SEÇÃO DOSSIÊ
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GRAMSCI NO BRASIL: REVOLUÇÃO PASSIVA E TRADUTIBILIDADE
Gramsci in Brazil: Passive Revolution and Translation
Gramsci in Brasile: rivoluzione passiva e traducibilità
Marília Gabriella Machado
1
Marcos Del Roio
2
RESUMO:
Este artigo analisa a concepção da categoria revolução passiva, utilizada e desenvolvida por Antonio
Gramsci nos Quaderni del Carcere e traduzida para o Brasil, principalmente, pelo intelectual Luiz Werneck
Vianna. O principal objetivo é averiguar a utilização em dois textos de Vianna. Para tal abordagem, utiliza-
se o método diacrônico e a metodologia da filologia vivente de forma a demonstrar a construção e o
desenvolvimento da categoria em consonância com as categorias de jacobinismo e revolução passiva.
PALAVRAS-CHAVE: Gramsci. Luiz Werneck Vianna. Revolução Passiva. Tradutibilidade. Jacobinismo.
INTRODUÇÃO
Antonio Gramsci é um autor conhecido no Brasil e no mundo. Muitos
intelectuais, dentro ou fora dos círculos acadêmicos, utilizam suas categorias e conceitos
para empreender uma análise sobre as contradições da América Latina e do Brasil. Na
ordem do dia, os debates sobre a formação do Estado brasileiro e de suas instituições,
da classe operária e de seu papel revolucionário, da representatividade e legitimidade
burguesas vêm à tona.
Gramsci, autor clássico, é um pensador fundamental para responder
questionamentos típicos de um período de crise orgânica. A propósito, em toda sua obra
é possível observar um projeto orgânico de revolução socialista enquanto saída para os
períodos de crise em que a Itália era palco: no pós-guerra, nos anos de guerra de
movimento e revolução permanente (1917-1921), e no fascismo. Para compreensão dos
três períodos acima é possível assimilar as noções categoriais de crise, revolução passiva
e revolução-restauração, de guerra de movimento e guerra de posição, bem como o
projeto revolucionário gramsciano para vislumbrar, ainda que de sobrevoo, o contexto
1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(FFC/UNESP/Marília). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1690-9983 E-mail: m.machado@unesp.br
2
Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor Titular da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (FFC/UNESP/Marília). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3276-8789 E-
mail: delroio@terra.com.br
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histórico e estrutural que Gramsci analisava. É importante reforçar que, para o autor, a
revolução socialista deve ser capaz de culminar na construção de um Estado operário,
sendo a única saída para as crises do capitalismo.
No contexto de crise orgânica e de crise da hegemonia liberal, ocasionada pelo
pós-guerra na Itália, dois principais projetos eram colocados em prática no campo
político da guerra de movimento: o de uma reestruturação do bloco histórico burguês,
por meio de uma revolução passiva
3
(vitorioso, que culminou na vitória fascista) ou de
uma revolução socialista com ação política jacobina. Operários revolucionários e jovens
fascistas se articulavam em diferentes movimentos e partidos para dar cabo a seus
projetos sociais. Nesse ínterim, os escritos de Gramsci em jornais, documentos do
Partido e em cartas, demonstram um cenário revolucionário, de situação revolucionária
em permanência, sem captar o fascismo como um movimento de revolução passiva que
se consolidaria em 1926.
Lenin, em 1920, quando a perspectiva do isolamento da revolução na Rússia com
a derrota no Ocidente estava próxima, apontava a necessidade de elementos
revestidos de “significação internacional” da revolução
4
para o desenvolvimento das
condições revolucionárias objetivas e subjetivas do Oriente e do Ocidente. O principal
objetivo era o de “aplicar à Europa Ocidental o que a história e a tática atual do
bolchevismo têm de universalmente praticável, significativo e relevante.”. (LENIN, 1977,
p.27).
No entanto, naquele mesmo ano de 1920, a experiência revolucionária dos
Conselhos de Fábrica de Turim já havia sido derrotada. Como saída para a crise e ataque
ao movimento operário, a pequena burguesia e a burguesia enxergavam a violência
fascista como uma aliada para a reestruturação do poder e domínio hegemônico. Mas,
com a fundação do Partido Comunista da Itália (PCd’I), em 1921, Gramsci (1974) ainda
notava no movimento da história a revolução em permanência. São inúmeros os artigos
entre os anos de 1921-1926 em que Gramsci analisa a derrota do movimento operário
italiano, bem como sua perspectiva sobre o fascismo. Mas, será no cárcere que o autor
reconhecerá alguns de seus erros de análise e a constituição do fascismo na Itália
3
Para Frosini, a passividade das massas levou à revolução passiva que esteve relacionada com a
desorganização, falta de coordenação e direcionamento, bem com o isolamento dos intelectuais. Esse
processo, segundo o autor, ocorreu no terreno da guerra de movimento que envolveu e imobilizou as
massas, mas caminhou para a guerra de posição a partir de “uma estratégia de neutralização contínua de
suas tentativas de assumir uma posição autônoma sobre o terreno político.”. (FROSINI, 2017, p.7).
4
A revolução demonstrou a significação internacional “do poder soviético e dos fundamentos da teoria e
da tática bolcheviques”, por mais que tais questões não tenham sido compreendidas “pelos líderes
“revolucionários” da II Internacional, como Kautsky na Alemanha e Otto Bauer e Friedrich Adler na Áustria,
que, por isso, se converteram em reacionários, em defensores do pior dos oportunismos e da social-
traição.”. (LENIN, 1977, p.2).
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enquanto um processo de revolução passiva e de revolução-restauração que estava em
curso desde 1921.
5
.
