regionais foram sendo vencidas pela homogeneidade política à base do
marxismo-leninismo. Esse processo não se completou: as tendências
“federalistas”, ou de “autonomias estaduais” refletem ainda o peso do passado
a vencer
24
.
Queixa corrente da direção nacional e, portanto, de presença constante em parte
da documentação contida nos arquivos o desconforto com o “federalismo” e
“autonomias estaduais” eram expressões da luta interna que era travada entre o CN e as
direções estaduais de algumas SRs rebeldes. Sendo assim, tal tese era nada mais do que
a insatisfação com sua própria posição de um grupo em disputa dentro da ORM-PO,
que insistia em considerar inconclusa a coesão da organização, a ser somente obtida
através de um processo que promovesse uma maior “centralização nacional” em torno de
suas próprias diretrizes.
Sem compreender as múltiplas imagens projetadas pelos próprios militantes sobre
sua organização, como uma manifestação da luta política, produto da diversidade interna
que é inerente a qualquer agrupamento político, apesar de seus méritos, a historiografia
da Polop, até aqui, continua consagrando apenas a leitura dos vitoriosos dentro da luta
interna como a única compreensão histórica sobre a organização. E, assustando-se,
quando os sons dos dissensos gritam se fazendo escutar até pelos ouvidos mucos
23
Doc. 00332 Do SR-MG ao CN, julho de 1967. CEDEM. Fundo POLOP, p. 8.
24
Doc. 00487 Problemas organizatórios. 11-1966. CEDEM. Fundo POLOP, p. 3.
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nestes momentos, os desacordos tornam-se justificativa para a negação de que se tratava
de uma única organização coesa.
Seguindo os pressupostos metodológicos baseados nos preceitos gramscianos que
foram assumidos durante a pesquisa, meu percurso pela documentação recusou a assumir
as fontes como a expressão de uma única voz, sem ruídos e sussurros. Sabendo não se
tratar de um agrupamento monolítico busquei identificar a heterogeneidade que o
compunha. Assim, cada resolução ou texto foi lido como produto dos conflitos internos
que construíam o dia-a-dia da organização. Na busca destes rastros foi possível perceber
mais do que as falas aparentemente monofônicas pareciam dizer. E quando gritos
dissonantes rangeram sob o que parecia uma canção coerente de vozes integradas, a
polifonia expressa por estes desacordos não soaram como simples desafinações ou como
uma expressão da inexistência do que parecia ser um conjunto coeso. Mesmo quando a
certa altura os artífices apresentaram apreços por partituras distintas, ampliando o
evidente desarranjo instrumental. Ainda se tratava do mesmo conjunto. Pelo menos até o
momento derradeiro, onde a divergência de horizontes tornou-se incontornável, formando
então, mais de uma banda.
Mas, se para analisar a trajetória de um partido é necessário mapear as questões
organizativas e teórico-programáticas que serviram de elementos coesionadores e pontos
de atritos, e permanecer atento também para a identificação dos grupos que foram se
constituindo internamente, acompanhando a marcha desses conflitos, apesar da
importância reconhecida para a análise da vida interna, o historiador não deve resumir-se
a ela, pois, será sempre fundamental pensar como se desenvolvem as relações políticas
que se estabelecem tanto dentro do partido, quanto fora dele, ao mesmo tempo.
Pois como problematizou Gramsci, a história de um partido não pode ser apenas
“a mera narração da sua vida interna, “de como ela nasce, dos primeiros grupos que a
constituem, das polêmicas ideológicas através das quais se forma seu programa e sua
concepção do mundo e da vida”. Por isso, sua história não pode ser resumida apenas a
análise de seus estatutos, do desenvolvimento das suas formulações táticas e estratégicas,
das suas disputas internas, e a trajetória de suas lideranças, pois se assim o fosse, tratar-
se-ia da “história de grupos intelectuais restritos, e em alguns casos da biografia política
de uma individualidade singular”
25
.
As relações de forças perceptíveis na vida interna do partido não se esgotam nele.