II. REVOLUÇÃO PASSIVA E JACOBINISMO
A formação do Estado moderno italiano esteve presente nas reflexões de
Gramsci desde sua juventude. Nos escritos sobre a guerra, na formação dos Conselhos
de Fábrica em Turim e nos anos do fascismo, anteriores a sua prisão, a temática da
organização das classes sociais italianas e do Estado aparecem em Gramsci como parte
essencial de seu projeto teórico-político revolucionário. Nas Teses do III Congresso
(1926) há, com precisão, uma recusa do determinismo mecanicista e do sectarismo
presente na antiga direção de Amadeo Bordiga, bem como de intervenção/resistência
do PCd’I ao fascismo.
6
Será no cárcere, enquanto “um método de resistência à
brutalização intelectual, um instrumento de sobrevivência física e política” (FRESU,
2020, p.237)
7
que Gramsci desenvolve textos que apresentam e aprofundam temas
anteriormente já percorridos nos escritos jornalísticos e nas cartas.
No Primo Quaderno (1920-1930), parágrafo 44: Direzione politica di classe prima
e dopo l’andata al governo, Gramsci inicia a reflexão sobre o Risorgimento para
compreender as matrizes do fascismo que poderiam ser encontradas na história
nacional italiana, no processo de unificação, na cultura, na Primeira Guerra, e nas fases
de transformações do capitalismo. As referências ao Risorgimento e a política do
transformismo estão interligadas na relação de domínio e direção hegemonia - das
classes presentes na política italiana que eram capazes de absorver “elementos ativos
que surgiram das classes aliadas e também dos inimigos.”. Para Gramsci, “pode e deve
5
Ao mensurar que “haveria uma revolução passiva no fato de que, para a intervenção legislativa do Estado
e através da organização corporativa, na estrutura econômica do país, seria introduzida mudanças mais
ou menos profundas” (GRAMSCI, Q.10, §09, pp.1.228, 1977), é possível confirmar que essas mudanças
acentuaram o elemento capitalista regulando e controlando “a apropriação individual e coletiva do
lucro.”. Essa ideologia serviria como elemento de uma Guerra de posição” no campo econômico (livre
concorrência e livre comércio correspondem levaria à guerra internacional de movimento)”, bem “como
a “revolução passiva” esem campo político.”. Pois, “na era atual, a guerra ocorreu politicamente de
março de 1917 a março de 1921” guerra de movimento (manobrada) “e uma guerra de posição cujo
representante, além de prático (para a Itália), ideológico, para a Europa, é o fascismo.”. (GRAMSCI, Q.10,
§09, pp.1.228, 1977).
6
O jacobinismo é temática recorrente nos textos de Gramsci desde sua juventude. Com olhar voltado à
integralidade de sua obra é possível observar que as reflexões do autor se desenvolvem e que o
jacobinismo, o qual era crítico, nos Quaderni dal Carcere retornam junto com seu projeto revolucionário.
7
“Nos Cadernos, emerge o rigor político, e ao mesmo tempo, a implacável concretude com que o
intelectual sardo esclarece o colapso do sistema liberal na Itália e, com ele, o esmagamento do movimento
operário e de seu campo político. Um drama histórico que levou Gramsci a investigar sem indulgência os
limites, os erros e as abstrações de toda a frente de oposição a Mussolini.”. (FRESU, 2020, p.238).
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ser uma hegemonia política antes mesmo de ir para o Governo”, sendo esse um dos
problemas “que possibilitou o Risorgimento nas formas e dentro dos limites em que
ocorreu uma revolução sem revolução (ou revolução passiva, segundo a expressão de
V.Cuoco).”. (GRAMSCI, Q.1, §44, p. 41, 1977).
Em Saggio Storico sulla Rivoluzione di Napoli (2004), o intelectual e político
Vincenzo Cuoco identifica a “revolução napolitana como uma revolução passiva, isto é,
produto da pressão inconsistente das massas napolitanas e do impacto da Revolução
Francesa, uma revolução reflexa, portanto.”. (DEL ROIO, 2018, p.243). Nas palavras de
Cuoco, para uma revolução passiva é “conveniente que o agente de governo” entenda
o ânimo das pessoas e “apresente a elas o que elas querem e o que não saberiam como
se apossar.”. (CUOCO, 2006, p.84).
8
Durante a revolução napolitana
9
houve a
mobilização das classes em torno do Estado com a influência do elemento externo, mas
sem a participação efetiva dos estratos populares. O processo contou com aliança entre
as massas rurais, a nobreza conservadora e a plebe urbana. Para Cuoco (2006), o
resultado foi a ausência de uma revolução ativa como a especificidade francesa, de
forma que o processo ficou confinado entre os intelectuais e não houve ação das
camadas populares, tendo se configurado um processo de revolução passiva.
Será primeiramente de Vincenzo Cuoco que Gramsci partirá, com determinada
distância, para desenvolver a categoria de revolução passiva, a qual será utilizada para
analisar o processo do Risorgimento e as formações dos Estados modernos da Europa e
da Itália, bem como o fascismo. Ao assimilar a noção de revolução-restauração de Edgar
Quinet, a análise de Gramsci terá valor de grande importância interpretativa na história
italiana. Assim que as origens e o processo do Risorgimento devam ser analisados
concomitantemente ao processo histórico “pelo qual o conjunto do sistema europeu se
transforma” considerando as relações internacionais e como se desenvolveram as
relações internas nacionais, sem estarem descoladas “dos eventos internos da Península
e das forças nela sediadas.”. (GRAMSCI, Q.19, §02, 1977, p.1.962).
O Risorgimento enquanto revolução sem revolução, revolução passiva, há
materialidade na concepção de Gramsci quando interpretado juntamente com a política
dos moderados e os limites em que o processo se desenvolveu e foi consolidado, pois
8
“Desse modo, Cuoco utilizou a referida categoria para analisar o processo revolucionário na singularidade
de Nápoles, uma província Italiana. Gramsci, por sua vez, nos trilhos da sugestão de Cuoco, atribui um
novo conteúdo a esse conceito e faz uso para às suas reflexões acerca da Itália como um todo. Ao fazer
referência a formação do Estado burguês, generaliza o conceito que havia sido utilizado na análise de
Nápoles para toda a Itália.”. (SOUZA & GOMES, 2017, p.04).
9
Para Gramsci, as forças sociais se mostravam “escassíssimas, dispersas, sem nexo entre si e sem
capacidade de suscitar laços recíprocos, e isto não no século XVIII, mas, pode-se dizer, até 1848.”.
(GRAMSCI, Q.19, §03, 1977, p.1.969).
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“a articulação entre as condições nacionais e a situação internacional europeia”, que
revelou “um processo de reação e impulsão das transformações políticas e sociais
provocado pela Revolução Francesa” (ALIAGA, 2018, p.02), demonstram a
especificidade do Risorgimento enquanto revolução passiva, bem como a compilação
dos elementos de insuficiência das forças sociais, restando na intelectualidade uma
concepção de Estado como “uma coisa em si, como um absoluto racional.”. (GRAMSCI,
Q.10, §61, 1977, p.1.360).
Gramsci fundamenta sua análise a partir da atuação “coesa” e “tendencialmente
unitária” das forças opostas, “especialmente como Igreja”, pois “absorviam a maior
parte das capacidades e energias individuais que poderiam constituir um novo pessoal
dirigente nacional, dando-lhes uma orientação e uma educação cosmopolita-clerical.”.
(GRAMSCI, Q.19, §03, p.1.969, 1977). Contudo, a Itália não possuía o elemento jacobino
e “a luta se apresentava como luta contra os velhos tratados e a ordem internacional
vigente, e contra uma potência estrangeira, a Áustria [...].”. A ação concentrada,
concentração orgânica, que os moderados exerciam se exemplificava de maneira
espontânea “em toda a massa de intelectuais existentes no país no estado “difuso”,
“molecular””, direcionado para certas necessidades de instrução e de administração.
(GRAMSCI, Q. 19, pp.2.012-2.030, 1977). Na Itália,
o aspecto “passivo” se referia à forma restritiva da hegemonia que emergiu do
Risorgimento em virtude da falência do potencial “jacobino” no Partito
d’Azione, necessário para a elaboração de um programa político capaz de
refletir as demandas das massas populares, especialmente as camponesas.
(MORTON, 2017, p.173).
O comportamento paternalista do Partito d’Azione corroborou para que as
grandes massas populares fossem “decapitadas, não absorvidas pelo novo Estado”, ou
absorvidas de maneira limitada por meio do transformismo. O jacobinismo
10
, portanto,
não assumia seus dois significados de “historicamente caracterizado” e de “partido da
Revolução Francesa, que concebia a revolução em um determinado modo, com um
determinado programa”, com determinada base social organizada. (GRAMSCI, Q.1, §44,
p. 44, 1977).
O processo de revolução burguesa na França já contava com elementos políticos
e intelectuais desenvolvidos capazes de ocasionar o nascimento de uma nova sociedade
10
Segundo Gramsci (Q.19, §24, p.2.032, 1977), a Itália não foi capaz de formar um partido jacobino e “as
razões devem ser buscadas no campo econômico, isto é, na relativa fraqueza da burguesia italiana e no
clima histórico diferente da Europa após 1815.”. Importante apontar que no Brasil, um país de revolução
burguesa por via passiva, direcionada pelo Estado corporativista, também não fora capaz de fundar um
partido com ação política jacobina que direcionasse as camadas populares e a burguesia para a formação
de um Estado burguês.
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e de espalhar seus efeitos para grande parte da Europa. (HOBSBAWM, 2012). No
entanto, na Itália, o jacobinismo não se configurava “porque os intelectuais, o grupo
político que se pretendia como povo/nação, não conseguiram na prática estabelecer o
nexo diretivo e programático, em particular no que se referia à questão agrária.”. (DEL
ROIO, 2018, pp.243-244). A questão agrária e a ausência de uma solução acirrou o
problema do clericalismo e a falta de atitude antiunitária da Igreja de forma que os
moderados, “muito mais ousados do que o Partito d’Azione”, acabaram por exercer
importante papel na formação de uma nova camada de grandes e médios proprietários
ligados às questões políticas (GRAMSCI, Q. 19, §26, p. 2.040, 1977), mas sem a
configuração do elemento jacobino e sem direcionamento do povo/nação, sem
constituição do vínculo orgânico, restaurou-se o poder das classes dominantes
conforme se desenvolvia uma revolução passiva.
O formato do Risorgimento demonstrava “a fragilidade e a situação periférica da
dominação burguesa” (DEL ROIO, 2018, p.244) que perduraria durante anos. A categoria
de revolução passiva passou a ser parte essencial da obra de Gramsci em torno da
categoria de jacobinismo, inclusive para compreensão e análise do próprio autor sobre
os acontecimentos do século XX na Itália e em outros países periféricos do Ocidente.
III. GRAMSCI NO BRASIL: POSSIBILIDADE DE “TRADUÇÃO”
Devido a categoria de revolução passiva passar “por um progressivo processo de
adensamento desde as primeiras notas”, “ainda é uma tarefa em aberto” desenvolver
essa categoria assinalando a possibilidade da tradutibilidade de categorias
desenvolvidas pelo sardo ao fim de “análise histórica e guia de pesquisa para diferentes
contextos nacionais.”. (ALIAGA, 2019, p.02).
Gramsci surge como um autor clássico que pode ser traduzido, assim como algumas de
suas categorias e conceitos, para outras realidades além da qual se dedicou a entender.
É dessa maneira que os Cadernos do Cárcere se tornam “uma ferramenta essencial para
a leitura dos eventos atuais, constituindo até nossos dias uma bússola útil para a
orientação nas contradições da modernidade.”. (FRESU, 2020, p.238). Assinala-se,
portanto, a possibilidade de tradução das categorias e conceitos elaborados por Gramsci
para determinada realidade histórica ou para analisar questões estruturais do
capitalismo em crise.