Pelo contrário, perpassam-no como expressão de conflitos sociais muito maiores e
complexos do que a forma política organizada dentro do partido aparenta. A existência
de que qualquer organização política é condicionada por determinações sociais que não
podem ser negadas ou secundarizadas por abstrações teóricas. Mudanças na conjuntura
política ou contexto histórico interferem diretamente na vida dos partidos. Por isso, se é
necessário penetrar na organização, mergulhando na sua vida interna, percebendo e
problematizando as disputas e debates que foram travados pelos seus militantes em seu
interior, para mapear e analisar tais discussões, também se faz essencial retirar-se, em
muitos momentos, de dentro da organização, para problematizar suas relações externas.
A investigação histórica não deve restringir-se a vida interna do partido. É apenas o
pesquisador “sectário” que tende a analisar a história de um partido político através,
25
GRAMSCI, op. cit., 2007, p. 87.
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unicamente, de sua vida interna, para exaltar-se “com os pequenos fatos internos, que
terão para ele um significado esotérico e o encherão de entusiasmo místico
26
. O alerta
de Gramsci nos ajuda a evitar que os pequenos conflitos cotidianos que marcam a vida
das organizações políticas ganhem maior relevância na análise do que os conflitos entre
as classes e a luta pelo poder político, pois,
[...] o historiador, mesmo dando a cada coisa a importância que tem no quadro
geral, acentuará sobretudo a eficiência real do partido, sua força determinante,
positiva e negativa, sua capacidade de contribuir para a criação de um
acontecimento e também para impedir que outros acontecimentos se
verificassem
27
.
Como uma das funções primordiais de um partido é articular o interesse do grupo
social que representa contribuindo assim para formação de uma consciência crítica e
construção de uma concepção de mundo unitária e coerente, a ação de um partido envolve
também a dimensão de uma atuação intelectual. Ao elaborarem e disseminarem
concepções de mundo, pode-se pensar os militantes do partido, e o próprio partido em si,
como um intelectual.
Pensar o partido como um tipo de intelectual coletivo permite ao historiador
problematizar a sua relação com os aparelhos de Estado, e as classes sociais em conflito.
São os intelectuais que tornam límpida, coerente e articulada a visão de mundo da classe
social a que pertencem. São eles que difundem esta visão de mundo entre as outras
classes, disputando-as. Se para as classes dominantes, os intelectuais são imprescindíveis
para costurar as condições necessárias para formulação e manutenção da hegemonia, no
caso dos grupos subalternos, seus intelectuais são fundamentais em seu processo de
emancipação, que são capazes de integrar os conceitos para a invenção de uma nova
cultura, que não significa apenas a formação de uma vontade coletiva, mas também a
propagação de outra concepção de mundo.
Se observar a “eficiência real” de um partido significa manter-se atento a sua
capacidade (e incapacidade) de constituir e desfazer acontecimentos políticos
28
, então, ao
problematizar as mudanças e permanências verificadas na trajetória de constituição e
desenvolvimento de um partido deve-se observar as relações concretas entre a sua vida
interna e as conjunturas com que ela se defrontou, analisando-as a partir dos registros
produzidos pela elaboração estratégica e tática da sua intervenção na realidade. Para tanto,
deve-se buscar uma orientação metodológica distinta dos caminhos usuais da chamada
“Nova História Política”, pois ao chamar a atenção do historiador para a questão do
alcance social da vida do partido, sua capacidade de estender suas ideias para fora de seus
aparelhos, sua relação com o grupo social que busca representar e seu poder de
26
Idem, p. 88.
27
Idem, p. 87.
28
Complementa Gramsci: “Um partido terá maior ou menor ou menor significado e peso precisamente na
medida em que sua atividade particular tiver maior ou menor peso na determinação da história de um país”
(Idem). Vários outros autores já abordaram a concepção de partido, e a noção de eficiência real em Gramsci
cf. SANTOS, Igor Gomes. A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma história/concepção dos
partidos políticos. Revista História & Luta de Classes, v. 9, p. 7-17, 2010.
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convencimento no seio de grupos sociais diversos, essa orientação gramsciana repõe a
centralidade do conceito de luta de classes e a noção de totalidade social.