Contudo, não se trata de simples tarefa por mais que categorias e conceitos, se
traduzidos e aprimorados, atinjam “originalmente uma nova concepção de mundo.”.
(GRAMSCI, Q.10, §09, p.1.247, 1977). A partir da filosofia da práxis, o desenvolvimento
e a superação da categoria de revolução passiva e de revolução-restauração, de Cuoco
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e Edgar Quinet, respectivamente, conquistaram em Gramsci uma nova leitura e
possibilidade aberta de expandir-se para outras análises sócio-políticas estruturais.
A relação que se estabelece é entre filosofia da práxis e tradutibilidade
11
, pois
Gramsci “estende o argumento, crucial para o desenvolvimento criativo do marxismo,
da tradutibilidade no campo da filosofia da práxis com as modificações semânticas,
que são sempre necessárias”, tanto de categorias e conceitos originários em outro local.
(BOOTHMAN, 2017, p.783).
Pode-se aplicar ao conceito revolução passiva (e pode-se documentar
no Risorgimento italiano) o critério interpretativo das modificações
moleculares, que, na realidade, modificam progressivamente a
composição anterior das forças e, portanto, transformam-se em matriz
de novas modificações. (GRAMSCI, Q.15, §11, p.1767, 1977).
Ressalta-se a importância do Risorgimento dentro do escopo de uma de
revolução burguesa, impactado pela Revolução Francesa, “no conjunto heterônimo de
manifestações populares, que, mesmo incapazes de uma revolução ao estilo jacobino,
pressionaram as classes dominantes, obrigando-as a se reorganizar e a restaurar o seu
poder”, mesmo com “concessões” e cooptações dos intelectuais e políticos. (DEL ROIO,
2018, p.246). Na particularidade brasileira do campo teórico, é possível observar que a
categoria de revolução passiva ganhou distintas análises e que intelectuais acadêmicos,
lideranças sociais e partidárias, têm se colocado no complexo desafio de entender as
questões estruturais brasileiras e problemas acirrados pelo capitalismo.
Nota-se a utilização de diversas categorias e conceitos gramscianos, sendo a
revolução passiva uma das mais importantes para entender o processo da revolução
burguesa no país. A possibilidade de traduzir categorias e conceitos elaborados por
Gramsci, para além de seu tempo e de seu determinado contexto histórico, chegou ao
Brasil a partir dos anos de 1970. Os escritos do comunista italiano foram recepcionados
por intelectuais e acadêmicos de universidades influentes que auxiliaram na divulgação
11
Poderia ser colocada também a questão da ortodoxia relacionada com as
noções de tradutibilidade e de filosofia da práxis enquanto filosofia que
“contém em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e
integral concepção de mundo, uma totalidade filosofia e teoria da ciência
natural, não apenas, mas também para verificar uma integral organização
prática da sociedade, isto é, para tornar-se total, civilização integral.”.
(GRAMSCI, Q.11, §12, p.1.434, 1977). Para aprofundamento buscar os textos
de Rocco Lacorte.
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de sua obra. (SECCO, 2002, p.87). Com o passar dos anos, muitos trabalhos científicos
utilizaram Gramsci como arcabouço teórico, categorial, conceitual e metodológico.
As traduções para a língua portuguesa dos Cadernos e das Cartas do Cárcere, e
de alguns escritos de sua juventude, auxiliaram e democratizaram a análise gramsciana
para o Brasil. Importantes trabalhos foram realizados ao longo dos anos, na particular
temática da revolução passiva no país
12
. O decorrer deste texto irá acompanhar alguns
dos importantes trabalhos que foram realizados sobre a temática, mas é importante
apontar que não se trata de adentrar no debate historiográfico sobre a história do Brasil
e as diversas análises que foram realizadas, mas de sobrevoo demonstrar criticamente
a utilização da categoria de revolução passiva por Luiz Werneck Vianna na análise da
formação social brasileira.
IV. LUIZ WERNECK VIANNA E REVOLUÇÃO PASSIVA À BRASILEIRA
Os processos de revolução passiva na Itália e no Brasil, países periféricos,
possuem certa semelhança quando compreendidos a partir da ótica gramsciana e do
instrumento da tradutibilidade. Alguns elementos podem ser verificados com a forte
presença da Igreja Católica na formação da sociedade brasileira e com a formação de
intelectuais tradicionais, com desenvolvimento capitalista tardio, um escravismo e
feudalismo muito particulares, com o latifúndio e a formação de uma burguesia
comprimida pelo imperialismo. Assim como na Itália, não houve a formação de uma
vontade coletiva nacional-popular durante a revolução burguesa. Assim que podemos
observar que o desenvolvimento da revolução burguesa no Brasil, ocorrido entre fins
dos anos 20 e fins dos anos 70 do século XX, ocorreu por meio de uma revolução passiva
e de recomposição do bloco de poder das classes dominantes.
O sociólogo Luiz Werneck Vianna, importante estudioso da obra de Gramsci no
Brasil, buscou traduzir inúmeras categorias gramscianas para a realidade brasileira,
ainda nos anos 1970, durante a ditadura militar (1964-1985) e na clandestinidade.
Vianna possui dois livros nos quais se debruça sobre a realidade brasileira e se
apropria do universo categorial gramsciano para fundamentar sua análise. Liberalismo
e sindicato no Brasil (1976) é composto por seis capítulos que refletem questões
voltadas à legislação trabalhista brasileira antes e durante a Era Vargas, o
corporativismo, o sindicalismo e a denominada crise de hegemonia, a revolução pelo
12
No mapa bibliográfico da IGS-Brasil pode ser encontrado 39 resultados de trabalhos publicados no Brasil
com a palavra ‘revolução passiva’, sendo possível considerar o grande interesse de brasileiros pelas
reflexões e teoria de Antonio Gramsci. Ver: << https://igsbrasil.org/mapa-bibliografico-igs-brasil/>>.
Acesso em 29 de janeiro de 2021.
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alto, o liberalismo e o fordismo. A proposta de Vianna é a realização de um estudo acerca
de temáticas importantes para a classe operária e o sindicato enquanto organismo de
representação e de luta, demonstrando a relação do liberalismo com o Estado e do que
nomeia como grupos sociais.
O livro de Werneck Vianna possui um capítulo específico, Revolução “pelo alto”
e modernização, para discutir a revolução burguesa no Brasil. O sociólogo parte do texto
O programa agrário da social-democracia na primeira Revolução Russa de 1905-1907 de
Lenin
13
para fundamentar sua análise sobre as duas possíveis transições do mundo
feudal para o capitalismo. O primeiro caminho correspondente “a modernização e o
capitalismo [que] transformam a economia feudal” “tendo como agente decisivo a
grande propriedade de renda da terra.”. O segundo caminho, ligado ao caso dos Estados
Unidos da América, “depende de uma articulação diversa, em que a pequena
propriedade camponesa joga um peso considerável” e elimina de forma revolucionária
o latifúndio feudal e transita para o capitalismo. (VIANNA, 1976, p.128).
No caso brasileiro, os anos de 1930 aparecem como de grande relevância para
Vianna e em sua análise sobre o processo da revolução burguesa no país. Elemento
fundamental é a modernização conservadora e a via prussiana, mas não a revolução
passiva como formulada por Antonio Gramsci. Segundo o autor, um dos seus objetivos
é o de “recuperar conceitualmente o caminho prussiano, expresso também na fórmula
de “revolução pelo alto”.”. Como elementos essenciais da revolução burguesa indica o
crescimento das principais capitais brasileiras entre os anos de 1920 e 1937, bem como
“a mudança de sentido do movimento migratório” que se “constituirá noutro relevante
indicador de modernização”, assim como o movimento político-militar “sob liderança
de base agrária” e “trata-se de saber se o Estado se comportou ou não como agente
ativo do processo de modernização observado”, bem como o corporativismo e sua
legislação. (VIANNA, 1976, pp.130-132).
O proletariado e as lideranças fabris, segundo Vianna, não conseguiam consumar
uma revolução burguesa e “a política do Estado era obrigada a um esforço
contorcionista, tomando a forma de um projeto comunitarista nacional” com a
finalidade de “disfarçar a estreiteza dos interesses privados que amparava.”. A
13
Importante verificar que em fins de 1907 a revolução russa entrava em refluxo. A questão agrária desse
período deveria ser pensada por meio de caminhos de desenvolvimento para a agricultura e como base
essencial para a revolução burguesa no país. Segundo Lenin (1977, pp.07-09), os anos de 1907-1910, de
reação, foi também um momento de tendência para o idealismo filosófico e do “misticismo como disfarce
de um estado de espírito contrarrevolucionário.”. À classe revolucionária ficava a tarefa de dirigir a luta
política e os partidos revolucionários deveriam completar sua instrução, analisar concretamente a
situação, saber “recuar ordenadamente” para compreender “que não se pode triunfar sem saber atacar
e empreender a retirada com ordem.”.
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burguesia industrial também não teria sido capaz de se apropriar do Estado e “resolver
sua realização como classe sob a liderança política de uma outra.”. (VIANNA, 1976,
p.135).
Assim como na Itália, um dos problemas da revolução burguesa estaria também
na ausência de resolução para a questão agrária. No caso brasileiro “a ausência de um
campesinato dinâmico, resultante da sua falta de vínculo com a sociedade mercantil,
barraria um processo de transformações agrárias “à americana”.”. Por outro lado, o
autor aponta que o latifúndio barrou o processo de transformações no campo sendo
isso prejudicial para a configuração de uma ordem liberal. (VIANNA, 1976, p.133).
A revolução burguesa no Brasil aparece no capítulo específico de Vianna
enquanto uma “modernização como “revolução pelo alto”,” sem ser realizada pela
burguesia industrial e com “os interesses específicos da indústria tenham encontrado
apoio e estímulo eficaz na nova configuração estatal”. (VIANNA, 1976, p.135). A
denominada revolução pelo alto, para o autor, “consiste numa forma de induzir a
modernização econômica através da intervenção política” que implicará
numa “conservação” do sistema político, embora promova rearranjos nos
lugares ocupados pelos seus diferentes protagonistas. Num certo sentido, toda
revolução “pelo alto” assume a configuração particular de uma revolução
“passiva”, como Gramsci descreveu no Risorgimento, isto é, de uma revolução
sem revolução [...]. (VIANNA, 1976, p.141).
Um dos problemas observados na obra de Vianna é a ausente apropriação da
categoria de revolução passiva de Gramsci, o qual, no entanto, se propõe e o faz sem
utilização efetiva do instrumento de tradutibilidade. No texto em questão, a privação de
teorização sobre revolução passiva e o elemento jacobino também se fazem presentes.
O autor centraliza sua tese no desenvolvimento nacional do país sem analisar a relação
centro-periferia em que se insere o Brasil, bem como a influência externa para os
desdobramentos internos da luta de classes e da revolução burguesa. Indica grande
ecletismo teórico em seu texto, com alguma apropriação do conceito de via prussiana,
em Lenin, de modernização conservadora em Barrington Moore Jr
14
, de Lukács, de
Althusser, de Gramsci e do debate colocado no Brasil a partir de 1960. Por fim, sugere a
ocorrência do processo de modernização “pelo alto”, ao que assemelha à modernização
14
O conceito de modernização conservadora é presente em MOORE JUNIOR, B. As origens sociais da
ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo:
Martins Fontes, 1975. O autor cunha o conceito para analisar os processos de revoluções burguesas que
ocorreram no Japão e na Alemanha, de maneira a explicar o desenvolvimento do capitalismo por meio de
pactos com as elites dominantes e transição para regimes políticos autoritários e totalitários.