Como respondeu Gramsci, as questões formuladas logo acima: “A moldura do
quadro tem que ser mais abrangente”. Já que a “história de um partido não poderá deixar
de ser a história de um determinado grupo social”, e como cada grupo ou classe não existe
isoladamente, “fora do quadro global de todo o conjunto social e estatal (e,
frequentemente, também com interferências internacionais)”, mas, pelo contrário, possui
aliados, afins e adversários, na prática, “escrever a história de um partido [significa]
escrever a história geral de um país a partir de um ponto de vista monográfico, pondo em
destaque um seu aspecto característico”
29
.
Abordar as relações internas e externas de uma organização partidária significa
refletir sobre grupos sociais que sofrem diariamente às pressões socioeconômicas e
culturais que criam o ambiente balizador do vir a ser da organização. Por isto, para
escrever a história de um partido:
Será preciso escrever a história de uma determinada massa de homens que
seguiu os iniciadores, sustentou-os com sua confiança, com sua lealdade, com
sua disciplina, ou os que criticou “realisticamente”, dispersando-se ou
permanecendo passiva diante de algumas iniciativas
30
.
Esta perspectiva metodológica nos retira de uma história estritamente política,
abrindo horizontes para o que, historiadores como Eurelino Coelho preferem chamar de
“história social da política”, um tipo de olhar onde o resultado da pesquisa faz a política
aparecer como um componente de uma totalidade social
31
.
REFERÊNCIAS
BERSTEIN, Serge. Os partidos in: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª
ed., Rio de janeiro: editora FGV (Fundação Getúlio Vargas), 2003.
COELHO, Eurelino. A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas
questões de método. Revista História & Luta de Classes, v. 9, p. 7-17, 2010.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. V. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
29
GRAMSCI, op. cit., 2007, p. 87.
30
GRAMSCI, op. cit., 2007, p. 87.
31
Assumida como tal, a categoria totalidade se apresenta como uma perspectiva teórica superior a noção
de “contexto” a que os historiadores comumente fazem menção. Pois, mais do que uma forma ingênua de
lidar com a totalidade, o contexto, não poucas vezes, se resume a algo que, merecedor de um espaço formal
dentro de seus textos monográficos, se esvai da análise histórica desenvolvida, na primeira oportunidade
que encontra, já que não envolve preocupações metodológicas conscientes para com seu objeto de estudo.
Por uma escolha em favor da economia de texto não será possível enfrentar aqui a questão da totalidade,
para tanto Cf. COELHO, Eurelino. A dialética na oficina do historiador: idéias arriscadas sobre algumas
questões de método. Revista História & Luta de Classes, v. 9, p. 7-17, 2010.
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Marília, SP
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GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. V. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
MIRANDA, Orlando; FALCÓN, Pery. POLOP: uma trajetória de luta pela organização
independente da classe operária no Brasil. CVM (Centro de Estudos Victor Meyer).
Salvador/BA, Empresa Gráfica da Bahia, 2ª ed., 2010.
NAVARRO, Joaquim, FERREIRA, Fenando e SEABRA, Tania. A tendência e o
caminho da revolução. Arquivo CEDEM/UNESP. Fundo POLOP.
NOBERTO, Lineker. Nova Senda Socialista: a história da Organização Revolucionária
Marxista Política Operária (ORM-PO). Tese de doutorado em história na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2021.
OLIVEIRA, Joelma Alves de. POLOP: As origens, a coesão e a cisão de uma organização
marxista (1961-1967). Dissertação de mestrado em sociologia. UNESP. Araraquara,
2007.
OLIVEIRA, Sérgio Luiz Santos de. Caminhando com os próprios pés: a formação
política e teórica da ORM-POLOP (1956-1967). Tese de doutorado em história na
Universidade de São Paulo (USP), 2016.
RIOUX, Jean-Pierre. A associação em política in: RÉMOND, René (org.). Por uma
história política. 2ª ed., Rio de janeiro: editora FGV (Fundação Getúlio Vargas), 2003.
SANTOS, Igor Gomes. A “eficiência real”: apontamentos de Gramsci para uma
história/concepção dos partidos políticos. Revista História & Luta de Classes, v. 9, p. 7-
17, 2010.
Recebido em 8 de fevereiro de 2022
Aceito em 13 de fevereiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023