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conservadora, por meio de uma aliança das elites dominantes com a velha ordem social
assumida pelo liberalismo no país.
No livro A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (2004)
15
, Vianna
demonstra maior apropriação da categoria de revolução passiva, mas aprofunda seus
argumentos trabalhados em Liberalismo e sindicato no Brasil (1976) e indica
incorporar parcialmente a linha de análise de Florestan Fernandes. Ao fundamentar que
a história brasileira ocorreu sem um processo de revoluções, mas com rupturas políticas
conscientemente orientadas, retoma o argumento de que no Brasil o avanço do
liberalismo se desenvolveu sem romper com a derrubada do antigo regime,
estabelecendo, portanto, processos de revoluções passivas.
No conjunto de ensaios (2004), o autor apresenta como tese central uma
instrumentalização da categoria gramsciana de revolução passiva para explicar o que
denomina de iberismo e americanismo no Brasil, o que significa a caracterização da
revolução burguesa no país, enquanto um processo autocrático e de longo tempo, “em
que o novo não cancela a antiga ordem social, sendo ao contrário, tributário de elites
políticas reformadoras que deflagram um programa de transformações sob a cláusula
restritiva do “conservar-mudando”, sendo, portanto uma maneira de atualização e
conservação do domínio que já existia no país. (CARVALHO, 2004, p.07).
O conjunto de ensaios de Luiz Werneck Vianna reunidos em Revolução passiva:
iberismo e americanismo no Brasil (2004) é um marco importante na produção brasileira
sobre Gramsci e também no esforço de tradução de Gramsci como instrumento de
interpretação da particularidade histórica do Brasil, muito particularmente os dois
primeiros ensaios. Mesmo que não fosse completa novidade, esse livro inaugura a
reflexão teórica sobre a categoria de revolução passiva e sua aplicabilidade na realidade
brasileira, argumento de grande atualidade nos estudos gramscianos no Brasil.
Invertendo a ordem de apresentação no livro vale notar que o segundo ensaio,
O ator e os fatos: revolução passiva e americanismo em Gramsci, além da excelente
análise da obra de Gramsci, traz também como implicação uma orientação política para
o “ator” brasileiro. Vianna começa por constatar “a decadência heurística da revolução”
e o “esvaziamento da categoria trabalho como variável sociológica e explicativa dos
processos sociais” (VIANNA, 2004, p. 29). Nesse cenário a revolução passiva seria a único
15
Indica-se que este texto foi produzido com base nas primeiras e segundas edições dos livros de Vianna.
O livro A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil “obteve o Prêmio Sérgio Buarque de
Holanda, conferido pela Fundação Biblioteca Nacional ao melhor ensaio brasileiro publicado naquele
ano.”. Maria Alice Rezende de Carvalho, no prefácio do livro, ressalta que muitos dos artigos de Werneck
Vianna circulavam em periódicos científicos do país e que “o livro não teve sua forma questionada,
tendo sido recepcionado, justamente, como obra inteiriça e sólida, contribuição inegável à tradição do
ensaísmo nacional.”. (CARVALHO, 2004, p. 7).
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processo a ter vigência universal e estaria mesmo procedendo a modernização
capitalista e a democratização, com a expansão dos direitos de cidadania.
Muitos à esquerda se submeteram a essa ilusão no decorrer dos anos 1990 e
mesmo depois (na época dos governos petistas), que modernização capitalista, ou seja,
neoliberal e avanço democrático pudessem ser compatíveis. Vianna lamentava que
ainda não houvesse um “ator” capaz de conduzir a revolução passiva com a perspectiva
da democracia. A proposição é claramente reformista como se vê.
No decorrer do ensaio, Vianna expõe o pensamento de Gramsci como se tivesse
havido uma ruptura entre os escritos pré-carcerários e os cadernos redigidos no cárcere,
estes dominados pelo tema da revolução passiva. Na leitura de Vianna, na revolução
passiva, os fatos tendem a se sobrepor ao ator, mas, não sempre e nem
necessariamente. A virtú cumpre sempre um papel. No caso do Risorgimento italiano,
ainda que a revolução passiva fosse inexorável, o Partito d’Azione de Giuseppe Mazzini
poderia ter sido um ator que exercesse um papel tal a levar a Itália a uma situação na
qual o elemento de modernidade capitalista e liberal contasse mais em relação às forças
da conservação. Vianna como descontado a inviabilidade da revolução democrática
jacobina, quando Gramsci, na verdade, se pergunta do porquê de essa não ter se
realizado.
De fato, no decorrer da revolução passiva, quando é inexorável, cabe ao ator
conhecer bem a sua circunstância e a partir dela travar a guerra de posições. Vianna
aqui a possibilidade de se transformar a revolução passiva em direção a uma
transformação social mais profunda e “nessa mudança de chave, a possibilidade de
tradução do marxismo como uma teoria da transformação sem revolução ‘explosiva’ do
tipo francês” (VIANNA, 2004, p. 78). A transformação se daria por meio de mudanças
moleculares. É verdade que o mundo burguês se difunde por mudanças moleculares e
assim amplia sua hegemonia, mas poderia esse mundo ser destruído apenas por
mudanças moleculares produzidas pele força antagônica? É uma tese que carece de ser
desenvolvida, mas não encontra respaldo no conjunto da obra gramsciana, assim como
não encontra respaldo a ideia de que Gramsci perscrutasse uma democracia liberal
burguesa na sequência da derrota do fascismo.
Gramsci entendeu o americanismo-fordismo como uma revolução passiva de
largo folego e com grande capacidade expansiva, capaz de bloquear a revolução por
algum tempo, mas até que as suas contradições se explicitassem. Desde o movimento
dos conselhos de fábrica (1919-1920) Gramsci vislumbrava um americanismo-fordismo
reverso. Uma perspectiva aberta para que o homem trabalhador coletivo viesse a se
emancipar ao modo de individualidades livres e cooperativas. A leitura de Vianna aponta
o americanismo como a possibilidade de uma revolução passiva permanente, portanto,
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ainda válida na virada do milênio. Não seria o caso de se perguntar se Vianna não havia
incorporado a perspectiva (e as angústias) da tradição liberal-democrática brasileira
(HOLLANDA, 1976; FAORO, 1976), que quase sempre teve no americanismo o seu farol,
mas que sempre padeceu pela ausência de um ator que guiasse a revolução passiva a
esse fim, que transfigurasse a herança ibérica em americanismo.
Na verdade, a avaliação de Vianna é uma variante que defende que o processo
de americanização começou em 1930, por iniciativa de uma parcela das oligarquias
agrárias de extração territorial iberista e liberal. No ensaio inicial do volume em questão,
intitulado “Caninhos e descaminhos da revolução passiva no Brasil”, Vianna alonga o
tempo histórico da revolução passiva no Brasil, que teria tido início no momento da
formação do Estado territorial brasileiro. Nesse ponto, incorpora a leitura de Florestan
Fernandes sobre a revolução burguesa no Brasil.
Para Vianna, a primeira manifestação da antítese nesse processo de longa
duração foi a fundação do Partido Comunista Brasileiro, em 1922. Mas,
Com o movimento político-militar de 1930 a Iberia se reconstrói, sem se
desprender, contudo, de suas bases agrárias, de onde, as elites tradicionais
extraem recursos políticos e sociais para a sua conversão ao papel de elites
modernas, vindo a dirigir o processo de industrialização” (VIANNA, 2004, 18).
Essa Iberia reformada conta com o ator que exerce protagonismo sobre os fatos.
Nos anos 50, porém, a força da antítese é bem maior e a revolução passiva avança por
meio de um projeto de desenvolvimento capitalista amparado por uma coalizão
nacional-popular, que incorpora “as elites políticas, o sindicalismo, a intelligentsia, e à
esquerda, especialmente o PCB” (VIANNA, 2004, p. 19).
De fato, segundo ainda a interpretação de Vianna, com a chamada Declaração
de março, de 1958, o PCB se propôs a participar como ator do processo de revolução
passiva com a inclusão das demandas da antítese. Assim, o PCB anotava o aspecto
positivo do processo de revolução sem revolução. A sua debilidade mostrou-se, no
entanto, ao exercitar a sua ação no campo do Estado, entendido como núcleo da
organização da vida social, ao invés de reconhecer que era o lugar mais cômodo para as
classes dirigentes.
O golpe de Estado de 1964 teria sido o fim da revolução passiva por conta do
programa liberal do início da ditadura militar. Parecia ser o acerto de contas com o
iberismo e a implantação de uma americanização “por cima”. Na concepção de Gramsci,
vale sempre lembrar, a americanização “por cima” foi o intento do fascismo.
Essa possível ruptura no seio das classes dirigentes assistiu outra paralela no campo das
esquerdas: uma parte significativa das esquerdas passou a apregoar a ruptura
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revolucionária em clara oposição a revolução passiva. Intelectuais paulistas
estabelecidos na USP, como Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Francisco Weffort,
ofereceram o arcabouço teórico para essa mudança de rumo. A questão nacional deixou
de ser a prioridade e a questão da contraposição de classes passou a ser o foco. A
explicação pode ser encontrada, segundo assevera Vianna, na circunstância do estado
de São Paulo, onde a questão do mercado, dos interesses, de um capitalismo mais
avançado e americanizado era muito presente.
No entanto, essa perspectiva foi derrotada ao se observar o conjunto do País.
Foram as “rupturas moleculares” que abriram caminho para a transição democrática. O
tema que passa a predominar é o da democracia política, a qual logo se acopla a questão
da democratização social. A revolução passiva retoma o seu rumo em busca da
americanização, da normalização da ordem burguesa (com a colaboração de um PCB em
crise profunda). A questão passa a ser da modernização do capitalismo e da
generalização do estatuto da cidadania: “o ‘fermento’ é a democracia [...] (VIANNA,
2004, p. 23). Às classes dirigentes cabem interromper o nexo entre o político, o social e
a cidadania ampliada para conceber seu Estado. Vianna observa com simpatia o embate
do MST pela conquista da terra, um elemento do social que trava também uma luta
política. A constituição de uma camada de pequenos proprietários significaria um passo
ainda na perspectiva da americanização. Contudo, os fatos ainda estariam à procura de
um ator (e esse não parecia ser o PT).
Toda essa concepção estratégica de condicionar e orientar a revolução passiva,
a fim de provocar mudanças moleculares, é intrinsicamente reformista. Nota-se em toda
essa argumentação a ausência da categoria teórica, nuclear no pensamento de Gramsci,
de hegemonia. Percebe-se ainda que esse argumento só faz sentido se for convincente
(o que não é) a ideia de que Gramsci acataria a perspectiva de uma democracia burguesa
liberal na sucessão do fascismo.
Passados 25 anos do lançamento do livro, podemos perceber que o relativo
otimismo de Vianna não se consubstanciou: a democracia política e social não avançou,
muito ao contrário e a “modernização capitalista” tem sido a implantação do desastroso
projeto neoliberal de Estado e de economia. Teria faltado um ator para colocar em
prática uma revolução passiva progressiva. Mas talvez a questão seja outra; teria mesmo
a revolução passiva se universalizado depois dos anos 80 do século XX ou ao contrário,
essa só é possível de modo excepcional?
Vianna (2004) entende que a revolução passiva no Brasil foi um processo de
longo prazo e que a Independência se inaugurava como uma revolução sem
revolução. Para fundamentar sua tese demonstra sua compreensão de Gramsci ao passo
que correlaciona os Estados de formação capitalista retardatários com a América Ibérica
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de maneira análoga. Para tal desafio, reflete acerca da ruptura com o pacto colonial
como sendo uma iniciativa direcionada pelo príncipe da Coroa Portuguesa e não como
um movimento nacional. Ainda assim, observa que no Brasil é conservada a ideia de
revoluções e “se fala em Revolução da Independência, Revolução de 1930, Revolução
de 1964”, mas que tais acontecimentos não se configuraram de fato como
revolucionários, mas como processos de conservações do velho e evita a revolução.
(VIANNA, 2004, p.43).
Para Vianna, um dos pontos essenciais é compreender o liberalismo brasileiro
enquanto doutrina influenciada diretamente pelo ideário francês revolucionário que
chegara ao país e influenciara a organização das instituições políticas, mas não na
formação de um movimento de ação política transformadora jacobina ou a criação de
um Estado-nação. É nesse sentido que mesmo se as ideias revolucionárias chegassem
ao país, o Estado que se formava, inspirado no liberalismo, “nascia sem uma economia
que se apresentasse em homologia a ele.”. (VIANNA, 2004, p.45). Complementa que
havia um “fermento revolucionário na sociedade civil que induzia a rupturas
moleculares na ordem senhorial-escravocrata”, mas que esse
não poderia comportar-se como princípio de sua organização, sem acarretar,
com isso, o desmonte da estrutura econômica, fundada no trabalho escravo e
no exclusivo agrário e que assegurava ao Estado uma forma de inscrição no
mercado mundial e presença internacional. (VIANNA, 2004, p.45).
A presença do mercado internacional e a influência norte-americana no país
servia como exemplo para as burguesias brasileiras e italianas que, similarmente,
sofriam com débil hegemonia, pois, historicamente, não foram capazes de realizarem
uma revolução burguesa de ação política jacobina, atrapalhando inclusive no
desenvolvimento enquanto burguesias nacionais. O período de desenvolvimento
chegou com grande esperança na superação de inúmeros problemas e desigualdades,
no entanto, englobava a sociedade brasileira como uma classe, sem a presença de
um proletariado forte e organizado. (SODRÉ, 1990). Tratou-se de um processo dirigido
e orientado, não planejado, no período Vargas, pois “a penetração imperialista na
produção industrial e no mercado interno do Brasil aguçaria a contradição da burguesia
nacional com o imperialismo e com o latifúndio feudal voltado para a exportação” em
que a burguesia competiria “com o imperialismo pelo mercado interno e ambas essas
forças poderiam se voltar contra o latifúndio improdutivo, que ambos teriam
interesse na expansão do mercado.”. (DEL ROIO, 2016, p.95).
Ao instrumentalizar a categoria de revolução passiva fundamentado
principalmente nas relações e no desenvolvimento nacional do Brasil, Vianna não
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analisa a relação centro-periferia em que o país esteve/está inserido. No caso brasileiro,
“o impacto externo que agiu fortemente sobre as forças sociais internas sem dúvida foi
o imperialismo dos Estados Unidos, ou, ainda melhor, o americanismo-fordismo”, que
também é tratado por Gramsci como revolução passiva. (DEL ROIO, 2018, pp.246-247).
Por fim, o processo que se desenvolvera no país, carecia de participação ativa da
classe operária e camponesa. Mas, possuía no Estado o impulsionamento da
industrialização, sendo que a “burguesia aceitou o novo Estado que se formava, dado
que este defendia os seus interesses frente à forte presença imperialista, mas também
diante da pressão das classes subalternas.”. (DEL ROIO, 2018, pp.246-247). Dessa forma,
é possível analisar a revolução passiva no Brasil de maneira semelhante ao que ocorreu
no Risorgimento, tendo como principal agente o Estado, o exército e a recomposição do
bloco histórico de poder, de maneira que não foi realizada uma revolução radical
jacobina, sem a criação de uma vontade nacional-popular e sem uma burguesia
organizada que efetivamente rompesse com o velho.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de analisar a categoria de revolução passiva desenvolvida por
Gramsci e utilizada pelo sociólogo brasileiro Luiz Werneck Vianna, este texto buscou
contextualizar primeiramente a categoria para Gramsci, assim como o jacobinismo e a
tradutibilidade, instrumento que possibilita a análise para além da Itália e do período
localizado nas reflexões de Gramsci, o tornando um clássico da Ciência Política.
No Brasil, assim como no mundo inteiro, Gramsci foi e tem sido atualmente um
dos pensadores italianos mais estudados, assim como Maquiavel. Alguma das diversas
análises da obra desse autor, no entanto, colocou sua teoria política no campo no
liberalismo. A pretendida tradução de revolução passiva de Gramsci para o Brasil,
realizada por Luiz Werneck Vianna, inaugura a instrumentalização dessa categoria, no
entanto, as diversas matrizes teórico-filosóficas do autor compelem à teoria gramsciana,
a partir dos anos 1990, para o campo do liberalismo o qual esse nunca pertenceu.
À guisa de conclusão, a questão da filosofia da práxis e da tradutibilidade de
Gramsci para o Brasil, não mais apenas da categoria de revolução passiva, mas de seu
projeto teórico-político revolucionário é elemento fundamental para a interpretação da
luta de classes e desenvolvimento de um projeto alternativo de sociedade. A revolução
passiva no Brasil acirrou algumas das contradições estruturais do país: a acumulação de
terra, atingindo ainda hoje o problema da questão agrária; o marcante problema de
classes, com a denominada desigualdade social, entre as problemáticas relacionadas à
lógica das relações entre capital e trabalho.
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Na ordem do dia deve estar o debate e a articulação prática da classe
trabalhadora, de Partidos e organizações sociais na perspectiva de transformação do
Estado e de tais contradições já apontadas. Gramsci, um intérprete e revolucionário do
século XX, continua sendo base teórica fundamental para a operacionalização das
devidas transformações necessárias no Brasil e no mundo.
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Recebido em 30 de outubro de 2021
Aceito em 13 de janeiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023